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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 260

16 de agosto de 2014

Boa noite a todos, sejam bem-vindos.

Hoje eu quero hoje entrar num tema que de algum modo prolonga o anterior e do qual já tratei na apostila "O problema da verdade e a verdade do problema"1. De modo geral, todo mundo sabe que existem duas grandes perguntas filosóficas: a primeira é aquela formulada por Leibniz: "Por que existe o ser em vez do nada?" --- Ou seja, [a pergunta sobre] a justificação da existência; a segunda é a de Pôncio Pilatos [a Cristo]: "Quid est veritas?"2 (Que é a verdade?) Essa pergunta de Pilatos tem ao menos três sentidos: (a) dentre várias alternativas, qual é a verdadeira? Isto ou aquilo é a verdade? Dentre várias afirmações, umas são verdadeiras e outras falsas. Então, a pergunta está apenas a designar quando o atributo "verdade" pode aplicar-se a esta ou àquela afirmação, a esta ou àquela crença; (b) em que consiste a verdade? Qual a essência dela? --- Este é o sentido decisivo; e (c) como conhecer a verdade? Evidentemente, se Pilatos pergunta "Quid est veritas?", é porque está em dúvida. Portanto, a pergunta contém essas três acepções ao mesmo tempo, e a situação [em que ela foi formulada] se torna bastante irônica, já que Pilatos tinha diante dele Aquele que disse: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida"3. Embora, de certo modo, ele estivesse vendo a verdade fisicamente presente, por assim dizer, para ele isso não resolvia grande coisa, porque ao perguntar "Que é a verdade?", ele está se referindo a uma verdade que ele possa pensar.

Em geral, usa-se a distinção entre verdade e realidade. Na prática, a verdade está sempre presente, mas usa-se geralmente o critério de Aristóteles de que a verdade só existe no juízo --- quer dizer, quando se extrai algo da realidade, o juízo ou julgamento que se faz disso contém alguma verdade. Porém, na apostila que citei acima eu mostro que se a verdade já não estivesse na realidade, ela não poderia ser trazida pelo pensamento. Então, temos de admitir que existe também a verdade da realidade, e esta era a verdade representada por Cristo, em vez da verdade do pensamento entendida por Pôncio Pilatos.

Acho que a questão da essência da verdade nunca recebeu muita atenção. Na Idade Média, os escolásticos defendiam a verdade como a coincidência entre o juízo e o fato. Mas eu lhes perguntaria: como eu reconheço esse juízo e essa coincidência? Essa não é uma definição de "verdade", é apenas um critério de reconhecimento: se o juízo feito coincide com o fato observado, então é verdadeiro. Mas isso não diz qual a essência da verdade, mostra apenas algo que acontece quando ela está presente --- portanto, é um critério de reconhecimento, para que se saiba se alguma verdade está presente ou não. Aí, o problema do que é a verdade também não aparece.

Nessa mesma época, existiu uma corrente de pensamento que, exercitando, por um lado, o uso da razão --- a lógica obteve, naquele período e contexto, um desenvolvimento extraordinário, até o máximo de suas possibilidades --- e, ao mesmo tempo, permanecendo na fé católica, observou uma série de contradições. Por exemplo, Siger de Brabant, o famoso monge, que era o superior de um mosteiro, dizia que não podemos, pela razão, demonstrar que um corpo gerado reaparece não gerado. Nosso corpo --- dizia ele --- existe aqui, morre e reaparece depois do Juízo Final, mas ele não foi gerado. Mas como algo que, por natureza, é gerado reaparece de maneira não gerada? Há várias outras contradições desse tipo, em que parece haver uma oposição irrecorrível entre as conclusões alcançadas pela razão e as declaradas na fé católica. Para resolver isso, inventaram a "dupla verdade": uma reconhecida pela razão e pelo pensamento, e outra reconhecida porque foi Deus quem disse, através da revelação. Mas São Tomás advertiu que se a verdade da revelação é algo cujo oposto pode ser deduzido desde princípios auto-evidentes, então está-se querendo dizer que ela é falsa. Isso evidentemente não podia ficar assim, era preciso dar um jeito.

Outro filósofo, Boécio de Dácia (que não é o mesmo Boécio, autor d'A Consolação da Filosofia, muito anterior), dizia que acreditamos nas conclusões filosóficas pela razão e nos dados da fé pelos milagres. Mas é evidente que isso também não resolve [o problema], pois sem o uso da razão não adianta ver o milagre; você não vai tirar conclusão alguma dele --- até porque saber se [um fato] é milagre ou falsificação também é um problema que incumbe cem por cento à razão.

Mais recentemente, no século XX, surgiu, após o Concílio Vaticano II, o seguinte problema: como Nossa Senhora, em Fátima, pediu que, a partir de 1960, fosse feita a consagração da Rússia e que o Terceiro Segredo de Fátima fosse revelado, e não foi feita nem uma coisa nem outra, nasceu, evidentemente, entre os católicos um estado de perplexidade de que algo não estava bem explicado. Se Nossa Senhora disse para fazer, por que o Papa não fez? Na verdade, não houve explicação alguma. O que se subentendeu foi que a consagração, se feita, ofenderia muito a Igreja Ortodoxa e afastaria as pessoas. Embora Nossa Senhora tivesse prometido a conversão da Rússia caso ocorresse a consagração, pensaram que não iria acontecer conversão nenhuma e que os ortodoxos ficariam bravos, separando-se de Roma para sempre. Ou seja, acreditaram mais na lógica do que na revelação --- o mesmo problema de Boécio de Dácia.

O problema do cotejo entre razão e revelação é que a lógica e o pensamento só nos dão afirmações, só criam julgamentos. Pensar não gera nenhuma situação de fato, apenas conclusões nas quais você julga ter razões para crer. A revelação não é nada disso: ela constitui-se de fatos; seu sentido é a própria razão que abstrai. Portanto, podemos dizer que a revelação é um dado bruto que não faz parte da verdade, mas da realidade. Essa confusão, porém, atravessou os séculos, e de algum modo está presente até hoje. Ela foi, ainda, consolidada pelo protestantismo, e, sobretudo, por Kant, que diz que se fosse possível provar os dados da revelação, não haveria necessidade de fé, o que depreciaria [00:10] o valor da religião individual; estar-se-ia seguindo apenas uma conclusão lógica, e nisso não haveria o mérito que existe na fé --- foi Kant que disse isso, não eu, não acredito em nada disso. Este disse também que a fé consiste de coisas que podem ser pensadas, mas não conhecidas, e que ela é, desse modo, uma aposta no escuro. Isso, mais tarde, se radicaliza com Kierkegaard, segundo o qual acreditar nos dados da religião é, de fato, um salto no escuro.

Em toda essa linha de pensamento protestante, que vem desde Boécio de Dácia até Kierkegaard, e que se prolonga hoje em muitas igrejas protestantes, o que se observa é a revelação tomada como se fosse afirmação, dogma. Mas a revelação não é um dogma: é algo que acontece. O dogma é extraído [dela]. Os teólogos e o Papa extraem o sentido da revelação daqueles fatos e então o expressam, mas esse já é um produto secundário; primeiro, precisam acontecer os fatos --- por exemplo, o nascimento virginal de Nosso Senhor Jesus Cristo, Sua morte e ressurreição, todos os milagres etc. Os milagres que Cristo fez não aconteceram no plano das doutrinas ou dos pensamentos: aconteceram no plano da realidade física. É como se disséssemos que eles não são verdade: são realidade. E há o tipo de verdade que está contido na realidade, e não no pensamento ou na doutrina.

Esse nivelamento da realidade do pensamento --- que Edmund Husserl chamava de metabasis eis allo genos, isto é, uma transposição para outro gênero --- sempre dá problema. Falar de um gênero e passar repentinamente a falar de outro é cair numa confusão dos diabos, confusão esta que, de certo modo, se arraigou na mentalidade popular. Nunca houve uma tentativa séria de esclarecer essa história, e gente muito boa acreditou nela e continua repetindo-a há cinco ou seis séculos. Claro que nem todos caem nisso, tem gente que sabe que não é assim, mas estes nunca fizeram um esforço sistemático de pôr as coisas em ordem, e eu acho que isso deveria ser uma prioridade para a Igreja. Se houvesse, nos últimos tempos, um Papa realmente hábil e inteligente, ele trataria isso como prioridade máxima, e diria que não se pode nivelar razão e revelação. A razão acontece na mente; a revelação, no mundo. Esta remete àquilo que dizia São Tomás de Aquino: "Nós falamos com palavras; Deus fala com palavras, coisas, atos, acontecimentos etc." Não há como nivelar as duas coisas. O sentido atribuído a esses fatos é obra da razão, não da própria revelação. Tanto que a própria revelação tem de ser objeto de discussão durante séculos! Dou como exemplo os dogmas da Igreja: reúnem-se os teólogos para discutir o significado e a interpretação de algo, até que se chegue a uma conclusão. Esse processo dura, às vezes, dez ou vinte séculos! O dogma da Imaculada Conceição de Maria é do séc. XIX --- ou seja, levou-se dezenove séculos para que chegassem a uma conclusão.

Isso mostra que dogma e revelação são coisas absolutamente diferentes. O dogma é extraído da revelação por um esforço da razão. Você pode dizer com certeza que este é um esforço da razão guiado pelo Espírito Santo. Além do guiamento normal que o Ele dá à sua inteligência --- que é uma de Suas funções permanentes ---, há, por assim dizer, uma assistência especial que Ele dá aos homens santos, aos Papas etc. Mas o Espírito Santo o está ajudando, e não fazendo o serviço em seu lugar; é a sua razão, fortalecida e amparada por Ele, que tira as conclusões.

Portanto, é errado discutir razão e revelação como se estivessem no mesmo plano. O que se pode pôr no mesmo plano é razão e dogma. Mas este também é fruto daquela: enfim, é razão contra razão; é um confronto da razão com ela mesma. Aliás, que outra coisa faz a razão senão entrar em confronto com ela mesma o tempo todo? O modo normal do ser humano pensar é a oposição de hipóteses. Que é o método científico? É a confrontação de hipóteses. Que é a famosa dialética de Aristóteles? É a confrontação de hipóteses. Aristóteles dizia, na verdade, que a dialética é o único método [científico] possível, pois se só existe uma tese possível, não há discussão, já se sabe a verdade. Se existe motivo para haver ciência, [este] é a possibilidade de hipóteses diversas e conflitantes. Estou esperando até agora para ver onde está o confronto entre razão e revelação. Esse confronto não existe; o que existe é o confronto da razão com a razão mesma. Mas os termos "fé" e "razão" já se consolidaram tanto no uso popular que as pessoas continuam utilizando-os. Até na encíclica de João Paulo II [chamada] Fé e Razão observa-se este erro de que estou falando. [Portanto], existe o dogma da fé e existe a revelação. Um não é o outro, e o dogma da fé veio depois.

No meio da situação de perplexidade criada pelo caso de Fátima, o famoso apóstolo da consagração da Rússia, Pe. Nicholas Gruner, escreveu um livrinho --- que eu acho maravilhoso --- chamado Questões Cruciais para a Salvação da sua Alma4, em que ele diz que a desobediência, a recusa de seguir a instrução dada por Nossa Senhora em Fátima coloca toda a Igreja em risco, inclusive o próprio Papa, e que muitas pessoas não querem discutir o assunto porque houve uma declaração de Roma --- sobretudo [através] dos cardeais Bertone, Casaroli e outros --- dizendo que a consagração já tinha sido feita e que todas as profecias já haviam se realizado, que não era mais preciso se preocupar com isso. Mais adiante, no entanto, o Papa Bento XVI disse que os que pensam assim estão se iludindo, pois a profecia de Fátima diz respeito ao futuro, às coisas que não aconteceram ainda e que ainda vão acontecer, e não ao passado. O próprio Papa falou isso. Então, há, por um lado, a declaração oficial da Secretaria de Estado [da Santa Sé] dizendo que a profecia já se realizou, e, por outro, o Papa, afirmando que ela não se realizou ainda. E agora, o que fazer? Em quem acreditar?

Isso cria uma situação de perplexidade para toda a população católica --- ao menos aos que prestam atenção, porque há pessoas tão simplesinhas que nem sabem que está havendo esse debate, para elas nada aconteceu. Elas estão no séc. XIII, e estão se sentindo muito bem lá, protegidas, de certo modo, por sua [própria] ignorância. O analfabeto é protegido, por seu analfabetismo, de adquirir um analfabetismo superior e mais difícil --- o analfabetismo das universidades, da mídia etc. Ele, então, permanece num estado mais primitivo que, de algum modo, é mais saudável. É como diz Thomas Sowell: "Os cientistas estão procurando a inteligência artificial e as universidades estão transmitindo a burrice artificial" --- fiquem com burrice natural, que é melhor que a artificial.

Então, o Pe. Gruner coloca o seguinte problema: o que falta em todas essas discussões é o senso da verdade. Ele diz que não adianta seguir a autoridade do Papa e os dogmas se você não tem o senso da verdade. Veja [0:20] que coisa terrível: você obedece ao Papa, faz o que ele manda, mas, como não tem o senso da verdade, não sabe se o que ele diz é verdade ou mentira! No caso de Fátima, não o Papa pessoalmente mas a Secretaria de Estado [da Santa Sé] mentiu ao dizer que a profecia já havia se cumprido --- na melhor das hipóteses, não foi mentira, foi auto-engano. Mas depois que Bento XVI afirmou não ser assim, ela não tem mais razão para continuar insistindo nisso.

Houve, no entanto, mentira pior: dizer que a consagração do mundo, feita por João Paulo II, em 1984, já realizara a consagração tal como fora solicitada por Nossa Senhora. Mas ela havia dito que a consagração era a da Rússia, feita pelo Papa juntamente com todos os bispos do mundo. Não havia nenhum bispo ali, nenhum foi convocado. O Papa, sozinho, consagrou o mundo; como a Rússia está dentro do mundo, disseram que ela foi consagrada, e ainda disseram que a irmã Lúcia tinha confirmado isso. Porém, o Pe. Gruner mostra, em seu livro, várias mensagens endereçadas pela irmã Lúcia a diversas pessoas dizendo que [a consagração] não fora realizada. Então, é evidente que está havendo uma mentira. Ora, existe algum dogma dizendo que o Papa pode obrigar alguém a acreditar numa mentira? Não tem. Mas como saber se é mentira? Embora o Papa detenha autoridade infalível, ninguém pode dizer que ele é infalível em matéria histórica --- esse é o problema. E o que ele entende que se passou em Fátima é matéria de história, não de dogma; ele está se referindo a fatos, mas, pelo hábito e pelo temor da desobediência, as pessoas ficam com medo de tocar no assunto.  Ao fazer isso, deprimem ainda mais seu senso da verdade, que, quando acaba, extingue também a fé. Daí decorre a "crise de fé" de que fala o Dr. Júlio Fleichman. O problema é que as pessoas perderam a fé! Perdê-la não significa deixar de acreditar; significa que o conjunto das conclusões que a Igreja foi tirando da revelação ao longo do tempo e que forma o núcleo daquilo em que se tem de acreditar e está condensado no Credo acaba sendo mudado. Às vezes, a mudança é explícita, como no caso da Teologia da Libertação; em outras, é implícita, ou seja, conserva-se a mesma fórmula verbal, mas se a entende de uma maneira diferente.

Não é necessário dizer que, desde o Concílio Vaticano II, todas essas interpretações exóticas proliferaram de maneira extraordinária. Isso é observado em pessoas como [Rudolf] Bultmann, que partem para o que chamam de "desmitologização", isto é, tratam a revelação como se fosse um conjunto de mitos. Ela tem um alcance mítico, sem dúvida, mas existem mitos que foram inventados e contados por pessoas e existem mitos que aconteceram. E não só no cristianismo. Por exemplo, a vida de Buda tem uma dimensão mítica, ela é um mito, passado de geração em geração. Ocorre, porém, que Buda realmente existiu e fez aquelas coisas, e, por isso, sua biografia adquire uma dimensão mítica. No Islã, a vida de Maomé --- suas batalhas, seu encontro com o Arcanjo Gabriel, a fuga para Medina, a vitória militar etc. ---; tudo isso tem uma dimensão mítica para os mussulmanos, mas aconteceu de verdade. Esses casos não são, por exemplo, como os mitos gregos, os mitos que estão em Homero, que são produtos da imaginação mítica humana. Aí se misturam os dois sentidos da palavra "mito". Na hora em que se busca "desmitologizar", além de se estar confundindo os dois sentidos da palavra, incorre-se no seguinte problema: se a verdade da fé que está contida no mito não vale exceto em sentido mítico, qual é a verdade efetiva que está dentro dela? Só resta uma verdade, que é a da ciência física; tudo o que a tradição ensinou passa a ser uma expressão mitologizada de verdades que estão na ciência física, e o que nela não cabe tem de ser excluído. Desse modo, por exemplo, a multiplicação dos pães teria sido apenas uma figura de linguagem que expressaria a "divisão", a "socialização da propriedade" --- e uma série de outras patacoadas desse tipo.

O problema central é, portanto, este de que falou o padre Gruner --- e que eu acho a coisa mais dramática que alguém falou no século XX: sem o senso o senso da verdade não existe nem mesmo a fé. Resta-nos, então, este problema: que raios é o senso da verdade? Na apostila "O Problema da Verdade e a Verdade do Problema", toquei brevemente nisto, mas gostaria de aprofundar a questão. Quando falamos a palavra "verdade", usamo-la, geralmente, em sentido diminuído, apenas funcional. Dizemos "Isto é verdade, aquilo é mentira", por exemplo, quando, numa demonstração silogística, deduzimos que uma conclusão é verdadeira e outra é falsa, ou quando, numa narrativa de duas testemunhas, dizemos que uma está falando a verdade e que a outra está mentindo --- e assim por diante. Tudo isso seria impossível se não tivéssemos ou o senso da verdade ou um critério consensual e, de certa forma, convencional --- que consiste em chamar de verdade as proposições que atendam a estes ou aqueles requisitos, e, de erro ou mentira, as que não atendam. Porém, se o critério da verdade fosse apenas convencional, nada impediria que alguém fixasse outra convenção e descobrisse outras verdades opostas, o que seria um caos.

Assim, o senso da verdade deve existir em algum lugar, mas onde ele está? Se seguirmos a norma escolástica, [segundo a qual] a verdade é a coincidência entre fato e juízo, o senso da verdade consistiria apenas em cotejar os dois --- o que foi pensado e o que aconteceu ---, e seria apenas a aplicação dessa regra de coincidência. Se o critério da verdade fosse apenas o que foi expresso pelos escolásticos, todo o senso da verdade consistiria na nossa capacidade de comparar uma coisa com outra. Mas existe outra condição, que está como que escondida abaixo desta: se consigo comparar uma coisa com outra e descobrir que uma delas é verdadeira, é porque tenho o senso da verdade, prévio à comparação e que é o fundamento mesmo dela. Portanto, a verdade não está na comparação, mas no senso da verdade que a possibilita.

Do mesmo modo, quem disser que a verdade é aquilo que a ciência diz que é verdade, o faz porque estudou o método cientifico, é capaz de cotejar uma hipótese com certos resultados experimentais, construídos para verificá-la ou impugná-la, e, por fim, de concluir se ela é verdadeira ou falsa. [00:30] Como se consegue identificar isso? Porque por trás disso existe o senso da verdade. Nem o critério escolástico, nem o critério científico e nenhum outro critério considerado em si mesmo são suficientes: não há como reduzir o senso de verdade a um critério de verificação, porque a possibilidade mesma desse critério depende de que o senso da verdade exista antes. É mais que óbvio, então, que o problema do estudo da filosofia não consiste em adquirir esses critérios, em conhecê-los um por um --- o critério lógico, o científico, o teológico etc. ---, mas em desenvolver o senso da verdade.

Outro dia um sujeito me perguntou em quem devemos acreditar. Para responder a isso, primeiramente, temos de colocar o seguinte problema: eu sou confiável, eu posso acreditar em mim mesmo? Porque se eu não acredito em mim mesmo, não posso acreditar em mais ninguém. Todos nós sabemos que às vezes dizemos a verdade e outras vezes mentimos, e, quando mentimos, podemos, em seguida, adornar a mentira com várias mentiras sucessivas até, por fim, esquecermos da verdade. Isso pode acontecer com todos nós, mas só acontece porque temos o senso da verdade previamente a isso. Portanto, em algum lugar da nossa alma existe esse senso da verdade, e, de algum modo, temos de aprender a reconhecê-lo, a se ater a ele, e nunca sobrepor a ele os critérios que, ao invés de o determinarem, nascem dele.

Existe, por exemplo, o critério da obediência. O Papa diz "Roma locuta, causa finita"5 --- o Papa disse tal coisa e temos de obedecer. Porém, para obedecer, você tem de entender e, para entender, precisa do seu senso da verdade. Isso quer dizer que [só] a obediência não resolve. O critério científico também não resolve. Você pode conectar a hipótese com os dados da experiência, com todo o método experimental, mas só conseguirá fazê-lo porque tem, por trás, o senso da verdade por trás que lho permite. O senso da verdade tem várias manifestações que, de algum modo, o simbolizam, o significam e o representam. A obediência, a lógica, o método científico, a memória histórica --- tudo isso são formas de alcançar a verdade. Porém, todas elas seriam inúteis sem o senso da verdade, se você não soubesse profundamente qual a essência dela. Isso é um conhecimento que todo mundo tem, mas que ninguém expressa porque é muito difícil expressá-lo. Na verdade, este é o grande problema da filosofia: [saber] o que é o senso da verdade e como desenvolvê-lo.

Uma das principais funções do ensino universitário hoje em dia é ensinar as pessoas a confundir o senso da verdade com os critérios que o representam: o critério lógico, o fático, o científico, o teológico, o da revolução marxista --- que, ao afirmar que a verdade é aquilo que se insere na dialética revolucionária, de forma que algo que não é verdade hoje pode virar verdade amanhã, não deixa de ser um critério ---; enfim, todos esses critérios nascem do senso da verdade. Não explicarei hoje o que penso dele, vou deixar isso para a próxima aula; a de hoje foi só para introduzir o problema e mostrar-lhes sua importância.

Ao longo dos diálogos socráticos, o que Sócrates está sempre puxando das pessoas é o senso da verdade. Ele mostra que esse senso se revela naquilo que elas já sabem, mas não podem negar, porque elas são suas próprias testemunhas interiores, não exteriores. Ou seja, elas sabem o que pensaram e por que pensaram. O senso da verdade tem a ver com a verdade com que uma consciência se apresenta para si mesma; não é um critério externo, [embora] para conhecer um fato externo, ele é necessário também --- caso você tenha presenciado uma cena, precisa dele para saber o que realmente presenciou.

Sabemos como é fácil falsificar um fato. Ontem mesmo eu assisti a um documentário sobre a vida de Wyatt Earp, que se tornou um famoso xerife em filmes de bangue-bangue pelo seu tiroteio com a família Clanton --- sobre o qual fizeram uns quarenta filmes, que contaram com umas trinta testemunhas, e nenhum dos testemunhos coincidia com os outros. Então, que aconteceu? Sabe-se que, por baixo dos testemunhos, algo realmente houve. Esse algo, no entanto, só Deus sabe. Quando dizemos "Só Deus sabe", queremos dizer que há algo na realidade, não no pensamento; o pensamento não alcança o fato porque este já passou, e sobre ele houve tantas mentiras e fabulações que estamos confusos. Eu lhes pergunto: vocês sabem ou não que existe a verdade da realidade? [Entretanto], se ela não existisse, seria até impossível perceber que várias testemunhas divergem.

Portanto, tudo o que falamos subentende essa crença, inclusive o ceticismo. Existe a verdade da realidade, que não é a verdade do pensamento, mas algo que aconteceu de fato, quer consigamos apreendê-lo, quer não; quer consigamos transformá-lo numa modalidade de pensamento, quer não; quer consigamos transformá-lo numa crença verdadeira, quer não --- algo aconteceu. A fidelidade do homem à verdade da realidade: isto é o senso da verdade. A verdade existe, ela acontece e está aí, embora o nosso pensamento possa se confundir. E tem de haver um modo de intensificarmos nossa fidelidade a essa verdade da realidade, permitindo que ela fale em vez de nossos pensamentos se sobreporem a ela. Isto é o senso da verdade. No caso de Fátima, por exemplo, ou a consagração foi feita ou não foi feita; uma das duas coisas aconteceu na realidade. Ou a consagração do mundo feita pelo Papa João Paulo II atende ao que Nossa Senhora esperava ou não atende, [e] só quem o sabe é ela. Alguma coisa aconteceu na realidade, mas até hoje não sabemos o que foi.

Nós podemos criar a nossa crença, a nossa idéia, e ela pode se sobrepor à realidade a um ponto quase inimaginável. Na fundação da ciência moderna, no tempo de Galileu, descobriu-se o poder da matemática, e [as pessoas] estavam deslumbradas, sobretudo com a geometria. Se você me perguntar o que é geometria, responderei que ela é a lógica da nossa imaginação espacial, e não do espaço. O espaço pode ter mil propriedades que não apreendemos, e o simples fato de terem aparecido as geometrias não euclidianas já prova isso. Ou seja, existe uma geometria divina, que é a geometria do espaço real --- a verdade da realidade do espaço tal como Deus o criou ---, e existe a nossa geometria, que, medindo este ou aquele objeto, representa e simboliza alguma de suas propriedades espaciais, sem poder apreender todas e sem saber sequer qual é a hierarquia efetiva entre a variedade delas. Entretanto, na Renascença, as pessoas acreditaram que a geometria humana fosse a linguagem de Deus. E será que elas eram todas pitagóricas? [00:40]

Na Bíblia está escrito que está tudo contado, pesado e medido. Sim, está; mas na mente de Deus. Ele sabe a contagem exata. Quem pode afirmar que sua contagem coincide com a d'Ele? Quem disse que a linguagem da matemática humana é a linguagem de Deus? Nada garante que ela seja e, com certeza ou muito provavelmente, não é. Mas na Renascença as pessoas estavam tão deslumbradas com o progresso da matemática, as descobertas eram tantas, que elas achavam que a geometria que conheciam era, de fato, a própria linguagem divina, ou que, através dela, poderiam captar essa linguagem. Daí resultaram uma infinidade de mitos que fazem parte da história da ciência. Quando se estuda, hoje, por exemplo, a lei da gravitação universal, as coordenadas cartesianas ou qualquer dos elementos científicos que apareceram naquela época, se os estuda já adaptados à mente moderna e isentos de todas as suas taras originárias. Por exemplo, ninguém ensina que Galileu, baseado em sua astronomia heliocêntrica, acreditava que os cometas não existiam e que eram apenas ilusões de ótica criadas pelo sol. Mas se ele, com a sua teoria heliocêntrica, estava com a razão, como é que dela ele tirou uma conclusão tão absurda, ao considerar que o sol não era o centro do sistema solar --- que ele sequer sabia o que era ---, mas o centro do universo? No seu confronto com o inquisidor São Roberto Belarmino, este deu-lhe um baile, provou-lhe que aquilo era absurdo e mandou-o para casa. Hoje, a história é contada pelo que sobrou de genuíno das descobertas de Galileu e que se incorporou às ciências seguintes, e não pelo que ele efetivamente disse na época. Isso quer dizer que a verdade da ciência físico-astronômica de Galileu é obtida à custa da falsificação da história do próprio Galileu. Na verdade, o quociente de verdade que havia ali estava misturado com um monte de lendas e mentiras. Foi o ensino subseqüente das escolas que vieram depois que limparam aquilo, omitindo à garotada as besteiras que Galileu falou e ensinando-lhes só a parte boa. Quem aprende assim acaba achando que essa parte boa era tudo, e que qualquer um que conteste Galileu é uma besta quadrada. Chegam a divinizá-lo, como se ele fosse um herói!

Nessa época, a idéia de apreender a linguagem divina por meios matemáticos era uma crença, um dogma pitagórico que vigorava nos meios científicos. Havia muitas organizações esotéricas que cultivavam o pitagorismo, e as pessoas acreditavam nisso. Era um dogma religioso, na verdade, que se incorporou à ciência da época para, em seguida, ser transmitido às gerações seguintes, separado do fundamento esotérico que o originou.

É por isso que eu digo que as pessoas que são treinadas numa ciência e numa universidade são de algum modo induzidas a ignorar a história daquela ciência, porque querem [dela] só a parte que funciona nos termos de hoje, o resto para elas é lixo. Mas, como eu costumo dizer, existe a faculdade de física e a faculdade de história, e as duas têm de ficar o mais próximo possível da verdade. Não se pode firmar a verdade da ciência física à custa da falsificação da história da [própria] ciência física. As duas têm de ser harmonizadas, ainda que isso leve a algumas contradições e perplexidades.

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Aluno: Essa questão da busca da verdade, esse dilema, por assim dizer, influenciou a escolástica, principalmente a mística medieval? Os místicos medievais, não conseguindo descrevê-la, criaram, por isso, aquele universo da mística medieval?

Olavo: Em toda e qualquer busca sincera pela verdade, você sempre tem de levar em conta o limite do indizível, porque praticamente tudo é indizível; o que nós conseguimos dizer é o mínimo. E existe, para além do universo abrangido pela nossa linguagem e comunicação, uma coisa chamada mundo, universo, realidade --- como queira chamar. O mundo é o mediador da nossa linguagem. Quando eu falo com você, emito ondas sonoras que atravessam o ar e chegam aos seus ouvidos, e se não fosse isso não haveria linguagem. Essa é a mediação física. Além dela, existe a mediação de todos os objetos, de todos os referentes daquilo [de] que falamos. Então, ao invés da linguagem abranger a realidade, aquela só funciona dentro desta. É como um edifício inteiro com um fiozinho comunicando as pessoas. No entanto, no século XX, criou-se a ilusão de que a linguagem é onipotente, de que só ela existe, e isso atrapalha muito.

A mística é importante porque ela fala de experiências diretas que só têm uma testemunha inadequada. Alguém que tenha tido uma visão de Jesus Cristo, que tenha conversado com Ele, nunca poderá descrever isso de maneira convincente. Ele só convencerá a si mesmo. Acontece que, no fundo, toda verdade é assim; toda verdade conhecida diretamente por intuição é conhecida por um só --- pode ser por vários, mas por cada um deles por sua própria conta. Isso não é comunicável; o que é comunicável é o signo disso, e este não transporta em si a veracidade da intuição. Esta tem de ser reativada, na melhor das hipóteses, mediante uma intuição similar, análoga. Portanto, o portador do conhecimento é sempre o indivíduo humano isolado. O que estou lhe falando neste momento é um conjunto de signos que só funcionam porque você consegue se reportar às experiências análogas que teve, mas isso é sempre muito limitado. Se não o fosse, quando você dissesse uma verdade, todos a reconheceriam na mesma hora --- o que não acontece. A verdade pode ser gritada de cima dos telhados e só uma parte da população acreditar, a parte que é capaz de refazer aquela experiência. [Este] é o problema dos diálogos de Platão: ele está sempre se reportando ao testemunho de seus ouvintes. [00:50] A intuição, que é a percepção direta, e o testemunho são a base de todo e qualquer conhecimento possível. Não existe conhecimento racional, conhecimento lógico; a lógica só trata do esquema de possibilidades, não trata de nada concreto, real, assim como a geometria só trata de propriedades imaginárias do espaço, não das propriedades do próprio espaço. Do mesmo modo que confundiram a geometria com o espaço real, confundiram a linguagem com o mundo real.

No entanto, os místicos têm um tipo de conhecimento que só vale para eles, porque só eles tiveram aquelas experiências, e o que escrevem é sempre totalmente impotente para refazê-las. Mas isso não as invalida, pois, além das visões místicas, há outros meios pelos quais Deus se comunica com os seres humanos. Por exemplo, o sujeito que observa um milagre não precisa de nenhum dom místico para vê-lo. Alguém diria que os setenta mil que viram a dança do sol em Fátima eram todos grandes místicos, cada um era uma Santa Teresa de Ávila? Não, havia um monte de idiotas lá também, e todos eram eles viram [o milagre], porque este se manifesta fisicamente. Eles podem provar isso? Não podem! Setenta mil testemunhas não provam; se alguém não quiser acreditar, pode continuar contestando. Só o que se pode provar são raciocínios lógicos, não mais do que isso. Como toda a lógica só se refere ao mundo da possibilidade, não da realidade, a prova lógica tem, evidentemente, uma validade intrínseca, que não significa veracidade.

Assim, em última análise, a possibilidade de provar qualquer coisa para quem não o deseja é quase impossível. É por isso que eu digo que o problema básico é o senso da verdade. O intento de fazer uma prova universalmente cogente a qual todo mundo que ouvir terá de engolir nunca funcionou nem vai funcionar, porque viola o livre-arbítrio humano. Se eu quiser acreditar que dois mais dois são cinco, ninguém vai me convencer de que são quatro. Portanto, só temos duas vias de conhecimento: uma direta, que é a intuição, a percepção do que está presente, e outra, [indireta], que é o testemunho --- e tudo é testemunho no final das contas, toda a ciência se baseia em testemunho, e este depende da confiabilidade. Esta existe quando você percebe que outra pessoa comunga no mesmo senso da verdade que você.

Portanto, todo e qualquer conhecimento humano depende da confiabilidade, a qual depende do senso da verdade − na próxima aula eu vou falar mais sobre o senso da verdade. Não existe nenhuma maneira de criar uma garantia contra isso: um conhecimento que seja tão absolutamente certo e provado que ninguém possa dizer que não [é]. Sempre se pode dizer que não [é]. São Tomás de Aquino dizia que a mística é o conhecimento experimental de Deus --- e é mesmo, mas ela só vale para o indivíduo que a teve; este pode contá-la, mas a quem a ler não será dada outra experiência mística, ele pode acreditar ou não. Mesmo o milagre: você pode ver um na sua frente e, ainda assim, resistir. O Concílio Vaticano I diz que observar o milagre e continuar negando-o é pecado contra o Espírito Santo. Isso é ódio à verdade, e assim como existe o senso da verdade, existe o ódio à verdade. [Essas] são coisas que foram tratadas na doutrina católica, mas que na filosofia não foram muito exploradas. Na próxima aula, vou falar mais disso.

Aluno: Ainda é possível no Brasil de hoje o exercício de uma vida intelectual plena?

Olavo: Na escala individual, sim, ninguém pode impedi-lo de ter uma vida intelectual, caso você queira, mesmo que você esteja absolutamente sozinho. Agora, ser possível não quer dizer que seja confortável e nem que não tenha um preço altíssimo. O preço pode ser, por exemplo, o isolamento, não ter nem com quem conversar --- se bem que, hoje em dia, depois que eu inventei o Seminário de Filosofia, isso melhorou muito, porque todos vocês podem conversar uns com os outros, mesmo que seja só pela Internet. Então, você já tem uma rede de comunicações que, há vinte ou trinta anos, não existia. Só com isso as coisas já melhoraram. O intercâmbio intelectual é fundamental; você pode viver sem ele se tiver uma vocação específica para este tipo de atividade solitária − que é o meu caso, eu sempre tive isso ---, mas isso não é intrínseco à vida intelectual, é um elemento acidental, que pode acontecer ou não.

Aluno: Quando o senhor era mais jovem, tinha a preocupação de ler uma cota específica de livros por semana?

Olavo: Nunca na minha vida. Houve alguns casos em que fiquei um ano inteiro lendo somente um livro. Quando li as Investigações Lógicas de Edmund Husserl, passei um ano inteiro só nelas. Claro, de vez em quando, parava para ler uma novela policial, algo assim, mas essa obra me deu um ano de trabalho, após o qual dei um curso de vários meses a respeito. O curso está gravado, acho que tem 800 páginas de transcrição. Mais ainda, acredito que só a introdução delas − que são 200 páginas − me ocupou [por] uns seis meses, porque é algo muito denso. Edmund Husserl sabia taquigrafia, e escrevia na velocidade que pensava. Imagine a densidade disto: Husserl estava colocando ali praticamente cada pensamento seu! Isso não foi escrito para ser lido por multidões, mas por estudiosos, por gente do mesmo grêmio dele. Então, o número de livros não importa. Alguns livros leio em um dia só, do começo ao fim; mas não um livro desses. Livros de história, por exemplo, leio com muita velocidade.

Aluno: Quanto à história da religião, até que ponto funciona exatamente a primazia dos fatos, uma vez que se ela trata de objeto de caráter sobrenatural?

Olavo: Não, não. Os fatos são de caráter sobrenatural no seu alcance, mas têm de pertencer à esfera natural para que possam acontecer; têm de ser acontecimentos da ordem física, têm de se manifestar nela, ainda que a transcendendo pelo seu sentido. Por exemplo, no milagre da multiplicação dos pães [e peixes], aqueles eram pães que as pessoas podiam comer ou eram pães sobrenaturais? Eram sobrenaturais pela sua origem, mas não pela sua consistência; eram pães de verdade, como qualquer outro pão. Do contrário, não houve milagre algum. Do mesmo modo, um sujeito que foi curado de uma doença incurável, de um câncer, tem de ser curado fisicamente, e sua cura tem de ser assim constatada. O paralítico que saiu andando [e ouviu] "A tua fé te salvou" estava andando com a fé? Não, estava andando com as pernas. De outro modo, não seria milagre nenhum. Esse problema realmente não existe. Para estudar essas coisas, você tem de se guiar pelo mais estrito materialismo: aconteceu ou não neste mundo, na ordem física? Se não aconteceu, não é milagre: aquilo que não aconteceu não significa absolutamente nada, a não ser que seja uma invenção, uma criação humana, como é o caso de uma história mítica, criada para simbolizar qualquer coisa. Ela existe fisicamente como obra de alguém, como os escritos de Homero, por exemplo.

Aluno: Entendo as razões que fazem grandes corporações financiarem a Nova Ordem Mundial e os movimentos de esquerda atuais. As vantagens que eles terão ficam bem visíveis. Porém, não entendo o que motivava banqueiros norte-americanos judeus, principalmente, e não judeus a financiar a Revolução Russa de 1917, e seus militantes profissionais como Lênin, Trótski e outros. Além de também financiar a União Soviética no período da guerra civil, nos primeiros anos da revolução, no pós-revolução.

Olavo: Eu acho que na comunidade judaica, durante o século XIX, muita gente teve a ilusão de que, no socialismo, teria mais chance, mais liberdade, e essa ilusão foi fomentada. A União Soviética foi um dos primeiros países a classificar o anti-semitismo como crime. Mas uma coisa é o que estava na constituição, outra era o que Stálin estava fazendo. Ele dizia que era crime, mas ele mesmo mandava matar um monte de judeus. Então, as pessoas se iludiram com essa promessa. Hoje em dia, em muitos países, o anti-semitismo é crime, mas a União Soviética foi o primeiro, e nós temos de reconhecer-lhe o mérito --- mas foi só da boca para fora mesmo. [1:00] Além disso, era natural que a liderança do movimento comunista estivesse repleta de judeus, já que eles, embora fossem uma fração insignificante da população russa, eram a facção mais culta que havia. Praticamente não havia judeus no campo, estavam todos na cidade, estudando. Eles faziam parte da elite intelectual, e foi essa elite que fez a revolução. Assim, muitos judeus foram movidos não só por isso, mas [também] pela esperança de que o socialismo acabaria com o anti-semitismo. Claro que eles foram feitos de idiotas, morreu um bocado de gente e a brincadeira custou muito caro. Mas, quando perceberam isso, eles já haviam morrido.

Uma das grandes diferenças entre as ideologias nazista e comunista é que o nazista fala o português claro: "Nós vamos matá-lo!" Então, você acha que é uma figura de linguagem e não liga. O comunista, por sua vez, fala que vai tratá-lo bem, que vai protegê-lo etc., e você acredita que é exatamente isso, quando [na verdade] não é. Não se deixe enganar pela truculência verbal nazista e pela doçura da linguagem comunista, porque esta apela para a truculência no instante seguinte. Os comunistas mudam da sedução para a ameaça com uma facilidade impressionante. Não se pode esquecer de que os movimentos fascistas e nazistas nasceram de soldados que voltaram da Primeira Guerra Mundial e que estavam desajustados na sociedade. Eram pessoas que tinham vivido quatro anos no meio do sangue, da lama, da violência, da brutalidade, e de repente voltaram para aquele mundo burguês todo bonitinho e educado. Eles não agüentaram isso, então partiram para um discurso truculento. É um estilo diferente do socialismo, que tinha de seduzir as pessoas. Os nazistas não precisavam seduzir ninguém, porque estavam falando para outros tão revoltados e tão desajustados quanto eles mesmos. Era um bando de malucos, evidentemente.

Essa questão dos soldados que voltam da guerra é sempre um problema em toda sociedade. No Brasil, a ditadura de Getúlio Vargas acabou pelos oficiais que voltaram da guerra. [Os soldados pensaram]: "Estamos levando tiro na Itália, enquanto esse sujeito está aí, vivendo à tripa-forra. Vamos tirá-lo daí!" A experiência da violência e da brutalidade modifica as pessoas profundamente, para o bem e para o mal. Esta foi a origem do fascismo, o que não tem nada a ver com a origem do socialismo, que foi um fenômeno específico --- embora, na própria Rússia, a revolução comunista tenha sido feita pelos soldados que voltavam da guerra. A Revolução Russa foi eminentemente um golpe militar, não outra coisa.

Mais tarde, porém, a elite bancária internacional --- os judeus de que falei --- se tocou de uma coisa fundamental: a economia comunista era impossível, ela nunca iria acontecer; quem dissesse que iria fazê-la, faria outra coisa. Que coisa? "O que a gente mandar fazer; criarão economias deficitárias, viverão cheios de dívidas e ficarão nos devendo dinheiro" --- concluíram. Comunismo para o banqueiro é uma delícia, porque ele, através da dívida, controla o país de fora, como sempre controlou. Esta análise que fizeram, já na década de 30, funcionou perfeitamente. Eles sabiam que o socialismo é uma etapa da história do capitalismo: tem-se um período socialista, vai tudo para o brejo, os banqueiros se enriquecem com aquilo, à custa da miséria dos outros, volta-se a um pouco de capitalismo, e assim por diante, interminavelmente. Eles sabem que a coisa funciona assim, e não perdem nada. Não é que sejam movidos por interesse em ganhar mais; eles apenas sabem como as coisas funcionam, e eu acho que estão agindo de acordo com um critério muito realista.

Aluno: Acredito que a tendência de apelar para os psicologismos tenha me afetado de tal forma, devido a colegas, que agora me parece impossível me livrar dessa mazela. Há em mim uma tendência quase natural de seguir o raciocínio proposto por essa forma de pensamento.

Olavo: Eu lhe sugiro o seguinte: mergulhe nas Investigações Lógicas de Edmund Husserl durante um ou dois anos. Eu considero que em toda a história da filosofia nunca houve uma contestação tão bem feita quanto essa, porque Husserl aborda justamente o psicologismo --- que consiste em explicar o raciocínio lógico por leis psicológicas, que são as leis de funcionamento do cérebro --- e demonstra detalhadamente que isso é absolutamente inviável sob todos os aspectos. Depois, ele diz que há um outro aspecto possível, examina-o, e por aí vai. [Por fim], ele acaba com o negócio, não sobra pedra sobre pedra, mostrando que isso não apenas é errado, mas impossível. Esse é um modelo de contestação filosófica. Numa contestação judicial, meramente retórica, se você já conseguiu convencer os jurados com um argumento, não use dois. Mas na dialética filosófica é o contrário: você não está buscando convencer ninguém, quer apenas tirar sua própria dúvida. Você tem de examinar por um lado, por outro, várias vezes. Edmund Husserl, nas Investigações Lógicas, criou um modelo absolutamente genial de contestação filosófica. Se você não se curar do seu psicologismo com isso, então, meu filho, é porque você não tem jeito mesmo.

Aluno: Como o sujeito pode chegar a aspirar às coisas do Alto? Como um jovem hoje, sem experiência das coisas mais belas, sem sabedoria, com descrença no amor --- não acredita no amor, mas na busca do sexo --- descrença em Deus, poderia mudar o rumo de sua vida? Ainda que o sujeito estivesse diante de algo extraordinariamente belo, ele necessitaria perceber isso.

Olavo: Isso aqui é realmente uma tragédia. Eu acho que se o indivíduo não tem alguma experiência da beleza, do amor, da bondade etc. até uma certa idade, depois não adianta mais. Mas a questão é saber quanto dessa experiência é preciso. O sujeito que é criado nas piores condições possíveis --- numa favela, com pai e mãe brutais, o pai batendo na mãe todo dia, a mãe enchendo a cara e dormindo com o quarteirão inteiro, todo dia o menino encontra um homem diferente na cama da mãe, uma miséria desgraçada --- pode viver assim [por anos, até que] um dia ele tem um sinal de bondade e aquilo se impregna à mente dele, mais do que todo o resto. Isto acontece, eu já vi acontecer. Portanto, é como diz aquele versículo: o Espírito sopra onde quer6. É sempre possível, sempre.

Mas você está falando em nível sociológico, em nível de média da população. E para a média acho que isso não será possível. Isso é sempre possível para um indivíduo ou outro; você não deve desistir desse indivíduo, deve buscá-lo onde ele estiver e estender-lhe a mão, tratá-lo com bondade, mostrar-lhe que nem tudo é aquela miséria que ele está vendo. Eu lembro de um negrão velhinho a quem um dia eu dei R$ 30,00 na rua. Ele se virou, olhou o dinheiro [e disse]: "Ei, [você é] sangue bom!" Eu dei uma alegria para aquele homem, ele vai lembrar daquilo, justamente porque contrasta com a miséria [pela qual ele passa] o tempo todo. Às vezes, não o dinheiro, mas a simples atenção, a bondade, a gentileza, podem marcar uma pessoa mais profundamente do que toda a miséria e o sofrimento. Então, nunca desista.

Aluno: Afinal, esse senso da verdade não é o que chamamos de inteligência?

Olavo: Não, não é bem isso, vou explicar na aula que vem. Leia a minha apostila "Inteligência Verdade e Certeza", na qual eu digo que inteligência é a capacidade de conhecer a verdade, não é o senso dela. O senso da verdade é desejar a verdade, é outra coisa.

Acho que hoje acabou. Até semana que vem, muito obrigado. Ah! obrigado pelos bons votos de Dia do Filósofo. Eu nem sabia que isso existia. Vários alunos me mandaram bons votos. Obrigado a todos, prometo fazer de novo ano que vem. [1:10]

Transcrição: Paulo Estevão Fernandes Machado, Augusto de Carvalho e Tamas Souza

Revisão: Pedro Carlos.

Footnotes

  1. Seminário de Filosofia, 20 de maio de 1999. Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/o-problema-da-verdade-e-a-verdade-do-problema/.

  2. João 18:38, Vulgata.

  3. João 14:6.

  4. Crucial Truths to Save Your Soul (Buffalo, NY, Immaculate Heart Publications, 2014).

  5. Em tradução livre: "Roma falou, a causa acabou".

  6. João 18:38.