Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 244
29 de março de 2014
Boa noite a todos, sejam bem-vindos.
Antes de tudo, vale lembrar que os novos alunos devem assistir semanalmente a duas aulas: primeiramente, às do início do COF (pelas gravações), seguindo a ordem numérica; depois, às inéditas (ao vivo), no sábado - é muito importante acompanhar o curso desta maneira. A ordem temática das aulas -- ou até mesmo a sua aparente desordem -- obedece a um plano estratégico, cujo resultado é evidente: a inteligência dos estudantes, com efeito, vai ficando mais organizada, já que a técnica intencionalmente empregada (de pegar um assunto, desenvolvê-lo até certo ponto, não de modo linear, mas em círculos, terminando por retornar ao estágio inicial) encontra sua eficácia no modo como a mente humana realmente funciona. Dar um curso seguindo a ordem lógica do seu conteúdo fará com que o aluno aprenda a matéria, sem que se desenvolva intelectualmente de fato, pois tal modo de exposição não faz com que ele adquira a capacidade pessoal de tentar se orientar no meio da rede de temas e problemas.
Prosseguindo, a presente aula será composta de duas partes. A primeira delas, como decorrência normal do assunto das duas aulas anteriores, consistirá na conclusão, em certa medida, sobre o problema da conceituação da Filosofia propriamente dita. Em seguida, a segunda parte será destinada a alguns comentários sobre a atual situação política mundial e brasileira.
Assim sendo, até o ponto em que chegou a explicação passada, é possível notar que a história da Filosofia é entremeada de intervenções externas (fatores oriundos da política, da religião, da sociedade, da cultura) que introduzem modificações na prática filosófica e no conteúdo das filosofias -- o que torna impossível a tentativa de se obter um conceito geral da Filosofia a partir de seus conteúdos. Mais ainda: tal esforço conceptual se complica um pouco mais pelo fato de aquilo a que habitualmente se chama "filosofia" abranger não só a atividade dos filósofos criadores (isto é, daqueles que marcaram realmente a História da Filosofia), mas todo o ensino da Filosofia (tanto o ensino universitário, quanto, inclusive, a imensa produção de comentários, de interpretações, de livros de História da Filosofia) - tudo isto faz parte da história da Filosofia. Evidentemente, essa bibliografia, por assim dizer, secundária tende a se concentrar na exposição das filosofias prontas (das "doutrinas filosóficas"), perdendo freqüentemente de vista o problema da dinâmica da criação filosófica, ou seja, o problema das suas origens.
Qualquer um que leia a obra completa de um filósofo pode conhecer a sua "filosofia", sem, com isso, ficar sabendo como aquele autor se tornou um filósofo. Pois a natureza da Filosofia aparece exatamente neste momento em que um indivíduo se torna um filósofo -- momento este muito mais decisivo do que os produtos finais da sua filosofia, os quais dependem de uma trajetória intelectual pessoal que varia infinitamente conforme as cabeças e as circunstâncias.
Isto quer dizer que quem leia hoje, por exemplo, um livro publicado por um autor universitário sobre a filosofia de um certo filósofo encontrará o modo de raciocínio do expositor, não o do filósofo -- cujo modo é outro completamente diferente. Aquele autor está tentando interpretar e expressar um conjunto de idéias nas quais ele busca uma unidade, e tentando captar qual é o ponto de coerência do filósofo. Ora, por nunca aparecer pronto, é uma imensa dificuldade encontrar este ponto de coerência na vida real de um filósofo. Por exemplo, Eric Weil (um maravilhoso expositor da filosofia alheia, um dos maiores que eu já vi) é um sujeito que compreende os filósofos tão bem que as suas filosofias parecem ser a dele próprio. Weil parte do princípio de que, se o sujeito é um filósofo, ele está buscando uma coerência, uma unidade. E é isto, portanto, o que tem de ser buscado na obra de um filósofo - por baixo, às vezes, de toda confusão editorial dos escritos (no caso de Leibniz, isto chega a ser quase alucinante; para não falar no de Mário Ferreira dos Santos) -, ou seja, tem-se de buscar, sem sombra de dúvida, a unidade da sua filosofia. Porém, esta unidade não aparece pronta: ela é buscada ao longo de inúmeros problemas e dificuldades.
Assim, a dinâmica da trajetória intelectual de um filósofo pode se perder. Além disso, ela é muito difícil de ser reconstituída, porque, às vezes, não há documentos sobre a evolução intelectual do sujeito -- reconstituição que, por sua vez, só poderá ser feita por conjecturas. Porém, ao conjecturar, pode-se às vezes chegar a conclusões as mais disparatadas. Exemplo disto é o famoso livro de Werner Jaeger sobre o desenvolvimento intelectual de Aristóteles, no qual ele, tentando constituir a biografia intelectual do filósofo grego, chega à conclusão de que houve uma ruptura, quer dizer, Aristóteles foi, até um certo ponto, um platônico de estrita observância, e depois mudou completamente. Logo em seguida, apareceram diversos livros dizendo que a coisa não foi bem daquela maneira (e aí vem aquele negócio do Moreira da Silva: "Até hoje ninguém sabe quem morreu: eu garanto que foi ele; ele garante que fui eu"). Aristóteles é um filósofo absolutamente central na história da filosofia, e é preciso confessar que até hoje não se conhece a sua biografia intelectual de maneira suficiente.
Já em outros casos, tal evolução intelectual aparece com mais nitidez. Isto ocorre, por exemplo, quando o autor escreve com uma certa constância, sendo possível, então, obter a cronologia exata dos seus escritos. É assim com Kant, cuja trajetória intelectual é possível facilmente acompanhar, porque ele não só escrevia muito, como publicava tudo o que escrevia. Portanto, neste caso, toda a cronologia está disponível, sendo possível saber que, em determinada época, Kant estava preocupado com certas questões, depois passou para outras, e assim por diante. Porém, já no caso de Leibniz (que é uma espécie de Aristóteles moderno), isto não acontece. Até hoje seus escritos não acabaram de ser publicados, pois há tantos, e a bagunça é tamanha, que fica difícil saber como organizar todo o material. Além disso, seus escritos são todos fragmentários, constituindo-se de cartas e de notas tomadas no intervalo de uma vida bastante agitada, dedicada a outras atividades (ele era um diplomata de profissão). Assim, uma biografia intelectual de Leibniz ainda não existe -- isto decorridos quase trezentos anos da sua morte. O mesmo acontece com Aristóteles: ninguém sabe exatamente o que veio antes e o que veio depois em sua trajetória intelectual (algo similar também ocorre com Platão).
Isso quer dizer que, na maior parte dos casos, fica difícil apreender o momento decisivo na formação do filósofo, quando ele descobre sua vocação e começa seu empreendimento - e é justamente este momento que vai definir o que é e o que não é Filosofia. O produto final das filosofias (quer dizer, as doutrinas) pode estar muito longe do que realmente a Filosofia é. Por exemplo, no meio do caminho, o indivíduo pode aderir a uma corrente já existente e integrar-se nela, de modo que não haverá muita diferença entre as suas idéias e as do seu antecessor; ou pode acontecer também que ele opte por modalidades de exposição que confundam tremendamente o meio de campo, como acontece com Nietzsche.
Nietzsche tinha um problema: ele havia contraído sífilis na juventude e estava ficando maluco; ademais, tinha dores de cabeça horríveis. Assim, ele dispunha de pouco tempo de trabalho útil por dia e tinha de condensar rapidamente as suas impressões; portanto, ele usava não um método filosófico de escrita, mas um método poético (quer dizer, de registro imediato da impressão tal como ela se apresenta). Por isso que Nietzsche escrevia em aforismos, coisas muito curtas e tremendamente compactas, nas quais existem dezenas de sugestões comprimidas. E, neste caso, mesmo havendo a cronologia exata dos escritos, ela não vai ajudar muito, porque não é um trajeto intelectual muito claro - nem mesmo para o próprio Nietzsche.
Logo, há toda essa imensidão de dificuldades, da qual só existe um jeito de sair: perguntar o que o primeiro filósofo fez que todos os demais filósofos continuaram fazendo e que define as suas atividades. Ou seja, é preciso perguntar o que define a Filosofia não como doutrina ou como "campo do conhecimento", mas sim como atividade. Dito de outro modo, deve-se perguntar não o que os filósofos dizem, mas sim o que eles fazem. E, investigando por esse lado, eu descobri aqueles sete componentes da técnica filosófica (expostos no livro A Filosofia e seu Inverso, na página 133), que constituem as etapas que todos os filósofos, independentemente da diversidade de suas concepções e orientações pessoais, tiveram de seguir necessariamente para simplesmente conseguirem ser filósofos. Essas sete etapas são:
"1. A anamnese, pela qual o filósofo rastreia a origem das suas crenças e assume a responsabilidade por elas" - Quer dizer, se o indivíduo não tivesse um momento na vida em que ele decidisse ser mais responsável pelas suas idéias do que o fora anteriormente, ele jamais se tornaria um filósofo; ou seja, não existe ninguém que possa ser filósofo sem passar por esta preocupação de checar-se a si mesmo (inquirindo-se sobre o que realmente acredita, em que pensa mesmo, de onde tirou tais e quais idéias) - desde Sócrates até Bertrand Russel e Wittgenstein, todos fizeram isto. Em seguida:
"2. A meditação, pela qual ele busca transcender o círculo das suas idéias e permitir que a própria realidade lhe fale, numa experiência cognitiva originária" - Todos buscam isto;
"3. O exame dialético, pelo qual ele integra a sua experiência cognitiva na tradição filosófica, e esta naquela" - Não há nenhum filósofo que tenha se contentado em expor suas próprias idéias sem dialogar de algum modo com a tradição filosófica anterior;
"4. A pesquisa histórico-filológica, pela qual ele se apossa da tradição" - Isto é evidente: se o indivíduo não for estudar a história da Filosofia e os textos da Filosofia, não poderá empreender diálogo algum - não há como escapar disto. Não existe nenhum filósofo que não quisesse saber o que os outros filósofos pensaram antes dele, e que só quisesse expor as suas próprias idéias. Alguém que assim procedesse poderia ser um ensaísta, um poeta -- jamais um filósofo, de maneira alguma. E isto porque ele estaria fora da tradição filosófica. Ou seja: para um sujeito ser um filósofo é absolutamente necessário ele integrar a tradição filosófica e se integrar conscientemente nela, sabendo qual é o lugar e a etapa que ele está ocupando dentro dela;
"5. A hermenêutica, pela qual ele torna transparentes, para o exame dialético, as sentenças dos filósofos do passado e todos os demais elementos da herança cultural que sejam necessários para a sua atividade filosófica" - Ou seja, não basta conhecer: ele tem de interpretar aquelas sentenças e tentar compreendê-las até mais claramente do que elas estão nos textos de origem, senão também não vai conseguir ser um filósofo;
"6. O exame de consciência, pelo qual ele integra na sua personalidade total as aquisições da sua investigação filosófica" - Ele tem de prestar satisfações a si mesmo daquilo que está fazendo;
"7. A técnica expressiva, pela qual ele torna a sua experiência cognitiva reprodutível por outras pessoas" - Pouco importa que ele escreva ou não: não há documentos escritos por Sócrates; no século XX, aparece o caso do Petre Tutea, cujos ensinamentos foram quase todos feitos oralmente (apesar de ele possuir uma técnica expressiva oral, tanto que as pessoas o entendiam e até registravam o que estava dizendo).
Isto tudo foi o que os filósofos fizeram. E estes sete elementos, que são, por assim dizer, a base material da atividade filosófica, fornecem, em si, a unidade que o conceito de Filosofia perde tão logo se tente examiná-la por seus conteúdos, seus temas, seus problemas etc. A Filosofia não pode ser definida como um campo de conhecimento - ela tem de ser definida como uma atividade. E esta atividade, sem dúvida, consiste naquilo que eu defini como sendo a Filosofia: "a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência, e vice-versa". Quer dizer, o indivíduo tenta obter, primeiro, uma visão abrangente de tudo o que ele conhece -- de todos os conhecimentos que foi adquirindo ao longo do tempo, tanto no estudo, quanto na experiência pessoal -- e, depois, tenta integrar este material todo de alguma maneira. Na medida em que faz isto, ele reforma a sua consciência, reforma a sua inteligência, reforma a sua vida de algum modo - não há escapatória. Ou seja, a "dificuldade" de definir a Filosofia provém do fato de que os historiadores e analistas a olham pelo seu conteúdo, e a enxergam como um campo de conhecimento, não como uma atividade humana. Tão logo se gire a luneta para o outro lado, e, em vez de perguntar o que os filósofos estão dizendo, perguntar o que eles estão fazendo, é que a definição de Filosofia fica nítida, o que oferece uma orientação muito mais clara dentro do seu campo, porque o sujeito saberá que, ao estudar as obras de um filósofo, terá de procurar ali estes sete elementos. É só na hora em que o indivíduo percebe cada um deles que ele pode realmente compreender a filosofia de quem quer que seja, não necessariamente como um sistema, mas como uma busca e um desenvolvimento.
Por outro lado, é fato que existem muitas exposições filosóficas que são puramente doutrinais, que geralmente pegam conclusões obtidas por filósofos anteriores e as sistematizam de algum modo. Mas isto - é preciso insistir - não é filosofia: é cultura filosófica. A confusão entre uma coisa e outra é similar à confusão que existiria, por exemplo, entre o esporte e o jornalismo esportivo. É o mesmo que o sujeito achar que, lendo a Gazeta Esportiva, vai adquirir o treinamento de um esporte qualquer ao ponto de poder se tornar um praticante. Mas há muitas pessoas que, ao adquirir certa cultura filosófica, acham que estão se tornando filósofas. Não estão. Tornar-se filósofo é cumprir estas sete etapas: todos filósofos o fizeram; não há nenhum que escape disto. E este modo de definir a Filosofia atende ao critério aristotélico da definição (de que ela tem de abranger todos os casos e nada fora deles): não há outra atividade que se compare com o que foi exposto acima. Portanto, depois de ouvir toda essa explicação, torna-se quase impossível a confusão entre filosofia e ciência, ou filosofia e religião, e outras do mesmo gênero.
Dito isto, e como os acontecimentos na esfera mundial e brasileira estão se precipitando muito, é recomendável a gente tentar, dentro do possível, se orientar nesse cenário -- atitude que faz parte, evidentemente, de qualquer formação filosófica. Quando eu falo da "unidade do conhecimento na unidade da consciência", é claro que, se essa unidade do conhecimento se dá na unidade da consciência, ela tem de partir de uma visão muito clara que o filósofo tenha da sua própria posição dentro da sociedade, da história. Evidentemente, essa posição é às vezes nebulosa, e é preciso estar continuamente buscando identificá-la de tempos em tempos -- coisa que o filósofo só deixará de fazer quando morrer.
Antes de mais nada, é importante assinalar que, no Brasil, vigora uma permanente confusão entre juízo de realidade e juízo de valor -- e o que quer que se diga ali é interpretado como uma tomada de posição. Outro dia, até coloquei no Facebook que, no Brasil, se um sujeito disser que dois mais dois é igual a quatro, as pessoas entenderão que ele é a favor de que dois mais dois sejam quatro; e, se ele disser que os elefantes têm trombas, elas acharão que o sujeito está fazendo uma campanha para instalar trombas nos elefantes. Porém, como essas mesmas pessoas têm alguma idéia da existência de juízos de realidade, logo após terem feito tal interpretação, e de terem, desse modo, apreendido o que julgam ser a posição daquele sujeito, elas tentarão discernir qual o juízo de realidade que está no fundo do que ele disse. Assim, se o sujeito está fazendo uma campanha para colocar trombas nos elefantes é porque ele acredita que os elefantes não têm trombas. Portanto, aquelas pessoas interpretarão a afirmação "os elefantes têm trombas" como "os elefantes não têm trombas". Isto constitui um método, praticado no Brasil com uma constância absolutamente formidável. É evidente que isto se trata de analfabetismo funcional. Mas, como eu também postei no Facebook, o analfabetismo funcional se tornou, no Brasil, uma ciência: ele é ensinado, é praticado, e ninguém percebe que há alguma coisa de errado com agir assim.
Em vista disso, foi que então eu apelei às pessoas, pelo Facebook, que não peçam meu apoio para coisa nenhuma. Eu não estou aqui para apoiar nem para boicotar coisa nenhuma. Eu estou tentando entender o que acontece e explicando o que consigo entender. Eu só tomo posição em casos extremos, sobretudo, em casos de perseguição a indivíduos, porque aí já não se trata de uma tomada de posição política, mas de uma simples exigência moral. Por exemplo, isto que estão fazendo com a Rachel Sheherazade, ou com o Paulo Martins, é cachorrada mesmo. E defender os indefesos é obrigação de qualquer um -- e, nesses casos, deve-se tomar uma posição. Mas, pensando partirem deste mesmo princípio, aparecem muitos dizendo que eu tenho de apoiar não sei qual iniciativa (como a Marcha da Família, por exemplo) - o que, para mim, é algo totalmente absurdo: apoiar significa simplesmente somar a sua voz a um discurso coletivo que já existe, quer dizer, colocar mais uma voz no coro e supostamente arrastar mais gente atrás de si para apoiar uma mesma coisa. Eu não estou aqui para fazer isto. Mais: considero até ofensivo que me peçam uma coisa dessa. Se houver algum caso de perseguição, de boicote - enfim, uma coisa séria -, em que haja uma vítima, aí sim podem me pedir, e eu vou defendê-la - não importa quem ela seja. Como defendi o Júlio Severo: a maior parte do que ele escreve, eu considero uma loucura completa; mas botaram o sujeito em uma situação ruim, e achei que tinha a obrigação de defendê-lo. Imediatamente, houve aqueles que entenderam a minha defesa como se eu tivesse tomado o partido do Júlio Severo e, portanto, como se eu concordasse com ele. Este modo de interpretação, do qual não há muito como escapar, é decorrência direta do analfabetismo funcional.
No entanto, isto não quer dizer que eu não possa aconselhar alguém que cria alguma coisa (um movimento, uma facção, um partido) - o que poderei fazer, sem dúvida. Por exemplo, muitos me perguntam: "quem você está apoiando para a Presidência?". Não estou apoiando ninguém. Estou me dispondo a ajudar aqueles que peçam a minha ajuda. Se aparecerem vinte candidatos me pedindo para que lhes esclareça alguma coisa que possa ajudá-los, eu o farei, evidentemente. Agora, imediatamente aparecerão aquelas pessoas que irão entender isto como um apoio a tal candidato, ou um boicote a um outro -- coisa que, realmente, não funciona dessa maneira.
Este fenômeno mostra até que ponto a vida intelectual acabou no Brasil. As pessoas não têm idéia do que é atividade intelectual; só entendem o que é atividade política, atividade publicitária, defesa de interesses de grupos - só entendem isto. Evidentemente, quando o sujeito tenta saber que grupo o Olavo está defendendo, ele entra numa confusão mental e começa a dizer que eu sou um islamo-sionista, um liberal-fascista, ou qualquer coisa parecida (já que ora digo uma coisa, ora digo outra; ora tomo partido de uma coisa, ora tomo partido de outra). Eu não estou tomando partido de nada. Estou apenas tentando captar, nas várias perspectivas e nas várias opiniões que circulam, o que elas possam ter de valor, de veracidade, e aproveitá-las de um modo ou de outro, pouco me importando de onde venham. Isto é a prova base da vida intelectual - mas é algo que realmente desapareceu do Brasil.
Dentre as muitas confusões circulantes, todas causadas pelo analfabetismo funcional, eu acho que a pior continua sendo a falta de compreensão do que seja o fenômeno chamado comunismo. Sobre isto, segue a leitura do presente texto, que depois até publicarei no Diário do Comércio (sendo que, ali, virá uma versão compacta, e, nesta aula, posso explicar algumas coisas a mais). Escrevo o seguinte:
"Nos dicionários e na cabeça do povinho semi-analfabeto das universidades, a diferença entre capitalismo e comunismo é a de um 'modo de produção', ou, mais especificamente, a da 'propriedade dos meios de produção', privada num caso, pública no outro. Mas isso é a autodefinição que o comunismo dá a si mesmo: (...)"
Este é a definição dada por Karl Marx, ao dizer que existe, de um lado, um modo de produção capitalista (com a propriedade privada dos meios de produção); do outro, existirá, no futuro, um modo de produção comunista (em que ocorrerá a propriedade pública dos mesmos meios). Esta é a proposta comunista segundo Marx; portanto, é como ele a descreve, como ele a apresenta. Basta que se diga isso para entender que o tal "modo de produção" não pode ser uma definição objetiva - ele é um símbolo aglutinador, um slogan ideológico por assim dizer (criado por Marx para apresentar e propor o programa comunista).
"(...) é um slogan ideológico, um símbolo aglutinador da militância, não uma definição objetiva. Se até os adversários do comunismo a aceitam, isto só prova que se deixaram dominar mentalmente por aqueles que os odeiam -- e esse domínio é precisamente aquilo que, no vocabulário da estratégia comunista, se chama 'hegemonia'".
Inúmeros autores, comentaristas, intelectuais, políticos - ao acreditarem realmente que, entre comunismo e capitalismo, há tão somente uma competição entre modos de produção (ou entre diferentes sistemas de propriedade), defendendo, assim, ou um, ou outro - estão todos completamente enganados. O sujeito que diz defender o capitalismo porque acha que a propriedade privada é mais eficiente do que a propriedade pública, está somente perdendo tempo, porque está aceitando os termos nos quais o problema foi proposto, em vez de investigar aonde tal problema se encontra no contexto da realidade.
E isto é básico em Filosofia: problemas e questões propostos, antes de serem respondidos, têm de ser examinados em si mesmos. Se o sujeito propõe a quem quer que seja um problema filosófico, ele primeiro tem de provar que aquele é um problema, e que é um problema filosófico. E, muitas vezes, um problema proposto não é filosófico, como já foi demonstrado pela Escola Analítica. Deve-se a ela o exame de centenas de supostos problemas filosóficos, cujo resultado mostrou não serem eles sequer problemas, mas apenas erros de gramática por assim dizer (uma confusão verbal). Não se pode jamais negar o valor dessa contribuição da Escola Analítica, que furou algumas centenas de problemas como se fossem bolhas de sabão. É certo que o exame analítico pode ser muito útil, e que as pessoas têm muito a aprender, neste ponto, com essa escola. Só que os integrantes dela acharam que, fazendo o exame analítico, todos os problemas estariam resolvidos. Mas não é assim: às vezes, por trás do falso problema, há muitos outros problemas reais que estão simplesmente mal expressos.
"Objetivamente, a estatização completa dos meios de produção nunca existiu nem nunca existirá: ela é uma impossibilidade econômica pura e simples."
Isto é o mesmo que dizer: não é que o comunismo, o regime comunista, a propriedade pública dos meios de produção sejam ineficientes ou não funcionem. No caso desta última, não só ela não existe e não pode existir, como ela é um contra-senso em si mesma. Se um sujeito diz que vai desenhar um quadrado redondo, ele fará alguma outra coisa à qual chamará de quadrado redondo -- pois um tal desenho não se pode nem se poderá jamais ser feito de jeito nenhum.
"Ludwig von Mises já demonstrou isso em 1921 e, após umas débeis esperneadas, os comunistas desistiram de tentar contestá-lo: sabiam e sabem que ele tinha razão".
O argumento de von Mises é absolutamente irrespondível. Segundo o autor, se o que se quer fazer é uma economia planejada -- isto é, dirigida totalmente pelo Estado --, tem-se de fixar o preço de tudo o que existe. Acontece que, se não há mercado, as coisas não têm preço, sendo necessário inventar todos os preços -- o que é matematicamente impossível. Logo, se não existe a possibilidade do cálculo de preços, não existe a possibilidade de se planejar a economia -- simples assim. Desse modo, a economia totalmente planejada jamais existirá; não é preciso nem se preocupar com ela. Agora, quem aceitar a definição do comunismo como um sistema de propriedade pública estará tratando uma coisa inexistente e impossível como existente e estando em concorrência real com a economia capitalista - o que jamais aconteceu, nem acontecerá.
Portanto, argumentar contra a eficiência de uma coisa impossível é fazer buraco n'água. Se alguém disser que vai fazer como o barão de Münchhausen (tirar-se da água puxando-se pelos próprios cabelos), e um outro argumentar que existem modos mais eficientes de sair da água, este último já terá caído em uma armadilha: estará discutindo o absurdo como se fosse uma coisa viável. Logo, a proposta da economia estatizada é absurda, impossível, inviável e nunca será realizada. Assim, não é preciso discuti-la: é preciso apenas dizer aos seus proponentes que, pretendendo realizá-la, o que farão será algo completamente diferente, ao qual denominarão de economia estatizada -- e é exatamente isto o que os regimes comunistas têm feito há cem anos.
"Em todos os regimes comunistas do mundo, uma parcela considerável da economia sempre se conservou nas mãos de investidores privados. De início, clandestinamente, sob as vistas grossas de um governo consciente de que a economia não sobreviveria sem isso".
Foi o que aconteceu na União Soviética. Havia lá uma vasta economia capitalista clandestina que o governo deixava correr, porque sabia que, sem ela, o regime comunista não se sustentaria. Durante um certo tempo, até Lenin legitimou a economia privada, com a NEP, a qual durou cerca de dez anos. Mais tarde, Stalin, dizendo que iria estatizar tudo, estatizou apenas uma parte dela e deixou a economia capitalista clandestina fluir. Sem contar o fato de que uma boa parte da economia soviética foi suprida com dinheiro americano, que entrava lá em quantidades maiores do que jamais entrou em qualquer outra nação do mundo, não como empréstimo, mas sim como doação, já que esse dinheiro nunca foi devolvido. Tudo isto fazia parte da economia soviética -- sem o que não é possível entendê-la. Logo, a economia soviética não era estatizada absolutamente: era só nominalmente estatizada.
"Mais tarde, declarada e oficialmente, pelo nome de 'perestroika' ou qualquer outro"
Ou seja: depois de os comunistas conviverem durante anos com uma economia capitalista clandestina que não podiam extinguir de maneira alguma, eles decidiram, como se diz, "sair do armário", assumindo que, no fundo, todos ali sempre foram capitalistas, e doravante o seriam também explicitamente. Foi isso que aconteceu na URSS, na China, e em toda a parte.
"Tudo indica que a participação do capital privado na economia chegou mesmo a ser maior em alguns regimes comunistas do que em várias nações tidas como capitalistas".
Hoje, calcula-se (eu não tenho aqui a fonte, mas posso pesquisar mais tarde) que, na União Soviética, essa economia privada clandestina chegou a ser 50% da economia total. Portanto, mais do que no Brasil, que é um pais nominalmente capitalista; mais até do que na Suécia. Então, por que preocupar-se com a economia estatizada e demonstrar a sua ineficiência? Uma coisa que não existe não é nem eficiente, nem ineficiente - a categoria aí é outra. Portanto, grande parte da polêmica anticomunista no mundo há quase cem anos foi puro tempo perdido. Contudo, se os comunistas não estão fazendo uma economia estatizada, alguma coisa eles estão fazendo, e isto que estão fazendo é o verdadeiro movimento comunista - e é deste que se deve tratar.
"Isso mostra, com a maior clareza possível, que o comunismo não é um modo de produção, não é um sistema de propriedade dos meios de produção. É um movimento político que tem um objetivo totalmente diferente e ao qual o símbolo 'propriedade pública dos meios de produção' serve apenas de pretexto hipnótico para controle das massas: é a cenoura que atrai o burro para cá e para lá, sem que ele jamais chegue ou possa chegar ao prometidíssimo e inviabilíssimo 'modo de produção comunista'.
No entanto, se deixarem a iniciativa privada à solta, por saber que a economia é por natureza a parte mais incontrolável da vida social, todos os governos comunistas de todos os continentes fizeram o possível e o impossível para controlar aquilo que fosse controlável, (...)"
Ou seja: a economia não é controlável de jeito nenhum; só Deus, ou o diabo, a controlam; a cabeça humana não é suficiente para tal esforço.
"(...) o que não dependesse de casualidades imprevisíveis [como a economia] mas do funcionamento de uns poucos canais de ação diretamente acessíveis à intervenção governamental.
Esses canais eram: os partidos e movimentos políticos, a mídia, a educação popular, a religião e as instituições de cultura".
Planejar a economia inteira é absolutamente impossível; mas controlar essas coisas é facílimo. Basta, para isto, possuir um certo número de funcionários - um número grande, mas não inabarcável. Assim, basta colocar, no poder, uns quantos comissários políticos que irão proibir os partidos indesejáveis, fechá-los e prender os seus membros; em cada jornal, em cada estação de rádio e TV, eles irão controlar o que ali é publicado; infiltrá-los nas igrejas, onde irão regulamentar a educação, apontando os conteúdos que serão ensinados - e está feito o serviço. Se nenhum governo comunista jamais controlou a economia, todos eles controlaram todos esses canais. Donde se conclui que é isto que é o comunismo - e a propriedade pública dos meios de produção é usada apenas como um slogan, como um objetivo futuro, o qual não só não pode ser, como jamais será alcançado, mas que funciona como a cenoura de burro: ele serve para manter o movimento (afinal de contas, todo comunista espera chegar àquela sociedade em que todos serão proprietários de tudo).
Agora, a título de suposição, instala-se um regime comunista em uma nação pequena (Portugal, por exemplo). Todas as propriedades ali são públicas, e todos ali são proprietários. Com isto, está liquidado o elemento mais odioso do capitalismo: a tal da "mais-valia" (que, segundo Marx, é a diferença entre a quantidade de trabalho necessário para produzir um objeto e o preço pelo qual o mesmo objeto é vendido). Assim, seguindo com a mesma suposição, em Portugal, a mais-valia estaria extinta: qualquer coisa seria vendida pelo valor do trabalho necessário para produzi-la. Mas, e no comércio exterior, como é que se iria fazer? Iria Portugal vender para o exterior pelo valor exato do trabalho produzido, ou tentaria extrair alguma mais-valia? Se se tentasse vender as coisas no exterior pelo preço exato que aquilo seria vendido dentro de Portugal, o país afundaria, estaria acabado, pois seria algo impossível de ser feito. Então, Portugal continuaria explorando a mais-valia não internamente, mas externamente -- e, para isto, iria extrair mais-valia dos seus trabalhadores. E, tendo um só patrão - o Estado -, Portugal iria ser o maior explorador de mais-valia de todos os tempos.
Portanto, chega-se à seguinte conclusão: supondo que uma economia totalmente estatizada fosse realizável, o comunismo só seria possível se todo mundo virasse comunista ao mesmo tempo - o que, segundo o próprio Karl Marx, é impossível. Isto porque, para haver o comunismo, é preciso haver, antes, um proletariado industrial altamente desenvolvido. Logo, as nações que ainda não são industrializadas não têm esse proletariado; portanto, não é possível se implantar o comunismo nelas. Como há nações em diferentes estágios de desenvolvimento, o comunismo mundialmente simultâneo é impossível. Portanto, a economia totalmente estatizada é impossível sob dois aspectos: internamente e, mais ainda, externamente. Isto quer dizer que nenhum governo comunista sequer tentou a estatização completa dos meios de produção - só a prometeu, e ainda para uma época futura e indefinida, a qual será necessariamente adiada vezes seguidas. Este adiamento é justamente uns dos motores do movimento comunista. Dito de outro modo: prometer controlar a economia, e, ao invés, controlar coisas totalmente diferentes dela, é da essência mesma do comunismo - ele sempre faz isso.
Mais ainda: o adiamento perpétuo do objetivo final (quer dizer, da economia totalmente estatizada) faz parte também da mentalidade revolucionária. Como fala em nome de um futuro a ser alcançado, ela não pode se submeter ao julgamento do presente, pois o presente está corrompido. Então, só o tribunal da História, no futuro, é que irá julgá-la. Mas quem representa o tribunal da História? Só aqueles que estão avançando para o futuro; aqueles que representam o presente não têm autoridade para julgar o futuro. Isto quer dizer que o movimento revolucionário é o único juiz de si mesmo, e não pode ser julgado desde fora: ele é o tribunal do futuro atuando no presente. E isto é da natureza do processo revolucionário, sem escapatória.
"(...)sem a menor necessidade de exercer um impossível controle igualmente draconiano sobre a produção, a distribuição e o comércio de bens e serviços".
Dito de outro modo: a única liberdade que existe é a liberdade econômica.
"Essa é a definição real do comunismo: controle efetivo e total da sociedade civil e politica, sob o pretexto de um 'modo de produção' cujo advento continuará e terá que continuar sendo adiado pelos séculos dos séculos.
A prática real do comunismo traz consigo o total desmentido do principio básico que lhe dá fundamento teórico: o princípio de que a política, a cultura e a vida social em geral dependem do 'modo de produção'".
Esta é a essência, o pilar central do marxismo: existem diferentes modos de produção, os quais se sucedem no tempo, e cada um deles determina toda uma constelação de instituições, valores, símbolos, condutas, etc. Portanto, a vida social depende essencialmente de um modo de produção. Embora Marx reconheça que este não é o único fator, ele afirma que é o predominante.
"Se dependessem, um governo comunista não poderia sobreviver por muito tempo sem estatizar por completo a propriedade dos meios de produção".
Ora, se é o meio de produção que determina todo o resto da vida social, logo, só poderia haver uma sociedade comunista se fosse possível haver um modo de produção comunista.
"Bem ao contrário, o comunismo só tem sobrevivido, e sobrevive ainda, da sua capacidade de adiar indefinidamente o cumprimento dessa promessa absurda. Esta, portanto, não é a sua essência nem a sua definição: é o falso pretexto de que ele se utiliza para controlar ditatorialmente a sociedade".
Eu me pergunto, às vezes, se Marx não sabia disto. Por exemplo a questão que eu levantei sobre o comércio exterior: como é possível que ele não pensasse nisto? Ele acreditava que o lugar em que ocorreria a revolução fosse a Alemanha. Mas, instalado o comunismo na Alemanha, e agora? Como seria feito o comércio exterior? Os alemães venderiam tudo aos estrangeiros, aos malditos capitalistas, ao inimigo - e ainda a preço de banana? Ou explorariam a mais-valia dos próprios trabalhadores alemães? Não há saída. Então, como é possível que Marx não tenha levantado este problema? Pode ser que o tenha levantado em algum escrito. Mas, apesar de não ter lido a sua obra inteira, eu li um bocado de Marx: nunca encontrei a menor referência a este problema.
"Trair suas promessas não é, portanto, um 'desvio' do programa comunista: é a sua essência, a sua natureza premente, a condição mesma da sua subsistência.
Compreensivelmente, é esse mesmo caráter dúplice e escorregadio que lhe permite ludibriar não somente a massa de seus adeptos e militantes, mas até seus inimigos declarados: os empresários capitalistas. Tão logo estes se deixam persuadir do preceito marxista de que o modo de produção determina o curso da vida social e política (e é quase impossível que não acabem se convencendo disso, dado que a economia é a sua esfera de ação própria e o foco maior dos seus interesses), a conclusão que tiram daí é que, enquanto estiver garantida certa margem de ação para a iniciativa privada, o comunismo continuará sendo uma ameaça vaga, distante e até puramente imaginária".
Este é o estado de espírito do empresariado brasileiro em geral, que afirma existir ainda, no Brasil, uma economia privada, que está progredindo - e ser o comunismo, portanto, um fenômeno hipotético. Mas os empresários pensam assim porque acreditam realmente que o comunismo é um modo de produção, e que o modo de produção é o que determina o curso geral da vida social - quando acabou de ser demonstrado que esse preceito é inteiramente absurdo e autocontraditório: não apenas ele é impraticável - ele é autocontraditório; não pode ser realizado.
"Enquanto isso, vão deixando o governo comunista ir invadindo e dominando áreas cada vez mais amplas da sociedade civil e da política, até chegar-se ao ponto de que a única liberdade que resta - para uns poucos, decerto - é a de ganhar dinheiro. [ Assim é na China, com o sistema chinês]. Com a condição de que sejam bons meninos e não usem o dinheiro como meio para conquistar outras liberdades".
Esta já é a situação atual no Brasil: qualquer um pode ganhar quanto dinheiro queira (claro que pagando um altíssimo imposto, que vai para sustentar toda a corja que domina o Estado), e está livre para gastá-lo em iates, mansões em Miami, Paris, Nova York -- pode-se fazer o dinheiro que quiser, e, com ele, o que quiser também. Mas é só essa a liberdade de que o sujeito desfruta.
"Ao primeiro sinal de que um empresário, confiado no dinheiro, se atreve a ter suas próprias opiniões, ou a deixar que seus empregados as tenham, o governo trata de fazê-lo lembrar que não passa do beneficiário provisório de uma concessão estatal que pode ser revogada a qualquer momento. O sr. Silvio Santos é o enésimo a receber esse recado [ Todos já receberam].
É assim que um governo comunista vai dominando tudo em torno, sem que ninguém deseje admitir que já está vivendo sob uma ditadura comunista".
E não admite porque se prende ao fato de que a propriedade privada dos meios de produção ainda existe. Mas, em qualquer regime comunista, sempre houve e sempre haverá propriedade privada (sob Stalin havia, sob Mao-Tse-Tung também) - ou seja: a sua extinção não é o comunismo. Quer dizer, quem decidir discutir o comunismo nos termos em que a proposta comunista foi formulada já caiu num engodo, o qual serve para fazer o sujeito acreditar que está defendido por trás da sua propriedade privada dos meios de produção, enquanto o governo domina tudo em torno. Por exemplo, qualquer um pode ser o homem mais rico do Brasil; agora, tente ele determinar o que o seu filho vai estudar em uma escola: não pode. Ou, então, tente abrir uma escola, e assumir que ali serão ensinadas as delícias do capitalismo e o cristianismo: também não pode fazer isso. Ou seja, um milionário não pode determinar nem a educação do seu filho - ele não possui nem essa liberdade. Isso significa que a ditadura comunista já está instalada, e ela não vai mexer na propriedade privada; se mexer, vai ser de maneira tênue, cuidadosa, e sempre reservando uma porcentagem razoável de economia privada (digamos, uns trinta por cento). Portanto, milionários sempre haverá. É de se perguntar como, após o comunismo supostamente acabar na Rússia, apareceram ali tantos milionários da noite para o dia. Uma parte deles foi gente que pegou verba da KGB e virou agente laranja, criando bancos e empresas no Ocidente - mas não é possível que tenha sido só isto: esses milionários já existiam antes, estavam lá desde o começo, e apenas foram revelados ao mundo. Ou vai dizer que o governo não sabia da existência deles? Isto é absolutamente impossível.
"Por trás, os comunistas mais experientes riem: 'Ha! Ha! Esses idiotas pensam que o que queremos é controlar a economia! O que queremos é controlar seus cérebros, seus corações, suas vidas'. E já controlam".
E tal é a situação no Brasil. Quando se diz que há um perigo comunista na América Latina, as pessoas não entendem o que é dito porque tomam a palavra comunista no sentido ideológico (da proposta comunista), e não no sentido material e objetivo (do movimento comunista real). No sentido econômico, da propriedade estatal dos meios de produção, não há realmente perigo comunista nenhum. Pode-se dizer que, em 1930, sob Stalin, não havia na Rússia perigo comunista nenhum sob este aspecto, como também não havia na China de Mao, nem na Cuba de Fidel, nem na Hungria, nem em parte alguma. Portanto, pode-se tirar o cavalo da chuva: quando alguém promete fazer o impossível, ele jamais o cumprirá -- acabará fazendo outra coisa totalmente diferente. É assim com os comunistas, que prometem o fim da propriedade privada dos meios de produção, e sempre fazem outra coisa: estatizam tudo o mais, exceto o que prometeram.
Mesmo hoje, mais de vinte anos depois da queda da URSS, a maior parte das pessoas no Ocidente ainda não entendeu o que é o comunismo, pois pensa nele, sobretudo, como uma ideologia. Mas o comunismo não é uma ideologia -- ele já mudou de ideologia incontáveis vezes (basta estudar o livro de Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism: The Founders, the Golden Age, the Breakdown, que qualquer um verá que existem inúmeros marxismos, inúmeras propostas comunistas). O que caracteriza o comunismo é o fato de ele ser um movimento, o qual integra, por sua vez, vários submovimentos que estão sempre em competição entre si, mas que são capazes de trabalhar articuladamente - sempre foram e, no Brasil, vê-se que ainda são. Se o próprio Marx definiu a ideologia como um "vestido de idéias" que encobre interesses materiais, então, não adianta prestar atenção no discurso ideológico e discutir a ideologia: é necessário ver o que as pessoas estão fazendo realmente, materialmente - isto é o que vai definir o movimento e a sua política.
Mas eu estou fazendo essas observações aqui pela primeira vez -- ninguém as fez antes. E acho um absurdo quando isto acontece. Quando descubro algo que ninguém sabe, as pessoas pensam que fico contente, me considerando um gênio por haver descoberto sozinho. Não. Eu fico arrasado, porque vejo que é algo essencial, algo que elas tinham de ter descoberto com décadas de antecedência, mas não descobriram. Pior: quem descobriu foi apenas um rapaz latino-americano que certamente não será muito ouvido. Aí é que eu vejo como a situação é desesperadora mesmo.
No entanto, eu realmente estou formando, no COF, o que prometi - uma nova geração de intelectuais brasileiros --, pois sabia que eu era capaz de o fazer. Sou capaz de fazer isto, e somente isto. Não me venham pedir para liderar um partido político, liderar a marcha do raio que o parta, apoiar tal ou qual iniciativa: tudo isto é perda de tempo (como se diz em Poá: uma "perca" de tempo), e eu não vou fazer nada disso. Eu tenho um projeto de vida, não vou viver eternamente, e sei calcular os meus recursos (o tempo de que disponho, o meu objetivo e como fazer para alcançá-lo). Quem não é capaz de calcular a relação e a proporção entre os seus recursos e a meta almejada não sabe agir. Eu sei o que eu estou fazendo, sei o que dá para fazer, e sei o que não dá para fazer. Então, formar essa nova geração de intelectuais é uma coisa que eu prometi, é algo que estou fazendo e que já está mostrando seus primeiros resultados. Dos nossos alunos (que são milhares), somente alguns têm alguma atuação mais pública, como Felipe Moura Brasil, Rafael Falcón, Gustavo Nogy, Flavio Morgenstern, entre outros. Pela força deles, já é possível ver a diferença imensa que há entre essa nova geração e a turma que hoje domina as universidades, a mídia, etc. Alguns resultados já estão aparecendo, e outros vão aparecer. Isto é realmente o que dá para ser feito. E a coisa mais essencial é que essa nova geração esteja perfeitamente consciente da etapa do drama histórico - não só brasileiro, mas mundial - no qual ela está entrando.
Agora, um detalhe absolutamente essencial da política mundial é que "o regime comunista acabou". Ninguém mais, na classe dominante russa, é comunista; todos ali estão com um discurso totalmente diferente, um discurso czarista, na verdade (o do Grande Império Russo). Mudou-se todo o discurso, mas não se mudou as pessoas: os agentes são os mesmos; a organização por trás de tudo ainda é a mesma, a boa e velha KGB. Como é possível? Para mim, isto significa que aquele pessoal, antes, já não ligava nem um pouquinho para o comunismo no sentido ideológico da coisa; todos eles se dedicavam, sim, ao comunismo real, que consiste no controle da sociedade (do qual não abdicaram nem um pouco), e não no controle da economia. Em segundo lugar, são pouquíssimos aqueles que levam em conta o fato de que a KGB é a maior organização de qualquer tipo que já existiu: tinha setecentos mil funcionários só dentro da URSS, e mais, aproximadamente, na mais modesta das hipóteses, algo entre dez e vinte milhões de agentes no mundo (já que qualquer militante do Partido Comunista pode, a qualquer momento, ser ativado para passar à clandestinidade e trabalhar para a KGB). Nem todos são assim, evidentemente. Mas há ali -- e sempre houve - aquela massa à disposição. Whittaker Chambers, em seu livro Witness, conta como isto funciona (e funcionou milhões de vezes ao redor do mundo): é a história de um sujeito, militante comunista, que escrevia para um jornal comunista, e que foi convocado para trabalhar na clandestinidade; para isso, ele teve que se desligar do Partido, ao ponto de alguns pensarem ser ele um traidor.
Especialmente após a publicação pelo Mauro Abranches dos documentos do Serviço Secreto Tcheco (StB), não há mais como ocultar o fato de que o Brasil, já nos anos 60, estava repleto de agentes da KGB. Esses documentos revelam o convênio firmado entre o StB e a KGB, em 1960-61, para operações na América Latina, inclusive no Brasil. Além disso, Ladislav Bittman, chefe da agência da StB (portanto, da KGB, pois elas operavam juntas) no Brasil, dizia que, naquela época, não se sabia da existência de nenhum agente da CIA lotado no Brasil. Quando ouço falar que foram os americanos que fizeram o golpe de 64 (o próprio Frei Beto repetiu isso outro dia), eu peço àqueles que afirmam tal coisa (e que devem saber tanto) que me dêem o nome de um único agente da CIA lotado no Brasil naquele período. Eles não sabem nenhum, até porque a KGB também não sabia. Então, a pergunta que até hoje me faço: como é possível um governo estrangeiro tramar um golpe dentro de outro país, sem que possua um único agente ali lotado? Isto é absolutamente impossível.
Mais ainda: o mesmo Ladislav Bittman, em seu livro The KGB and Soviet Disinformation: An Insider's View, de 1985, confessa que a história de o Golpe de 64 ter começado em Washington foi inventada pelo seu próprio escritório; não por ele pessoalmente, já que, quando chegou ao Brasil, a operação já estava em andamento. Mas ele mesmo disse que foram seus colegas que inventaram aquela história, espalhando-a para a mídia brasileira - e todo mundo acreditou. Ao ouvir esta revelação de Bittman, muitos podem dizer que ele estaria apenas "contando garganta" -- isto até seria possível. Porém, hoje, isto não é mais possível, porque o convênio inteiro da operação Thomas Mann apareceu: é documento oficial da KGB e da StB. Logo, é possível hoje saber o nome dos agentes que tramaram aquilo tudo. O Mauro Abranches pede, a fim de evitar que injustiças sejam cometidas, para não citar nomes, pois diz que, nesses documentos, há pessoas que não eram agentes voluntários, há outras que foram forçadas por chantagem ou ameaça a trabalhar para a polícia política. Mas eu reconheço uma série de nomes ali, de colegas meus de jornalismo, que eu sempre soube que eram agentes de influência soviética - e que, agora, tenho a prova. Mas mesmo assim, não vamos citar os nomes. A partir desse momento, a confissão de Ladislav Bittman está inteiramente confirmada - e não foi só ele que atesta o fato: é a KGB inteira que o comprova.
Penso eu que a tendência geral de minimizar a importância das ações da KGB provém do fato de a mente humana se recusar um pouco a medir a proporção das coisas. As pessoas fazem isto, em parte, porque seria um vexame enorme reconhecer a superioridade da KGB, cujos agentes estavam por toda parte, determinando tudo, inclusive mandando na CIA. Isto é o que acontece com os americanos, especialmente, com o pessoal da própria CIA e do governo: para eles, seria vexaminoso demais reconhecer isto tudo, e, por não quererem reconhecê-lo, minimizam o fato. Este é um motivo.
Um outro motivo se encontra no fato de o mundo estar repleto de teorias que explicam tudo por fatores impessoais (ciclos naturais, forças, tendências) - há uma imensidão de pseudociências sociais falando dessas coisas. E isto não está presente só na ciência social: pelo lado exotérico, existe a teoria dos ciclos hindus, por exemplo. Mas tudo isso só serve para confundir as pessoas. Logo, não se deve acreditar, por exemplo, que a decadência da sociedade e da cultura americanas obedece a um ritmo cíclico, ou a qualquer outro fator impessoal. Pode-se apelar a um fator impessoal quando não se conhece as ações concretas. Por exemplo: o sujeito que vê alguém morto com uma martelada na cabeça pode apelar a um dado estatístico (fator impessoal) como causa do evento, apontando que uma certa porcentagem das pessoas morre com uma martelada na cabeça. Acontece, porém, que alguém deu a martelada na cabeça do outro; se não desse, a pessoa, não morreria.
Daí a importância da ciência histórica: ela existe para neutralizar essas loucuras da ciência social. A História é uma ciência altissimamente desenvolvida, com critérios racionais melhores do que os das ciências sociais (Sociologia, Economia, Antropologia). Como dizia Leopold von Ranke, a ciência histórica existe para contar como as coisas realmente se passaram. E é só no instante em que as ações concretas de indivíduos e grupos são compreendidas é que se torna possível entender que quaisquer teorias sobre ciclos e tendências são apenas idéias gerais, sem nenhum poder de explicação efetivo.
Por exemplo, quando, nos anos 40, John Howard Lawson fundou, nos Estados Unidos, a escola de roteiristas de cinema, ele passou a instrução para que não se fizessem filmes comunistas, mas sim filmes comuns, agradáveis ao público em geral, dentro dos quais seriam embutidas uma ou outra pequena mensagem comunista - essa foi a sua orientação. Até hoje, é quase impossível achar um filme de Hollywood que não apresente tais mensagens. Agora, uma ação assim, repetida ao longo de setenta anos, de maneira multilateral, possui um efeito absolutamente devastador. Portanto, não é possível dizer que a decadência americana acontece por um motivo cíclico, até porque, supondo que o fosse, alguém teria contribuído, de alguma maneira, para o tal ciclo causar tudo o que aconteceu. Essas operações, como dizia o Willi Münzenberg, funcionam como criação de coelhos: não é preciso passar a instrução a todos; basta passá-la a um certo grupo, e a coisa se propaga automaticamente. Quer dizer: a decadência cultural americana foi uma operação calculada nos anos 40 que acabou sendo muito bem-sucedida. Então, a história da cultura americana dos últimos setenta anos foi toda ela decidida pela KGB. Claro que essa decisão não funcionou em cem por cento dos casos, mas em uma porcentagem expressiva deles - o suficiente para marcar de vez o perfil da história cultural dos EUA.
Mais importante ainda é notar o fato de não ter havido nenhuma outra instituição ou agência fazendo uma operação oposta. Por exemplo, o número de escritores importantes, na Europa e nos Estados Unidos, que estavam sob o domínio direto da KGB é imenso. E a CIA estava fazendo a mesma coisa? Não estava. A CIA comparada com a KGB é um mosquitinho. A única iniciativa dela na esfera cultural foi o Congresso pela Liberdade da Cultura, em 1956, que teve, evidentemente, algum efeito, alguma repercussão mundial, mas que foi de pouca importância. Agora, uma ação cultural contínua, um programa cultural contínuo, abrangente, de escala mundial, só a KGB tem. A Igreja Católica não tem, e a Maçonaria também não. Por isso que eu digo que estão loucos todos aqueles que vêm com a história de uma conspiração maçônica para dominar o mundo. A Maçonaria é nada quando comparada à KGB - mesmo porque existem um sem-número delas, e uma não tem contato com a outra; além do que existem ali maçons católicos, protestantes, comunistas -- tudo misturado. Ou seja, não existe um programa similar ao da KGB nem na Maçonaria, nem na Igreja Católica, nem em qualquer outra instituição. Isto é o mesmo que dizer: a única agência política que tem uma ação contínua na história dos últimos setenta, cem anos é -- e continua sendo - a KGB. "Isto é teoria da conspiração!" -- dirão alguns. Chamem como quiser: o fato são os fatos.
Existe também a intervenção de um fator quase irresistível nesse negócio de dizer, à mera descrição do poder comunista no mundo, que todo ele não passa de teoria da conspiração: a mente medíocre é incapaz de imaginar as coisas acima de um certo tamanho; sobretudo, não consegue conceber um mal muito grande. Qual é o maior mal que um sujeito comum pode conceber? Talvez, a pedofilia? Mas há muitos que, de tão burros, concebem o maior mal como sendo os pecados sexuais. São muitos os que, horrorizados com o gayzismo, estão idolatrando Vladimir Putin, simplesmente porque ele proibiu o gayzismo -- e são tão loucos que os pecados sexuais os sensibilizam mais do que o genocídio. Alguns acham até que o genocídio é um castigo de Deus. Mas terá sido Deus quem mandou Mao Tsé-Tung exterminar setenta milhões de chineses? E por que Ele faria isto? Porque os chineses estavam todos transando com os vizinhos? Quer dizer, Deus armou Mao Tsé-Tung e mandou ele matar milhões de pessoas por causa dos pecados sexuais cometidos pelas vítimas (o sujeito foi exterminado por ter transado com a mulher do próximo)? Pois existem muitos que acreditam realmente que foi assim. Quer dizer, são pessoas que vêem a ação claríssima do mal e a explicam como uma ação de Deus (um castigo divino). Acontece que o castigo divino só ocorrerá no Juízo Final. Também, a história terrestre não obedece ao tipo de diálogo que havia entre os judeus do Antigo Testamento e Deus -- isto é importante. Deus, quando fez um acordo com os judeus, disse que, se eles O obedecessem, Ele os ajudaria materialmente; se desobedecessem, Ele os deixaria para serem destruídos por outros povos. Mas este acordo foi entre Deus e o povo judaico. Agora, o resto da humanidade é Israel? Os chineses são Israel? Não. Os chineses não fizeram acordo nenhum com Deus, e não estavam no Antigo Testamento. Logo, não se pode interpretar o genocídio chinês como um castigo de Deus - é o mal propriamente dito, e não foi Deus quem mandou cometê-lo. Assim, muitos chegam, por mediocridade e pequenez das suas cabeças humanas, a idéias absolutamente monstruosas.
Tais idéias também são geradas pelo impulso que o sujeito, especialmente se conservador e cristão, às vezes sente em se apegar a algum poder mundano que o proteja, já que tudo ao redor está ruindo (a civilização está acabando; a Igreja está indo para o buraco). E daí aparece um Putin -- e o sujeito se apega a ele (como se apegaria a qualquer outra coisa). Foi assim que muitos se apegaram a Hitler, o qual havia prometido, literalmente, salvar a civilização ocidental. Houve, evidentemente, aqueles que avisaram que o Führer não faria isto, mas sim outra coisa - mas as pessoas não acreditaram. Assim, milhões aderiram a Hitler por causa dessa promessa absurda, afirmando, por exemplo, que ele implantou a moralidade na Alemanha, e botou todos os homossexuais na cadeia -- só que Hitler, que era um deles, ficou de fora, ou seja, prendeu os outros homossexuais, não os dele (só estava autorizado o homossexual com carteirinha do partido nazista).
Mas as pessoas se apegam a essas figuras porque não crêem em Deus, na Sua proteção divina --só crêem na proteção material de forças deste mundo. Isto chama-se idolatria. Isto é materialismo. Em primeiro lugar, sensualismo materialista: os pecados sexuais as escandalizam por que são visíveis (basta ligar a televisão, e estão lá mulheres com a bunda de fora, e toda sorte de putaria -- e as pessoas ficam chocadas com tudo isto). Mas são essas mesmas pessoas que só ficam sabendo de um genocídio por meio de estatísticas. Logo, essas pessoas se impressionam com aquilo que é materialmente sensível, e o tamanho da realidade não lhes interessa. São pessoas medíocres, de pouca inteligência.
Não se podemos exigir, por certo, que a população inteira tome consciência dessas coisas e entenda todo esse processo. Se não há uma camada de intelectuais capazes de entendê-lo, a nação também não vai entender. A camada intelectual é o fiel da balança: aquilo que ela consegue enxergar é o que será enxergado, mais cedo ou mais tarde -- e, claro, em escala menor -, pela população. Por isso eu considerei que a urgência, no Brasil, não é de ordem política; é urgente restaurar a alta cultura, restaurar a intelectualidade -- e é isto que meus alunos estão fazendo no Seminário de Filosofia. Eu não tenho a menor dúvida de que aqueles que entraram nisso aceitaram um espírito de missão. A sua missão não é política, não é fazer passeata, não é gritar; é entender as coisas e tentar explicá-las, gradativamente, com paciência e muita seriedade -- sem se entusiasmar por bandeiras políticas de qualquer natureza que as pessoas levantem. Se tiverem de intervir, intervenham em casos onde há uma claríssima injustiça contra indivíduos indefesos -- isto sim é obrigação nossa. Mas o façam não como uma tomada de posição política.
Vamos parar um pouquinho; daqui a pouco a gente volta.
FIM DA PARTE EXPOSITIVA
(01:08:53)
PERGUNTAS E RESPOSTAS, OU: DÚVIDAS E ESCLARECIMENTOS
Hoje as perguntas estão muito boas, mas tem uma a qual eu gostaria de dedicar mais tempo. Porém, ela é tão comprida que vou ter de ler durante a semana e responder na semana que vem, se for possível. O aluno me mandou um longo artigo sobre pobreza e capitalismo, mas preciso ler durante a semana (o texto é muito comprido, e não dá para o ler inteiramente nesta aula). Vamos ver se, na semana que vem, eu volto a ele.
Aluno: O senhor poderia falar um pouco sobre a importância da obra do Miguel Reale para o Brasil? Outra pergunta: O senhor poderia indicar uma pequena bibliografia sobre a Filosofia do Direito?
Olavo: No final do livro de Giorgio Del Vecchio, Lições de Filosofia do Direito, tem uma bibliografia histórica excepcional. Só que ela foi atualizada, creio que a última vez, nos anos 80. Depois dos anos 80, eu não posso lhe indicar mais nada, porque é um assunto que não acompanhei mais. Mas é mais importante o aluno conhecer realmente a retaguarda histórica -e ali tem tudo, não falta nada no Giorgio Del Vecchio. Tem uma edição portuguesa pela editora Armênio Amado (acho que ainda se encontra facilmente no Brasil). Quanto ao Miguel Reale, ele acompanhou meio século de História do Brasil, participou de tudo o que era importante (pertenceu ao Movimento Integralista, depois exerceu um papel importante na redação de vários códigos brasileiros -- inclusive o último código civil), e, historicamente, ele é o primeiro sujeito que conseguiu definir exatamente o que é o Direito, demarcando-o e separando-o das outras disciplinas vizinhas e congêneres. Mesmo que ele tivesse feito só isto, mesmo que ele tivesse escrito só A Teoria Tridimensional do Direito, Miguel Reale já teria um lugar na História. Eu acho o seu livro de memórias muito importante; Memórias (em dois volumes) é a história do Brasil naquele período. Não deixe de ler.
Aluno: O senhor diz que aquele que não cumpre o ponto quatro da técnica filosófica (isto é, a pesquisa histórico-filológica) não pode ser considerado filósofo, mas ensaísta ou poeta, por não integrar sua experiência cognitiva na tradição filosófica. Todavia, sabemos de casos em que alguns filósofos não se apossaram da tradição -- ao menos não de maneira adequada. Por exemplo: sabemos que Kant tinha um conhecimento deficiente da Escolástica, e mesmo de Platão e Aristóteles. Seria Kant, portanto, um filósofo incompleto?
Olavo: Sem sombra de dúvidas -- o que não quer dizer que Kant não fosse um filósofo. Isto porque, como ressaltei, para um sujeito ser filósofo é necessário que ele apresente o esforço para integrar a tradição filosófica e se integrar nela - e não o resultado disto. Se Kant tentou esse esforço, mesmo que tivesse um conhecimento deficiente da tradição -- como, de fato, tinha --, então já está enquadrado como filósofo. O que define o filósofo é a iniciativa, e não o resultado final. Na modernidade, muitos filósofos tinham uma visão inadequada da tradição filosófica. Por exemplo, desde o século XVIII até o começo do século XX, pode-se dizer que praticamente todo mundo tinha uma visão errada da Escolástica -- eles simplesmente não a conheciam. Foi só no século XX que esse conhecimento começou a voltar, em grande parte graças à bula do papa Leão XIII, Aeterni Patris, que praticamente obrigou o pessoal nos seminários estudar a Escolástica (daí surgiram estudos e publicações a seu respeito). Mesmo assim, edições suficientes de Duns Scott, por exemplo, só foram aparecer há dois ou três anos.
Aluno: Há ainda milhões de agentes da KGB pelo mundo?
Olavo: Que eu saiba, nenhum agente da KGB foi demitido. Agora mesmo conversava com um aluno que dizia que, na Polônia, na década de 70, havia quinhentos mil informantes da KGB. Some-se a isso os agentes propriamente ditos -- não dá nem para imaginar o número. Isto num país pequeno como a Polônia. A KGB é uma força incalculável, e, enquanto não se fizer um estudo quantitativo dela, não vai ser possível entender nada do que aconteceu no século XX. Eu afirmo taxativamente: a KGB foi a força política mais ativa no mundo inteiro, superando qualquer outra. Agora, o que se pode entender de uma história em que o personagem principal está escondido? Além disso, o único movimento político que existe continuamente, desde a metade do século XIX até hoje, é o comunista. Ele muda de discurso, ele muda de ideologia, ele muda de estratégia, ele muda de tática - mas não muda de pessoas: os agentes são os mesmos -- isto é o mais importante. As idéias que um indivíduo possui podem mudar, mas ele continua sendo a mesma pessoa, e continua agindo. É gozado ver as pessoas que se dizem materialistas - materialista sou eu: enquanto elas ficam procurando conceitos abstratos, genéricos e metafísicos para explicar a história, eu vou lá na ação concreta e material do indivíduo.
Aluno: Qual seria o peso do gnosticismo sobre a mentalidade revolucionária? O gnosticismo ao colocar o homem como sujeito reparador do mundo defeituoso não daria aval a todas as loucuras do movimento revolucionário, justificando até mesmo as maiores atrocidades como o genocídio?
Olavo: Sem a menor sombra de dúvida. A idéia de consertar o mundo, e a de construir um mundo melhor, vieram todas do gnosticismo. Agora, as pessoas não param para pensar o seguinte: Qual é o prazo da vida humana? Noventa anos? Cem anos, na melhor das hipóteses? Destes cem anos, qual é o tempo que um indivíduo dispõe para exercer uma atividade na sociedade, para se tornar influente nela? No máximo, trinta ou quarenta anos - não vai passar disto (às vezes, é até menos). E é possível realmente criar um mundo melhor nesse prazo? Mesmo que se admita a soma de várias ações individuais com o mesmo propósito, não é possível nenhum controle individual sobre o que os outros farão. A idéia de "construir um mundo melhor" é uma bolha de sabão metafísica: o bem e o mal que qualquer pessoa faz estão na escala do alcance da ação dela. E isto é assim mesmo com o homem mais poderoso do mundo. Pegue-se o exemplo de Joseph Stálin: há alguém que ache que todo mundo fazia o que Stálin mandava? É possível achar que Stálin controlava tudo? Acabamos de ver nesta aula que o próprio Stálin teve de aceitar que metade da economia soviética continuasse na mão de investidores privados, porque ele não podia fazer nada. Ninguém é capaz de ter nem o controle intelectual da economia. Existe algum livro de Economia que explique perfeitamente bem toda a variedade de processos econômicos do mundo? Não. Então, se não existe sequer o controle intelectual e conceptual da economia, como é que pode haver o controle material efetivo dela? Eu acho que a megalomania é a doença mais espalhada no mundo, porque as pessoas não medem o alcance real das suas ações - elas vão pelo pensamento metonímico: pegam aquela sua participação insignificante, e imaginam que o restante é igual. Claro que isto é uma ilusão: é uma forma de doença mental.
Aluno: Eu sou novo no Seminário e estou procurando por livros para estudar, principalmente os de Platão. A minha dúvida é só qual editora e autores devo procurar, para não encontrar traduções erradas.
Olavo: A tradução do Carlos Alberto Nunes, que saiu pela editora da Universidade do Pará, me parece muito boa (eu nunca fiz uma comparação linha por linha). Mas, como eu tinha lido outras traduções, e posso, de vez em quando, conferir no original alguma coisa, nunca vi ele cometer algum erro enorme. Eu não conheço grego o suficiente para ler correntemente, mas conheço o suficiente para, às vezes, conferir uma frase ou outra, e ver se ela está fidedigna ou não - e eu nunca encontrei no Carlos Alberto Nunes nada que estivesse errado. Se você souber ler em francês, pegue a edição La Pléiade, do Leon Robin, que é uma verdadeira maravilha. Mas nunca esqueça o seguinte: você tem de estudar pelo menos um pouquinho de grego, e ter um dicionário de grego para poder conferir uma coisa ou outra, porque às vezes não há realmente correspondência nas palavras.
Aluno: Estou no início do curso de Direito e muito se fala do Estado Moderno; que este teria a função do bem-estar social, claramente de influência marxista, em que o estado não somente protege os direitos das pessoas (como a dignidade e os demais direitos fundamentais descritos na Constituição), mas tem de provê-los, de forma a querer buscar a felicidade de todo cidadão.
Olavo: Essa é uma idéia normativa (algo que o Estado "deve" fazer). Agora, são poucos os que sabem a resposta da pergunta "o que é o Estado?". Ou seja: existe um sujeito indefinido com uma ação definida a ser cumprida - aí já se vê a enorme confusão que reina nesse meio do Direito. Mais ainda: toda proposta normativa produz, por si mesma, uma reação positiva ou negativa (por exemplo, qualquer pessoa, se perguntada se o Estado deveria enchê-la de dinheiro, afirmaria entusiasticamente que sim, aprovando tal medida). Mas toda discussão que é colocada primeiramente no plano normativo já começa errada, porque não se tem aí o conceito claro dos agentes envolvidos. A própria expressão "o Estado deve prover o bem-estar social" leva qualquer um a considerar o tal Estado uma pessoa muito boa; mas, quando se lê em Nietzsche que "o Estado é o mais frio dos monstros", aparecem, então, duas afirmações sobre o mesmo sujeito: ou ele é um monstro, ou ele vai prover o bem-estar social. Por aí já é possível ver como a coisa é problemática em si.
Agora, quem quiser realmente conhecer alguma coisa tem de começar por fazer aquilo que dizia Aristóteles: reunir a opinião dos sábios. E as opiniões dos sábios são enormemente divergentes. Então, com essas opiniões, a pessoa monta um problema e o equaciona, para mais tarde procurar resolvê-lo de algum modo. Mas, se a mesma pessoa já esquece dessa multiplicidade de visões divergentes, e parte de uma afirmação normativa pretensamente universal, ela jamais entenderá nada -- tudo vira questão de opinião: "você acha que o Estado deve fazer isso, ou deve fazer aquilo?". Mas isto é o mesmo que perguntar: "você acha que Satanás deve parar de fazer o mal? Ah, eu acho que sim" - só que fazer o mal é da natureza dele; logo, essa frase não quer dizer absolutamente nada. Portanto, qual é a verdadeira natureza do Estado? Sendo ele o que é, pode o Estado prover algum bem-estar social sem criar males enormemente maiores?
Por exemplo, a expansão dos direitos (tal grupo tem direito a isto; tal outro, àquilo). Para cada novo direito criado, criam-se necessariamente novos tribunais especializados, novos instrumentos de fiscalização etc. Ou seja, para cada direito criado, é preciso fazer a administração crescer e dominar ainda mais a sociedade. Portanto, a idéia do bem-estar social traz consigo, necessariamente, a da opressão maior da sociedade pelo Estado - não há como escapar disto. Por outro lado, existe algum jeito de retirar completamente o Estado desses setores da vida social? Também não. Logo, dizer que o Estado deve promover o bem-estar social é expressar um problema, não uma solução. A consciência da problematicidade das coisas é a base de todos os nossos estudos e da nossa vida intelectual. Acontece que, ao entrar na faculdade, a pessoa já começa a ser levada a tomar posição sobre tudo -- e a sua inteligência é estragada de uma vez para sempre. Isto porque, naquele ambiente, a maioria quer fazer do aluno um cabo eleitoral - não um intelectual; não um estudioso: e este é o problema. Falando exatamente disso:
Aluno: Em Ética a Nicômaco*, Aristóteles cita uma passagem de Hesíodo: "melhor é o homem que sabe todas as coisas por si mesmo; bom é aquele que usa o aconselhamento dos homens sábios. Mas o que não sabe nem por si, nem se digna a ouvir a sabedoria alheia, é um fantasma inútil". Na Bíblia encontramos, já no primeiro Salmo, dois caminhos que todo homem tem diante de si. Também na Bíblia, encontramos os relatos e as palavras de homens que sabiam das coisas porque Deus mostrou para eles: desde Abraão, passando por Moisés e todos os profetas, até os Apóstolos de Cristo. E a História de dois mil anos da Igreja também é permeada de testemunhos de muitos santos e santas que nos revelam o caminho a percorrer. Assim como o primeiro Salmo da Bíblia diz que "o caminho do ímpio perece", Aristóteles menciona que, aquele que não se abre à sabedoria, não passa de um fantasma inútil. O senhor também vê uma conexão nítida entre o saber transmitido por Sócrates, Platão e Aristóteles e esse saber transmitido pela Bíblia -- a palavra de Deus, passando pelos santos, padres e doutores da Igreja? (...)*
Olavo: Sem a menor sombra de dúvida. Por que você acha que a Igreja, quando fez o maior esforço de equacionar e de expor ordenadamente a doutrina cristã, recorreu aos instrumentos intelectuais criados por Sócrates, Platão e Aristóteles? Porque esses instrumentos eram os únicos que existiam -- e, até hoje, são os únicos que existem. Sócrates, Platão e Aristóteles criaram a estrutura da vida intelectual, e não há como escapar dela.
Aluno: Aproveitando a deixa das aulas 242 e 243 sobre a dissolução do conceito de Filosofia: o senhor poderia explicar melhor o conceito de essência da Filosofia, tal como aparece delineado na apostila Esboço de um Sistema de Filosofia?
Olavo: No curso História Essencial da Filosofia, eu parti do seguinte princípio: para contar a História da Filosofia, ou se atribui o nome de Filosofia a milhões de atividades diferentes, sem insistir em encontrar por trás delas nenhuma unidade (portanto, contando uma história de personagens diferentes, cujas relações não são conhecidas), ou se tenta achar um fio condutor dessa história. Esse fio condutor, eu o entendi assim: se algo permaneceu ao longo dos tempos na Filosofia, esse algo só pode ser encontrado sob a forma de um projeto (ou de uma ambição, ou de algo a se fazer -- ou seja: um programa de ação a ser cumprido), o qual, na expectativa do seu criador, deveria continuar ao longo do tempo. Isto de fato existiu, e é o que chamei de "o projeto socrático". Com o tempo, tal projeto assume nitidamente a feição daquelas sete regras da técnica filosófica (enunciadas anteriormente), as quais são absolutamente universais. Por isso que digo: nisto consiste a essência da Filosofia -- nesta atividade. Eu não lembro exatamente como expliquei isto nessa apostila, mas hoje entendo que a Filosofia é exatamente assim.
Bom, há ainda o artigo sobre a pobreza e o capitalismo trazido por um aluno. O texto tem quase dez páginas; não dá para ler agora. Mas o lerei durante a semana, e o comentarei na próxima aula. Por hoje vamos ter de parar por aqui. Não esqueçam o curso 'Como tornar-se um leitor inteligente', de 28 de abril a 3 de maio. As instruções para a inscrição estão na minha página ([www.olavodecarvalho.org)]{.ul} e na página do Seminário ([www.seminariodefilosofia.org)]{.ul}.
Muito obrigado a todos, até a semana que vem.
Transcrição: Tamas Souza, Hestefani Lira e Felipe Vitorino.
Revisão: Eduardo Chaves Bueno.