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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 239

15 de fevereiro de 2014

Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.

Hoje eu queria tratar aqui de uma coisa que tenho notado já faz algum tempo. É o seguinte: circulam pela internet, sobretudo pelo facebook, inumeráveis discussões aparentemente filosóficas que no fundo não passam de defeitos de percepção ou de inteligência daquela lista de 28 itens elaborada pelo professor Reuven Feuerstein, sobretudo a mais constante que é a dificuldade de lidar com mais de duas variáveis ao mesmo tempo. Isso é sem dúvida uma deficiência de inteligência, a qual podemos observar hoje praticamente em toda a parte no Brasil, sobretudo nas pessoas que mais ousadamente opinam e julgam.

Isso não chega a ser uma divergência de opiniões. Para se ter uma divergência de opiniões é preciso que haja um objeto o qual seja igualmente percebido por dois lados de maneiras antagônicas, o que pode em geral evidenciar uma contradição inerente ao próprio objeto, de modo que uma pessoa veja por um lado e uma outra veja por outro. Isso é inteiramente natural que aconteça entre pessoas inteligentes. Mas o que acontece no Brasil é realmente a incapacidade de perceber as coisas; as pessoas não percebem direito mesmo coisas elementares, mesmo simples objetos dos sentidos. Quanto mais confusa então a coisa não se torna quando se vai para conceitos abstratos que teoricamente deveriam abranger dentro de si uma imensa variedade de fenômenos?

Evidentemente, as pessoas que são assim, quando lêem uma palavra, dão-lhe o sentido dicionarizado e já reagem imediatamente sem ter em conta que estamos nos referindo a fenômenos do mundo real, os quais têm uma grande complexidade, e que às vezes somos obrigados a usar uma palavra de emprego corrente que não é muito exata contando com a inteligência dos ouvintes e leitores que saberão mais ou menos a que estamos nos referindo.

Vejam, por exemplo, o caso do Leandro Dias da Carta Capital: por um lado ele diz que o comunismo foi uma bela porcaria, que não existe mais, e que por isso mesmo nós devemos dar todo o nosso apoio aos partidos de esquerda que apoiaram o comunismo durante todo o tempo. Ora, se o comunismo era tão ruim que se autodestruiu, por assim dizer, então aqueles que o apoiaram devem ser imediatamente escorraçados da política, como foram escorraçados os nazistas. Para mim isso é a coisa mais óbvia do mundo.

Porém, mais adiante eu vi que o Leandro Dias tinha uma certa dificuldade com a palavra comunista, acreditava que comunista é o sujeito que defende um tipo de regime: o da estatização completa dos meios de produção. Bem, a estatização completa dos meios de produção não aconteceu na União Soviética e não acontecerá jamais, porque trata-se de algo matematicamente impossível, como já demonstrou Ludwig Von Mises em 1923, no livro Socialismo: Uma Análise Econômica e Sociológica. Não há possibilidade alguma disso acontecer. Isso nunca aconteceu na Rússia, onde pelo menos 50% da economia era privada clandestina ---- daí mesmo que, no dia seguinte à queda oficial do comunismo, aparecem milionários para tudo quanto é lado. É claro que, desses milionários, uma parte foi gente que levou dinheiro da KGB e se improvisou como capitalista do dia para a noite, mas uma boa parte era gente que já existia.

Há um livro ---- de cujo nome da autora me esqueci1 ---- A Economia Soviética da Troca de Favores, que de fato era uma descrição do capitalismo ilegal e que esteve vigente na União Soviética durante todo esse tempo. Mas como é que eu posso esperar que um indivíduo apreenda o conceito de comunismo, de socialismo, pela variedade de fenômenos que estão atrás, se nem quando se trata de puras analogias entre objetos físicos as pessoas conseguem fazê-lo? Isso eu observo, por exemplo... Coloquei isto no facebook. Vou ler para vocês uma observação sobre um rapaz chamado Guilherme Tomishyo:

Todo conhecimento, ensina Susanne K. Langer, começa com alguma analogia. A capacidade de fazer analogias é inata no ser humano; sem ela, seria impossível aprender a falar. Mas essa capacidade pode ser destruida por uma educação que sufoque o senso natural de semelhança e diferença substituindo-o por estereótipos imantados de valor emotivo, que desencadeiem imediatamente uma reação psíquica sem passar pela referência às percepções reais. Isso é endêmico na educação brasileira, a qual ensina, por exemplo, que uma aparência de vagina, construída cirurgicamente num homem, É uma vagina [donde a exigência de que aceitemos os transexuais operados como se fossem realmente mulheres]. O senso natural da forma, que é todo baseado na distinção-articulação de todos e partes, sabe que uma vagina não existe como tal fora do sistema reprodutor feminino no qual desempenha uma função específica, assim como uma boca não é uma boca se for apenas uma aparência sem nenhuma conexão com restante do aparelho digestivo.

Ou seja, uma boca que não mastigue nem engula nem faça parte do processo digestivo, evidentemente não é uma boca, mas uma aparência, uma imitação de boca. Porém, tendo em vista a susceptibilidade de um certo grupo social, ensina-se às pessoas que se deve aceitar que o sujeito seja mesmo mulher. Coisas desse tipo vão destruindo nas pessoas o senso imediato da percepção das formas. Lembro-me que anos atrás tive uma discussão com um antropólogo que dizia que associar a cor negra a tudo que é ruim, sinistro etc. é uma expressão de racismo. Daí eu mostrei a ele que o simbolismo da cor negra na cultura Ioruba na África é exatamente o mesmo, pois trata-se de uma percepção universal; qualquer pessoa é capaz de perceber a diferença entre a claridade e a escuridão. Naturalmente, os sentimentos, emoções e reações que essas duas situações nos evocam são claramente universais. Por exemplo, se você quiser procurar um caminho no meio da mata, irá preferir fazê-lo durante o dia e não à noite evidentemente. Qualquer imbecil faz isso, qualquer animal faz isso. Porém, se essas percepções básicas fundamentais e universais são encobertas por estereótipos ou por valorações artificiais, isso bloqueia o indivíduo à percepção dessas coisas. Foi isso exatamente o que aconteceu com esse rapaz [o Tomishyo].

Induzido por educadores mal-intencionados a aceitar analogias forçadas, um estudante pode chegar a perder totalmente o senso das analogias, ao ponto de produzir comparações imbecis como esta, que está muito próximo do retardo mental:

O sujeito está querendo fazer uma crítica a mim. Então ele diz o seguinte:

"Lógica olavesca: padrão é uma coisa imaterial, therefore [portanto] a personalidade e a consciência não residem em um objeto físico e material, mas é algo imaterial e espiritual. Analogamente, como a placa-mãe de um computador tem um padrão, só podemos concluir que o computador é um objeto espiritual dotado de alma."

Ou seja, do fato de que duas coisas são igualmente imateriais ele conclui que são a mesma. Nem uma criança comete esse erro espontaneamente.

Essa comparação, feita com aquele sentimento de superioridade infinita com que geralmente os imbecis opinam sobre o que não entendem, aparece na página de Guilherme Tomishyo, um estudante da Universidade Federal de São Carlos e membro, ao que parece, de uma tal "Sociedade Racionalista". Qualquer pessoa normal percebe que uma placa-mãe tem forma e padrão de placa-mãe e não de alma humana.

O que estou dizendo é que a alma é uma forma imaterial. Aliás, eu dificilmente usei a palavra alma nesse contexto. Mas de qualquer modo tomei como definição de alma aquela de Aristóteles: "A alma é a forma da identidade corporal". Se o corpo é destruído, essa identidade ---- essa forma ---- permanece, ela não é destruída. Do mesmo modo a placa-mãe tem um esquema, uma forma, um padrão e, se ela for destruída, esse padrão não é destruído, tanto que você pode fazer outra placa-mãe com o mesmo padrão. Se não fosse assim, a destruição de um computador subentenderia a destruição de todo o software que está nele, quando na verdade este software pode ser copiado em outro computador.

Uma coisa é perceber a forma humana, outra coisa é perceber a forma de uma placa-mãe. As formas são igualmente imateriais, porque forma ---- ou padrão ---- é algo imaterial. Será que o sujeito não aprendeu aritmética elementar? Na aritmética elementar você entende que as relações e proporções independem da materialidade dos elementos que as exemplificam. Portanto, se aqui tem duas bolinhas e ali outras duas bolinhas, eu as somo e o resultado será quatro ---- e continuaria dando quatro se não houvesse bolinha alguma. Isso é uma coisa que qualquer pessoa tem de perceber instintivamente, não deveria ser preciso ensinar. Por que hoje em dia é preciso ensinar isso a pessoas que estão nas universidades e se metem em discussões filosóficas? É preciso ensinar isso porque elas foram alfabetizadas pelo método sócio-construtivista, o qual fala da "construção do conhecimento" antes de falar em "percepção da realidade".

Existe hoje toda uma tendência universal, no sentido idealista, de dizer que tudo que existe são as nossas percepções: a mente é a substancia de tudo quanto existe. Mas a palavra mente é entendida no sentido totalmente subjetivo: a mente do indivíduo. Daí vêm coisas como aquelas mencionadas pelo professor Goswami em entrevista ao Roda Viva, ou como o filme O Segredo dentre outros que enfatizam a idéia de que a mente tem poder sobre a matéria. Bem, se tudo fosse constituído só de mente você não sairia do universo mental em hipótese alguma; além disso, não poderia haver outras mentes a não ser a sua.

Essa corrente idealista vem junto e é uma espécie de irmã gêmea da corrente materialista que diz que tudo está no cérebro, que a estrutura do mundo está no cérebro. A pergunta mais óbvia é a seguinte: em qual cérebro, no meu ou no seu? Quer isso dizer que o seu cérebro existe e produz um mundo, ou você e o seu cérebro juntos são apenas uma imagem que o meu cérebro criou? A simples existência de vários cérebros já prova que a essência do processo cognitivo não pode ser explicada só pelo cérebro; o cérebro tem de ter algo que ele conheça, e esse algo inclui outros seres humanos que também têm cérebro. Às vezes eu fico perplexo com isso. Por que é preciso ensinar isso? Isso não é uma divergência filosófica, mas um erro de percepção; é uma falta de inteligência apenas. É por isso que desde o começo do curso eu insisti num ponto que está na página 37 (as primeiras cinco aulas deste curso serão publicadas como livro; eu estou fazendo umas breves correções). Tem uma parte que diz o seguinte [eu estava explicando o exercício do necrológio]:

Outro aspecto central para o êxito do exercício é adquirir instrumentos verbais, expressivos, suficientes que habilitem o sujeito a descrever para si próprio seus estados interiores e suas experiências. Para aqueles que leram o meu livro Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos, deve ter ficado claro que todo conhecimento humano começa primeiro como percepção, depois como memória e imaginação e só depois se estabelece em conceitos verbalizáveis sobre os quais é possível raciocinar. O conhecimento implica uma série de conversões de uma coisa em outra.

Isso quer dizer que existe naturalmente o processo abstrativo, tal como descrito mais ou menos por Aristóteles, pelo qual os seus cinco sentidos apreendem os sinais que vêm de um objeto qualquer, pois uma imagem esquemática desse objeto se conserva na memória, ou seja, você esquece as transformações reais pelas quais o objeto está passando e conserva só o que lhe parece ser o esquema permanente daquele objeto. Por exemplo, o gato pode estar deitado, sentado, correndo, comendo, fazendo qualquer coisa, mas você conserva na memória uma forma esquemática, um esquema chamado esquema fático (esquema do fato) e raciocina sobre ele. Então você vai formar o conceito de gato, expressando nessa imagem o que caracteriza a sua permanência, o que define seus elementos permanentes. Quer dizer: o esquema fático já é permanente, você o repete, você é capaz de lembrar-se da figura do gato, da figura esquemática do gato e é capaz de reconhecer essa mesma figura em outros gatos. Eis aí a importância da analogia, a qual é uma mistura de semelhanças e diferenças. Se você não fosse capaz disso, então cada novo gato que aparecesse seria uma criatura totalmente diferente da outra e você não reconheceria gato algum, você não teria o conceito da espécie gato, você teria apenas uma infinidade de figuras totalmente diferentes, incomparáveis e caóticas.

Sabemos que esse processo de abstração não é apenas algo que se passa no nosso cérebro, mas que tem uma relação com o objeto em si. Por que sei disso? Porque quando faço essa abstração da espécie gato, estou repetindo mentalmente o processo de geração de outro gato. Isso quer dizer que o gato nasce de outro gato; ele não nasce de uma tartaruga ou de um abacaxi. Portanto, a noção de espécie não é apenas a de semelhanças externas entre várias coisas, porque as semelhanças podem ser casuais, e você pode criar uma espécie inexistente. Mas, em geral, quando você pega a noção de espécie, está indo até a raiz do modo de ser daquele ente.

Isso não se refere somente a objetos da natureza. Se eu apreendo, por exemplo, o conceito de livro, não se trata só de uma forma externa ---- aqui tem um livro grande, ali tem outro pequeno ----, não é só isso. O conceito de livro implica que alguém o escreveu, e que depois de escrito ele teve de passar por todo um processo industrial complexo de produção para chegar aí. Então existe uma conexão entre o software e o hardware, entre os conteúdos mentais que o sujeito escreveu e a produção do livro; tem de haver ao mesmo tempo uma continuidade, uma diferença entre uma coisa e outra. Portanto, o conceito de livro não é só de semelhança entre objetos, mas diz algo da origem, da raiz, do modo de ser [do objeto].

No instante em que você cria o esquema fático, ou seja, que é capaz de repetir a imagem em sua mente, você já tem implicitamente toda essa percepção, mas agora precisa verbalizá-la, e é aí que começa o problema. Vejam, por exemplo, ser não tivéssemos a capacidade de analogia nós não conseguiríamos distinguir entre um gato e dois gatos. Se o sujeito não é capaz de contar até dois, então ele está muito mal, evidentemente. Mas para contar até dois, eu preciso conseguir fazer a analogia entre um gato e outro ser da mesma espécie, e distingui-los numericamente ao mesmo tempo em que os estou articulando pela forma comum que está num e está noutro, embora eles possam estar em posições diversas, fazendo coisas diferentes ---- um gato pode estar dormindo e um outro acordado; e assim por diante.

Esse treinamento de percepção, distinção e memorização, começa no instante em que você nasce; é um aprendizado muito primitivo, que vem todo de sua infância. Porém, acontece que se você não consegue verbalizar esses conteúdos, então você só poderá pensar por imagens; e as imagens não são transmissíveis, ou são dificilmente transmissíveis. Por exemplo, se em vez de dizer a palavra gato você tivesse de desenhar um gato toda vez que fosse se referir a esse bicho, a primeira conversa não teria terminado ainda. Então, se o sujeito ao dizer gato, banana, árvore etc. tiver de desenhar tudo, não será possível.

Embora existam algumas línguas em que a escrita é ideográfica, em que ela representa esquematicamente o objeto, a função do ideograma vai infinitamente além da função de um desenho. O ideograma condensa toda uma interpretação, e esta por sua vez se articula com outra para formar um vocabulário, para formar um alfabeto. Em época alguma da espécie humana a comunicação foi inteiramente ideográfica; isso simplesmente não seria possível. Então é absolutamente necessário passar da imagem ao seu conceito, e essa passagem se faz através da palavra.

A primeira palavra... Talvez vocês se lembrem do texto que nós lemos do André Marc, no livro Psicologia Reflexiva, em que ele citava aquela menina cega, surda e muda, absolutamente incomunicável, que um dia aprende sua primeira palavra, aprende seu primeiro signo. A cena é exatamente esta: havia uma freira que cuidava da menina o dia inteiro, porque esta não conseguia se vestir nem comer nem coisa alguma; um dia a menina pega uma faca na mão e a freira, evidentemente, toma a faca dela; a menina começa a espernear e a chorar; daí a freira entende que a menina quer a faca de volta e então faz um sinal na mão dela [a freira esfrega a mão no braço da menina, sumulando o corte de uma faca]; a menina a imita, faz o mesmo sinal; a freira então entrega a faca de volta para a menina. A menina tinha ali o seu primeiro signo: isto aqui [Olavo simula com as mãos uma faca cortando] significa faca. Mas não significa só faca, só objeto, significa uma intenção que eu tenho com relação à faca, e significa um uso que eu posso fazer dela, e assim por diante. Ou seja, o primeiro signo já tem uma constelação de significados que vai muito além da mera figura física do objeto.

O processo de verbalização, isto é, de receber, aprender e criar signos para poder se comunicar, tem de acompanhar de muito perto a sua percepção das coisas: você tem de aprender a dizer o que você vê, o que você toca, o que você sente, quer etc., e isso realmente não é fácil. Se nesse aprendizado você começa a introduzir outras variáveis que não fazem parte desse processo natural, mas que refletem uma segunda intenção do educador, por querer este formar a sua mente de uma determinada maneira, a coisa pode se complicar de tal modo que se torna impossível dizer exatamente o que você está percebendo. Isso quer dizer que os signos aprendidos e convencionais passados na educação vão se superpor aos signos elementares que designam projetos, estados, sentimentos etc. Daí não tem mais jeito.

É claro que essa dificuldade vai aparecer mais tarde sob a forma de dúvidas filosóficas ou de objeções filosóficas que o indivíduo faz a isto ou àquilo. Porém, será quase impossível fazê-lo retornar à percepção normal. Não é possível realmente estar discutindo com um sujeito e lhe estar restaurando a inteligência ao mesmo tempo. Por exemplo, se você tivesse de educar uma criança e ao mesmo tempo discutir com ela o processo educacional que ela está sofrendo, você entraria num looping e a coisa iria parar na mesma hora. Mas é praticamente isso o que se faz no método sócio-construtivista.

Então vamos seguir aqui [com o texto do Facebook]:

(...) Qualquer pessoa normal percebe que uma placa-mãe tem forma e padrão de placa-mãe e não de alma humana.

Portanto, que ela só pode subsistir à destruição da placa-mãe enquanto forma de placa-mãe. Ora, a forma de placa-mãe não implica o dom da fala, nem a capacidade de juízo moral, nem a responsabilidade jurídica; não implica nada daquilo que distingue o ser humano. Portanto, ela sobrevive como placa-mãe. Essa seria a forma de imortalidade de uma placa-mãe, como aliás é a forma de imortalidade de qualquer coisa.

Já expliquei a vocês que no plano da eternidade nada entra nem sai, tudo sempre esteve lá. Tudo aquilo que entrou no ser, que entrou na existência por um segundo, não pode sair da existência e voltar ao nada ---- pode cessar de existir num determinado plano espaço-temporal, mas não pode voltar a ser um nada, porque o nada nunca existiu, e aquilo que existiu não pode ser um nada, só pode parecer com um nada, porque não está mais presente, sai da presença e não do ser. Essa distinção é fundamental.

A totalidade eterna do que existe só está presente para Deus. Isso supõe uma consciência infinita e eterna. Para uma consciência infinita e eterna tudo está eternamente presente. É por isso mesmo que Boécio definia a eternidade como "a posse plena e atual de todos os seus momentos". Momento para nós é precisamente aquilo que passa; nós não temos a posse plena de todos os momentos, temos só a posse do momento que está presente. No plano da eternidade nada acabou, nunca, e nem vai acabar jamais: o vento que sacodiu uma folhinha por um segundo entrou no plano do ser, aconteceu, nunca mais será um nada. Portanto, do ponto de vista da consciência universal, aquilo está presente como qualquer outra coisa, está presente como a Batalha de Waterloo ou a queda do Muro de Berlim, ou como o que estou dizendo agora.

A noção de eternidade pode ser muito difícil para as pessoas assimilarem, pois não é uma noção fácil. O indivíduo que tem essas deficiências não consegue alcançar nem mesmo a noção de forma, não consegue distinguir uma forma de uma matéria. Qualquer objeto industrial produzido em série, compreende vários objetos feitos com vários pedaços de matéria que têm a mesma forma. Por exemplo, eis aqui uma latinha de Coca-Cola: ela é igual a outra latinha de Coca-Cola, e é igual a outra, e outra e assim sucessivamente. Então eu entendo que existe uma forma que é idêntica, mas que os fragmentos de matéria na qual essa forma foi incorporada não são os mesmos, estão separados espacialmente, mas pertencem à mesma espécie, são objetos da mesma espécie, porque têm a mesma forma.

Por esse parágrafo [do Gilherme Tomishyo] vemos que o indivíduo não consegue pegar a noção de forma e, justamente por não conseguir, quer discutir, porque tudo lhe parece um paradoxo, tudo que não esteja em sua própria mente irá parecer um paradoxo; ou seja, o indivíduo não está entendendo nada, e por isso mesmo ele pode discutir tudo. Mas esse caso não é o único, há milhares como esse, se não houvesse eu não estaria perdendo o meu tempo falando de um cara que eu nem sei quem é.

O mesmo defeito que vemos aqui, podemos observar no Leandro Dias; ou, por exemplo, nessa discussão que acabou de surgir sobre a questão da admiração, em que dizem: "Eu admiro com restrições". Ora, é impossível admirar com restrições. Você pode querer dizer "aprovar com restrições". Isso é uma coisa completamente diferente. Nesse caso você não concorda com tudo o que o sujeito diz, concorda apenas em parte. Haverá outra parte com a qual não concorda. Por outro lado, admiração com restrições não é uma admiração, porque admirar não é julgar, mas valorizar. Então a admiração é sempre irrestrita: ela não precisa ser restringida porque é limitada por sua própria natureza, ou seja, você não admira todas as pessoas com a mesma intensidade, não dá o mesmo valor a todos. Então toda admiração que você tem por uma pessoa tem um limite natural, que é a admiração que você tem por outra pessoa melhor ou maior. Por exemplo, eu posso dizer que admiro o Felipe Moura Brasil e admiro Shakespeare, nos dois casos sem restrição alguma. Ou seja, a admiração vem sem crítica alguma, não estou vendo defeito em qualquer um dos dois. Existe apenas admiração maior e menor, mas não com restrições. Na hora em que você começa a fazer restrições sai do campo da admiração e passa para o campo do julgamento. Se você está julgando, você é o juiz, e o juiz está naturalmente numa situação superior ao julgado.

Não é possível, portanto, julgar o sujeito e admirá-lo ao mesmo tempo sobre a mesma clave. Isso deveria também ser uma coisa de percepção instintiva. Por exemplo: você gosta de sua mulher? Gosta. Gosta do seu gato? Gosta. Tem alguma restrição à mulher? Não. Tem alguma restrição ao gato? Não. Significa isso que você irá para a cama com o gato e dará uma cuia de leite no chão da cozinha para a mulher? Não, você não irá fazer essa confusão, não precisa ver defeito algum no gato nem na mulher, você trata o gato como gato e a mulher como mulher. Não que eles [o gato ou a mulher] tenham algum defeito, algo a ser criticado neles: "Ah, eu só não vou para a cama com esse gato porque ele está sem rabo, ele quebrou o rabo; se não fosse isso eu iria para a cama com ele e deixaria a mulher tomando leite no chão da cozinha". É assim? Não, ninguém pensa assim. Portanto, existe uma distinção natural entre a clave "admirar ou desprezar" e a clave "aprovar ou desaprovar", a qual é uma clave de julgamento. Isso deveria ser espontâneo, as pessoas deveriam perceber isso instintivamente. Do contrário estão confundindo dois planos.

O limite da admiração não é um defeito que você veja na pessoa, é uma gradação que existe entre ela e outras pessoas maiores. Admirar também não quer dizer que haja um amor pessoal. Eu posso dizer, por exemplo, que admiro certos santos da Igreja, mas eu não os amo realmente porque eles ainda não têm uma presença pessoal para mim. Quando tiverem... Por exemplo, posso dizer que amo Santo Agostinho porque fiquei lendo Santo Agostinho, sei um monte de coisas sobre ele e, portanto, ele é uma presença para mim. Mas se eu falo de São Jerônimo: eu pouco sei sobre ele, só sei que traduziu a Bíblia; então eu não posso amá-lo pessoalmente. No entanto, eu admiro os dois, porque são santos da Igreja.

Existem várias emoções, como por exemplo de admiração, de amor, de devoção, de dedicação, de atenção etc. Essas coisas não deveriam ser confundidas. O sujeito que não sabe essa distinção, não conhece nem tem autoridade para falar de si mesmo, o que é o estado mais primitivo da burrice que se pode imaginar. Isso se tornou endêmico na sociedade brasileira; não aparece somente em Facebook, mas também em artigos de jornais, em aulas de universidades etc., o tempo todo.

Agora imagine que você não está discutindo placa-mãe, mas socialismo, capitalismo, marxismo cultural etc. Bem, aí o negócio vira uma confusão dos demônios e não é possível desfazer a confusão, porque você estará falando com um interlocutor inepto. Nenhum discurso poderia infundir capacidade no seu interlocutor. Para isso você precisaria educá-lo, mas para educá-lo seria preciso que ele o deixasse educá-lo. Para uma criança recém-nascida você não pede autorização, vai educando e mais tarde vê como é que fica. Uma pessoa adulta, porém, não pode ser forçada a se submeter a uma educação que eu possa lhe dar. É claro que eu posso lhe dar educação, mas só se ela consentir, como vocês estão consentindo.

Agora, um cara que está brabo comigo e que está tentando me julgar, desde o alto da sua ignorância... Como é que eu posso educá-lo? Aí vira aquele negócio que é o genus admirabile: é aquele gênero de discurso no qual você está falando para um juiz inepto que não está entendendo o que você está falando. E é admirável justamente porque se você conseguir alguma coisa você é um gênio da retórica.

Nessa altura, o que resta a fazer --- e eu faço muito isso --- é induzir o indivíduo a um estado de perplexidade. Você pode conseguir isso mediante a ofensa: você o humilha de tal maneira que ele vai para a casa pensar. Num primeiro momento ele vai ficar com muito mais raiva de você, mas com o tempo, se ainda houver alguma inteligência nele, ele vai pensar.

Bem, vocês viram o meu bate-papo com o Rodrigo Constantino. Eu falei coisas horríveis sobre ele. Por isso mesmo ele foi pensar. Isso porque na época eu não podia persuadi-lo racionalmente, mas poderia chocá-lo, poderia tirar a segurança dele. E ele foi suficientemente autoconsciente para perceber que estava abalado. Então, ele disse: "Ah, eu vou estudar mais para poder discutir com esse cara". Foi estudar, estudou e disse: "Opa, não é que o desgraçado tem razão?".

Pronto! Isso é normal. Sidney Silveira a mesma coisa. E assim como aconteceu com esse, vai acontecer com muitos. Agora, um sujeito desses, quando me xinga é com um propósito. Ele está fazendo uma descarga emocional. Eu, quando xingo, não dou ponto sem nó. Claro que nem sempre eu acerto, mas às vezes eu consigo acertar no ponto fraco do sujeito. Ele vai ficar muito brabo, mas vai recuar e pensar. Isso pode levar dez, vinte, trinta anos, mas um dia ele vai voltar e perguntar como é que é aquele negócio mesmo?

Eu sou professor não só por profissão, mas porque esta é minha personalidade, eu sou assim. Eu me lembro que ia em um barbeiro onde os caras, quando iam conversar sobre alguma coisa que não sabiam, alguém dizia: "Pergunta aí pro professor!". Ninguém sabia quem eu era. Trata-se de um modo de ser; eu não deixo de ser professor nem um minuto por dia. Tudo o que estou fazendo é pedagógico. Eles podem não perceber, podem achar que estou fazendo alguma... O cara vai me julgar pelo padrão dele mesmo, pela medida dele mesmo, e achar: "Ah, mas esse cara é muito explosivo, ele é muito irascível.". Pode achar tudo isso; e tudo, claro, é uma infantilidade.

Às vezes isso não funciona. Às vezes, por mais que você humilhe o cara, ele está encruado e não vai sair dali. Mas poderia haver outro método. Por exemplo, a persuasão pela emoção --- afagar o ego do cara ---, como se faz com um cachorro: você afaga e amansa ele. Mas eu acho que isso seria humilhante. Eu não faria isso com nenhum ser humano. Faço com um cachorro. Primeiro você acalma o cachorro, dá um docinho para ele, dá um biscoitinho. Daí ele se torna seu amigo, aceita qualquer coisa de você. Mas eu acho que essa é a maneira de educar cachorros e não seres humanos. O ser humano tem a obrigação de ter uma certa inteligência e você de tratá-lo com esse nível. Por isso, em certas circunstâncias, é menos humilhante humilhá-lo diretamente do que tentar seduzi-lo por esses meios.

(...) a placa-mãe tem forma de placa-mãe e não de alma humana. Essa forma é imaterial e, como tal, subsiste intacta à destruição da placa-mãe, já que consiste apenas em uma rede de relações possíveis, podendo portando ser imitada ao produzir-se uma nova placa-mãe, mas isso não faz dela uma alma humana. Similarmente, a alma humana, enquanto forma da individualidade humana, subsiste à extinção do corpo, mas subsiste enquanto forma da individualidade humana e não como forma da placa-mãe. Toda criança entende instintivamente que duas coisas serem imateriais não faz com que elas sejam a mesma coisa, mas após alguns anos de estudo na Universidade Federal de São Carlos, essa obviedade torna-se um mistério inapreensível.

Universidade federal de são Carlos para ser otimista. Isso para supor que o indivíduo já não tenha recebido essa distorção desde pequenininho na escola primária, porque aí a coisa fica muito mais grave.

Note bem: isso não tem nada a ver com doutrinação ideológica, pois você observa a mesma coisa em pessoas das várias correntes ideológicas, pessoas que não têm a arte da distinção entre conceitos, porque não têm a arte da expressão das suas experiências e percepções; perderam o senso da analogia, perderam o senso da forma.

É claro que isso ainda se torna mais complicado, porque em uma outra esfera, que é a esfera das discussões filosóficas, científicas, verdadeiras, genuínas, existe a discussão a respeito. Por exemplo: em que medida a nossa percepção é uma recepção ou uma construção? Existem muitas pessoas ---- cientistas, gente séria ---- que raciocinam assim: o nosso olho só percebe um pontinho de cada vez, ele se move muito rapidamente, junta vários pontinhos e forma uma figura, portanto a figura percebida não é uma recepção, é uma construção. Essa é uma hipótese. Porém, pergunto eu, qual é a diferença entre construir mentalmente um objeto segundo vários pontos que reparei nele e construir livremente uma figura qualquer? Deve haver alguma diferença. Isso significa que, no ato da percepção, não estou livre para construir a minha imagem mental, o meu esquema fático, de qualquer maneira que eu deseje. Eu tenho, por assim dizer, uma pauta, e esta pauta me é dada pelo próprio objeto.

É o que você vê quando o desenhista vai observar um modelo e mede com um lápis. Se fosse para fazer uma figura totalmente imaginária não precisaria medir nada. O mesmo ocorre com os nossos olhos: se você os fechar e estiver tentando imaginar alguma coisa, eles estarão se mexendo, do mesmo modo como se mexem durante o sonho. Só que ali não há pauta alguma, você está criando tudo aquilo de acordo com o seu bel-prazer.

Portanto, que existe o elemento construtivo na percepção, sem sombra de dúvida. Se não houvesse nenhum elemento construtivo a percepção seria apenas uma recepção passiva. Isso significaria que o seu olho não está funcionando, seu cérebro não está funcionando, está tudo parado; você está como um papel em que vem alguém e o carimba. Essa é a imagem usada por John Locke, o qual dizia que a percepção é assim: você é um papel em branco e os objetos são um carimbo, que vem ali e gruda.

Ora, se fosse um carimbo eu só poderia ter aquela imagem enquanto o objeto estivesse presente; quando ele fosse embora sumiria. Se eu tenho a capacidade de reter, repetir aquilo, é porque algo está ativo no meu interior. Portando o ato de percepção é um ato, não só uma recepção; e se ele é um ato, então, evidentemente, algum aspecto construtivo ele tem. Porém, ele não pode se reduzir à construção, absolutamente, porque você constrói esse objeto segundo uma pauta que lhe foi dada e lhe foi imposta por eles mesmos.

Mais ainda: eu acabei de dizer que você não poderá formar a imagem de gato se não for capaz de distinguir entre um gato e dois gatos. Ou seja, você tem de ser capaz de contar pelo menos até dois para fazer essa operação. Para que você conte até dois gatos é preciso que haja dois gatos. Esse "haver dois gatos" não depende da sua atividade mental, depende de que os gatos estejam efetivamente ali. Existe portanto um elemento de construção, que é a conexão que eu faço (um gato, dois gatos), e existe um elemento de presença objetiva, que me dá a pauta pela qual eu conto "um gato, dois gatos" --- não conto três porque não tem um terceiro; se tiver, conto três.

Porém, em cima disso, existe uma segunda distinção. Quando os idealistas dizem que tudo o que existe é composto de consciência, que consciência é a substância da realidade, isso pode querer dizer duas coisas. Primeiro, pode querer dizer que toda percepção é apenas construção. Sendo assim, as pessoas que estou vendo e aquelas para as quais estou falando, também seriam construções da minha mente. Mas isso logo se choca com a objeção de que elas acham que eu sou a construção da mente delas. Essa hipótese, portanto, pode ser excluída in limine como demasiada imbecil. E existe a segunda hipótese, muito mais sutil, de que a substância das próprias coisas é espiritual, de que portando a matéria não é senão uma aparência assumida em determinadas condições a partir de certas formas, ou seja, as formas são as verdadeiras substâncias dos entes.

Aí voltamos ao dilema platônico-aristotélico, com a pergunta: as formas existem acima dos objetos e independentemente deles ou elas existem nos objetos? Essa é, evidentemente, uma confusão entre a mente divina e a mente humana, porque a separação de forma e matéria só existe para nós: Deus pode pensar tanto as formas separadamente quanto as formas na matéria.

Podemos aceitar um idealismo objetivo desde que ele não negue a evidência do materialismo. Era isso, no fundo, o que o professor Goswami estava querendo dizer. Acho aliás que ele não acabou de se explicar e os entrevistadores não entenderam quando ele disse que o materialismo é verdadeiro e o idealismo é verdadeiro. Parece uma contradição, mas não é de maneira alguma, porque a forma só está necessariamente distinta da matéria na nossa mente, não nas coisas. Por exemplo, você pode distinguir uma pessoa que você está vendo agora da identidade permanente que ela tem desde que nasce até quando morre. Essas coisas [o eu histórico e o eu presente] estão separadas porque uma está presente e a outra está ausente, e esta só coincide com aquela em um ponto, que é exatamente o ponto do momento presente.

Mas se você conseguir conjeturar um pouco como Deus vê essa pessoa, Ele a vê inteira, desde antes de nascer até depois de morrer. Portanto, para Ele, essa separação de forma e matéria não existe. Ademais, a matéria também tem a sua forma. Por exemplo: se você serrar um pedaço de madeira, verá que ela resiste, porque não é só o serrote que tem uma forma, a matéria tem a sua própria forma, e essa sua própria forma se compõe de fibras, e cada uma das fibras tem a sua própria forma, e a fibra por sua vez se compõe de moléculas, as quais cada uma tem a sua própria forma, e você vai subdividindo até chegar na partícula subatômica. Esta, das duas uma: ou ela é um nada ou ela tem alguma forma.

Portanto, a distinção de forma e matéria é na verdade operacional, porque a rigor a matéria também tem forma --- a matéria de tudo quanto existe também tem forma. É impossível que um gênio como Aristóteles não percebesse isso. Forma e matéria são pontos de vista sobre os quais você se coloca. Isso quer dizer que como o objeto tem forma e matéria, todo e qualquer objeto tem um aspecto que é perecível e outro que não é perecível. Isso está nele. Por exemplo: temos um gato e sabemos que um dia ele vai morrer. Por acaso ele vai deixar de ser um gato porque morreu? Não. Ele será um gato morto, terá mudado de estado, mas sua forma de gato permanecerá. Acontece que essa forma que permanece depois que ele morre é a mesma que estava nele enquanto ele estava vivo. É por isso que Aristóteles dizia que toda substância é uma união indissolúvel de forma e matéria; as coisas são distinguíveis, mas não são separáveis; na hora em que se separa, a parte material, corporal, cessa de existir como tal (na verdade nem cessa de existir, mas começa a se deteriorar e é subdividida, assim como quando um sujeito morre seu corpo se decompõe e os vermes o comem).

Tem gente que acha que a vida não acaba, apenas se transforma. Sim, e eu me transformo em milhares de vermes. Não acredito que isso seja uma vantagem. Isso quer dizer que a vida daquele corpo enquanto portador daquela forma acabou, e agora ele vai adquirir, vai pertencer a outras formas. A forma de cadáver não é a forma do corpo. Aristóteles já dizia: "Uma mão amputada tem formato, mas não tem forma de mão". Quer dizer, ela se parece com a mão. É como a vagina fabricada no centro cirúrgico.

O idealismo objetivo, ou seja, aquele que diz que a verdadeira substância da realidade se constitui de espírito, de consciência etc., é aceitável na medida em que ele não negue a matéria, porque o que nós chamamos de matéria não passa de um aglomerado de outras formas que são dominadas, englobadas, por uma forma superior que as abrange e as unifica. A partir da hora em que essa forma se torna independente da matéria, esta se decompõe. Sobretudo não podemos negar a existência da matéria porque a forma não chega diretamente à nossa inteligência como forma, chega como um esquema fático oferecido às nossas sensações.

Mesmo a percepção direta que temos de um objeto, não corresponde ao objeto inteiro, mas somente a um dos seus lados ou aspectos. Tem gente que se baseia nisso para negar a objetividade do conhecimento e dizer: "Não, tudo que nós vemos são somente aspectos --- é só um recorte ---, portanto não temos a coisa inteira.". Muito bem, acontece que isso não é uma limitação nossa, é uma limitação do próprio objeto. Não é que eu não posso ver um gato por todos os lados ao mesmo tempo, mas o gato não pode se exibir por todos os lados ao mesmo tempo, porque isto faz parte da sua modalidade de existência espaço-temporal. Isso quer dizer que a "limitação" da minha percepção corresponde, milimetricamente, à limitação do modo de ser do objeto que eu estou vendo. Portanto, a percepção e o objeto estão perfeitamente de acordo, e isso não é uma objeção válida contra a objetividade do conhecimento.

Isso quer dizer que durante muito tempo a educação do ser humano é, sobretudo, uma educação estética, é fazer o sujeito aprender a ver, aprender a tocar, aprender a andar, aprender a ouvir, e depois ir aprendendo a expressar essas coisas e expressá-las de maneira ao mesmo tempo articulada e distinta. Sobretudo você aprender a distinguir o que é um pensamento seu e o que é o objeto sobre o qual você está pensando. A nossa capacidade de abstração é tamanha, que podemos pegar praticamente todos os conhecimentos que temos, transformá-los em signos e colocá-los em um computador. Este vai combinar essas coisas de maneira tão inteligente, sendo possível até conversarmos com ele a respeito: pode conversar, jogar xadrez, pedir informação etc. O computador pode fazer tudo isso, só não pode ter as percepções como eu as tive; ele depende de que um ser humano coloque esses signos lá. Mas você coloca os signos e não os objetos significados. Isso é a mesma coisa que dizer que o computador não sabe o "de quê" ele está falando, ele sabe apenas o "o quê".

O fato de as pessoas aprenderem a lidar com o computador desde pequeninas tem esse resultado: elas têm uma tremenda facilidade de combinar signos e uma dificuldade quase intransponível de reportar seus objetos e significados, porque estão operando com uma memória de computador e não como uma memória humana. A memória do computador é o seguinte: um signo, que leva a outro signo, que leva a outro signo, que leva a um circuito integrado e pronto, acabou, não tem objeto nenhum. A memória humana, ao contrário, parte de objetos, de experiências e de situações, aglomerando-as em formas que se conservam na memória e dali tira os conceitos e os signos.

Se aparece então um garotinho de cinco anos, que já faz tudo no computador, as pessoas dizem: "Que geninho!". Geninho nada, é um idiota completo! Essa capacidade combinatória de meros signos não é inteligência, é apenas raciocínio. Inteligência existe quando o raciocínio é capaz de apreender algo da realidade, da situação real, e não quando é apenas capaz de combinar signos e parecer inteligentes.

Além do problema da educação, do ensino socioconstrutivista, ainda tem o advento dos computadores. Querer treinar as crianças para lidar com computadores antes mesmo de elas terem o imaginário formado é uma coisa brutal. Todas as novas gerações são vítimas disso, e a coisa tende a ficar pior. Então não se impressionem com o que está acontecendo, porque nada está tão ruim que não possa piorar mais um pouco.

Aluno: O senhor conhece algum livro ou autor importante recomendável como intérprete do pensamento de Leibniz?

Olavo: O livro Leibniz: Initiation a sa Philosophie (Leibniz: Iniciação à sua Filosofia), de Yvon Belaval ---- autor que eu aprecio muito ----, é muito bom para começar esse estudo. Leibniz tem um problema: tudo o que ele escreveu são fragmentos, uma multidão de fragmentos. Então você não vai encontrar um livro de Leibniz a partir do qual você possa conhecer a filosofia de Leibniz. Em cada um você irá conhecer um pedacinho, e vai levar muito tempo para juntar os pedaços. Então, nesse caso, é melhor antes ler um livro introdutório, feito por alguém que leu a coisa toda e conseguiu mais ou menos pegar a estrutura do conjunto.

Existe um livro que eu aprecio demais, L'Ère de l'individu (A Era do Indivíduo), de Alain Renault. Esse não é só sobre Leibniz, mas tem informações importantes sobre ele. E há o livro de Martial Gueroult Leibniz: Dynamique et Métaphisique, no qual o autor tenta usar o mesmo método que usou com relação a Descartes no livro Descartes Segundo a Ordem das Razões, mas não dá tão certo. Onde Gueroult acertou mesmo foi no Descartes. No livro sobre Leibniz ---- filósofo cuja própria ordem ou desordem dos escritos faz com que toda tentativa de encontrar uma ordem das razões tenha de partir do leitor, pois o autor não está lhe dando a coisa mastigada ---- não funcionou muito bem. De qualquer modo é um grande livro.

Aluno: Qual é o lugar do tratado da monadologia no interior da obra de Descartes?

Olavo: Bem, o conceito de mônada é absolutamente fundamental, mas não vai querer dizer grande coisa fora do conceito da harmonia pré-estabelecida, que seria melhor você procurar no Discurso de Metafísica (há uma edição portuguesa, das Edições 70, que me pareceu muito boa)2, e no livro da Teodicéia.

Aluno: Sou seu aluno novo e não sei se em alguma aula foi falado sobre o tema gnóstico da conscienciologia, encabeçado pelo senhor Waldo Vieira. Não tenho nenhuma opinião formada sobre isso.

Olavo: Bem, eu também não tenho. Eu acompanhei os trabalhos do Waldo Vieira até uns vinte anos atrás. Ele tinha feito uma coleção muito impressionante de casos, bem documentados, acerca de consciência fora do corpo. Mas eu não sei se ele continuou esse trabalho e não sei quais as conclusões a que chegou; só sei que aquela coleção é importante em si mesma, como observação clínica por assim dizer.

Aluno: Acabei de ler "O Conde de Monte Cristo" de Alexandre Dumas. O livro me fez pensar muito. Qual a importância da obra?

Olavo: Tudo o que Alexandre Dumas escreveu é importante. Quem ensinou os escritores europeus a contar uma história foram duas pessoas: Alexandre Dumas e Walter Scott. Então praticamente todas as técnicas narrativas que apareceram depois estão ali de uma maneira ou de outra e são absolutamente insuperáveis no interesse que conseguem despertar no leitor, mesmo quando as histórias são mirabolantes e inacreditáveis. No livro Joseph Balsamo, por exemplo, tem várias cenas dele inventando reuniões dos Illuminati, essa coisa toda --- não sei se ele inventou tudo aquilo ou se tinha algum documento, mas mesmo onde a coisa é absurda é muito interessante. Eles sabem escrever uma história.

Aluno: Como posso interpretar meus sonhos? É possível fazer isso? Talvez a pergunta deva ser: é útil interpretar os sonhos?

Olavo: Às vezes sim, às vezes não. Os melhores livros que eu conheço a respeito são o do Dr. Robert Langs, The Dream Workbook (Simples Exercícios para Desencavar os Segredos dos Seus Sonhos), um livro muito bom de exercício sobre sonhos, cujo autor tem um método próprio, que ele mesmo inventou, diferente de tudo o que existia antes. Esse trabalho dele foi continuado depois pelo Dr. Andrew G. Hodges no livro The Deeper Intelligence (A Inteligência Mais Profunda). Recomendo altamente esses dois livros. Mas eu não acho que seja muito bom ficar escarafunchando todos os sonhos não, porque tem aquele ditado hindu: "Quem olha por muito tempo os seus sonhos se torna semelhante à sua sombra.". Eu acho que esse método dele permite apreender uma coisa (ele não explica assim; eu é que estou explicando): o sonho é uma etapa do seu pensamento, um pensamento que está em formação, mas às vezes quando a conclusão, o pensamento pronto, aparece na sua mente você já esqueceu o sonho e isto não é muito bom, porque aí você desconecta o pensamento verbalizado das suas origens oníricas, portanto da sua memória.

É sempre bom aproximar o sonho da sua realidade cotidiana para que você saiba exatamente o que está sentindo. O sonho não lhe ensina nada sobre o mundo exterior, mas lhe ensina exatamente sobre o que você está pensando, sobre o que está querendo e sobre o com que está preocupado.

Aluno: Numa aula recente o senhor falou que as pessoas não sabem dizer a que classe elas pertencem. Eu, por exemplo, não sei a minha. Um professor de filosofia, escritor, jornalista, crítico, analista, o Olavo de Carvalho, pertence a que classe? Sacerdotal?

Olavo: Sacerdotal não é classe, é casta. Castas são tipos humanos marcados pela sua orientação básica na vida e isso não tem nada a ver com a classe social. O único caso que eu sei de uma sociedade que foi todinha baseada na idéia de fazer as classes coincidirem com castas foi a Índia, mas mesmo assim não deu muito certo porque aparece sempre [um caso em que] o sujeito nasce na casta errada, ou seja, ele nasce numa classe que não corresponde idealmente à sua casta.

Quanto às classes sociais, a maneira mais elementar de defini-las é aquela usada por Karl Marx: definir a classe do indivíduo pelo seu papel no processo de produção. Nesse sentido, a divisão básica é entre os proprietários do capital, os quais têm os meios de produção, e os operários, os quais vivem de alugar ou vender seu trabalho. Entre os dois existe uma série de tipos intermediários. Há, por exemplo, uma classe média urbana e rural, pequenos proprietários rurais e pequenos empresários, trabalhadores autônomos. Eu, por exemplo, sou trabalhador autônomo há quase trinta anos ou mais. Então, é como se fosse um microempresário. Comparativamente, nos Estados Unidos eu pertenço à classe média baixa; no Brasil eu pertenceria à classe média um pouco mais alta, como microempresário (eu acho que deve ser exatamente o seu caso também). Então somos todos a classe média na perspectiva marxista.

Para fazer uma descrição total do sistema de classes você precisaria levar em conta muito mais distinções internas. Por exemplo, no esquema marxista os empregados da burocracia pertencem à classe média. Mas é evidente que se acontece um processo como no Brasil, onde o funcionalismo público é praticamente tomado por um partido, por uma militância, então a função social dele já muda.

Um belo exemplo de como se faz a descrição de uma classe social é o livro A Elite do Poder, de C. Wright Mills (existe uma tradução brasileira), em que há cinquenta anos o autor fez a pergunta "quem manda nesta porcaria aqui?". Então ele começou a observar as pessoas que pertenciam à elite, o que seria realmente a classe dominante. E aí a descrição já não corresponde exatamente com a de Marx, porque ali [na elite] tem muitas pessoas que não são donas dos meios de produção, mas que têm um poder até sobre os proprietários dos meios de produção. Isso quer dizer que o esquema de Marx ainda é meio simplório. Mas nós podemos começar sempre por ele e nos situar, fazer a pergunta: que lugar ocupo eu no processo de produção?

Aluno: Não existe uma feição demoníaca nessa postura arrogante do ignorante no orgulho de achar que sabe, tão evidente no exame do menino de São Carlos? Não há um estímulo educacional à repetição farsesca do pecado original?

Olavo: Mas sem sombra de dúvida! É claro que isso existe. Mas nós não podemos nunca confundir o que é uma coisa vagamente similar a um esquema demoníaco com o que é uma presença demoníaca mesmo, uma possessão demoníaca, uma obsessão demoníaca etc. O elemento propriamente demoníaco no sentido religioso da coisa não está presente. Mas há um elemento cultural que, remotamente, é de origem demoníaca. Temos de tomar o cuidado, porém, para não chamar tudo de demoníaco. É evidente que tudo quanto é estupidez tem remotamente uma raíz no pecado original, mas isso não quer dizer que haja uma força demoníaca ativa operando. A maior parte das pessoas nem precisa disso porque a estupidez passa de pessoa a pessoa; o demônio não tem trabalho algum, ele fica lá deitado e as pessoas fazem o serviço para ele.

Aluno: Eu estava numa aula de filosofia/cultura filosófica ouvindo as reflexões de Descartes e a cada passo que o professor fizera formulando o pensamento cartesiano foram feitas inferências, e no final ele perguntou: "Qual o erro?". Nesse momento eu não sabia qual o erro de Descartes. Queria saber qual o erro lógico da reflexão de Descartes.

Olavo: Eu não vi erro lógico algum; vi um erro na construção da narrativa, em que ele começa narrando a coisa como se fosse uma experiência pessoal, portanto numa clave puramente autobiográfica: quando Descartes diz eu está se referindo a ele mesmo. De um certo ponto em diante o eu passa a ser o eu cognitivo universal, e Descartes o usa então como premissa de deduções, passando da clave narrativa para a clave demonstrativa, e parece não perceber que fez essas duas coisas. Eu vi no Descartes muitas falhas de autoconsciência; ele não sabe exatamente o que está fazendo, não consegue perceber exatamente qual a natureza de seu experimento. Foi isso o que mostrei no livro Visões de Descartes: Entre o Gênio Mau e o Espírito da Verdade. Mas, falha lógica? Bem, em primeiro lugar, qual é a vantagem de descobrir a falha lógica na exposição de um filósofo que não está mais presente para se discutir com ele? Eu acho que a gente lê essas coisas para ampliar o nosso horizonte intelectual, não para ficar discutindo com o filósofo.

Sinceramente, acho que a arte de discutir, de provar ou de demonstrar não é uma parte importante da filosofia, isso vem muito depois. A arte de conseguir expressar e descrever exatamente a experiência e criar um conceito correto, isso é que é importante. A forma como você vai depois manipular os conceitos, articular um com o outro para chegar a demonstrações, acho que isso é o de menos realmente.

Por exemplo, nos Diálogos de Platão, a pergunta fundamental é "que é?" (quid est?): "Que é a justiça?", "Que é o bem?", "Que é isto?", "Que é aquilo?". Isso é a busca de um conceito, e não a demonstração; esta tem muito mais a ver com ciência e matemática do que com filosofia.

Para empreender uma demonstração você tem de ter os conceitos certinhos. Esse é o grande problema. Portanto, esse professor está colocando vocês no caminho errado; ele não os está ensinando ser filósofos, mas discutidores, o que qualquer idiota pode ser. Achar erros é a coisa mais fácil do mundo. Em geral, filósofos de grande porte não cometem erros lógicos sem mais nem menos. Erros na formação dos conceitos, porém, eis a coisa mais difícil. Para exercer a Lógica basta raciocinar, e isso é uma coisa que até um gato faz. Já dei este exemplo a vocês: o gato está próximo de um muro tentando ver quanta força ele vai ter de fazer para pular e alcançar o muro. Então forma-se um triângulo: aqui está o gato e aqui o muro [Olavo gesticula mostrando que a distância entre o gato e o ponto visado no alto formam a hipotenusa; a altura e a distância horizontal, os dois catetos]. O que o gato está fazendo é uma equação trigonométrica ---- com meios rudimentares, mas está. Portanto, ele está pensando.

Diz-se que "de pensar morreu um burro". Eu tenho certeza de que os burros pensam. A coisa realmente difícil é apreender e expressar a realidade; a coisa mais difícil é fazer um conceito. Por isso, Platão se preocupava eminentemente com isso. Seus Diálogos não visam a demonstrar nem a provar coisa alguma, visam apenas a dizer o que as coisas são e conseguir expressar aquilo com o máximo de exatidão possível. Tanto é verdade que Platão não procura provar nada que, quando chega no fim dos Diálogos, depois de ele ter afastado algumas hipóteses, quando as pessoas perguntam: "Bem, agora que você já demonstrou que tal coisa não é assim, então como é que é?". Que Platão faz em seguida? Ele conta um mito. Ou seja, com isso ele está querendo dizer que também não sabe exatamente o que é, mas diz o que é mais ou menos. Isso vai ser o máximo de aproximação que vamos conseguir chegar nesse assunto.

Vejam, Aristóteles foi o criador da arte da lógica, a qual permaneceu estável durante dois milênios (só houve grandes avanços na lógica depois no século XX). No entanto, ele nunca usa a lógica em seus livros, usa a dialética. Dialética é partir de várias opiniões para conseguir por trás delas intuir um objeto, uma realidade. Aristóteles não está tentando provar nada, está tentando descobrir. A dialética, portanto, é como depois se chamou logica inventionis, "a lógica da descoberta" (inventio, inventionis não quer dizer "invenção", quer dizer "descoberta"). Descobrir algo é uma coisa, prová-la é outra completamente diferente. Em geral, aqueles que descobrem coisas importantíssimas não conseguem provar nada, mal conseguem se fazer entender por quem está em volta. Para provar, bem, você tem o resto da vida para discutir, fazer isso.

Esse foco na discussão, na lógica, na arte da prova é uma corrupção da filosofia. Seu professor pode ter achado algum erro lógico em Descartes, talvez até exista algum, mas para mim isso não teve a menor importância. O que teve importância foi o deslocamento do eixo da atenção, porque ele está procurando uma coisa e se deixa enganar, dizendo que está procurando outra. Quer dizer, na verdade, foi um erro psicológico.

Aluno: Professor Olavo, gostaria de saber qual a maneira ideal de começar a formar o imaginário de uma criança. Se houver algum livro que possa ser indicado, agradeço.

Olavo: No momento não me ocorre algum. Mas uma coisa importante, em primeiro lugar, é você falar muito com a criança e pedir para ela expressar o que está vendo, o que está sentindo, o que está percebendo. Perguntar: "Que é isto aqui?", "Que é um gato?", "Que o gato está fazendo?". Quanto mais ela for estimulada a descrever e a expressar o que percebe, o resto ela faz sozinha. Não precisa forçar. O importante é que depois, ao alfabetizá-la, você não o faça de maneira que vá impedi-la de fazer isso [que expliquei].

Por exemplo, o bom e velho "método silábico" já deixa claro desde o início para a pessoa a diferença, a distância que existe entre linguagem e coisa (algo que o método socioconstrutivista procura exatamente borrar todo). Na hora em que o individuozinho percebe que para designar uma coisa para um terceiro, para uma outra pessoa ---- aqui está ele, aqui está o objeto do qual ele [vai] falar, e aqui está você ----, ele vai ter de introduzir um quarto elemento. Esse quarto elemento não tem nada a ver com os outros, é uma palavra, é um signo auditivo ou gráfico; não está incluído neste processo, é um instrumento que ele irá usar para conectar essas três coisas, assim como a moça surda-muda usa este sinal [Olavo faz com uma mão um gesto que simula o corte de uma faca contra a outra mão] para conectá-la à faca e à freira.

O signo não designa apenas um objeto, mas a relação que você estabelece com ele, e a relação que uma outra pessoa também estabelece com ele no mesmo momento. Esse é um processo totalmente artificial, inventado. Conhecer as regras do jogo, por exemplo, aprender a gramática da língua portuguesa, não tem nada a ver com os objetos. Por exemplo, a distinção entre o sujeito gramatical, o sujeito lógico e o sujeito histórico de uma ação, ou seja, uma mesma relação [entre] sujeito e objeto pode ser descrita de muitas maneiras; essas maneiras não alteram a relação real. Quanto mais o individuo estiver consciente das regras da gramática ---- não da formulação verbal das regras, mas do uso dessas regras ---- e conseguir distingui-las do processo real, melhor, porque o que a gente vê hoje são inúmeras análises de processos lógicos e processos reais baseadas na pura relação gramatical de sujeito e objeto. A pessoa está analisando uma frase e pensa que está analisando uma coisa. Isso é resultado do socioconstrutivismo. Portanto, primeiro, fale muito com a sua criança e faça-a falar, expressar-se e descrever [as coisas]. Mostre e pergunte a ela: "Que é isto?", "Como é que é?", "Que tamanho tem?", "Que está fazendo?" etc. É só isso; não é muito difícil. Se eu achar algum livro bom sobre isso lhe indicarei depois.

Agora tem uma pergunta longa, mas interessante:

Aluno: Diante da diferenciação entre ser existente e ser cognoscente*, onde se ressalta a presença de si mesmo como fator anterior ao ato de conhecer, encontramos nas tradições esotéricas ocidentais, bem como nas tradições orientais, como no* yoga*, exercícios e métodos de realização e percepção do que é chamado, dependendo da linhagem, de* eu superior*,* atma ou purusha*. No* yoga*, o estado de comunhão com o absoluto é por vezes denominado* samadhi ou moksha (libertação), significando de uma forma ou de outra a total realização do ser através da percepção de si mesmo.

Olavo: Eu acho que todas essas tradições exageram brutalmente quando falam dessa identificação com o absoluto. Isso não existe. Porém, elas estão na linha certa quando dizem que existe dentro de nós um eu superior, um eu permanente. Eu tentei explicar isso no meu curso "Consciência de Imortalidade", dizendo que o que nós chamamos de eu tem vários significados diferentes: por exemplo, existe um eu social, que é o papel desempenhado perante outras pessoas em várias circunstâncias da vida ---- você tem um papel na sua família, outro papel no seu emprego etc. Quando você se refere a eu numa dessas circunstâncias, está se referindo apenas àquela função. Mas existe, por exemplo, um eu histórico, que é aquele que conta a sua história para você mesmo. Já não é o mesmo, já não é a mesma coisa. Dessas várias camadas do eu você percebe que por baixo de todas existe alguém que você realmente é e que continua o mesmo ao longo de toda a sua vida, e que você reconhece de alguma maneira, mas que nunca consegue apreender, porque você só apreende aquele que está naquele momento e naquele lugar. O eu anterior, histórico, está presente apenas na sua memória. Mas você sabe que ele é tão real quanto esse que esteve aqui, porque se você não tivesse vivido o momento anterior também não estaria vivendo o momento presente.

Então nós temos a experiência dessa continuidade. Existe algum meio de você se situar nesse eu permanente pelo menos durante alguns instantes, de você percebê-lo? Existe, e todas essas técnicas foram concebidas para isso. Mas o com que você está se identificando não é o absoluto, é apenas o seu eu permanente. Chegar ao absoluto é uma coisa que você não tem como fazer desde uma posição relativa, que é aquela na qual você está. Quer dizer que é Deus que te pega, não é você que chega a Ele. Esse é um ponto que eu acho que foi definitivamente conquistado no cristianismo. Porém, o seu interlocutor interior que fala com Deus é o seu eu permanente e não o eu momentâneo. E é este eu permanente que te dá uma idéia do que possa ser a imortalidade.

Eu acho um verdadeiro escândalo que essas técnicas, ou essas práticas que visam a despertar no indivíduo a consciência mais constante do seu eu permanente tenham sido completamente abandonadas no cristianismo ocidental. Isso é um absurdo. Então você acaba tendo de depois buscar essas coisas até em livro da Nova Era ---- tem até livro da Nova Era que te ensina isso melhor do que os padres. Isso é uma pouca-vergonha. Isso aconteceu porque durante o século XVIII na França (à época, país de cultura católica mais importante e de maior repercussão no mundo) os caras pararam de ler os escolásticos e começaram a ler René Descartes. A partir de então criou-se aquele abismo entre sujeito e objeto, os quais passaram a ser tratados como substâncias diferentes, em que há o eu pensante e o eu extenso. Pronto: daí a coisa desandou. A partir daí foi uma disseminação da ignorância espiritual sem fim.

Aluno: Olavo, isso que você acabou de colocar também tem a ver com a presença da maçonaria da sociedade?

Olavo: A pergunta é se houve alguma influência da maçonaria. Não, isso não tem nada a ver com a maçonaria, foi burrice católica de iniciativa própria. Os maçons não ajudaram nem um pouquinho.

Aluno: ... porque coincide com um período que antecede a Revolução Francesa.

Olavo: Quando a maçonaria assume o poder na França ela naturalmente termina a obra destrutiva da Igreja que os próprios padres já haviam começado, e daí chega a proibir o ensino católico. Mas aí é o tal negócio: primeiro você se enfraquece, depois vem o outro e bate em você. Você não pode culpar somente a ele.

Aluno: (...) Pode-se considerar que a filosofia ocidental se desviou dessa tradição de investigações práticas?

Olavo: Mas sem sombra de dúvida! Os caras acham que eles podem descobrir alguma coisa sobre o processo cognitivo examinando só o sujeito de um ponto de vista puramente analítico. Isso não dá, porque o material que você está analisando é muito pobre. Analisar, por exemplo, o "penso, logo existo": que é aquilo? É um momento, é a experiência de um momento. A consciência do eu é uma coisa imensamente mais vasta. Tanto [a filosofia ocidental desviou-se] que, hoje, mesmo dentro de uma linha materialista de análise da coisa, quando se fala de consciência o indivíduo entende apenas a capacidade de tomar nota de alguma coisa, ou seja, um simples ato de percepção para ele é a consciência. Não é; esse é um mecanismo pequenininho. A consciência humana... Imagine, por exemplo, quando Shakespeare escrevia as suas peças, a constelação inteira de imagens que ele tinha na mente de modo simultâneo. Isso é consciência. Ele, num instante, sabia sua peça inteira. Para escrever, Shakespeare levava meses; o público, para assistir, leva duas horas (depois de os atores terem tido um trabalho miserável). Mozart, quando ouvia uma música, gravava-a inteirinha na cabeça e ali aquilo tocava em um segundo. Isso é consciência. Agora, achar que uma agulhada na bunda e o estímulo dela chegando no cérebro seja consciência é uma coisa muito empobrecedora. Acontece que isso começa com René Descartes, e depois vai piorando, piorando, piorando.

Bem, acho que por hoje é só. Eu queria lembrar a vocês que vou proferir aqui, de 28 de abril a 3 de maio de 2014, um curso com o nome "Como Tornar-se um Leitor Inteligente". Acho que esse curso deve fazer bem a muita gente, com a ressalva de que você não se tornará um leitor inteligente se não tiver uma percepção mais ou menos adequada da realidade. Eu tenho a impressão de que a simples consciência que o indivíduo tem, ou pelo menos adquire neste curso, faz com que ele pense: "Opa, não estou percebendo as coisas direito, não estou sabendo direito o que se passa comigo, eu não sei distinguir os meus sentimentos, não sei se tenho inveja ou ciúme, rancor ou ressentimento, não sei se tenho apenas uma atração sexual por fulaninha ou se estou apaixonado por ela". Em suma, não sabe nada a seu próprio respeito. Então, o fluxo do seu discurso é totalmente constituído de esquemas imitativos, os quais passam a emociona-lo como se fossem estímulos reais. Isso é endêmico no Brasil. Mas a partir da hora em que o sujeito toma consciência disso ele já começou a se curar naquele momento mesmo, ele percebe: "Opa, não é tão fácil eu dizer o que estou sentindo, o que estou vendo, o que estou percebendo". Eu acho que todos os alunos deste curso, depois de um certo tempo, já têm essa consciência muito clara. O resto você vai corrigindo quase sozinho. Posso dar uma ajudinha aqui ou ali, mas basta você perceber que não está percebendo e a coisa já começa a melhorar. A consciência só existe quando há a intensificação da consciência. Não pode haver uma consciência estática; isso não é possível. Quando a consciência é estática ela passa para o subconsciente, é evidente. Assim como um som que está se propagando de maneira contínua: você o percebe, está consciente daquilo, mas ele passa para o subconsciente, vai para o piloto automático e você não pensa mais naquilo. Portanto, só existe consciência quando a consciência está se intensificando. Esse é o caráter mais do que dinâmico ou ativo, é um critério quase que de uma autopoiesis, uma autocriação; a consciência está se criando na medida em que ela se intensifica. Isso não quer dizer que ela seja totalmente autônoma, que ela se crie a partir de si mesma. Não, ela se cria a partir do dado inicial que é a consciência de presença, como diria Louis Lavelle. Mas se a pessoa já tem isso ---- e creio que todos vocês já têm consciência disso ----, então tornar-se um leitor inteligente é uma segunda etapa, e é uma conquista absolutamente maravilhosa.

Até a semana que vem e muito obrigado.

Transcrição: Rute Donizetti de Freitas Souza, Charles Santos e Pedro Augusto Alves Brandão

Revisão: Robson Fernandes

Footnotes

  1. Estaria o professor se referindo a Alena V. Ledeneva e seu livro intitulado Russian's Economy of Favours: Blat, Networking and Informal Exchange ?

  2. há também uma edição brasileira da Editora Ícone.