Skip to content

Latest commit

 

History

History
309 lines (155 loc) · 103 KB

COF224.md

File metadata and controls

309 lines (155 loc) · 103 KB

Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 224

19 de outubro de 2013

Felipe Moura Brasil: (...) Eu me aprofundei estudando a obra de Olavo de Carvalho*, li textos, fiz cursos. Sou aluno do Seminário de Filosofia, um aluno meio atrasado, porque o trabalho com esse livro me fez perder muitas aulas, mas estou recuperando. Percebi que Olavo tinha uma obra que era muito maior, muito mais vasta, muito mais profunda que a dos outros colunistas de jornais brasileiros que eu lia. Eu fui estudando aquilo e quanto mais estudava a obra do Olavo, mais ficava com vontade de mostrá-la aos amigos. Acho que isso acontece muito com vocês, ter vontade de compartilhar aqueles textos. E há muitos textos existenciais, como eu já disse em algumas entrevistas: os textos sobre juventude, os textos sobre vocação, sobre inteligência, verdade. Olavo ia até o fundamento das questões, dos conceitos. Eu achava aquilo muito importante.*

Comecei a ser colaborador do site Mídia Sem Máscara1, que foi criado pelo Olavo, foi mais uma porta que ele abriu pra gente. Em 2010, comecei a escrever artigos para o Mídia Sem Máscara*, fui me aproximando ainda mais desse universo, e quando comecei a trabalhar para a Editora Record, como revisor de livros* --- revisei o do Reinaldo Azevedo, O País dos Petralhas II ---, e como tradutor de outros, eu vi ali, com o Carlos Andreazza --- que é meu amigo de adolescência e tem uma confiança tremenda em mim, assim como eu nele ---, uma oportunidade de trazer o Olavo (...) [interrupção no áudio de 0h1min30seg a 0h1min40seg].

Eu não sabia se o Olavo tinha vínculo com outras editoras, se alguém já tinha um projeto parecido com o meu, em andamento. Eu não fazia a menor idéia, mas apresentei ao Carlos --- ele adorou a idéia --- e falei que eu já tinha um nome: O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota*. O Carlos adorou este título na hora, felizmente o Carlos não faz parte da turma do "mi-mi-mi", ele adora uma provocação. Ele só verificou se havia problema com a Record: não havia problema nenhum. Ele viu o projeto, adorou e falou que eu podia procurar o Olavo e ver se ele se interessaria. Eu enviei um e-mail ao Edson Camargo, editor do* Mídia Sem Máscara*, pedindo que ele me colocasse em contato com o Olavo, pois eu já tinha o projeto. Ele [o projeto] já tinha esse formato, era menos a metade do resultado final, mas tinha já esse formatinho. O Edson colocou-me em contato com Olavo, que respondeu-me por e-mail* --- eu o tenho muito bem guardado. Olavo ficou ansioso, interessado no projeto e eu enviei a ele em um sábado, que é o dia do Seminário de Filosofia, o dia em que ele dá o curso online. Aliás, um curso maravilhoso, que eu recomendo a todos: leiam O mínimo*, primeiro, depois façam o curso do Seminário de Filosofia. Ele deu uma aula do Seminário de Filosofia no dia em que recebeu o projeto, contente com o trabalho, falando sobre a responsabilidade dos alunos em divulgar a obra dele e convocando-nos para uma obra de caridade, como ele diz. Como se o Brasil fosse um sujeito que estivesse tendo um enfarto na rua e fôssemos todos médicos e precisássemos salvar a pessoa, que no caso é o país inteiro. Então, o Olavo falou da responsabilidade dos alunos em resgatar a alta cultura do país e eu fiquei muito contente. Mas é claro que eu ainda estava meio tenso com os problemas burocráticos, pois não tinha a menor idéia se havia textos que não poderiam ser publicados, se havia contrato com outras editoras, se não daria certo. Enfim, quando vieram os contratos, fiquei muito contente, assinei, enviei aos Estados Unidos e quando veio a assinatura do Olavo, eu falei: que maravilha! E então tive mais alguns meses para desenvolver o projeto que teve o resultado final que vocês viram.*

Felizmente foi um grande sucesso, está sendo um grande sucesso: desde a primeira semana de mercado, ele já está nas listas dos mais vendidos. Já estamos na sétima semana e, desde a primeira, o livro entrou na lista do Globo, na lista da Veja, em todas as outras, na PublishNews, que é o referencial de mercado. Nós estamos muito contentes, a canalhada pirou, como eu disse muitas vezes nas páginas do livro. Muita gente está falando mal do Olavo, aliás, sem falar [o nome dele], sem citá-lo entre aspas, e nunca refutando nada do que ele diz. O máximo que eles conseguem é pegar um trechinho de vídeo do Youtube e falar que o Olavo fala muito palavrão ou qualquer coisa assim. Então estamos todos muito contentes com o resultado e agora vamos falar com Olavo.

Eu vou fazer algumas perguntas para ele sobre os capítulos iniciais do livro, que são justamente os que mais me chamavam a atenção quando eu conheci a obra dele, e que muitos jornalistas deixam passar. Quando perguntam as coisas ao Olavo, eles vão logo para a parte mais polêmica. Querem saber o que o Olavo acha da cura gay, [fazem] sempre aquelas perguntas --- quase sempre, pois têm algumas exceções --- com aquela visão (como o Olavo respondeu até em uma entrevista) dos críticos de esquerda, e não perguntas em nome do público que gosta daquilo que ele escreve. Então vou fazer umas perguntas iniciais sobre os primeiros capítulos e depois (...)[interrupção no áudio de 0h5min30seg a 0h5min46seg].

Uma honra a presença da minha tia aqui de São Paulo, que veio me ver, aproveitou a oportunidade. Antes de fazer a pergunta: Olavo, esta semana, tivemos vários destes que eu falei, que criticam sem citar, sem ler nada. Por exemplo, Renato Janine Ribeiro --- depois que o livro ficou em primeiro na Amazon, em e-book --- falou que a tecnologia convivia com o retardamento mental. Essa gente só consegue falar isso. E esta semana, Eli Vieira --- um sujeito que é uma coisa engraçadíssima --- falou que o Olavo não pertence à filosofia analítica, falou mal do Olavo. Desafiado a refutar qualquer coisa do Olavo, qualquer livro dele, saiu correndo e falou que não pode refutar porque é ininteligível. Eu vi ontem à noite que o Olavo escreveu no Facebook que, de fato, para o Eli Vieira o Olavo deve ser mesmo ininteligível. Esse pessoal difama de uma maneira incrível, ele falou que o Olavo está atolado em dívidas. Esse pessoal não entendeu ainda que seu livro, O mínimo*, é um sucesso, Olavo, e que estamos todos milionários. E mesmo que você estivesse atolado em dívidas, já teria pago com sobras.*

Tenho umas perguntas básicas, nem formulei muito, mas, Olavo, no primeiro texto do livro, "O imbecil juvenil", que é um clássico sobre a juventude, você descreve esse traço que a gente enxerga no dia a dia com os amigos, com todo mundo, que é o espírito de rebanho dos jovens: a ânsia de ser aceito no grupo dos amigos, dos pares, de se amoldar aos caprichos da maioria, suprimindo sempre a própria personalidade. Eu queria perguntar se isto, de certa forma, já é um desejo neurótico de afeição. Eu digo isso porque em um livro que você indica, A personalidade neurótica do nosso tempo*, de 1937, de Karen Horney, a autora diz que a conquista de uma afeição é uma necessidade vital, mas distingue isto da necessidade neurótica de afeição, distingue por sua natureza compulsiva: a diferença entre uma e outra é aquela que existe entre querer ser e gostar de ser estimado e ter de ser estimado a qualquer custo. Não é isso que tem o jovem, dar importância demais a ser estimado a qualquer custo? Vemos, inclusive, isso crescendo hoje com a internet. Todo mundo quer ser curtido de qualquer maneira. Eu queria que você falasse um pouco sobre esse espírito de rebanho.*

Olavo: Perfeito. Perfeito. Só que antes de responder, eu quero agradecer a todos os que estão presentes. A primeira que chegou foi essa moça bonita de blusa vermelha que está sentada ao lado de um sujeito fortão. Agradeço muito a ela. Muito obrigado a todos por essa gentileza. Também muito obrigado aos leitores, pois são eles que fazem o sucesso do livro.

Com relação a essa questão da juventude, é claro que a necessidade de afeição é uma coisa normal no ser humano. Acontece que --- já viajei muito, já morei um tempo na Romênia, passei um tempo na França e agora estou nos Estados Unidos há bastante tempo, conheço bastante a Colômbia, estive várias vezes na Colômbia --- eu vejo esta necessidade de afeição no grupo como uma coisa mais intensa no Brasil. Um dos motivos disto (não fiz nenhuma pesquisa sociológica a respeito, mas estou baseado na experiência pessoal, na observação), é que acho que as famílias brasileiras tratam muito mal as crianças, quer dizer, não é um ambiente afetuoso. Não é um ambiente onde a pessoa se sinta amada.

É uma coisa que me impressiona desde quando eu era pequeno. Como nasci doente e fiquei doente durante sete anos, todo mundo me tratava muito bem, nunca levei uma bronca. [0:10] Ninguém brigou comigo, ninguém reclamou de nada que eu fazia, ao contrário, todo mundo me paparicava, no Natal enchiam-me de presentes porque achavam que seria o último. [Achavam que] Eu ia morrer mesmo, então tinham de tratar bem de mim. Então, não tive essa experiência de hostilidade doméstica e quando eu via isso, como as mães dos meus amigos os tratavam, ficava muito chocado. A minha mãe era um doce de coco, nunca brigou comigo, só brigou quando me tornei adolescente, quando eu estava mais fortinho e podia aguentar a bronca, mas quando era pequeno não tinha nada disso --- nem ela, nem minhas tias, nem meu pai --- todo mundo me tratava muito bem.

Eu via essa coisa que não é violência doméstica. É uma hostilidade, é um rancor, como se as pessoas tivessem vergonha de ter filhos. Como se tivessem vergonha do filho, o filho é uma espécie de anti-exemplo: eles ficam olhando os filhos para ver seus próprios defeitos e daí ficam com raiva. Depois, mais tarde, eu tive filhos (tive oito filhos), e no começo errei muito na educação de alguns, mas depois fui aprendendo. E entendi que nos primeiros anos, pelo menos nos primeiros cinco ou seis anos da vida, só uma coisa interessa à criança: é ela sentir que é amada, que é aprovada e que tem um pai e uma mãe para ajudá-la e protegê-la e não para atormentá-la. Na Bíblia está escrito que não atormentemos nossos filhos. Isto, quando eu li, entrou na minha cabeça.

As pessoas interferem demais e querem moldar a cabeça do filho desde pequenininho, não dão espaço para o menino viver. Então, temos sempre de equilibrar duas coisas. Primeiro, existe a autoridade paterna e ela deve ser respeitada. A autoridade paterna, no começo da vida, é incondicional, um pai não tem obrigação de explicar ao filho porque está dando uma ordem. Desde sempre, acostumei os meus filhos ao seguinte: tem de fazer tal coisa assim e assim, porque eu mandei. E eles aceitavam, estava tudo bem. Só que você pode dar uma ordem por mês [apenas], não pode ficar interferindo, não pode ficar atormentando a criança, dizendo o que ela vai comer, o que vai vestir, que hora vai dormir. Não é possível uma coisa desta. Você tem de dar espaço para a criança se desenvolver de acordo com a cabeça dela e você funcionar como uma baliza, sobretudo nos momentos em que existe perigo.

Por exemplo, eu me lembro que, quando morávamos em um prédio de doze andares, o David, meu filho menorzinho, chegou chorando. Perguntei o motivo do choro, e ele respondeu que os meninos não o deixaram entrar no clube dos garotos do prédio, porque ele não havia passado no teste. E qual era o teste? Andar pela amurada do prédio no décimo segundo andar. É claro que fui lá e cassei o alvará do clube. Então, nestas horas, o pai tem de interferir e falar que não, não pode, não pode e está acabado e não explicar o porquê. Eles aceitam naturalmente a autoridade do pai. Outra coisa que observei: às vezes, as crianças pedem permissão do pai ou da mãe para fazer uma coisa que obviamente elas podem. Por exemplo, quando perguntam se podem ir ao banheiro ou fazer alguma coisa banal, claro que podem. Então eu pensei no porquê de fazerem isto. Fazem-no porque fazer uma coisa com a autoridade do pai dá a eles um senso de importância. Com isso, aquele gesto banal adquire a aura de uma missão que estão cumprindo. A minha experiência me ensina que as crianças não são naturalmente rebeldes. As crianças são naturalmente obedientes, então você não pode sobrecarregar na autoridade. Você tem de sobrecarregar ao contrário: no amor, na afeição, na confiança. À medida que fui aprendendo a fazer isso, tive resultados maravilhosos com os meus filhos. Eu nunca tive uma briga com um deles. Nunca, não sei o que é isto. Não sei o que é esse conflito de gerações.

Eu penso que o fato de a família brasileira em geral ser hostil com as crianças, [resulta em que] elas vão procurar afeição fora, evidentemente --- afeição e aprovação. Elas querem sentir que são alguém, então esta necessidade de afeição já entra no argumento da Karen Horney, a busca neurótica de afeição. Você tem razão, está muito bem observado isso. A busca neurótica de afeição já é uma característica endêmica, no Brasil. Isto explica também porque as pessoas são pouco capazes de reagir intelectualmente, reagir de uma maneira criativa a uma situação. No Brasil, só se admite duas coisas: a obediência total ou a rebeldia total. Não há uma reação criativa, inteligente --- nem sabem o que é isto. As pessoas vivem falando que pensam por si mesmas, que têm suas próprias opiniões. Têm nada, é apenas a ranhetice. A verdadeira opinião implica uma elaboração interior, implica uma criatividade e isto raramente observamos. Eu acho que você tem toda razão sim, há um lado neurótico na coisa e isto é muito grave.

Este é um dos fatores da idiotice brasileira. O sujeito é criado assim e, aos doze, treze anos, já tem de se irmanar ao espírito da horda, de uma vez para sempre, e pior, continua com esta necessidade aos vinte, aos trinta, aos quarenta, aos cinquenta anos. Vemos homem de cinquenta, sessenta anos reagir como se fosse adolescente, que quer a aprovação do grupo. A mentalidade desse pessoal de show business, de jornalismo é tudo isto. No artigo que publiquei esta semana, chamado "A Moral do Brasil"2, menciono a escala de Lawrence Kohlberg, psicólogo de Harvard, que admite seis graus de desenvolvimento de consciência moral.

No primeiro grau, a pessoa busca a recompensa e evita a punição. No segundo grau, aprende o que é o seu interesse próprio e começa agir racionalmente no sentido de atender às suas necessidades, seus desejos e aprende também que, às vezes, para conseguir o que quer, precisa fazer uma troca, um intercâmbio. O terceiro grau é o espírito da horda, ou seja, a motivação não é tanto obter a vantagem pessoal, mas sentir-se integrado ao grupo. No quarto, o indivíduo descobre que existe uma ordem social --- lei e ordem --- e torna-se um bom cidadão, cumpridor de seus deveres, segue a lei, obedece à autoridade etc. No quinto, ele descobre que existem direitos, que as pessoas têm direitos, que existem opiniões divergentes e que é necessário criar um sistema de convivência entre as opiniões divergentes. Finalmente, no sexto, ele age de acordo com princípios universais que norteiam a sua conduta, princípios de ordem religiosa ou filosófica, que já são princípios de ordem universal.

Eu observei que, no Brasil, quase ninguém passa desse terceiro grau --- que é a aprovação do grupo. Você pode tomar valores universais, copiar a linguagem destes valores universais (o que é fácil, pois estes valores estão espalhados por toda a parte, quem não conhece os dez mandamentos?), apenas para legitimar falsamente uma conduta que é baseada, de fato, no puro desejo do apoio grupal. Por exemplo, o nosso governo (só para exemplificar como essa mentalidade de apoio do grupo é uma coisa forte): por que todos eles se uniram para defender os condenados do mensalão? Para eles, o interesse do grupo --- até o amor, a afeição interna do grupo --- é mais importante do que as leis, a ordem, os valores universais, tudo isto. Esta é a mesma mentalidade de grupo. Por outro lado, eles mesmos usam, a toda hora, a linguagem dos direitos humanos. Esta é uma linguagem inacessível para eles, pois não entendem o que isso quer dizer. Por que, por exemplo, eles pregam a liberdade? É liberdade só para eles. Isto significa que este valor liberdade (por exemplo, liberdade de opinião), para eles, é só uma camuflagem. É só um adorno de uma atitude que na verdade não é baseada nisto, mas em uma motivação muito inferior. É uma racionalização, um fingimento, na verdade, um teatrinho. O indivíduo está agindo por motivos toscos, mas ele embeleza aquilo com um discurso. Então é isso mesmo: uma necessidade neurótica de afeição que cria essa dependência grupal e não deixa ninguém passar deste estágio. Respondido?

Felipe: Sim, claro, o imbecil juvenil está cada vez mais adulto. Adulto, velho.

Olavo: Os imbecis juvenis têm sessenta, setenta anos.

Felipe: Voltando um pouco para a juventude, você fala que o desprezo pelo conhecimento, o ódio brasileiro ao conhecimento --- [assunto] bastante reincidente na sua obra --- é um componente do culto à juventude. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre esse culto à juventude e como isto impede muitas vezes o jovem, que ainda se sente onipotente, dos 15 ou 18 anos, de passar pela auto-humilhação e pelo auto-vexame que são fundamentais para evoluir moral e intelectualmente.

Olavo: Observe que esse desprezo brasileiro pelo conhecimento é uma coisa muito antiga. Logo depois da descoberta da América, já havia universidades nos países hispânicos e, no Brasil, a primeira universidade foi aparecer na década de 30 do século XX. Se isto não é desprezo pelo conhecimento, eu não sei mais o que seja. Isto é facilmente explicável pelo tipo de população de que se compôs o Brasil.

Em grande parte, compôs-se de pessoas que foram para o Brasil com a ilusão de descobrir um pouco de ouro e voltar logo para Portugal. Muita gente fez isso e voltou rico para Portugal. [0:20] Torraram todo o dinheiro rapidamente, é claro. Outros não conseguiram sair, isto é, fracassaram e ficaram no Brasil. E estas primeiras gerações de ocupantes do Brasil eram pessoas realmente brutais, com mentalidade de bandido. Eles eram tão gentis --- o Gilberto Freyre conta isto --- que construíam uma casa, um casarão daqueles de fazenda, e, para garantir que a casa ficasse sólida, tinham de sepultar, vivo, um índio ou um preto. Era um negócio de uma gentileza extraordinária. Veja a mentalidade deles: embora fossem pessoas poderosas, eram totalmente bárbaros.

O restante da população foi um bando de fracassados, que não conseguiu voltar para Portugal. E depois, um monte de índios que mal se integrava à população. Muitos deles, descendentes de índios, foram se miscigenando pelo seguinte: em várias tribos havia uma lei determinando que, se alguém matasse um índio, era obrigado a levar a mulher dele embora e tomar conta dela --- como se dissessem que não iam sustentar aquela desgraçada, já que alguém havia matado o marido, que levasse a mulher embora. Então, colecionavam índias. Lê-se no Retrato do Brasil, do Paulo Prado, aquilo era uma sem-vergonhice. Cada sujeito tinha vinte índias, trinta índias, até os padres tinham índias, era normal.

Quando começou a escravidão na África, foi outra "gandaia" formidável, cada sujeito comprava vinte escravas e ficava na gandaia com elas. A formação da população brasileira foi um negócio desastroso. Eu fico comparando: que sentido de vida pode ter o sujeito que estava andando na África, catando coquinho pacificamente, de repente leva uma porrada na cabeça, acorda do outro lado do oceano, em um lugar que não sabe onde é e o mandam capinar, fazer buraco? Uma coisa de louco, o sujeito fica perdido no espaço. E outra coisa: o senhor de escravo, frequentemente, não deixava o escravo casar-se, não deixava ter família. Fazia-se a procriação coletiva --- havia o negro reprodutor. Eu me lembro que saiu no Pasquim, na década de 80, uma entrevista extraordinária com um homem que estava com quase 120 anos e que tinha sido negro reprodutor. O serviço dele era ir de fazenda em fazenda, dormir com as menininhas, espalhar um bando de filho, porque ele era um cara fortão, saudável. Os outros ficavam "chupando o dedo". Mas que vida miserável! Que perspectiva de vida, que valores pode ter uma pessoa criada assim, reduzida a uma condição sub-humana? Isso foi a população brasileira, não [foi] melhor que isso.

Metade da população brasileira era escrava. Ainda tem isso: o Brasil foi, no Ocidente, o campeão do escravagismo. Foi o maior comerciante de escravos que havia no Ocidente. Não do Oriente, pois os árabes faziam muito mais e [eram] muito mais cruéis. Mas, no Ocidente, o Brasil foi campeão, metade da nossa população era constituída de escravos. Como é que se quer que o sujeito, nestas condições, se integre a uma cultura de origem européia e progrida?

Até que o número dos que se integraram e progrediram foi muito grande, isso foi quase um milagre. A alta cultura brasileira no século XIX foi quase toda feita por preto, mulato, descendentes de escravos: Machado de Assis, Cruz e Sousa, Castro Alves, Capistrano de Abreu. Foi um milagre o que aconteceu no Brasil, mas é aquele indivíduo isolado que cresce por suas próprias forças, sem ter o estímulo do ambiente. Nós temos esta tradição. Nos livros de Lima Barreto --- que era outro descendente de escravos e subiu por esforço próprio ---, está muito bem documentada esta situação: há vários trechos que assinalam esse desprezo pelo conhecimento, e desprezo inclusive da classe alta. É uma coisa que ainda está arraigada no Brasil.

Isto é a causa fundamental da existência do imbecil coletivo. Este termo já está fora da época --- na época, defini o imbecil coletivo como um círculo de pessoas de inteligência normal ou superior que se reunia no intuito de imbecilizar-se umas às outras. Agora já não é mais assim: tais pessoas já são imbecis mesmo. Não precisam se imbecilizar, então não serve mais [o termo imbecil coletivo]. Nós passamos do imbecil coletivo para o idiota em sentido estrito --- que é o título de um de meus últimos artigos.3

Felipe: Passando para o capítulo "Vocação" do livro, um capítulo muito apreciado pelas pessoas, que eu adoro e fiz questão de que houvesse. Você fala de uma pergunta (que eu já ouvi mil vezes na vida e você fala justamente isso, que muitas pessoas já devem ter ouvido muito isso), que é [a seguinte]: você faz isso por dinheiro ou por prazer? Parece-me que são as duas categorias onde o brasileiro enquadra tudo. E aí você mostra o que está omitido: a vocação, a busca do sentido da vida, como dizia Victor Frankl, personagem principal desse capítulo. E você fala que o brasileiro vive entre o trabalho forçado e a diversão obsessiva, entre o conformismo com o emprego medíocre...

Olavo: Que é a motivação mais baixa do ser humano. Isto corresponde, na Índia, à psicologia da casta shudra --- a casta mais baixa, mais burra ---, cuja vida é fugir da dor e buscar o prazer. É só isto. Então a pessoa só entende estes dois lados da coisa. Há o trabalho --- e a palavra trabalho vem de uma palavra chamada tripalium, que é um instrumento de tortura, não é como o work em inglês ou werk em alemão que quer dizer obra; não é isto, é um tormento ---, o tormento do trabalho e há a busca do prazer. As pessoas perguntam se faço [meu trabalho] por necessidade, por escravidão; se faço forçado ou por prazer. Estou fazendo por vocação.

Vocação é uma coisa como amor. Quando se ama uma pessoa, só se tem prazer ao lado dela? Não, aceita-se o sofrimento, aceita-se a dor. Por exemplo, o sujeito não vai ficar grudado à amada vinte e quatro horas por dia. Um dia vai ter de se afastar dela, ela irá viajar etc., o que traz sofrimento. O sujeito aceita esse sofrimento e o aceita de bom grado, porque isso é amor. Amor não é nem trabalho, nem prazer. É uma terceira coisa completamente diferente. Vocação também. É uma coisa que amamos e à qual nos damos. Por isso aceitamos de bom grado o sofrimento e a dificuldade que ele nos traz. Aliás, podemos medir a vocação pela resistência que o sujeito tem a determinado tipo específico de sofrimento.

Por exemplo, o meu falecido amigo Dr. Juan Alfredo Cezar Müller ficava 15 horas por dia conversando com maluco. Eu não aguentaria cinco minutos, no terceiro eu já expulsaria a tapa. Mas ele, com a maior dedicação e com um amor paterno que tinha pelos pacientes, suportava --- cada um aguenta uma coisa. O meu pai também, que era advogado, às vezes me levava ao fórum, e percorríamos os cartórios, com toda aquela papelada empoeirada e aqueles fulanos horríveis. Eu me questionava como ele aguentava. Por vocação: ele tinha amor ao que fazia. Se detestasse, não aguentaria.

Portanto, a vocação implica a resistência que um indivíduo tem a um determinado tipo de sofrimento que é próprio à sua atividade. É um sofrimento que ele aceita de bom grado por amor. Logo, as pessoas que estão trabalhando em uma coisa por vocação não são compreendidas no meio. As outras pessoas vão explicá-las por outros motivos: a busca do prazer ou a necessidade, a escravidão, a penúria material --- o que é um absurdo. É uma coisa que deprime as pessoas. E mais ainda, as famílias também já ensinam isso às crianças desde pequenas. Aquele negócio de beleza não se por na mesa. Eu tenho de casar com uma mulher feia pra caramba que faça o meu arroz com feijão? O que é isto? Isto não é vida! Eu prefiro morrer. Eu prefiro a mulher bonita que não saiba cozinhar.

Felipe: Até teve um momento engraçado em um curso seu, em que você falou sobre isso --- que a vocação implica a resistência a um fator negativo. Você falou, por exemplo, que médicos têm de ter resistência a viver no hospital, ver sangue; advogados a conviver com criminosos, corruptos. E você como educador --- foi até um momento engraçado no curso, todo mundo riu --- [falou] que a sua grande resistência é à burrice.

Olavo: Sem dúvida. Eu gosto das pessoas burras. Esse pessoal: Elis Vieira, Renato Janine Ribeiro e outros são a alegria da minha vida! Porque eles me mostram toda a burrice possível que está embutida no ser humano e também está em mim. [0:30] Eu me espelho neles e digo que não posso ser assim, tenho de ser de outro jeito. Eles são o contra-exemplo pelo qual eu me oriento. Faço isto há muito tempo e gosto de fazer isto. Tem gente que pensa a respeito de perguntas cretinas, se podem ser feitas. Claro que podem! A maior parte das perguntas é cretina, não só essa em especial, necessariamente. E, Felipe, eu não estou falando de você nesse momento. Muitas perguntas são cretinas porque o sujeito não está entendendo a situação, não sabe formular a sua dúvida, pensa uma coisa e diz outra, dando-me a oportunidade de consertar a pergunta dele; [explicando] que ele quis dizer [realmente] isso e aquilo e a resposta é tal. Para mim, é um bom exercício. Se o sujeito quer ser um bom professor, tem de gostar das perguntas cretinas, não pode se irritar. Há aqueles que me perguntam por que dou atenção a esses camaradas burros. Eu respondo que eles são a alegria da minha vida! Eles inspiram tantas piadas que jamais nos ocorreriam. Se todos fossem inteligentes, normais e saudáveis, o humor desapareceria. Não teria do que fazer piada. Os idiotas estão aí para isto mesmo: ser matéria-prima das nossas piadas.

Felipe: Olavo, voltando ao tema da vocação, a gente tem a impressão de que os jovens hoje têm uma busca muito grande pelo funcionalismo público. As pessoas querem muito ser estáveis. Duas coisas que são o sonho do brasileiro: ser estável e ser famoso. Outro dia, houve uma entrevista com o Juan José Campanella, um cineasta argentino de quem eu gosto muito, e ele falou de uma coisa que não acontecia no tempo dele, de se perguntar às crianças o que elas queriam ser quando crescessem e as crianças responderem que queriam ser famosas. Quer dizer, independe do conteúdo do que a pessoa está fazendo.

Olavo: Essa busca pela acomodação é a busca pela mediocridade. Os nossos amigos esquerdistas dizem que a universidade é feita para preparar a classe dominante. Porém, pesquisas feitas pela Fundação Getúlio Vargas, em todas as universidades brasileiras, mostraram que somente 3% dos nossos estudantes universitários querem ser empresários. Os outros querem ser empregados. Então, que classe dominante é esta, que quer ser empregada? Concluímos que ninguém quer ser classe dominante, ninguém quer ter poder, o sujeito quer ter uma garantia. Já entra na vida com medo. Ele já é um derrotado e sua maior esperança é poder esconder-se debaixo da mesa. Sobretudo, o funcionalismo público é o emblema da estabilidade. As pessoas não estão buscando realizar uma vida, uma ambição, ou ficar ricas, querem apenas aquela segurançazinha medíocre. É uma vida que se vive para trás, é uma vida de recuo.

Isto vem desde Portugal, que durante oito séculos foi dominado, às vezes pelos cristãos, às vezes pelos muçulmanos e o coitado do português ficava ali no meio sem saber quem era o "patrão", quem mandava naquele dia. Por via das dúvidas, ele obedecia aos dois. Era um sujeito que estava perdido no espaço, não havia esperança para ele. Isto já veio de Portugal, e no Brasil a coisa complicou-se ainda mais por conta destes fatores que eu lhe contei. Ao comparar a formação do Brasil com a dos EUA --- assunto maravilhosamente tratado pelo escritor Viana Moog no livro Bandeirantes e Pioneiros ---, vê-se que a formação dos EUA foi completamente diferente. Houve pessoas que foram para os Estados Unidos, fugindo do Governo, porque os puritanos haviam feito [na Inglaterra] uma revolução --- que "deu com os burros n´água" --- e eles tiveram que fugir. Fugiram com a idéia de montar uma sociedade que fosse do jeito deles, e não como queria a Igreja oficial [inglesa] e o Rei da Inglaterra. Eles chegaram em comunidades, para instalar-se nos Estados Unidos e nunca mais voltar. A idéia era criar uma vida nos EUA: vinham trazendo a família, em grupos de vinte, trinta famílias e organizavam-se em comunidades independentes.

A independência tornou-se maior ainda porque eles não se entendiam em matéria de religião, de teologia, cada um pensava de um jeito e a toda hora surgia uma dissidência. Para não haver brigas, a dissidência ia embora e formava outra comunidade independente. Este espírito comunitário ainda existe nos EUA, onde a boa vizinhança é uma coisa real. Quando alguém chega aos EUA, logo no dia seguinte vêm os vizinhos oferecer um docinho, oferecer um presentinho, perguntar se a pessoa precisa de alguma coisa. Você sente esta solidariedade na sociedade e isto vem da formação colonial. No Brasil não. Alguém era solidário com esses 50% de escravos que compunham a população do Brasil? Não! Queriam era dar chicotadas! Quando conseguiam escapar da chicotada, escondiam-se debaixo da mesa. Estes são os nossos antepassados, não outros. Fomos criados para viver com o rabo entre as pernas.

A independência acontece quando, feliz ou infelizmente, a vida o isola e você se torna um solitário no meio desta sociedade. Isto aconteceu comigo. No começo, por causa da doença, pois quando eu saí para o mundo, aos oito anos de idade, eu [ainda] era um bebê, não estava bem encaixado, custava para entender as coisas. Na escola, eu me perguntava que coisas eram aquelas, o que queriam de mim ali, o que era para eu fazer. Este isolamento, de alguma maneira, acompanhou-me a vida inteira. E, aliás, eu coloquei esta semana no Facebook, uma coisa que retirei de um artigo do poeta austríaco Hugo Von Hofmannsthal, de 1891, em que ele diz algo de uma profundidade extraordinária. Ele diz que são as pessoas solitárias, isoladas, que sentem os sofrimentos de sua época e pensam os pensamentos de sua época e, quando as pessoas escrevem livros que expressam a dor da época, esses livros são os mais tristes que existem, tornam-se célebres --- como O mínimo ---, porque, diz ele, são os únicos que podemos compreender quase por completo, porque falam da dor que todos estão sentindo.

Isto aconteceu com esse livro que está em suas mãos. Hofmannsthal estava falando de mim! Ele não sabia que eu viria a existir, mas profetizou e eu confirmo que as coisas são realmente assim. Se eu pensar em isolamento, eu vivi em um isolamento intelectual monstruoso, eu mesmo não sei como aguentei. Durante boa parte da minha vida (quase minha vida inteira), eu só tinha comunicação com pessoas trinta anos mais velhas ou trinta anos mais novas. As trinta anos mais velhas eram escritores e pensadores que me serviam de exemplo de alguma maneira: Paulo Mercadante, Meira Penna, Carlos Heitor Cony, Josué Montello, Roberto Campos, Herberto Salles, Antônio Olinto ---representavam a grande cultura brasileira de uma época anterior à minha. Os outros eram meus alunos, trinta anos mais novos.

Eu não tinha um amigo da minha idade. O primeiro que me apareceu foi o Bruno Tolentino e eu já tinha cinquenta e tantos anos. O Bruno Tolentino e o José Mário Pereira. Foi, realmente, uma solidão intelectual extraordinária, que me permitia olhar as coisas ao mesmo tempo com uma distância e uma compreensão --- uma compaixão ---, porque não me sentia envolvido nessa miséria geral, não me sentia vítima dela, sentia-me um observador. Um observador triste, evidentemente. Então escrevi livros como O Imbecil Coletivo e O Mínimo, na base do "rir para não chorar". Nós devemos nos envolver no drama de maneira empática, é preciso ter simpatia, compaixão. Mas você não pode sentir-se vítima, porque assim não tem como ajudar ninguém. Você tem que ficar um pouco acima: em um barril de cocô, é preciso colocar a cabeça para fora e, dali, de uma posição mais livre, tentar ajudar as pessoas.

Não posso dizer que eu não sofra ao ver o destino deles, eu sofro. Mas não é um sofrimento de vítima, é o sofrimento como se eu fosse um médico que levasse um remédio para o paciente, mas o paciente ficasse bravo, não quisesse tomar a medicação e morresse. Lembro-me de uma ocasião em que eu andava pela Avenida Santo Amaro, e vi uma mulher caída no chão, estrebuchando, se debatendo e fui ajudá-la. Ela abriu os olhos, me viu e disse que detestava homem, e começou a me bater. Eu disse a ela então que, muito bem, que ela ficasse ali. É o paciente rebelde: você quer ajudar, mas a pessoa não quer ser ajudada. Ao passar por esta solidão você adquire uma certa independência. No começo você sofre, evidentemente. Mas nenhuma solidão é total. Era uma solidão intelectual, mas eu tinha namorada etc. Eu não era socialmente solitário, era intelectualmente solitário. [0:40] Não tinha com quem dialogar.

Aliás, dialogar mesmo eu não tenho com quem até hoje. Tenho fora do Brasil, no Brasil não há ninguém. Agora que o Bruno Tolentino morreu e o José Mário é difícil de acessar, não tenho mais diálogo, só tenho monólogo. Eu falo, falo, falo; uns idiotas respondem e em seguida eu respondo também com duas ou três piadas e só. Isto não é um diálogo, não posso ter um diálogo com o Renato Janine Ribeiro! O sujeito nem entende o que estou falando, não entende porque está numa escala moral inferior e está no grau da solidariedade grupal. Ele é incapaz de entender uma alma que tenta pautar-se por princípios universais --- não é capaz de entender e nem sabe o que é isso. Há pessoas que agem por princípios universais no Brasil, mas são muito poucas e não têm presença cultural. Quando aparece alguma que tem, os outros não entendem, entendem uma coisa completamente diferente, dão interpretações maliciosas, pejorativas. Nem eu espero que me compreendam. No dia em que Renato Janine Ribeiro me compreender ou aprovar o que estou fazendo, vou perguntar a mim mesmo o que estou fazendo de errado.

Felipe: Você usa uma expressão que eu gosto muito: "tragédia vocacional brasileira". Fala-se muito em tragédias como enchentes, chuvas --- o Vasco perder é uma tragédia --- e nunca se fala da tragédia vocacional brasileira.

Olavo: É a tragédia de um país onde todo mundo está fora de lugar.

Felipe: Quer dizer, todo mundo indo por um caminho errado. Queria que você falasse como isso gera um ressentimento que é, também, muito bem explorado politicamente.

Olavo: Eu tenho um amigo que fugiu para os EUA há quase 40 anos. A mulher dele havia se metido em uma dessas organizações guerrilheiras e estava sendo perseguida pela polícia --- ele pegou a mulher e fugiu para os Estados Unidos. Passaram-se 20 anos, ele voltou ao Brasil para me visitar e, por coincidência, naqueles dias, aconteceria um encontro com os ex-alunos da escola em que havíamos estudado. Era o Colégio Estadual São Paulo. Ele perguntou-me se eu ia [ao encontro]. Respondi [que não], que Deus me livrasse [de ir]. Mas ele foi, e voltou totalmente deprimido, dizendo que, de todas aquelas pessoas, a única que acreditava no que estava fazendo era eu. [Ou seja,] Está todo mundo dando certo na coisa errada. Todos entendendo seu ofício, sua profissão como uma camisa de força que lhe foi vestida ou como um mero divertimento. Então, há os sofredores e os cínicos. E eu não sou nem sofredor, nem cínico. Estou fazendo a coisa em que acredito e que acho boa.

Se me perguntam se sou realizado, respondo que sou exatamente o que eu queria ser quando adolescente, exatamente. Faço o que queria fazer. Eu só gostaria de fazer mais, muito mais, mas não outra coisa. Não tenho outra vocação, não gosto de outra coisa e estou fazendo o que sonhava. Eu queria ser um escritor e educador e é exatamente o que sou. Não posso ser outra coisa. Que outra vocação eu tive? Quando era pequeno, queria ser palhaço de circo (há quem diga que sou palhaço fora do circo, não deixam de ter certa razão). Depois, eu queria ser caçador, porque meus dois avós eram caçadores, mas também não deu. Meu avô morreu e logo em seguida veio a lei de que não se podia mais ter armas. Eu e meu irmão ganhamos nossas espingardas aos oito anos de idade --- espingardas de cartucho --- e com essa idade já saíamos para caçar. Daí acabou minha carreira de caçador, que eu compenso assistindo, obsessivamente, a filmes de bichos, até hoje. Durante um tempo, na escola, fui ser coroinha e, quando me vi com a batina de coroinha, pensei que talvez pudesse ser padre. Mas isto não foi uma vocação, foi só uma fantasia, passou. Depois, aos quatorze anos eu me perguntei o que eu era, e concluí que queria ser escritor. Mas eu não sabia nada para escrever, não tinha nada para escrever. Então [pensei] que tinha de viver um pouco, adquirir certa experiência da vida, estudar um pouco, quando eu soubesse alguma coisa, eu escreveria. Tanto que minha estréia literária foi a mais tardia da literatura brasileira, aos 48 anos de idade. Antes, a mais tardia fora a do Graciliano Ramos aos 43. Mas ganhei dele por cinco anos.

Felipe: Queria comentar um negócio engraçado. O capítulo "Pobreza" do livro comove e emociona muita gente, os leitores comentam muito, mandam muitas mensagens sobre esse capítulo e eu até comentei esta semana no Facebook [sobre ele]. Muita gente se surpreende com esse capítulo porque percebe como o Olavo é uma pessoa generosa, boa; o sujeito está acostumado a ouvir somente difamações a seu respeito, porque fala palavrões na internet, aí se depara com esse capítulo "Pobreza" em que você faz toda uma pregação de generosidade, do dever moral de auxiliar os pobres. E há uma crônica do Nelson Rodrigues, em que ele narra um episódio descrevendo como um amigo dele ficou besta ao descobrir que o Gustavo Corção tinha sentimentos. Ele estava acostumado com aquela imagem hedionda do reacionário, que os inimigos colocavam, foi para o estádio de futebol com o Nelson e só conseguia pensar naquilo: "tô besta, tô besta!". Porque o Gustavo tinha escrito um artigo sobre o filho dele, algo emocionante. E eu acho muito engraçado porque nós que frequentamos seus cursos e lemos seus livros de fato --- ao contrário desse pessoal que te difama ---, estamos acostumados a ver o Olavo generoso.

Então, existe esse processo de demonização para afugentar os leitores e eu queria, justamente com O Mínimo*, principalmente nos capítulos iniciais, mostrar este lado seu, desconhecido por essa gente. Você não acha engraçado, Olavo, que as pessoas se impressionem com essa sua ternura? As meninas falam: como o Olavo é fofo!*

Olavo: Realmente eu sou muito fofinho. Isso é outra coisa que sempre me impressionou na sociedade brasileira: a falta de amor, a falta de afeição. Santo Agostinho disse que a sociedade humana é baseada no amor ao próximo. Se você pensar bem, isto é verdade. Vemos violência, vemos maldade etc., mas se a maldade e a violência predominam, a sociedade se desfaz, esfarela-se. Tem de ter um lado de afeição, de amor. Por mais degradado que esteja, por mais indireto, ele tem de estar presente de alguma maneira. E, como eu disse, a minha experiência de infância, [se] por um lado foi muito ruim, porque eu estava doente, por outro lado foi muito boa, porque fui muito bem tratado; recebi muito amor, muito carinho, muita afeição e ficava realmente chocado ao ver as mães de meus amigos gritando com eles, humilhando-os em público, coisa que minha mãe jamais faria. Minha mãe era minha heroína.

Lembro-me de que havia uns prédios em construção do outro lado da rua e gostávamos de subir naqueles prédios e pular nos montes de areia. Íamos até o quinto, sexto andar e pulávamos. Um dia, estávamos fazendo isso e o guarda da construção nos pegou. Eu, como era o mais bobo, fui o último a sair correndo e ele me alcançou. Pensei que havia acabado tudo, que minha vida havia acabado. Ele estava me levando --- não sei para onde --- e quando passou na frente da minha casa, estava minha mãe à janela. Ela deu-lhe uma bronca e libertou-me. Minha mãe era minha heroína, era demais! Dona Nice era fabulosa, sempre foi um exemplo de coragem extraordinária. Uma vez, ela e o meu tio João, os dois velhos, com mais de 70 anos --- havia um grupo de malandros que agredia um priminho meu, jornalista --- saíram na rua com uma chave de roda e deram um cacete nos sujeitos. Foi um negócio monumental! Eu sempre tive muita admiração pela coragem e bondade da minha mãe. Ela era um coração de ouro.

Houve uma vez em que se mudou para o prédio onde ela morava, na Rua Abolição, um travesti que se chamava Veruska. A travecona era até bonita e morava lá com o "marido". No primeiro momento foi um escândalo, minha mãe [dizia]: "onde já se viu?" etc. Passou uma semana, minha mãe já estava falando: "Ah, a Veruska, o marido dela e tal". Passou mais um tempo, cheguei eu [na casa dela] e estava minha mãe tomando chá com a Veruska na sala. Virou grande amiga da Veruska. Era realmente um coração de ouro, cabiam todos, até mesmo gente esquisita se ajeitava. Ela é assim até hoje. Meu pai era um sujeito mais durão, mas tinha um respeito pelas pessoas que era impressionante. Na cidade onde ele morou, Iguape, no sul do Estado [de São Paulo] [0:50] (uma das regiões mais pobres do país), a parte mais pobre, os mais miseráveis da cidade o adoravam. Porque ele não os tratava de forma diferente. O sujeito ia pedir alguma coisa na casa dele, ele mandava entrar, sentar na sala, conversava. Ele era radicalmente igualitário. Mas era um reacionário, eleitor da UDN.

Estas coisas eu aprendi na minha casa, com a minha família. Não que a família fosse perfeita, que fossem santos, tinham defeitos como todo mundo. Mas estas coisas foram as que eu guardei. E até hoje, fico impressionado com a falta de gentileza das pessoas umas com as outras, como se maltratam. Nos EUA, vemos isto muito menos. Vê-se isso em Nova Iorque, em Miami, mas no interior da Virgínia, o pessoal é de uma gentileza extraordinária. Todos os meus alunos --- há oito anos estou dando cursos nos EUA, duas vezes por ano --- e o pessoal do Brasil que vêm para cá, admira-se em como o pessoal aqui é tão bondoso, tão gentil. É a tradição que já vem desde o tempo da colônia. Eu sinto-me muito bem aqui na Virgínia. Na primeira semana em que eu estava aqui, convidaram-me para ir à Igreja Metodista. Chegando lá, estavam fazendo uma coleta para os meninos de rua do Brasil! Eu pensei em como eles estavam preocupados com os meninos do Brasil e [em como] ninguém no Brasil estava preocupado com eles! Estão preocupados [no Brasil], sim, em usar os meninos de rua para falar mal do capitalismo, do sistema etc., mas não tiram um tostão do bolso para dar aos meninos de rua. Não fizeram campanha para não dar esmolas? Estes mesmos desgraçados [dizem-nos] para não dar esmolas, [e sim, para] dar para a campanha tal. Porém, se eu der dez "mangos" para o mendigo de rua, ele vai receber dez "mangos". Agora, se eu der dez "mangos" para a campanha tal, a campanha tem de pagar o funcionário, tem de pagar a conta do telefone, tem de pagar o aluguel da sala, tem isso, tem aquilo, tem propina pra não sei quem. O que vai sobrar para o coitado do mendigo no fim? Então, é melhor eu dar direto! É a coisa mais simples do mundo, deveriam fazer a campanha ao contrário: quando alguém lhe pedir esmolas, dê; não dê "merrequinhas", dê o que você puder. Foi o maior elogio que recebi na minha vida. Havia um velhinho negro, sentado, pedindo dinheiro. Dei trinta paus para ele, ele virou para mim e chamou-me de "sangue bom". Que maravilha! (risos) Ganhei meu dia!

Felipe: As pessoas boas, Olavo, sabem que quando encontram um pobre não estão diante de um problema administrativo.

Olavo: Evidente! Não é um problema administrativo, não é um problema social. Você poderia estar naquela situação. Como ele. Isso eu aprendi com meu amigo Oto, que quando ficava sem dinheiro, pedia emprestado aos mendigos. Os mendigos davam! (risos) Poderia ser eu a estar naquela situação. Uma vez, o Oto vendeu um par de meias a um mendigo. Ele tirou as meias, entregou e o mendigo deu uma grana a ele. (risos)

Felipe: Aproveitando este tema e já entrando mais no aspecto político, você diferencia o desejo moral de ajudar os pobres dos direitos que implicam na obrigação das pessoas em ajudar. Queria que você falasse um pouco sobre isso.

Olavo: A questão dos direitos é uma das mitologias modernas. As pessoas não sabem o que é um direito. Isso está explicado no livro da Simone Weil, L'Enracinement (O Arraigamento), um dos belos livros do século XX. Ela começa por explicar o que é um direito. Um direito é a obrigação de um outro. Se eu digo que as crianças têm o direito de ser alimentadas, isto só quer dizer, substantivamente, que alguém tem a obrigação de alimentá-las. Um direito, ao qual não corresponda uma obrigação de terceiros, é mero flatus vocis, é uma palavra só, não quer dizer nada. Quanto mais aumenta o número de direitos, aumenta o número de obrigações para a sociedade, automaticamente. O direito é apenas uma maneira indireta de designar as coisas. A palavra direito é uma metonímia. A substância do direito é a obrigação que ele impõe a um terceiro. Por exemplo, [quando se diz que] a criança tem direito à educação. Quer dizer que alguém tem a obrigação de educá-la. Se a criança tem direito à educação e ninguém tem obrigação de educá-la, o direito não vai valer. Então, a substância do direito é a obrigação. Tudo aquilo que é um dever moral, quando se consolida em um direito estabelecido em lei, automaticamente se perverte. Vou dar o exemplo mais temível da história do Ocidente.

O autor Denis de Rougemont, no livro O Amor e o Ocidente, diz que o tema da literatura ocidental, em 90% dos casos, é o adultério, só se fala disso. Por quê? Porque existe a instituição do casamento monogâmico indissolúvel, que é uma instituição religiosa, um compromisso que o homem e a mulher assumem diante de Deus. Esse Deus é o mesmo Deus que, quando perguntaram a Ele quantas vezes deveríamos perdoar nosso próximo, se seriam sete vezes, Ele disse que não, mas setenta vezes sete. É este Deus que assegura a fidelidade matrimonial. Ele sabe que você vai falhar e Ele está pronto para perdoar porque a natureza d'Ele é amor e é perdão. Quando o casamento monogâmico e indissolúvel, no século XIX, perde a referência a Deus, perde a referência religiosa e torna-se um direito estabelecido no código civil, o que acontece? A fidelidade matrimonial tornou-se um dever absoluto e intransferível, não há mais perdão. O sujeito olhou para outra mulher ou a mulher se engraçou para o padeiro, acabou o casamento. Isto significa que a fidelidade sobrepôs-se ao próprio amor familiar. Esta é a perversão total! O cinema americano consagrou isso. A fidelidade matrimonial ainda é o grande fetiche em todos os filmes, mesmo com a imoralidade estabelecida como está hoje em dia. Houve uma ameaça de adultério, o sujeito se esfregou com outra mulher: acabou o casamento! Ainda vem o Estado e, a pretexto de proteger a mulher, põe o sujeito para fora de casa. E determina que oitenta por cento de seus ganhos são para pagar pensão de alimentos, que ele não pode se aproximar da sua casa mais do que dois quilômetros e só pode telefonar para os filhos no dia e hora estabelecidos. Ou seja, o que foi feito para consagrar o amor humano, para dar um sentido divino ao amor humano, diante de um Deus que perdoa (que publicamente perdoou a adúltera, que não havia adulterado apenas uma vez, mas várias), virou um tormento, um modo, um instrumento de opressão nas mãos dos cônjuges.

Todo mundo acha que falar de direito é lindo. O sujeito ouve falar de direitos e tem um orgasmo. Já tem uma ereção quando ouve falar de direitos. Mas quando você analisa, é uma coisa muito feia. A palavra direito só entra quando existe uma autoridade constituída, que pode forçar alguém a atender àquele direito do outro. A palavra direito --- essa idolatria dos direitos --- só serve para, cada vez mais, aumentar o poder do Estado sobre a vida das pessoas e fazer do Estado o mediador de todas as relações humanas. Não há relação mais direta do que um mendigo pedir dinheiro, a pessoa tirar o dinheiro do bolso e entregar a ele. Porém, agora o Estado tem de entrar no meio, o Estado é o mediador. Ele vira o mediador de todas as relações humanas. Que mediador é esse? É um funcionário, burocrata, preguiçoso, que não quer saber de nada, despreza as pessoas e só quer se impor sobre elas. É este o inferno que estamos vivendo. Deste ponto de vista, o direito de família está pior nos EUA do que no Brasil. No Brasil ainda há a "virtude dos defeitos". O brasileiro, como é mais sem-vergonha, é mais tolerante com a fraqueza humana, com o adultério, com "putaria", essa coisa toda. Por isso não vira essa tragédia como está virando nos EUA. Mas, se deixar isto na mão do PT, eles vão regulamentar tudo. Até os homossexuais, os gays vão ter de casar. E vai ter de ser o casamento homossexual indissolúvel. Se o sujeito olhar para outro homem (pronto, o mundo acabou!) é expulso de casa. Vai ser isso! Vejam o inferno que eles estão criando. Prometem mil maravilhas e também benefícios sociais.

Essa cretina da Marilena Chauí, um dia fez um vídeo --- não reclamo de intelectuais [1h00] apenas por causa de uma coisa que eles disseram em entrevista --- e, geralmente quando eu ouço uma coisa dessas, vou ler os livros da pessoa para saber quem é e se não estou interpretando mal. Eu li vários livros da Marilena Chauí --- aliás, eu tenho a certeza de que, em todo o planeta Terra, eu sou o único sujeito que leu o livro A Nervura do Real, porque as muitas pessoas que o elogiavam diziam que não tinham capacidade para lê-lo, mas que era uma maravilha. Bem, eu li esta porcaria, li até antes de sair, li nas provas; o José Mario Pereira me mostrou as provas do livro, eu o li inteirinho nas provas, mil páginas.

Ela diz que a democracia é criação de direitos. Quanto mais direitos você cria, mais obrigações você cria. Para cumprir essas obrigações, você precisa de agências estatais que forcem o cumprimento, portanto, você precisa de mais tribunais, mais delegacias de polícia, mais fiscais e mais opressão. A democracia não é criação de direitos. É o estabelecimento de um número mínimo de direitos que permaneça inabalável, aconteça o que acontecer; isto é a democracia. Mas esta burra não sabe, ela acha que direito é como pão: uma massa homogênea que cresce. É uma pessoa que não pensa, não sabe o que está falando. Isto não é uma questão de opinião, em que se possa dizer que ela tem a opinião dela e eu a minha. Ela não tem idéia da substância da qual está falando, ela está encantada por uma palavra. Isto acontece porque o grupo dela gosta desta palavra e precisa desta palavra para se promover politicamente. Então embarca nesta coisa e se sente muito bem, porque está de acordo com o espírito do grupo e o grupo fala bem dela, então pode repetir aquela besteira quantas vezes quiser e ninguém vai perceber que tem algo de errado ali, só percebe quem está fora. Está respondido?

Felipe: Está respondidíssimo! E agora eu vou pedir que, como combinamos, você falasse livremente sobre a situação político-cultural brasileira, de um modo geral. E para explorar você, Olavo, que falasse da influência de Marx, Marcuse, Gramsci, e como isso foi se transformando na revolução cultural, direita e esquerda. Bomba aí, Olavo, se vira nos trinta.

Olavo: Em primeiro lugar, você precisa ver que esse negócio da idiotice e imbecilidade não é um monopólio da turma da esquerda, eles apenas têm mais dinheiro; então, fazem mais barulho, a estupidez deles é mais visível. Mas a turma da direita também [tem estupidez]. Esta semana mesmo, eu estava comentando [sobre] um certo Zucchi, da organização Montfort, e disse a ele que o Evangelho não era uma exposição doutrinal, era uma narrativa de fatos. Ele entendeu que eu estava dizendo que não existia doutrina nenhuma no Evangelho. Claro que eu não disse isso. O sujeito distorce o que eu digo para fazer de conta que ele é do grupo dos bons e que eu estou no grupo dos maus.4 É de novo a afinidade grupal, a intersolidariedade grupal: o indivíduo pensa que é o porta-voz da doutrina cristã, mas não é; é apenas o porta-voz do espírito de grupo. Ele não é capaz de entender os mandamentos como princípios universais que devem orientar a sua conduta.

Como é que sabemos disso? Como é que sabemos que um sujeito está tentando pautar sua vida por princípios universais? É muito simples: os princípios universais são muito fáceis de ser repetidos --- como, por exemplo, os dez mandamentos ---, mas não são fáceis de ser aplicados, por causa do que dizia Santo Tomás de Aquino, que os princípios são sempre gerais e as situações são sempre individuais e particulares e não se encaixam exatamente, diretamente, nos princípios universais. Então, dá um trabalho miserável para você se guiar por princípios universais, para saber o que você deve fazer a cada momento, porque não vem a fórmula pronta; ao contrário, você tem a fórmula, mas a fórmula não vem com seu encaixe imediato na situação concreta. É preciso muito exame, muita escrupulosidade.

Quando uma pessoa sai repetindo doutrinas --- mal aprendeu a doutrina e já está usando-a como porrete para bater nos outros, acusar os outros de heresia etc. ---, é porque está entendendo isto no sentido do grau 3 da Escala Kohlberg, é a integração ao grupo: ela pertence ao grupo dos bons, que são os católicos ou os cristãos, e os outros são os maus, os hereges, os infiéis etc. Isto é espírito de grupo, não é o verdadeiro espírito do Evangelho, de maneira alguma. Seguir os princípios universais não é fácil. Quando eu digo que não é fácil, as pessoas dizem que sabem o certo, mas só conseguem fazer o errado. Não é neste sentido que eu estou falando, não é no sentido da prática, é a dificuldade intelectual, de você entender o que é para fazer.

Cada situação exige um exame muito detalhado das nuances da situação, para sabermos o que é o certo. Se vemos que o indivíduo não sabe fazer estes exames, ou nem percebe que é para fazê-los, achando que é só repetir e copiar mecanicamente aquilo, então é porque não tem noção dos princípios universais. Então, ele não está na Escala 6 do Kohlberg, está muito abaixo. Vemos este tipo de coisa em grupos católicos, evangélicos, em tudo quanto é lado. O sujeito entrou em uma igreja ontem e já sai descendo o porrete na igreja do outro que ele nem conhece, que ele nem sabe [o que é]. No Brasil, tudo quanto é cristão faz isso. O sujeito entrou na Igreja Católica, já sai cuspindo no protestante que ele não conhece, e vice-versa: o protestante também sai descendo o cacete na Igreja Católica. As pessoas têm todo o direito de polemizar em teologia, mas primeiro têm de compreender o que o outro está fazendo, e daí sim. Mas nem mesmo estudam, não estudam nem a sua própria doutrina, vão estudar a do outro?

Em segundo lugar, uma pessoa que se pauta por princípios universais nunca se deixa guiar por chavões ou pensamento metonímico. Quando vemos alguém usar as expressões "teoria da conspiração", "isso é heresia", "isso foi pago pela CIA", [sabemos que] a pessoa está usando chavões que a dispensam de examinar o que está acontecendo. No Brasil, quase todo o discurso contra alguma coisa é feito só de chavões --- que são expressões já consagradas, substitutivas do pensamento, por isso chamam-se lugares-comuns. Na retórica antiga, dizia-se que o lugar-comum era aquele lugar onde estavam guardados argumentos prontos e que você não precisava pensar, era só pinçar dali e repetir aquela porcaria.

Este ambiente cultural maligno já existe há muito tempo. Quando um grupo (ou uma facção) se vê em uma posição minoritária, perseguida etc., às vezes começa a pensar um pouco. Como em 1964, logo depois do golpe, a esquerda deu um salto intelectual extraordinário, porque viu que estava liquidada e agora tinha de pensar para ver o que acontecera e o que se ia fazer. Então, durante uns três ou quatro anos, houve um certo brilho na produção intelectual da esquerda, mas durou pouco. À medida que foram subindo na vida, esqueceram tudo aquilo, e a única preocupação deles [hoje] é como ganhar mais dinheiro, como arrancar mais dinheiro do outro para fazer mais propaganda deles mesmos e posar como bonzinhos. Então, houve uma degradação, uma devastação intelectual absolutamente formidável. Veja o que era a esquerda [antes] e o que é hoje. Eu falei sobre escravidão agora há pouco e o melhor livro sobre a escravidão é O Escravismo Colonial, de Jacob Gorender. É uma análise maravilhosa da economia brasileira, mostrando que a escravidão não era [apenas] um elemento --- antes, acreditava-se que houvera um regime feudal e que a escravidão fora um acréscimo. E Gorender falou que não houve feudalismo nenhum, [o que houve] foi uma espécie de mercantilismo escravagista. Ao descrever isto, ele saiu completamente das categorias do pensamento marxista e inventou uma categoria nova.

Quem, hoje, na esquerda, seria capaz de escrever uma coisa como aquela? Nunca na vida, só sai besteira [atualmente]. O pessoal da direita decaiu depois da revolução de 64, quando subiram ao poder, imediatamente acabou a elaboração intelectual na direita. A direita brasileira tinha Gustavo Corção, João Camilo de Oliveira Torres, Gilberto Freyre, um monte de gente. Até o Otto Maria Carpeuax era da direita! Depois de 64, aquilo foi acabando, acabando e acabou. Por quê? Eles apoiaram a revolução de 64 --- o próprio Carpeaux apoiou a derrubada de Jango --- e depois o regime não cumpriu as suas promessas: havia prometido tirar o [presidente] João Goulart e fazer as eleições em seis meses. Não fizeram as eleições, se instalaram lá durante anos, fizeram um governo de tecnocratas; acabou a atividade política --- o Congresso virou só carimbador de decretos --- [1:10], todo mundo ficou desiludido e perdeu o embalo. A direita acabou por desânimo, e a esquerda acabou porque o sucesso e o dinheiro lhe subiram à cabeça: viraram todos oportunistas, puxa-sacos. Eles não precisam mais pensar, já têm tudo o que querem: já têm todo o poder, todo o dinheiro; para que pensar?

Todas as atitudes, que nos anos 50 e 60, eram consideradas sinais de reacionarismo tacanho, hoje são vistas na esquerda. como o culto ao diploma. Entre os anos 50 e 60, não havia um intelectual brasileiro que não soubesse que o culto ao diploma era um dos sintomas mais característicos do nosso subdesenvolvimento cultural. Todos sabiam! De repente, quando eu apareço na praça, qual é a maior crítica ao Olavo? Ele não ter diploma de filósofo. A expressão "diploma de filósofo" foi objeto de gozação quando do concurso para provimento de cátedra de filosofia na USP. Havia filósofos estrangeiros no Brasil na época --- Enzo Paci, Luigi Bagolini --- que começaram a rir deste negócio, [questionando] que história era aquela de diploma de filósofo, que palhaçada era aquela.

Outra coisa: os palavrões. Eu me lembro de que, nos anos 50 e 60, o pessoal medíocre da direita --- as famílias, a "tradicional família mineira" etc. --- ficava horrorizado com os livros do Jorge Amado porque havia palavrões. Eu não podia ler Jorge Amado porque [diziam que] havia palavrão, que era uma coisa horrível. Isto era a direita tacanha dos anos 50 e 60, agora vemos a turma da esquerda com a mesma tacanhice. Mas que coisa ridícula! Voltou para trás, não perceberam que passou o tempo, e estão copiando os piores vícios que eles mesmos --- a turma da esquerda --- não condenavam há cinquenta anos. Outro dia, um rapaz escreveu-me e disse que eu era um ignorante, não sabia nada, precisava ler o livro do Eduardo Galeano, As Veias Abertas da América Latina. Eu li este livro quando tinha 17 anos. Agora, aos 66, alguém vem me recomendar o livro, como se tivesse saído ontem: uma velharia, uma peça de museu. O sujeito quer tirá-la do fundo do baú e vendê-la para mim? Esse pessoal está completamente fora da realidade.

Outra coisa terrível que aconteceu no Brasil por causa da esquerda --- por culpa da esquerda ---, foi a mudança de critério de julgamento do pobre que sobe socialmente. Até os anos 50 e 60, víamos méritos no pobre que subia socialmente porque ele havia estudado, se esforçado e mais ainda: toda a alta cultura brasileira era feita de gente assim. No século XIX, pessoas que vinham de família rica, como Joaquim Nabuco ou Oliveira Lima, eram exceções. A maioria era como Cruz e Souza, Capistrano de Abreu, que tinham vindo de baixo, adquiriram cultura por esforço próprio e subiram. Entendia-se que o mérito do pobre consistia em ele adquirir um mérito antes de subir. Quando se criou o culto ao Lula, foi o contrário: o grande mérito dele foi ter subido continuando analfabeto; não precisou aprender nada. Ele fisicamente se aprimorou: começou a usar uns ternos bonitos, ternos Armani, aparou as unhas, a barba, ficou todo bonito. Subiu só exteriormente, por dentro continuou a mesma porcaria; e acham isto bonito. O critério de julgamento se degradou completamente.

Eu, durante certa época da minha vida, fiquei mais pobre que o Lula --- mais pobre e doente. Ele, quando se lembra da infância, chora porque foi um menino pobre do nordeste. Que coisa ridícula! Veja se vou ficar choramingando que eu estava doente. E as pessoas acham isso lindo. Veja a Benedita da Silva: era governadora do Rio de Janeiro e ainda estava com dó dela mesma porque dizia que era mulher e favelada. Não: ela foi. É uma coisa impressionante. Quando se vê um sujeito que vem da favela e adquire por méritos uma qualidade maior --- isto não pode. Eu tenho um amigo chamado Ronaldo Alves: ele nasceu no morro da Rocinha, depois saiu do morro, desceu, estudou Direito, se formou, escreveu um livro de contos muito bom chamado O Bandido, fez até algum sucesso, mas aí não o deixaram mais subir na vida. Porque ele tinha adquirido méritos reais, era homem de talento verdadeiro --- este não pode. Então você tem de pegar um medíocre, [ou melhor] um sub-medíocre --- o tempo da mediocridade era o tempo de O Imbecil Coletivo. Antigamente, medíocre era pejorativo, agora medíocre é aspiração: [é como se perguntássemos] o que a pessoa quer ser quando crescer, [e esta respondesse que quer ser] medíocre. Vamos ver se ela consegue. Por exemplo, dizer que Dilma Rousseff é medíocre. Não, a Dilma está abaixo da mediocridade. Uma pessoa medíocre tem de ser, pelo menos, capaz de fazer uma frase com começo, meio e fim; uma pessoa medíocre não diz que o Dia das Crianças é também o Dia dos Animais, não diz uma coisa destas. Isto aí já está raiando realmente o deficiente mental.

Outra coisa, entre os intelectuais, o grande problema é o seguinte: eles não têm a representação mental dos conceitos que estão usando, não tentam imaginar o que são na realidade; eles tomam a palavra e raciocinam a partir dela, como, por exemplo, a palavra "direito". A substância do direito, como eu expliquei, é uma obrigação imposta a um terceiro; isto é a substância real, é o que ele representa na prática. Fora disto, a palavra "direito" pode ter um encanto --- a palavra, mas não a realidade da coisa. Como aquele comentário do Janine Ribeiro, que disse que Marx queria a extinção do Estado. Sim, mas o que Marx queria dizer com a extinção do Estado? Em primeiro lugar, ele dizia que o Estado teria de tomar conta de tudo. Depois que o Estado tomasse conta de tudo, ele deixaria de ser distinto da sociedade e desapareceria como entidade separada: ele seria a própria sociedade. Então não seria a extinção do Estado, seria a auto-dissolução por onipresença, uma coisa que estaria presente em tudo e não seria mais uma entidade distinta --- isto era o que Marx dizia. Em segundo lugar, ele diz que Marx iria abolir a grande propriedade dos meios de produção, mas não a pequena propriedade. Ao conservar a pequena propriedade, existiria ainda a distinção entre propriedade privada e propriedade pública, portanto existiria ainda o Estado. Não é possível querer isto e a extinção do Estado ao mesmo tempo. É uma coisa simples que o sujeito tem de imaginar como vai ser, como é que se vai fazer. Não, ele simplesmente se contenta com a palavra. Isto é um sinal de imbecilidade, um sinal sério. Ele diz que eu sou um retardado mental, mas eu digo e provo [as coisas que digo]. Ele, convidado a provar que sou um retardado mental, fugiu; enfiou o rabo entre as pernas e desapareceu, se trancou no banheiro há dias. Ninguém consegue tirá-lo de lá.

Isto acontece porque são pessoas que falam e raciocinam apenas verbalmente; não conseguem ter a representação [mental do conceito]. A imitação de discurso é um problema sério, o sujeito ouve aquele discurso e repassa. É o poder de convicção, não por corresponder à experiência, mas por corresponder à expectativa do grupo e por [querer] ser aceito e aprovado pelo grupo. Então, o sujeito tem aquela segurança de fora, de estar dizendo aquilo, [e como] todo mundo está dizendo a mesma coisa, deve ser certo. Todo mundo? Não é todo mundo, [é como se dissessem que] há o grupo dos bons e quem juntar-se aos bons será um deles. Quem são os bons? Aquela turminha da USP, cheia de semi-analfabetos, cretinos; é o pessoal que só faz vexame, um vexame atrás do outro. A obra-prima desta esquerda no poder--- não a esquerda radical, mas a esquerda moderada --- foi o ministro Paulo Renato5 dizer que poderia ter sido pior, quando os nossos alunos tiraram o último lugar nos testes internacionais6. Ninguém disse uma coisa tão maravilhosa como esta, nos últimos cinquenta anos. Qual é o lugar que existe depois do último? É o "sub-último", talvez.

As pessoas dizem essas coisas e não têm consciência de que não estão pensando, como esse rapaz [Eli Vieira] que disse que sou um sub-filósofo, que não vou para o Brasil porque estou cheio de dívidas. Por favor, se estou devendo dinheiro para alguém aí na platéia, me mande a nota fiscal que eu pagarei. Que eu saiba, tem umas pessoas aí que estão devendo dinheiro para mim. Não vou dizer quem são, mas eles sabem. Estou aposentado legalmente há mais de dez anos e não fui buscar o dinheiro da aposentadoria, eu não quero. Porque tenho vergonha de pegar dinheiro do governo, vergonha; porque eu sei que o dinheiro que virá para o meu bolso --- ainda que seja legal e um direito meu --- não é uma conveniência, porque esse dinheiro vai faltar na mesa de um velhinho pobre que não pode pagar nada. [1:20] Então deixe que o governo faça melhor uso do dinheiro.

Outra vez, houve um indivíduo, de um partido político de direita, que me ofereceu cinco mil dólares para escrever três artigos em favor do partido dele. Eu disse que se o partido dele estivesse certo, eu escreveria a favor de graça, não precisava me pagar. E se estivesse errado, eu escreveria contra ele também de graça. O sujeito não entendia o que eu estava falando. Houve um outro, um famoso colunista brasileiro, de mídia, que pediu que nos meus artigos, de vez em quando, eu falasse uma palavrinha boa sobre uma empresa, sobre um banqueiro; que eu pusesse um "docinho". Ele que pegasse o docinho e enfiasse naquele lugar! Que docinho? Eu estou aqui para ficar distribuindo docinho para marmanjo? Ele também não entendeu porque eu fazia isto.

Eu faço isto por um motivo muito simples: inteligência é um dom precioso humano, e se começarmos a sacrificá-la a outras coisas, a perdemos. A inteligência é a capacidade de apreender e buscar a realidade. O pessoal confunde inteligência, por exemplo, com raciocínio matemático, raciocínio verbal. Não, isto são instrumentos da inteligência, mas podem ser usados de maneira burra. A inteligência é capaz de apreender a verdade por meio destes instrumentos. Então, se abdicarmos da verdade, jogamos nossa inteligência no lixo, na privada, puxamos a descarga. Eu não quero que isso me aconteça.

Eu, quando era moleque, tinha muito complexo de ser burro. O meu filho Davi também tinha: ele achava que os irmãos eram muito inteligentes e que ele era o mais burro. Eu me lembro que, quando ele estava estudando no primeiro ano de escola, eu cheguei tarde da noite, ele tivera exames naquele dia e já estava dormindo. Mas acordou, abriu os olhos e disse que havia conseguido, como se fosse a coisa mais extraordinária do mundo ter passado de ano; a expectativa dele era de que ia tirar zero em tudo e não tirava. E eu também tinha a mesma coisa, achava que todo mundo estava entendendo tudo e só eu não estava entendendo nada. Eu tinha de superar este complexo, e qual era a maneira de superá-lo? Tentar entender alguma coisa! Passou tempo e eu vi que só eu estou entendendo alguma coisa e os outros não estão entendendo nada. Pensa que isso melhora a minha situação? Nada, piora muito! Tenho saudade do tempo em que eu era burro, não entendia; ao menos eu tinha a quem perguntar.

Felipe: Olavo, quero lhe pedir uma coisa básica. Muita gente tem dúvida, principalmente pessoas mais leigas em política e é a coisa mais básica do mundo: a diferença entre esquerda e direita. Qual é a sua melhor definição, como você distingue isso?

Olavo: Estes termos podem ser usados de várias maneiras. Em geral, são usados como símbolos de autodefinição, ou seja, são usados por uma corrente política para ter uma identidade, estão associados a certos valores. Também podem ser usados de uma maneira objetiva, desde fora, porque existe uma luta política, então deve existir uma direita e uma esquerda. Mas em que elas se diferenciam efetivamente? Não no Brasil, porque no Brasil não há direita --- no Brasil só existe direita no campo da opinião, não no campo político. Não se pode dizer que eu seja de direita: eu estou de direita, porque no momento é necessário defender certas coisas que estão sendo escorraçadas da vida pública e elas têm de ter a sua presença lá.

Mas em princípio, se você analisar de maneira mais geral a conduta dos grupos de direita e de esquerda no mundo, o que caracteriza a direita é sempre argumentar com base na experiência passada, nos valores historicamente testados e comprovados. No sentido de, por exemplo, David Hume: era um autor cético e ateu, mas, politicamente um conservador, porque ele achava que nós não tínhamos o direito de fazer experiências com a sociedade, tínhamos de nos basear no que a experiência já havia ensinado e não podíamos usar a sociedade como se fosse um porquinho-da-índia para fazer experiências. E [o que caracteriza] a esquerda é sempre argumentar em função de um futuro, quer dizer, ela se arroga a autoridade de um futuro. A direita são pessoas que apostam no que foi testado e comprovado e a esquerda são as que querem arriscar.

É natural que o pessoal da esquerda se arrogue mais autoridade. Por quê? O raciocínio é o seguinte: se o sujeito representa o futuro, ele só pode ser julgado por este futuro. Porém, quando vai chegar este futuro? Não pode chegar, porque se o sujeito personifica o futuro, só ele poderá julgar em nome do futuro, evidentemente. Se o futuro chegasse, aquela política seria julgada pelos outros --- que não compartilham dela ---, seria julgada por pessoas neutras e adversárias, e isto ele não poderia aceitar. Assim, a esquerda são pessoas que se arrogam a autoridade do futuro e esta autoridade é, por definição, absoluta. Por isto, a política de esquerda sempre termina em genocídio, mais dia, menos dia. Às vezes, demora um pouco mais e às vezes tem gente que não quer, que é contra, mas a própria dialética interna da política esquerdista --- que é a de argumentar em nome da autoridade hipotética do futuro --- exige a autoridade absoluta. Se o sujeito aceitar a autoridade do passado --- não se arrogando a autoridade do passado, porque ele não tem isto, nunca tem ---, ele já estará se submetendo à autoridade do passado. E é por isto que os países onde se tem mais liberdade são aqueles onde a legislação é mais antiga: Inglaterra, Estados Unidos, Suíça. Agora, países que têm muitas revoluções, que mudaram de constituição muitas vezes, tendem à opressão, porque isto é um entrave dentro do espírito revolucionário.

Isto é importante: o espírito revolucionário não é inerente ao ser humano. É uma coisa que surge no século XV, não existia antes, teve um começo e um dia terá um fim. A mentalidade revolucionária acabará um dia, porque ela não é um elemento estrutural da condição humana; ela surge dentro do Cristianismo. Chesterton dizia que no mundo moderno existiam muitas idéias cristãs que se haviam desgarrado do Cristianismo e enlouquecido, passando a ter valor por si. Uma destas idéias é a do Juízo Final, a da justiça total. No século XV, apareceu na Alemanha e na Tchecoslováquia um grupo de malucos que achava que podia antecipar o Juízo Final e instaurar a justiça sobre a Terra, mediante o método muito simples de matar todos os maus e entregar todo poder aos bons. Esta é a essência do movimento revolucionário. É uma idéia louca, nada do que ela faça pode levar a resultado bom nenhum.

Vou lhe dar um exemplo: a Rússia esteve sob regime comunista durante sessenta anos e teve um dos maiores movimentos editoriais do mundo. As editoras estatais soviéticas produziam muitos livros, a preço de banana, e os distribuíam para todo mundo. O que sobrou da cultura soviética? Sessenta anos, um império com quase quinhentos milhões de habitantes, todo mundo escrevendo, com opção de ser financiado pelo governo para escrever: o que sobrou? Que grande escritor soviético sobrou? Só os que estavam na oposição, só os dissidentes: Soljenítsin, Zinoviev, Vladimir Bukovsky. Mas onde estão os autores da cultura soviética? Sumiram, não sobrou nada, é tudo besteira. Aquele brutal investimento em cultura e educação não deu em nada, porque o espírito revolucionário é estéril.

Uma outra coisa importante no espírito revolucionário: a revolução não é contra isto ou contra aquilo, ela é contra tudo que não seja ela. O movimento revolucionário, ao longo de seu desenvolvimento, adotou todas as ideologias possíveis e "conversas" completamente diferentes: o movimento revolucionário ora era internacionalista (queria acabar com as soberanias nacionais), ora nacionalista; ora racista, ora anti-racista. O próprio Karl Marx dizia que, para implantar o socialismo, seria preciso eliminar vários povos inferiores --- uma noção racista. Depois ficou feio ser racista, eles apagaram isso e decidiram mudar a conversa. Porém, quando interessa, volta a conversa racista de novo.

[1:30] Quando aconteceu a revolução soviética, havia uma certa tendência de liberação sexual ali no meio. Tentaram isto, mas logo o governo viu que aquilo viraria anarquia, mandou parar e fuzilou não sei quantos gays, prostitutas, gente que estava fazendo suruba; foi um desastre. O teórico da liberação sexual no partido comunista [soviético] foi Karl Radek. Graças à propaganda dele --- do sex lib ---, apareceu um monte de moleque sem pai; então eles diziam que eram os filhos de Karl Radek --- ninguém sabia quem eram os pais, então diziam que o pai era Radek. Quando Karl Radek caiu em desgraça, Stálin mandou-o para uma prisão de jovens que o mataram a pontapés. Este foi o resultado do sex lib soviético. Então, às vezes, eles são pelo sex lib, às vezes pela repressão sexual; eles mudam de idéia. Querer compreender a revolução, o movimento revolucionário, em termos de ideologia, é errado; ele tem muitas ideologias e troca de ideologia como quem troca de cueca.

O que caracteriza o movimento revolucionário é esta absorção da autoridade do futuro. Todos os movimentos revolucionários são assim, sempre: o comunismo, o nazismo, o fascismo, o anarquismo, a revolução francesa. O sujeito pensa que haverá um futuro brilhante e já representa este futuro agora e, portanto, está acima da sociedade presente e está acima da autoridade de todos os presentes, ele [mesmo] personifica o futuro.

Felipe: Olavo, só um parênteses: esta semana teve um depoimento de uma Black Bloc e ela falou que estavam lutando por algo que não sabiam o que era, mas que poderia ser o início de algo muito grande, que poderia acontecer mais para frente.

Olavo: Isto! É algo que não sabem o que é, mas que pode ser o início de algo, que eles também não sabem o que é.

Felipe: Aí eu peguei vários depoimentos de revolucionários, de todas as épocas, desde 1968 --- uns estão em seus artigos, outros eu pesquei por aí ---, até aquele do Lula, que é o mais emblemático, [em que ele diz que] ainda não sabem que tipo de socialismo querem.

Olavo: Ninguém nunca soube!

Felipe: Está no programa do PT, no programa do PSol, o Daniel Cohn-Bendit7 falava isto em 1968. E coloquei um trecho seu no artigo (dois trechos, aliás), que quero ler, pois é sobre isto:

"Karl Marx já opinava que era inútil tentar descrever como seria o socialismo, já que este iria se definindo a si mesmo no curso da ação anticapitalista". (...) "Nestas condições, é óbvio que duzentos milhões de cadáveres, a miséria e os sofrimentos sem fim criados pelos regimes revolucionários não constituem objeção válida. O revolucionário faz a sua parte: destrói. Substituir o destruído por algo de melhor não é incumbência dele, mas da própria realidade. Se a realidade não chega a cumpri-la, isso só prova que ela ainda é má e merece ser destruída um pouco mais."8

Olavo: Exatamente! É a destruição sem fim. Esta é a dialética interna da mentalidade revolucionária: a destruição não pode ter fim. Pensa-se que a revolução comunista vai tirar a burguesia do poder e o proletariado vai subir. Não é assim. Na revolução comunista, a luta de classes começa depois que eles estão no poder: a destruição da burguesia é o item número um do governo revolucionário; e isto pode se prolongar pelo resto da vida. No começo, se define o burguês como aquele que tem a posse dos meios de produção. Depois que ninguém mais tem a posse dos meios de produção, [burguês] é aquele que tem alguma coisa. Por exemplo, os Kulaks, camponeses russos, não eram sujeitos que tinham os meios de produção, eram sujeitos que tinham duas vacas em vez de uma; depois uma vaca e assim por diante. No fim, como ninguém tem mais nada, [burguês] é aquele que tem a mentalidade burguesa: e o que é a mentalidade burguesa? É a mentalidade individualista. Vejamos o caso de um poeta, como Boris Pasternak, que nunca fez mal a uma mosca, mas falava de emoções individuais e isto era considerado ideologia burguesa: colocaram Pasternak na cadeia. É assim, a coisa não termina. No Brasil não há direita política nenhuma, não há nenhum partido defendendo ideais de direita, não há nada, mas o governo fica a toda hora falando mal da direita --- se sentindo acuado pela direita. Quem é a direita? Somos eu, Reinaldo Azevedo, Lobão, Graça Salgueiro e o Heitor de Paola.

Felipe: Olavo, aliás, você deu uma entrevista ao Pedro Bial, acho que em 96, e você já falava disto: a esquerda estava no poder, já era hegemônica e ainda se fazia de coitadinha.

Olavo: Quanto mais poder [a esquerda] tem [mais se vitimiza], isto é característico! Ao estudar o governo Stálin, vemos que Stálin quanto mais poder tinha, mais apavorado estava e mais inimigos enxergava em toda parte. Hitler [fazia] a mesma coisa: na última semana, estava reclamando que não mandava nada, que ninguém lhe obedecia. Mas todos só obedeciam a ele! Isto é inerente à mentalidade revolucionária: foi assim na Alemanha, na Rússia, na Espanha; e em Cuba, até hoje, é assim. Fidel Castro fica reclamando do embargo, do cerco [americano]. O embargo significa que os americanos não podem tirar dinheiro de Cuba, mas eles podem mandar dinheiro para Cuba --- e mandam mesmo. Este embargo é um grande negócio, Cuba só recebe. Antes da revolução, estava ruim porque tinham comércio com os imperialistas; e agora está ruim porque eles não têm mais comércio com os imperialistas. Quer dizer, vale tudo!

O revolucionário é eminentemente um palhaço, um fingidor. Temos de entender o seguinte: a mentalidade revolucionária não é normal na espécie humana. A mentalidade revolucionária é um subproduto do Cristianismo, que surge com a idéia da segunda vinda de Cristo. São pessoas que não querem esperar a vinda de Cristo, mas querem apressá-la; elas mesmas querem fazer o Juízo Final. Foi um fenômeno que surgiu dentro do Cristianismo; é uma perversão do Cristianismo. Começou um dia --- mais ou menos no século XV --- e terá de acabar um dia; já está durando demais. Qualquer sujeito, que venha com promessas de um futuro melhor, tem de ser colocado no hospício na mesma hora. Ninguém tem capacidade para criar uma sociedade nova --- não tem. Isto faz parte do que dizia Max Weber sobre o conjunto dos resultados impremeditados das nossas ações. A sociedade tem de ser deixada a si própria para que vá resolvendo seus problemas de maneira parcial: um resolve um pouquinho, outro mais um pouquinho etc., e, no fim, ou tudo melhora ou tudo piora.

[Resumindo:] É a idéia de um comando central, que criará uma nova sociedade, mas ele mesmo [o revolucionário] diz não saber que sociedade será; e ainda se vota no sujeito para que faça uma coisa que não se sabe o que é. Todo mundo riu da piada do Tiririca, que perguntava se alguém sabia o que fazia um deputado federal. Ele dizia que também não sabia, mas, se votassem nele, ele ia ver e contaria depois. Qual é a diferença entre dizer isto e dizer que eles não sabem o tipo de socialismo que querem? O Tiririca não sabe o que quer, mas quer que se vote nele, para daí verificar e contar a quem votou: é a mesma coisa. Qual é a diferença entre o raciocínio do Tiririca e o do Lula? Nenhuma. Só que um é palhaço assumido e o outro é palhaço camuflado de homem sério.

Felipe: Olavo, já caminhando para o final --- eu peço desculpas se não der tempo de ler as perguntas dos internautas, mas eu tentei captar o sentido delas e já fiz algumas ---, vamos falar um pouco sobre o Foro de São Paulo, que você denuncia desde 2001 e a imprensa brasileira escondeu durante 16 anos.

Olavo: Por que escondeu? É muito simples. Já durante o regime militar, o pessoal de esquerda dominava a grande mídia completamente. Não havia uma pessoa de direita na direção de nenhum jornal. Aliás, no Estadão ainda havia; era o último. O resto dominava O Globo, Folha, Jornal do Brasil; era tudo pessoal de esquerda. E, ao mesmo tempo, o próprio pessoal de esquerda fazia a imprensa alternativa (que eles chamavam de imprensa nanica), que se dizia independente. Não raro, eram as mesmas pessoas que faziam [as duas coisas]. Por exemplo, Narciso Kalili, fundador de várias revistas de esquerda: ora Narciso Kalili estava na direção de alguma grande mídia, ora estava fundando mais um jornal alternativo.

Havia, então, este intercâmbio de pessoas de esquerda entre a grande mídia e a imprensa alternativa. E, com isso, eles tinham a hegemonia total do noticiário --- isto já no tempo da ditadura. O que o governo militar fez para acabar com isso? Absolutamente nada. Nunca mexeu com isso. No máximo censuravam uma notícia aqui e ali. Porém, hoje em dia, há o controle total do noticiário. Sabemos que a matança de cristãos é uma constante do mundo moderno. Segundo Michael Horowitz --- que é um sujeito judeu (não é cristão) e grande estudioso disto ---, [1:40] morrem aproximadamente cem mil cristãos por ano, em países comunistas ou islâmicos. Quantas vezes se vê isto noticiado na Folha de São Paulo ou n'O Globo? Nunca. Se o fato desaparece, não é levado em conta pelo povo na hora de criar suas opiniões. As opiniões são baseadas naquilo em que se acredita que é fato; se os fatos desaparecem, não há como julgar.

O Foro de São Paulo foi exatamente a mesma coisa. Por que ocultaram o Foro de São Paulo? Por que ele estava nascendo e precisava de sigilo, precisava crescer em sossego, como uma criança em gestação --- quando a criança está em gestação você não fica abrindo a barriga da mãe para ver como vai, deixa-a quietinha para crescer. O Foro de São Paulo foi crescendo em silêncio e toda mídia negava sua existência. Isto não foi incompetência, foi cumplicidade consciente --- isto é óbvio ---, porque eram todos de esquerda. No próprio O Globo chegou a acontecer isto: eu escrevi uns artigos sobre o Foro de São Paulo e o diretor de redação, Luiz Garcia, escreveu um artigo para me contestar. Eu perguntei à direção se podia responder. Disseram que eu podia: reduzi o argumento dele a pó de traque, porque é outro bobão que fala sem saber as coisas.

Felipe: Deve ser por isso que O Globo não fala d'O Mínimo.

Olavo: Ah não, O Globo não vai falar d'O Mínimo jamais.

Felipe: O livro passou um mês na lista dos mais vendidos do próprio jornal O Globo*, e o jornal* O Globo não deu uma nota sobre o nosso livro; é uma coisa extraordinária.

Olavo: O Globo foi o seguinte: o próprio Luiz Garcia, em uma entrevista, disse que todos os articulistas do jornal eram de esquerda, que eles davam todo espaço para a esquerda, e isto já havia começado a dar na vista. Então, pensaram em colocar um cara de direita. Havia o Roberto Campos, mas já estava velho e parando de escrever. Pensaram em colocar um outro sujeito no jornal, "um tal de Olavo de Carvalho" que ninguém conhecia. [E colocaram-me n'O Globo] Eu sei quem foi que me indicou para o cargo. Era um sujeito da alta direção e quando o velho aposentou-se, eu pensei que meu emprego havia acabado, eu não duraria ali três dias: dito e feito. Não vou dar o nome --- não vou citar nomes. Eu estou como meu filho Thales, quando uma vez apareceu um vaso quebrado e ele disse que havia sido o Gugu e um outro. Que outro? Ele disse que não iria citar nomes. [risos] Então, eu também não vou citar nomes.

Este domínio esquerdista na mídia é um fato, não é uma questão de opinião. Porém, as pessoas se prevalecem da fama de jornal conservador que alguns jornais tinham. A Folha nunca teve; a Folha sempre foi dirigida por um homem de esquerda, o Cláudio Abramo, que era trotskista. O Globo, durante uma certa época --- enquanto esteve vivo Roberto Marinho ---, apoiava, nos editoriais, o regime militar; mas quem dirigia o noticiário era a turma da esquerda. Uma coisa é a opinião do jornal, que está no editorial --- é o dono do jornal quem manda escrever aquilo ---, outra coisa é a orientação do noticiário, que é feita pela redação. É claro que o noticiário tem mais muito mais peso do que uma tripinha de editorial. Mas como os editoriais eram a favor do governo, então oficialmente O Globo era a favor do governo militar. E, então, as pessoas se prevalecem disso para fingir que O Globo é um jornal de direita! O Estadão deixou de ser de direita há muito tempo: era um jornal conservador, e eu ainda peguei este tempo, enquanto estava sob o controle dos Mesquita. Eles perderam o controle do jornal, e quando aconteceu isto, também falei que eu não durava três dias naquela porcaria. Batata! O Fernando Mesquita me escreveu dizendo que haviam vendido e passado o jornal para outro. Eu [logo] pensei que estava ferrado, meu emprego tinha acabado.

Toda mídia brasileira é um órgão de desinformação esquerdista, não de propaganda esquerdista. De propaganda esquerdista são os blogs como o vermelho.org, coisa deste tipo. Mas os grandes veículos são de desinformação, que é a informação que interessa aos comunistas, veiculada por um órgão que aparentemente não é comunista e que, portanto, tem uma certa confiabilidade nos meios não comunistas.

Felipe: Então, quer dizer, eles ficam criticando de fora e de dentro passam uma credibilidade maior...

Olavo: Claro! A mídia alternativa "desce o cacete" na grande mídia para se fazer de independente, mas ela tem de fazer isto porque, se a grande mídia adquire fama de ser pró-comunista, não serve mais como veículo de desinformação, só serve como veículo de propaganda; e a desinformação é muito mais importante do que a propaganda. Desinformação não é fazer propaganda comunista: desinformação é passar certas informações trabalhadas para influenciar decisões de governo. É uma coisa muito mais sutil, a desinformação é uma obra de engenharia. Leia o livro do general Ion Mihai Pacepa9, Disinformation, que saiu em 2013. Ele era o chefe do serviço secreto romeno, que era muito importante porque a União Soviética usava os serviços secretos dos países-satélites para operar no terceiro mundo. Assim, por exemplo: quem operava no Brasil era a Tchecoslováquia; quem operava no Oriente Médio era a Romênia, não a União Soviética. Então o Mihai Pacepa é o sujeito que fabricou [inclusive] Yasser Arafat: tudo quanto é sacanagem da União Soviética no Oriente Médio, ele sabe por participação direta.

Felipe: Olavo --- já quase encerrando ---, uma opinião sobre o futuro do Brasil. Você falou outro dia que a política Brasileira talvez fique dividida entre mensaleiros e narcotraficantes. Esta é a nossa expectativa?

Olavo: É! As grandes forças políticas do Brasil são o PT e o PCC. O PCC já está colocando "as manguinhas de fora" e quer sua fatia do poder estatal. Está até demorando muito, eu achava que isto já era para ter acontecido. Mas esta semana apareceu um sujeito, Marcola, dizendo justamente que querem a fatia deles. Os narcotraficantes podem trabalhar para a esquerda, eles têm uma certa dívida para com a esquerda, que, através do pessoal guerrilheiro, ensinou a eles as técnicas de guerrilha urbana, agitação e propaganda, organização etc.; tudo isto quando estavam presos juntos na Ilha Grande. Então há uma certa dívida.

Mas o pessoal narcotraficante é altivo, não aceita autoridade em cima deles. Eles aceitam um acordo com o PT, mas o PT querer mandar neles, [isto] não vão aceitar jamais. Então, daqui a pouco, as duas forças políticas serão estas: PT e PCC.

Felipe: E é possível Olavo, como muita gente pergunta, fazer a contra-revolução gramsciana, usar Gramsci contra a esquerda?

Olavo: Eu não diria usar o Gramsci contra a esquerda, mas uma coisa parecida --- não dá para explicar agora. É claro que é possível mudar isto, porém sempre temos de lembrar aquilo que dizia Napoleão Bonaparte, as condições para se fazer uma guerra são três: 1) dinheiro; 2) dinheiro; 3) dinheiro. O pessoal da esquerda consegue se organizar porque é financiado por George Soros, fundação Rockefeller, por órgãos da Igreja Católica do Vaticano, que enchem os sujeitos de dinheiro. Ademais, explora os seus militantes, toma o dízimo, 10, 20, 30 ou 40% do salário de cada um; é muito dinheiro que essa gente reúne e mais o dinheiro do narcotráfico, dinheiro das Farc.

Então, eles têm um pool de organizações com uma base financeira monstruosa. E se alguém quiser fazer uma organização de direita, quem é que vai começar por financiar? Por exemplo, se não há militantes profissionais, gente que está (para usar o termo comunista) desligada da produção e colocada ali para fazer revolução 24 horas por dia, não é possível movimento algum. Então, é preciso uma legião de militantes profissionais. Alguém teria de pagar, mas ninguém vai pagar.

O empresariado brasileiro está todo trabalhando para o governo. E a Odebrecht, uma empresa em quem o PT cuspia, agora está fazendo obras públicas em Cuba, financiadas pelo governo brasileiro. A reputação de quem eles não destruíram, compraram. Eu dizia isto: todos esses líderes regionais que as pessoas diziam que eram conservadores --- mas não eram coisa nenhuma ---, como Magalhães, Maluf, eram apenas [1:50] dinheiristas. Achavam que eles eram poderosos, mas eu dizia que o PT destruiria essa gente em cinco minutos e aqueles que não fossem completamente destruídos e marginalizados, virariam office-boys do PT. E viraram: Collor, Magalhães, Maluf, todo mundo. Poderiam ter sido o núcleo de uma direita, mas não foram porque esse pessoal vai só com quem paga mais, não são dirigidos por nenhum ideal nem convicção política --- então, acabou.

As fontes de dinheiro para uma organização política não existem. A fonte de dinheiro só pode ser uma: a cotização dos próprios militantes. Você fala isso no Brasil e ninguém quer dar um tostão furado.

Eu, evidentemente, não vou organizar nem fundar coisa nenhuma, isto não é minha vocação, nem minha competência. Mas se aparecer um líder político, coitado dele se tentar obter dinheiro da própria militância. As pessoas esperam ser pagas para trabalhar e não pagar para trabalhar. Este mérito a esquerda tem: todo militante do PT, até o mais pobre, dava os seus 10% por mês. No partido comunista, todo mundo dava também. Então, o único meio é a cotização. Você quer um futuro melhor para o Brasil? Então vamos juntar dinheiro e montar uma organização.

Outra coisa, o pessoal quer entrar direto na luta eleitoral: é inútil. Os cargos eletivos não são o poder; eles representam um poder que já existe. Se o sujeito não tem poder sobre a sociedade, não adianta ter um cargo eletivo, porque ninguém vai lhe obedecer. Não viram o Collor, a facilidade com que o tiraram de lá? Collor tinha a presidência da república, nominal, mas eles tinham as organizações: os sindicatos, escolas, igrejas, tinham tudo. Então, eles tiram a pessoa lá de cima. O verdadeiro poder está sociedade. Em vez de lançar um candidato, há que se tentar uma coisa menor, como tomar um jornal. Façam este exercício de lição de casa, entrar na redação d'O Globo, da Folha e tomar aquilo. Se não se consegue fazer nem isso, como é que se vai tomar o governo? Tente tomar uma estação de rádio ou tente fundar um jornal --- no mínimo isso.

Estudem como se formam os movimentos políticos, antes de se deixar levar por essa ilusão eleitoral. O cargo eletivo não tem importância. Muitas vezes, na história dos partidos comunistas (por exemplo, o partido comunista italiano), eles tinham chances de chegar ao governo, mas rejeitavam. Porque, diziam eles, queriam criar a base deles na sociedade primeiro. Diziam que não tinham ainda muita base e se tomassem o governo estariam ferrados, só apanhariam e levariam pedrada de tudo quanto fosse lado. Então, tem de ter o poder na sociedade e recusar cargos eletivos. Claro que se pode lançar um candidato, mas isso é só simbólico.

Felipe: Olavo, só para encerrar, uma última pergunta, para não dizer que eu não fiz nenhuma pergunta de internauta, tem uma aqui que é até engraçada, do Luis César de Araújo. Ele pergunta: quem é pobre, tem vários filhos e não tem dinheiro para o "Green Card", deve fazer o que quando vier o terror?

Olavo: Em primeiro lugar, o terror já está instaurado no Brasil, as pessoas se acostumam. O Brasil é o país onde ninguém pode sair na rua, todos têm de viver trancados dentro de casa com uma grade. Já são 70 mil homicídios por ano --- não mais 50 mil ---, todo mundo já vive com medo o tempo todo, o terror já está instaurado. No Brasil, não é preciso terror estatal, pois já existe o terror social e este terror social foi criado pela turma da esquerda, na medida em que protegeram bandidos, amarraram a mão da polícia e --- inspirados em Herbert Marcuse, Hobsbawn etc. --- fizeram, não uma glamourização, mas uma defesa moral do banditismo.

A Maria do Rosário10 chorou porque deram um tiro em um bandido, ela nunca chorou porque morreu um policial (o Brasil é recordista mundial de mortes de policiais, não sei se vocês sabem). Ela nunca chorou por causa de um pai de família morto por um assaltante, mas se matam um bandido, ela chora. É a mentalidade totalmente invertida destas pessoas. Fomentaram o banditismo durante meio século e agora temos o efeito: 70 mil homicídios por ano, e nem se preocupam com isso. Há debates sobre tudo, mas não há um único debate sobre como diminuir o número de homicídios no Brasil.

Em entrevista, o Marcola disse que em São Paulo, o número de homicídios diminuíra porque eles haviam mandado diminuir. Já se realizou a situação de M, O Vampiro de Dusseldorf11: os bandidos se reúnem para acabar com a bagunça. Em São Paulo, o PCC já é o poder, já é o governo de certa maneira. A situação já está assim e, pior, não existe para onde correr. A pessoa tem de sair do país quando quer ser uma força agente. Estando no exterior, existem mais meios de ação. Eu consegui, por exemplo, fazer o Seminário de Filosofia porque estou no exterior, estou livre da pressão imediata e tenho sossego para pensar o que fazer.

Meu falecido mestre de artes marciais, Michel Veber, dizia que antes de aprender a bater, a pessoa tinha de aprender a apanhar, somente quando parasse de doer é que se poderia começar a bater. Enquanto se está sofrendo, não adianta fazer nada. Porém, se é para simplesmente suportar a situação, o que as pessoas têm de fazer é associar-se, fortalecer-se uns aos outros, amparar-se, ter mais espírito comunitário. Porque o indivíduo isolado não pode nada. É o livro de Hemingway, To Have and Have Not --- o homem sozinho não pode nada.

Tem de haver mais espírito comunitário, mais ajuda mútua e mais amor ao próximo para ajudar a suportar essa situação. Quando vocês aprenderem a suportar e a enxergar a situação com todo o realismo, sem precisar enfeitá-la e sem apostar em esperanças vãs, começarão a ficar mais fortes. Ajudem-se nisto: pratiquem o amor ao próximo, a solidariedade, sob todos os meios possíveis de se imaginar e não de vez em quando; façam disto um modo de vida, o seu estilo de vida. Estamos aqui para nos amar uns aos outros, esta é a nossa finalidade. E, se estamos governados por pessoas que só têm ódio na cabeça, é com o amor entre nós mesmos que nos fortaleceremos e teremos uma força que eles não têm.

Esse pessoal todo só é aliado na hora de repartir o dinheiro, eles odeiam-se uns aos outros. Ao longo da história, quem matou mais comunistas do que Stálin e Mao Tsé-Tung? Ninguém. Em Cuba, toda a cúpula revolucionária foi para o paredón. Então, eles odeiam-se uns aos outros. A associação revolucionária é baseada no ódio a um fetiche, e o fetiche é móvel: ora é a Igreja Católica, ora o capitalismo, ora a moral burguesa, ora isso, ora aquilo. Mas é só ódio. Então, temos de nos fortalecer na base do amor, que é uma coisa que eles realmente não entendem. É isto que você tem de fazer. Se você é pobre e sem recursos para sair do Brasil, comece a praticar o amor ao próximo, aproxime-se das pessoas, perca o medo de ser bom. Leopold Szondi, o grande psiquiatra húngaro, dizia que o homem precisava de ter a coragem de ser bom quando tudo em volta o convidasse a ser mau. Ele disse isso com a experiência que teve no campo de concentração. Se você está num campo de concentração --- você vai morrer mesmo ---, não tem esperança, não tem para onde fugir. O que você vai fazer? Você vai praticar o amor ao próximo. Você foi colocado ali pelo ódio, querem que você odeie o seu próximo e odeie a si mesmo. Não é isso que você tem de fazer: você tem de praticar o amor ao próximo ali mesmo, na pior condição; porque isto é que vai te dar força de sobrevivência. Respondeu?

Felipe: Respondidíssimo. E tem de ler O Mínimo e dar O Mínimo de presente, para todo mundo entender o que está acontecendo e para entender as bases de tudo que o Olavo falou, e os fundamentos desta conversa. Muito obrigado, Olavo.

Olavo: Eu é que agradeço a você, Felipe, por esse trabalho extraordinário que você fez, e agradeço a gentileza de todos que compareceram.

Felipe: Obrigado. Eu quero avisar a todos que estão aqui presentes que o livro está sendo vendido ali fora por R$ 52,00, com o Tadeu, é só sair da sala e virar à esquerda. [2:00] E todos estão convidados a ler mais O Mínimo e a dar O Mínimo de presente.

Olavo: Quem quiser um autógrafo, faça uma lista, entregue ao Felipe, que eu mando um cartãozinho assinado para cada um --- mas tem de pôr o nome e o endereço.

Felipe: E não precisa pedir o meu autógrafo também; só se for louco suficiente.

Olavo: Podem pedir autógrafo do Felipe, ele tem um mérito extraordinário nesta coisa. O trabalho que ele fez não há dinheiro que pague. Deve ser desta dívida que o Eli Vieira está falando, é você o meu credor, Felipe (risos)!

Felipe: (risos) Obrigado, professor.

Olavo: Obrigado eu, tudo de bom, vão com Deus.

Transcrição: Nelson Souza Filho, Paulo Ricardo Costa Pinto, Tamas Souza, Charles Santos.

Revisão: Carla Farinazzi

Footnotes

  1. http://www.midiasemmascara.org/

  2. Artigo publicado em http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/14610-a-moral-do-brasil.html

  3. Artigo publicado em http://www.olavodecarvalho.org/semana/131013dc.html

  4. http://www.montfort.org.br/o-filosofo-camaleao/, em 06/08, às 09:42

  5. [NT: ministro da Educação nos dois mandatos do governo FHC]

  6. (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0512200124.htm, em 28/07/2014, às 10:45)

  7. Político francês de nacionalidade alemã do partido ecologista Die Grünen; líder estudantil em maio de 1968 em Paris.

  8. Trechos do artigo publicado em http://www.olavodecarvalho.org/semana/100830dc.html

  9. O general Ion Mihai Pacepa é o oficial de mais alta patente do bloco soviético que obteve asilo político nos EUA.

  10. Ministra da Secretaria de Direitos Humanos até 1/4/2014, reeleita Deputada Federal em 5/10/2014

  11. Filme alemão de 1931, do gênero suspense, dirigido por Fritz Lang