Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 222
22 de outubro de 2013
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.
Eu estou dando simultaneamente a aula normal do Seminário de Filosofia e a última aula do curso Sociologia da Filosofia. Então o que eu vou fazer aqui é dar um resuminho do que eu expliquei durante este curso e eventualmente introduzir outros temas mais ligados ao Seminário.
A ideia da sociologia da filosofia me foi inspirada pelo livro do Randall Collins que se chama Sociologia das Filosofias, no qual ele trata, sobretudo, da convivência, conflito e influência mútuos de grupos de filósofos, o que supõe, evidentemente, que a filosofia já está constituída, como atividade socialmente reconhecível, como uma atividade profissional. Eu achei que tudo isso estava muito bem feito, mas que precisava algo mais: a origem da filosofia na própria sociedade, quer dizer: que situações sociais sugerem e inspiram o surgimento da filosofia, e responder à pergunta se essas condições, uma vez observadas na Grécia, se modificam nas épocas subseqüentes. E a resposta é evidentemente 'sim'.
Podemos dizer que existe uma série de condições que definem a presença humana no planeta terra, condições que são idênticas para todos os seres humanos. E é evidente que, na inspiração originária da filosofia, essas condições estão também universalmente presentes, sendo então depois moduladas por condições mais locais e específicas que modificam e acentuam este ou aquele aspecto.
Dessas condições, a primeira é aquilo que Louis Lavelle denomina a presença. A presença do universo a nós e a nossa presença no universo. Essa é a condição mínima. O simples fato da presença é já a raiz de todas as perguntas filosóficas.
Porém, a este dado inicial se acrescenta um segundo, que é aquilo que Anaximandro chamou ápeiron. Não há um só ser humano que esteja excluído da condição em que o seu horizonte de consciência, o seu horizonte de conhecimento está delimitado por uma fronteira para além da qual não sabe nada. Eu a comparo sempre a uma bola de vidro iluminada boiando dentro de um mar obscuro. Ou também podemos representá-la como dois círculos, um claro e um escuro. Todos os seres humanos vivem essa situação na medida em que nenhum é totalmente ignorante nem ignora tudo e nenhum sabe o conjunto. Então essa permanente tensão entre o conhecido e o desconhecido é outro elemento humano constante da presença humana na terra, sem o qual seria inconcebível a atividade filosófica.
Contudo, há ainda outro terceiro elemento que é o seguinte. A fronteira entre esses dois círculos não é regular nem constante. Ela está mudando continuamente. Você descobre coisas que você não sabia, você perde conhecimentos, há de vez em quando algum tipo de penetração no desconhecido onde fatores mais profundos da existência humana se tornam visíveis para uma pessoa ou outra. E existem também penetrações do ápeiron no circulo do conhecido: acontecimentos que vêm do desconhecido e impõem sua presença inexplicável dentro da área que é tida como conhecida. Esses elementos são permanentes.
Há outro elemento que também é permanente e diz respeito à resposta que o ser humano dá a essa situação. Quando o ser humano é definido, na antiguidade, como animal racional, isso não significa que ele possua a razão na sua totalidade, mesmo porque o exercício da razão depende da conquista de uma série de instrumentos que só vêm no curso da vida, conquista esta que jamais termina, jamais está completado. Então existe a resposta da razão a todos os enigmas que surgem da presença do ápeiron e das relações entre o conhecido e o desconhecido. De modo que se entendemos a razão nos dois sentidos etimológicos (por um lado, a palavra grega logos significa, em princípio, a linguagem, mas ela também significa, especificamente em Heráclito, a lei que governa o universo, e, pelo lado latino, a palavra ratio indica a ideia de proporção e, portanto, da relação de equilíbrio entre todo e parte), entendemos que a razão funciona sempre na base de uma negociação entre o conhecido e o desconhecido. Se qualquer tentativa de racionalizar o conjunto do que existe necessariamente fracassa, ao mesmo tempo não temos como desistir do permanente esforço de equacionar todo e parte. Portanto, faz parte da estrutura da razão a admissão de uma margem de desconhecido na qual a razão não penetra, mas à qual não está também totalmente ausente. Embora a ideia da razão contenha em si a presunção de uma imagem do todo e, portanto, da consciência do lugar de cada uma das partes dentro do todo, ela nunca realiza essa ideia. Ela a realiza de modo imperfeito, porque sabe que está contida dentro do ápeiron de algum modo. Em cada época você verá uma tensão entre o esforço dominador da razão e o reconhecimento dos seus limites.
Todos esses fatores são permanentes, porém, o seu modo de aparecer em cada época varia. Porque há aí a interferência de uma segunda faixa de fatores. E essa faixa é a seguinte: a incompletude da razão humana, do nosso conhecimento racional implica que a parte faltante e a parte duvidosa sejam preenchidas com símbolos da razão, ou seja, com a ideia de uma ordem desconhecida que talvez exista. Essa ordem também pode ser concebida como uma total desordem e como um caos. Pode-se imaginar o ápeiron como uma espécie de abismo demoníaco onde nada faz sentido ou como um conjunto de forças hostis, mais ou menos como aparece em Schopenhauer: existe uma vontade irracional incompreensível da qual nós somos os objetos e as vítimas. Pode-se conceber assim, mas, em geral, supõe-se uma ordem que ainda não é conhecida e que talvez nunca seja conhecida, mas que está presente e que, de algum modo, inspira nossos esforços no sentido de estruturar a visão do conjunto. Ou seja, a ordem que conseguimos conceber se inspira na promessa de uma ordem inalcançável. Isso também é permanente no mundo.
De tempos em tempos aparecem alguns projetos de ciência universal que, em princípio, conteriam todos os fundamentos essenciais do conhecimento e estariam aptos a explicar tudo. Mas esses projetos não duram muito. E quando aparecem, eles já aceitam uma série de limitações e acabam também preenchendo o espaço com alguns símbolos da razão. A ideia do símbolo da razão aparece também na esfera da psicologia individual, da psicologia evolutiva, na seqüência do aprendizado do ser humano, onde a criança que está em processo de aprendizado vai adquirindo, gradativamente, algum domínio de processos de causa e efeito, meios e fins, etc., etc., mas ela sabe que isso é incompleto e tem naturalmente a insegurança criada por essa situação de incompletude, então ela aposta numa figura de autoridade: no pai, na mãe, em qualquer outra figura de autoridade, a qual é um símbolo da razão. 'É onde está a explicação que eu não possuo. Eu não sei por que as coisas assim, mas ele deve saber.' A confiança [0:10] no símbolo da razão é outro fator permanente, não existe nenhuma época e, creio, nenhuma pessoa que não tenha apostado algo em algum símbolo da razão. Ainda que esse símbolo seja negativo como em Schcopenhauer. A explicação de tudo, segundo Schopenhauer, está numa força obscura, irracional e impenetrável que governa o conjunto e da qual nada sabemos. Porque, como explicava Kant, nós só apreendemos os fenômenos e, por baixo do mundo dos fenômenos, há a coisa em si. A coisa em si, segundo Schopenhauer, é essa força obscura e irracional. Então ainda que esse símbolo da razão seja compreendido negativamente é ele que tapa o buraco daquilo que não sabemos. Há uma concepção, uma imaginação, uma expectativa de uma ordem oculta. Esse elemento também está sempre presente.
Acontece que os símbolos da razão não permanecem constantes. Eles são modificados porque dependem de qual é a expectativa de autoridade que existe em cada cultura e em cada comunidade. Por exemplo, todo o panteão dos deuses que existem nas várias culturas são muito diferentes uns dos outros, mas todos têm a mesma função neste sentido: todos são símbolos da razão que preenchem os buracos no nosso domínio racional das circunstâncias. E esses símbolos mudam por várias razões. A primeira seria o contato entre culturas diferentes. Aqui há um símbolo e ali há outro, e basta ocorrer um contato e então a funcionalidade desses símbolos já não é tão perfeita. Outra é o próprio decurso de prazo. O aumento e também a perda do conhecimento faz com que certos símbolos, que funcionavam em certa época, deixem de funcionar em outra. Porque, como explica, aliás, o próprio Randall Collins, nas comunidades mais fechadas, que têm pouco contato com o exterior, as suas crenças e expectativas fundamentais funcionam para os membros dessas comunidades como se fossem coisas do mundo real; como se fossem entes realmente existentes. Esses elementos não são pensados como ideia ou símbolo, mas como coisas reais. Não estão na esfera da cultura, mas na esfera dos fatos, por assim dizer. E, quando começa a haver o contato entre várias culturas, é evidente que esses símbolos deixam de ser coisas e passam a ser pensados como símbolos. Na hora em que passam a ser pensados como símbolos, podem ser sujeitos a análises críticas e a um desgaste. E esse é outro fenômeno praticamente permanente na história das várias culturas: os símbolos perdem a atualidade no instante em que se transformam em símbolos e podem ser pensados e discutidos como tais. Eles deixam de serem coisas e passam a ser meros símbolos. Já não são forças efetivas, constitutivas do mundo real, mas tornam-se então criações culturais: são vistas como criações culturais e são relativizadas. Por exemplo, o panteão dos deuses romanos: à medida que Roma se expandia e incorporava outras culturas menores ou mais fracas, ela também trazia os deuses dessas comunidades para seu próprio panteão. Então, o simples aumento do número de deuses relativizava todos eles. Numa etapa primitiva da formação romana os deuses eram compreendidos como forças efetivas existentes no mundo real que estão modelando nosso destino para além do que podemos controlar. Na medida em que se introduzem outros deuses, então os primeiros passam a ser apenas símbolos junto com outros, e essa nivelação geral dos símbolos produz então o advento do ceticismo, da descrença, do cinismo que, numa certa época, se apossa até dos próprios sacerdotes -- os próprios representantes do culto já sabiam que estavam, não se dirigindo a forças reais, mas, de certo modo, representando uma peça de teatro, que podia ter uma funcionalidade social e que, longe de refletir algo da ordem externa universal que abarcava a sociedade, refletia apenas a iniciativa ou a criatividade da própria sociedade. É um processo de subjetivação dos deuses (os deuses se tornam subjetivos).
Na medida em que isso acontece, há, evidentemente, uma crise, e esta crise, quando chega a um ponto extremo onde ninguém pode confiar em nada, pode sugerir (como de fato sugeriu na Grécia) a ideia de alguns indivíduos buscarem dentro de si uma ordem mais profunda e, a partir dessa ordem, fazer uma análise crítica da ordem social existente. Isso aconteceu na Grécia especificamente devido a um fator antecedente -- que, aliás, eu não mencionei no curso; estou mencionando agora -- que eram séculos de prática da arte retórica. Se não houvesse uma tecnologia da discussão que já estava disseminada entre as classes mais prósperas da sociedade grega, dificilmente teria surgido a filosofia. Porque a filosofia começa como uma confrontação dialética entre discursos retóricos possíveis -- você tem várias opiniões que estão aí circulando e alguém resolve fazer um repertório dessas opiniões e confrontar umas com as outras para ver qual é a mais certa. Naturalmente, o critério dessa confrontação não é dado pela própria arte retórica. A arte retórica é somente a arte da persuasão. Ela tem as técnicas pelas quais o indivíduo, através da palavra, logra persuadir os outros disso ou daquilo, ou induzi-los a esta ou àquela ação. Ela não comporta de maneira alguma a análise crítica dos próprios discursos, mas a necessidade e a possibilidade dessa análise crítica surgem da própria acumulação dos discursos retóricos. Quer dizer, por um lado há a crise dos símbolos, e, por outro lado, há a necessidade e a possibilidade de uma comparação crítica dos discursos colocada pela própria proliferação desses discursos ao longo dos tempos. Sócrates percebe em algum momento de sua vida que os retóricos conseguem persuadir as pessoas de tudo (persuadem que sim, persuadem que não), 'mas, afinal de contas, onde está a verdade no meio disso?' É uma pergunta que surge naturalmente da acumulação. Veja que a crise dos símbolos ocorreu em várias culturas, mas nem por isso surgiu a filosofia lá. A filosofia surge na Grécia porque a crise do universo simbólico é acompanhada do altíssimo desenvolvimento da arte retórica, que cria uma situação propícia ao surgimento de outro tipo de discurso: o discurso que não pretende persuadir ninguém de nada, mas que faz a triagem entre os discursos existentes.
Então esse é outro dos elementos que eu coloquei no meu livro Aristóteles em Nova Perspectiva como a sugestão de uma possibilidade de esquema metódico para a história cultural. Um discurso não surge enquanto o outro não esteja extremamente desenvolvido. Uma tribo de índio que teve relativamente pouco contato fora dela não existe sem discurso poético. Porque a unidade da tribo é garantida por uma narrativa das origens que explica a identidade e a razão da existência daquela tribo. Como, por exemplo, os índios do Xingu, para os quais existiu uma 'terra-sem-mal', da qual caíram, mas à qual estão voltando. Então, sem narrativa não existe comunidade. Porém, se se perguntar assim: quanto de discussão há dentro dessas tribos? [0:20] Uma quantidade relativamente pequena. Porque essas tribos têm, em geral, uma organização de poder hierárquico bastante estável e não há o que nós chamaríamos hoje conflito político. Claro que há certo coeficiente de discussões nas assembléias, mas não o suficiente para gerar uma arte retórica independente. Então enquanto não surge a arte retórica, também não pode surgir a arte dialética. Porque você não vai fazer uma triagem se você não tem os elementos que estão solicitando, por assim dizer, esse exame.
É a confluência desses dois fatores que possibilita e, de certo modo, exige o surgimento da filosofia na Grécia -- de um lado, a crise dos símbolos; de outro lado, o desenvolvimento da arte retórica que tinha chegado já a uma espécie de exaustão. Os discursos persuasivos eram tantos e tão autocontraditórios que era inevitável que alguém, algum dia, tentasse compará-los uns com os outros em busca de uma espécie de persuasão mais profunda. Persuasão que (isso é importante!) não fosse baseada somente na técnica retórica ou no poder persuasivo dos oradores, mas num fundamento objetivo. 'Por baixo de todas essas técnicas maravilhosas que vocês têm e que nos persuadem disso ou daquilo, deve haver uma verdade que possa servir de princípio de arbitragem entre esses vários discursos, independentemente do seu domínio maior ou menor da técnica retórica'.
A dialética surge com Sócrates na base da confiança em uma verdade mais profunda cujo conhecimento estaria para além do domínio da técnica retórica. Quando Sócrates cria a ideia do conceito (a definição estável de certos entes) já é um meio pelo qual ele transcende, ele domina, ele freia o poder da retórica. Para além das várias técnicas e habilidades retóricas existem os entes, os quais têm uma estrutura objetiva que se expressa no seu conceito. E essa estrutura não depende da técnica retórica, é algo que nos é imposto pela realidade. Quando, por exemplo, discute-se o que é a justiça, um diz que é uma coisa, outro diz que é outra, mas, por trás de tudo o que se está dizendo sobre a justiça, ela deve ser alguma coisa. E essa coisa que ela é está ao mesmo tempo subentendida e ocultada pelos vários discursos a respeito. O conceito efetivo de justiça criará não só um princípio de arbitragem, mas um princípio de ordenação hierárquica dos vários discursos. Os discursos retóricos a respeito da justiça não estão necessariamente errados, mas eles são parciais e incompletos de algum modo. E quando há o conceito da justiça é possível arbitrar os vários discursos retóricos concedendo a cada um a sua parcela de razão e integrando o todo num novo conjunto -- que é exatamente o que faz Sócrates.
Então, vemos que esses fatores que condicionam a presença humana na terra (os fatores constantes e estruturais da vida humana), somados a uma determinada situação local, geraram a possibilidade e a necessidade da filosofia. A partir daí a coisa começa a se complicar por outros fatores que são criados pela própria filosofia.
A primeira é a seguinte: se procurarmos uma raiz social da atividade filosófica, tudo o que encontramos são essas constantes. Porque se tentarmos associar o surgimento da filosofia a uma determinada classe social, nós nos deparamos com o fato bruto de que os três pais fundadores da filosofia vinham de classes diferentes. Sócrates havia sido um soldado e depois se tornou um empreiteiro; Platão era um filho da nobreza, portanto, um virtual candidato a ser governante de Atenas; e Aristóteles era um estrangeiro que não tinha sequer seus direitos políticos e civis em Atenas. Ou seja, três pessoas de condições sociais mais diferentes, que seria difícil de encontrar. Portanto, não temos como associar o surgimento da filosofia a uma classe social.
Também veremos que no mundo greco-romano os filósofos também estão em todas as classes sociais, desde um escravo como Epicteto até um imperador como Marco Aurélio, sem contar muitos outros tipos que podiam ser desde um filósofo da corte, como Sêneca, ou um mendigo, como Diógenes. Então não há como associar o surgimento da filosofia a uma classe social determinada.
Mas acontece que a própria filosofia cria uma classe social. O grupo dos filósofos eram apenas pessoas dispersas, mas, com o tempo, a classe dos filósofos vai se tornando algo identificável. A filosofia passa a ser um dentre outros elementos da ordem social. E esse processo se acelera e se aprofunda à medida que aumenta o número de filósofos e que a atividade filosófica vai se profissionalizando.
Já na Europa cristã o processo da profissionalização se acelera muito com a fundação das universidades. E as universidades passam também por um processo similar ao que houve na profissionalização dos filósofos antigos. As universidades começam como clubes de aficionados -- pessoas que simplesmente queriam saber qualquer coisa e então mandavam contratar certos professores, traziam ou iam até a cidade do sujeito e se organizavam para obter aquele ensino. Tanto que nesse período, em geral, o reitor ou diretor de universidade era um aluno, e não um professor. Não era uma classe de professores que criou uma entidade e a estruturou para exercer sua profissão. Foi exatamente o contrário: o público consumidor que criou as primeiras bases organizacionais da universidade. No começo as universidades não tinham nem sede (existe até hoje em Paris a chamada Place Maubert, que é a praça do mestre Alberto, onde Santo Alberto Magno dava aulas, exatamente como Sócrates nas ruas de Atenas). Mas o processo de organização e profissionalização é muito rápido aí. Tanto que logo em seguida surge o regulamento das universidades e, portanto, o regulamento da carreira universitária. E as universidades também haviam crescido muito, de modo que a filosofia já não é mais um encontro informal entre interessados, como havia sido no tempo de Sócrates, mas uma carreira universitária a ser seguida mediante a conquista de graus e autorização final para o exercício de determinadas profissões. Principalmente as faculdades de medicina, direito e teologia preparavam para essas três profissões e preparavam para a profissão universitária, onde o indivíduo tinha de galgar degrau por degrau na sua carreira até chegar ao topo. Esse topo era marcado por uma espécie de exame no qual o candidato se expunha a toda a congregação (a todos os alunos e professores) e tinha de responder a qualquer pergunta. Então era um desafio pelo qual poucos passavam, evidentemente.
Aí primeiro a filosofia passa a ser uma discussão entre profissionais. Automaticamente esses profissionais criam um vocabulário técnico que só eles dominam [0:30] e que torna aquilo impenetrável para o leigo. E o aluno que entrasse ali teria de adquirir esse vocabulário e as técnicas todas gradativamente. Em segundo lugar, o material que se discutia era naturalmente textos -- ou de filosofia, ou revelados, ou comentários da Bíblia. E todas as discussões se desenrolavam a partir desse material. A partir daí se desenvolve muitíssimo a análise de textos; em segundo lugar, a arte do debate. A arte do debate na universidade medieval já não é como no tempo de Sócrates: é um debate formal que tem de seguir certos preceitos de modo que o resultado final seja persuasivo para todos os que estão ouvindo. Persuasivo ou quase obrigatório: probante. Veja que essa ideia de provar não estava tão presente em Platão e Sócrates, os quais mais sugeriam do que provavam alguma coisa. E o próprio Aristóteles, que desenvolve bastante a arte da prova nas duas Analíticas, dificilmente prova alguma coisa; ele geralmente pára na esfera da análise dialética e as conclusões científicas ficam para depois. Mas, na universidade medieval, a ideia da prova adquire um valor extraordinário. As discussões não serviam apenas para esclarecer as pessoas, mas para fixar certas conclusões que, em seguida, pudessem servir de premissas para outras discussões. E elas só podiam servir de premissas se fossem aceitas como definitivas. Isso quer dizer que as discussões nas universidades medievais eram como uma construção em que as peças iam sendo assentadas umas depois das outras.
E o crescimento das universidades faz com que se tornem focos de agitação e, portanto, de poder político. A comunidade estudantil era enorme, em geral constituída de muitos estrangeiros, de pessoas relativamente mal adaptadas àquelas cidades medievais e que se defendiam, criavam identidade própria em oposição aos moradores locais. E isso foi ocasião de milhares de conflitos, alguns até bastante sangrentos.
Na medida em que as universidades crescem em poder político, evidentemente os poderes constituídos deste mundo tentam dominá-la de algum modo. Surge um conflito, que eu já mencionei em outras aulas, entre o Papado e os Reis, para ver quem é que manda na universidade. E isso se torna um elemento importante na formação dos Estados Nacionais, que é quando o Sacro Império Romano começa a se desmembrar, se desarticular, e surgem os poderes nacionais, cada um com uma pretensão imperial, de algum modo. E desse conflito a Igreja sai vitoriosa, ela conserva o controle das universidades.
Automaticamente, surge outra camada de intelectuais, fora da universidade, sob a proteção dos reis: é uma intelectualidade palaciana. Os principais pensadores da Renascença não eram professores universitários: Descartes, Bacon, Pascal, Malebranche não eram professores universitários. Eles estão em outro departamento. Na mesma medida surge a tendência de se abandonar o latim − que era língua internacional, e nas universidades era obrigatório existir uma língua internacional porque havia pessoas de trinta ou quarenta nacionalidades diferentes − mas como agora a atividade filosófica se desenvolve num meio aristocrático e nacional não há mais por que usar o latim, e começam a surgir obras em línguas nacionais. Em alguns países isso vem mais rapidamente, em outros, como a Alemanha, isso demora mais tempo. Mas a tendência é incoercível, e o diálogo inter-filosófico começa a se processar de outra maneira. Aquelas assembléias e debates públicos que eram freqüentadas por centenas de pessoas são agora substituídas por contatos esporádicos e ocasionais (visitas que uns filósofos fazem a outros filósofos, às vezes num país distante) e através das cartas e correspondências. Todos os filósofos dessa época têm um grande volume de correspondências. No caso de Descartes, as correspondências são em maior volume do que o restante da obra. Leibniz também tem uma infinidade de cartas. A arte da correspondência se desenvolve aí de maneira extraordinária.
E a partir daí se torna comum a ideia de que cabe aos filósofos reformar toda a cultura -- ideia que na Idade Média ninguém tinha. Cada filósofo que surge traz um projeto de reforma do universo inteiro das ciências, da educação e da política, do estado etc. Cada um deles vem com um esquema pronto. Nisso houve a interferência de outro fator que não tem nada que ver com o desenvolvimento filosófico que é o surgimento do movimento revolucionário entre os séculos XIV e XV. Isso aparece, sobretudo, na Checoslováquia com aquelas rebeliões dos hussitas e taboritas, que pretendem apressar o Juízo Final e implantar, a ferro e fogo, o reino da justiça, matando todos os maus e criando o reino dos bons. Essa presunção de determinar todo o curso da vida social também é algo que estava fora do imaginário tanto dos filósofos medievais quanto dos filósofos antigos. Mas de repente, pelo fato das independências nacionais, pelo fato de que agora a filosofia se desenrola num meio próximo dos centros de poder e pelo fato de que o movimento revolucionário havia criado essa possibilidade, tudo isso conflui para criar uma filosofia reformadora. Muitos ali vêm com a ideia de uma reforma geral, mas é claro que os de maior destaque são Bacon e Descartes.
Essa reforma geral se caracteriza em primeiro lugar pelo fato de que não se faz uma crítica sistemática da filosofia antiga ou medieval. Ela simplesmente inaugura outro campo de discussões totalmente alheio, de modo que você não tem nem como fazer uma comparação entre uma coisa e outra. Eles não estão falando das mesmas coisas que os filósofos antigos e escolásticos falavam. Eles levantam novos temas. E o primeiro tema já está ligado à ideia do poder e do controle que é a ideia da ciência e da tecnologia. Criar uma ciência que não tenha só um poder explicativo, mas que possa servir de base à criação de máquinas, instrumentos e processos etc., que possam melhorar a vida da sociedade, de algum modo. Essa ideia é muito clara em Descartes e em Bacon. E, motivado não por uma razão filosófica qualquer, mas por este projeto, surge a ideia de que a filosofia não deveria examinar a experiência humana tal como ela se apresenta para os seres humanos comuns, mas deveria limitar as suas observações àquilo que pudesse ser contado, pesado e medido. Ou seja, troca-se a experiência comum da humanidade pela experiência científica, a qual abarca um território muito menor do que o da experiência em geral. Os objetos sobre os quais versam o conhecimento não são os da vida da cotidiana: são objetos que só existem do ponto de vista científico, só existem de acordo com certos protocolos [0:40] metodológicos, que, uma vez fixados, delimitam então qual é o campo possível daquelas ciências. Isso é uma mudança absolutamente fundamental, da qual -- eu vejo hoje -- nem sempre estão conscientes os praticantes das várias ciências: de que os objetos das ciências não são os objetos da vida, da experiência humana, mas objetos que só existem sob certo aspecto, quer dizer, objetos abstratos, não são concretos. Abandona-se completamente a perspectiva da experiência concreta e há uma concentração então naqueles objetos abstrativamente delimitados. Esses objetos abstrativamente delimitados (que são os das ciências) são passados para as gerações seguintes como se constituísse o mundo real. E, por outro lado, constituem o mundo real de certo modo, porque, através dos elementos tecnológicos criados e possibilitados pela ciência, modificam o cenário físico.
O habitante do meio urbano nasce já num ambiente que é predeterminado e recortado pela ciência e tecnologia. Os objetos abstratos adquiriram uma presença concreta. Qualquer que fosse o poder explicativo dessas teorias que surgem na Renascença e depois, a modificação que elas introduzem no panorama social é muito maior do que o seu poder de explicação: elas criaram situações de fato que transcendem a sua própria possibilidade de explicação. Então vão surgir novos problemas e, sobretudo, a partir de Giambattista Vico, (filósofo que na época ninguém prestou atenção, mas que -- sabemos -- depois foi importante nesse período) surge a ideia de que o grande problema é compreender a sociedade humana, já não tanto a natureza.
A sociedade estava se modificando com tanta rapidez que ela passa a ser o problema, ela passa a ser o enigma. Então a intensificação da filosofia social nas décadas seguintes é um negócio assombroso: Montesquieu, Hegel, depois mais tarde o próprio Karl Marx, Augusto Comte. Em todos eles o foco é a sociedade humana, a qual não seria objeto de tanta curiosidade se não tivesse se modificado a ponto de se tornar o cenário do incompreensível. Antes a sociedade não era tanto o problema; o problema era a natureza, 'nós temos que dominar a natureza'. De repente, se dominou a natureza um pouquinho melhor, mas a sociedade humana se tornou um caos.
Toda a filosofia de Thomas Hobbes, por exemplo, é motivada por isso. Quando, na esteira do movimento revolucionário, surge a reforma protestante, e guerras de religião se espalham por todo o lado, o centro de preocupação de Thomas Hobbes -- que também tinha algum interesse nas ciências físicas, embora não tivesse nenhum talento para isso -- se tornou a ordem e a desordem na sociedade humana. E quando ele inventa o modelo do Leviatã, isto é, do estado onipotente, foi na intenção piedosa de colocar uma ordem no caos. Acontece que então ele inventa o modelo da ditadura perfeita que mais tarde se tornará um problema por sua vez.
Vejam como neste período estamos muito longe da inspiração originária da filosofia e vemos que os temas da filosofia são cada vez mais motivados por fatores histórico-culturais locais, às vezes até passageiros. Quer dizer, quando você está começando a entender o problema, este já mudou, já é outro. É claro que isso cria uma situação caótica. E essa situação caótica irá evoluindo até chegar ao século XX, na situação descrita por Wolfgang Stegmüller no seu livro A Filosofia Contemporânea, onde ele diz que o diálogo filosófico vai se tornando cada vez mais impossível porque a filosofia se fragmenta em atividades diferentes. Por exemplo, como você faria para comparar a filosofia de Karl Marx com a de Ludwig Wittgenstein? Eles não estão falando da mesma coisa, eles não têm os mesmos objetivos, seu vocabulário é totalmente diferente, então a unidade da filosofia se perde e se torna, não só atividades diferentes, mas incomparáveis e, às vezes, incomunicáveis.
Neste período o surgimento de motivações secundárias, que já não estão ligadas àqueles fatores permanentes que eu mencionei no começo, vai assumindo um papel cada vez mais decisivo no surgimento das filosofias. Por exemplo, inovações tecnológicas que, do dia para a noite, colocam problemas que Platão e Aristóteles nem podiam imaginar que poderiam surgir. Qual é o estatuto ontológico e antropológico de um clone? No tempo de Platão e Aristóteles não havia nem como levantar essa questão e seria o caso de se perguntar o que esta questão tem que ver com aqueles fatores fundamentais e permanentes? Nada. Essa questão só existe porque alguém inventou o clone. As intervenções profundas da tecnologia na natureza, no clima, na vida das espécies animais etc. tudo isso cria problemas que não são permanentes, que não são inerentes à condição humana, mas são inerentes a condições histórico-sociais e estas situações geram especulações filosóficas que tentam, ou aprofundá-las, ou respondê-las. Mas isto implica que as filosofias que respondam a essas situações não tenham em si mesmas os princípios de sua inteligibilidade. Porque a sua motivação vem completamente de fora e vem de outra ação humana, empreendida por outras pessoas. Você está raciocinando desde uma situação de fato, da qual você não pode recuar até os primeiros princípios que refletem a condição humana permanente na terra. Em geral, as discussões filosóficas criadas por essas situações não se reportam mais à filosofia antiga, nem à medieval e, às vezes, nem mesmo à renascentista. Elas adquiriram uma autonomia, e não há mais como comparar uma coisa com outra. Então se dissemina o modelo das filosofias que não têm em si próprias o modelo de sua inteligibilidade, mas que só podem ser compreendidas desde outra coisa -- desde um fato científico, desde uma situação qualquer, ou às vezes desde um elemento psicológico e biográfico.
É claro que o império da racionalidade aí já 'foi pras cucuias' faz muito tempo. Não há meio de se tomar uma posição racional no meio de tudo isso, a não ser que se consiga trazer de volta toda a imensidão de discussões caóticas à sua raiz nos seus elementos permanentes. É claro que o estudo da história da filosofia ajuda nisso, ou seja, saber como as coisas foram acontecendo. Mas acontece que a intromissão e a interferência de elementos não-filosóficos ou extra-filosóficos é cada vez mais intensa. A situação na qual o filósofo se encontra é determinada por fatores cujo controle e às vezes compreensão, não estão de maneira alguma ao seu alcance. Aí é que [0:50] surge uma necessidade da sociologia da filosofia, que é justamente o estudo da relação entre a filosofia e esses elementos externos que a condicionam, de algum modo.
Hoje em dia, eu diria que a sociologia é inerente ao estudo da filosofia; não há maneira de escapar. É claro que alguma referência à condição social dos filósofos já existe desde o início, nos próprios diálogos de Sócrates se explica o pensamento de um indivíduo em função de sua posição na sociedade ou da sua atuação anterior na política, e assim por diante. Mas são referências ocasionais e são usadas às vezes para explicar a atuação de um dos personagens dos diálogos, mas não do Sócrates. Tudo o que Sócrates, Platão ou Aristóteles dizem sempre contém em si os princípios que o explicam. E quando existe o elemento externo, esse elemento vem incorporado, analisado e começa a fazer parte da filosofia. Mas nas filosofias modernas os elementos externos, que não estão mencionados nelas, são cada vez mais importantes. Por exemplo, eu duvido muito que você possa entender a filosofia de Heidegger sem estudar um pouco a sua participação no partido nazista -- a qual não está mencionada na obra. Ele disse tal ou qual coisa, em função de determinada situação, que ele viveu como militante nazista. Em outros casos, a presença do elemento biográfico se torna cada vez mais importante. Dificilmente se entenderá a filosofia de Nietzsche sem colocar o problema de 'em que medida a sífilis interferiu na criação da sua filosofia?' Não podemos isolar essa filosofia do fator sifilítico ali presente. No mínimo, no mínimo, aquele estilo aforístico que Nietzsche usa não foi de livre escolha: ele não escrevia em aforismo porque queria, mas porque, à medida que a doença progredia, ele tinha poucas horas de lucidez por dia. Então ele tinha de condensar tudo rapidamente e no dia seguinte escrevia mais alguma coisa que não tinha nada que ver com o que tinha escrito na véspera. E esse caráter fragmentário e compacto dos escritos de Nietzsche tem algo a ver, não com a sua filosofia, mas com a sífilis. A importância desses elementos psicológicos se torna cada vez maior.
Agora, pergunto eu: o que sabemos da psicologia ou da biografia interior de Santo Tomás de Aquino ou do próprio Aristóteles? Quase nada. E, no entanto, entendemos a filosofia deles. São essas situações que nos forçam a uma sociologia e até a uma psicologia da filosofia.
Acontece que o indivíduo que seja formado na filosofia sob a influência dessas escolas mais recentes nunca vai entender esse processo porque já é uma vítima dela. Ele não consegue sair de dentro dela. Se ele for estudar Platão, vai fazê-lo conforme Jacques Derrida ou outro fulano, e nunca se lembrará de fazer o contrário: mas o que Platão diria desses camaradas? Ou seja: Analisá-los do ponto de vista platônico ou aristotélico.
Um elemento que facilita um pouco esse tipo de análise é a continuidade de existência de uma escola tomista que, a princípio, absorve Aristóteles, que continua presente e continua julgando a filosofia contemporânea à luz do que diriam Santo Tomás e Aristóteles. Mas é claro que isso também não basta. Mesmo porque pode-se fazer essa mesma análise sob aspectos diferentes daqueles que foram destacados pela escola tomista. Eu mesmo faço isso. Às vezes, baseio-me em Santo Tomás, às vezes em Aristóteles, mas eu tento não ser programaticamente aristotélico-tomista, porque existem possibilidades que eles não exploraram e que nem por isso são desprezíveis. Mas, sobretudo a ideia de que o tempo posterior é o juiz do passado é uma ideia que hoje está profundamente arraigada em nossa cultura. E qualquer sujeito que tenha estudado Michel Foucault já acha que é superior a Platão porque Michel Foucault veio depois. Quando, na verdade, a filosofia de Michel Foucault não tem o seu princípio de inteligibilidade em si mesma. Se você não investiga a biografia de Foucault você não entende o que está acontecendo ali. De maneira que se se perdesse todos os dados da biografia de Nietzsche, de Michel Foucault, de Derrida, as suas filosofias se tornariam incompreensíveis.
Foi mais ou menos isso que explicamos durante este curso. Esse é um tema ao qual vou ter de voltar muitas vezes, com o reconhecimento de que este curso não foi propriamente de sociologia da filosofia, mas um curso sobre as exigências metodológicas de uma sociologia da filosofia -- a qual não pretendo realizar, mas que fica em aberto para aqueles que possam aprofundar esses estudos.
**************************************************************************
Aluno: que diferenças e semelhanças, se as há, existem entre a crítica socrática desta vasta matéria acumulada de discursos retóricos e a crítica de Aristóteles sobre o conjunto dos discursos filosóficos produzidos pelos pré-socráticos?
Olavo: Não só pelos pré-socráticos. Veja: o método de Aristóteles é sempre o seguinte: ele parte das opiniões estabelecidas e, através de um exame dialético, vai procurando quais são os fundamentos comuns que estão embutidos em todas as opiniões diversas. De modo que não se trata tanto de uma crítica, mas de uma absorção. As opiniões existentes são o material básico do qual Aristóteles parte, e não é isso o que Sócrates faz. Sócrates coloca em dúvida cada uma das opiniões, e vai testando, testando, testando, para ver se o seu interlocutor não acaba testemunhando contra a sua própria opinião, o que acontece com certa freqüência. De modo que o exame dialético de Sócrates é eminentemente crítico e o de Aristóteles, não é. A ideia de Aristóteles é que, por baixo de uma variedade de opiniões, existem alguns princípios comuns que não foram percebidos e que podem rearticular o conjunto daquelas opiniões, inclusive revalorizá-las, colocando cada uma no seu devido plano e reconhecendo a cada uma a sua parcela maior ou menor de realidade. Em Aristóteles, a dialética se torna realmente uma técnica científica. Essa é eminentemente a diferença. Quando examina uma questão, Aristóteles toma as várias opiniões a respeito como se fossem várias perspectivas possíveis -- olhando de cá parece tal coisa, olhando de lá parece outra e, do cruzamento desses vários, algo do objeto acaba transparecendo. Até hoje não existe nenhum método melhor do que esse. A própria acumulação de contradições faz com que apareça, do objeto, algo que está para além desses vários discursos. É como um desenhista que, para olhar o objeto, o faz de várias posições, mede-o, compara-o. Não é tanto uma análise crítica quanto uma comparação e articulação de opiniões diversas. Na verdade, tudo o que depois se entendeu por método científico não passa disso: articular várias hipóteses e confrontá-las com o próprio objeto.
Aluno: no meu local de trabalho todo mundo está lendo O Segredo, e ele não sabe o que fazer com essas pessoas.
Olavo: Sugestão: bata nelas. O que fazer com um sujeito que está levando a sério essas coisas? [1:00] Acho que eu não teria capacidade para lidar com isso. É lamentável que você esteja trabalhando neste lugar. Outra sugestão é mudar de emprego, onde as pessoas estejam lendo Tio Patinhas ou algo mais científico. Eu sinceramente não sei que conselho lhe dar. Quando você diz não troco uma carta de Santa Catarina de Sena por dez Segredos, eu também não. Mas se você está lá discutindo com um jumento. Veja: a nossa capacidade de ajudar pessoas que não querem ser ajudadas é nula. Eu posso lhes ensinar alguma coisa porque vocês querem apreender. Mas, se vier todo mundo aqui com o firme juramento de não apreender nada, eu não vou poder fazer mais coisa nenhuma. Quer dizer, educação é uma colaboração, não é um adestramento, uma imposição. Aquilo que você pode ensinar na base do adestramento e da imposição é uma coisa muito limitada: você só pode ensinar comportamentos. Seria um ensino muito elementar, mais ou menos como treinar um cachorro. Esse é o limite do adestramento. Agora, se você quer realmente que uma inteligência desperte dentro das pessoas e que elas comecem a compreender, isso só é possível numa relação de amor e compreensão, fora disso não tem jeito. Seria o caso de perguntar 'você gosta tanto dessas pessoas? Você quer salvar todas aquelas almas?'Então você vai levar vinte anos. Você precisa ver se esses são os objetivos prioritários de sua vida. Essas coisas dão muito mais trabalho do que as pessoas imaginam. Às vezes você faz com que a pessoa mude de uma opinião, mas o resto continua tudo contaminado. Então o serviço não é mudar a opinião de ninguém, é despertar a inteligência profunda e a capacidade de o individuo admitir aquilo que ele já sabe; o testemunho é a base inclusive do método platônico: apelar ao testemunho do seu próprio interlocutor. Sem isso nada é possível fazer. Então eu acho que é uma situação desesperadora.
Aluno: eu sou de Ribeirão Preto e sou seu aluno há quase dois meses. Adquiri a coleção completa da História Essencial da Filosofia e tenho a curiosidade de se assisti-las em paralelo com as aulas do COF pode causar alguma confusão.
Olavo: De maneira alguma. Ao contrário, vai ajudar. Porque ali não se trata de um curso de filosofia, mas da transmissão de cultura filosófica. Alguma cultura filosófica sempre pode ajudar.
Aluno: outra dúvida é que às vezes tenho dificuldade em entender o que o senhor fala. Parece que é um português avançado e por isso é necessário ouvir a mesma parte várias vezes até compreender as ideias. Será que isso vai melhorar?
Olavo: Você vai melhorar. Você vai adquirir aos poucos esse hábito. Mas é importante que você assista às aulas pela ordem: primeira, segunda. Você pode assistir à aula de agora (eu sempre recomendo isso para quem acabou de entrar), mas não ligue muito se você não está entendendo. O que importa é ir entendendo as primeiras e aos poucos elas vão emendando. Eu não acredito que as primeiras aulas ofereçam alguma dificuldade vocabular. Mas, à medida que a coisa avança, eu tenho que contar com o que os alunos já sabem das aulas anteriores. Eu não posso começar sempre do zero. Então eu estou falando já dentro de um contexto que a maior parte dos alunos estão acompanhando. Àqueles que não estão eu digo: não tem importância, vai acompanhando desde a primeira aula. E você pode colocar perguntas sobre as aulas anteriores: 'Estou ouvindo aqui a terceira aula. Surgiu esse problema'.
Aluno: se a compreensão da tradição filosófica é uma condição do método filosófico, como poderíamos entender essas filosofias modernas como filosofias em sentido mais estrito? Se não há comunicação delas com a tradição filosófica que a antecede, em que sentido podemos dizer que são filosofias e não apenas um pensamento ou uma opinião.
Olavo: A ausência de diálogo com a filosofia antiga é algo que se observa no início da modernidade -- Descartes, Bacon etc. Eles são especialistas em, ou não entender a filosofia antiga, ou ignorá-la, ou às vezes (como faz Descartes) em copiá-la dizendo que está fazendo outra coisa. Mas, nos séculos mais recentes, esse diálogo voltou. Praticamente todos os filósofos do século XX escreveram alguma coisa sobre filosofia antiga ou medieval. Heidegger, por exemplo, tinha uma tese magistral sobre Duns Scot. Jacques Derrida escreveu coisas importantes sobre A República de Platão. Esse diálogo existe. O problema é que cada um desses propunha uma nova perspectiva a respeito dos autores antigos, mas ninguém se coloca sob o julgamento dos autores antigos. A pergunta é sempre 'o que a nossa época pensa da antiga?', eu digo 'o que a antiga pensa da nossa?'. Essa é a deficiência que eu sempre encontro: as pessoas não se colocam sob julgamento; elas sempre estão julgando. Colocam-se num patamar superior e às vezes oferecem interpretações que do ponto de vista do próprio autor antigo teriam muito pouco interesse. Imagine o que pode ser Platão visto pelo desconstrucionismo: é um Platão completamente diferente. Mas se você não coloca a pergunta 'o que Platão diria disso?' não é um diálogo, mas uma remodelagem, o sujeito está criando uma filosofia antiga. Mas − note bem! − isso não é a regra geral, não são todos que o fazem. Porque, ao mesmo tempo em que existem filósofos modernos interpretando os filósofos antigos da sua própria maneira, há hoje um trabalho de erudição que é feito, não propriamente por filósofos, mas por historiadores da filosofia, que é algo absolutamente magistral e que freqüentemente corrige essas interpretações feitas pelos filósofos.
O sujeito que tem uma filosofia original e criadora dificilmente é um especialista e conhecedor profundo de outra filosofia. É muito freqüente que ele deforme a filosofia dos outros, porque ele a está usando apenas como instrumento para expor a sua. Um livro característico é o de Heidegger sobre Nietzsche: quatro volumes onde não vi nada de Nietzsche; só vi Heidegger. O Nietzsche para ele é uma espécie de germe do Heidegger. Então há ali interpretações que não podemos aceitar como interpretação da filosofia de Nietzsche, mas como ideias de Heidegger, até que são interessantes. E isso também não é uma grande novidade, pois o próprio São Tomás de Aquino às vezes expõe Aristóteles de um jeito que não é bem aristotélico, mas é a filosofia de São Tomás de Aquino preenchida com palavras de Aristóteles. Isso pode acontecer. Mas, como contrapeso a isso, há um trabalho enorme de historiografia e de filologia no sentido de restaurar essas filosofias antigas na sua verdadeira fisionomia. Há prodígios de história da filosofia hoje. No meu livrinho sobre Aristóteles, citei vários livros sobre Aristóteles que são coisas absolutamente magistrais. Não são obras de filosofia; são obras de filologia, onde o autor está tentando restaurar a verdade dos textos no seu devido contexto. Então não vejo por que devamos nos orientar pelo que Jacques Derrida diz de Platão ou Heidegger diz de fulano ou cicrano porque existe gente especializada nisso -- o que não é caso deles.
Aqui Juliano Muller apresenta uma análise muito interessante. Ele pega uma frase qualquer, como 'o criminoso é uma vítima da sociedade', e começa a desdobrar as várias acepções que isso pode ter conforme o contexto e que é, evidentemente, o procedimento aristotélico característico. Uma frase, dita em contextos diferentes por pessoas diferentes, significa algo completamente diverso. Antes de você articular esses vários sentidos não há como discutir a tese. Eu lembro, por exemplo, a discussão que surgiu na Bíblia quando o pessoal disse que o homossexualismo é antinatural. Ele é antinatural no sentido antigo, e não no sentido moderno. Porque a concepção antiga da natureza é uma concepção global, vem desde os primeiros princípios, uma ordem divina que governa a natureza etc. Na modernidade se entende a natureza como o reino de puros fatos da ordem física, totalmente desligados de quaisquer fins e valores, [1:10] portanto, dizer que o sujeito é anormal no sentido da ciência moderna é muito mais grave do que dizê-lo no sentido antigo. Neste caso, os homossexuais teriam motivo para se sentir ofendidos. E foi difícil explicá-lo às pessoas, porque não têm esse hábito. Elas acham que se leram a palavra 'natureza' na Bíblia é a mesma coisa que ler essa palavra no livro do Dr. Richard Dawkins, quando eles realmente não estão falando da mesma coisa.
Então, o que você escreveu aqui, está perfeito. Coloque isso no fórum do seminário que pode ser útil para muita gente. Este tipo de análise tem de ser feita tantas e tantas vezes que ele se torne instintivo em você. Quando você lê, automaticamente você pega as várias acepções, as sutilezas e os hiatos entre as várias significações. Discutir qualquer ideia ou qualquer opinião antes disso é tentar agarrar o ar. Essa é a providência preliminar. E entender em que outros sentidos se poderia dizer a mesma coisa. E se há outras pessoas dizendo a mesma coisa com outros sentidos e em que medida aquilo que o individuo está falando é resposta a algumas dessas outras acepções. Aí o texto começa a ter uma densidade para você, não são mais apenas palavras. É justamente da oposição entre essas opiniões divergentes, às vezes expressas nas mesmas palavras, que você conseguirá ver algo do objeto que está para além do discurso. Se você não esgota as possibilidades do discurso o objeto não aparece. Raymond Abellio dizia que, antes de apreender alguma coisa, você precisa fazer um acúmulo intolerável de contradições. Só quando você tem um monte de contradições articuladas em torno do objeto é que este objeto começa a falar. É assim que Abellio explica, mas é assim que fazia Aristóteles. Eu acho que você está aprendendo a fazer aqui, e está muito bem.
Ele também levanta a questão do horizonte de consciência de quem falou. Isso é coisa básica. E o horizonte de consciência começa onde o sujeito não está vendo -- o que ele não sabe e deveria saber por ser pertinente ao assunto. Aos poucos você começa a delimitar. Por exemplo, há pessoas que, falando dez minutos, você fica sabendo o horizonte inteiro de leituras dela. 'Esse sujeito só leu tal, e tal, e tal coisa, ele ignora toda essa outra tradição de estudos'. Você consegue desenhar o horizonte de consciência dele e aí você entende do que ele está falando, e entende também as limitações do que ele está dizendo. Esse exercício tem de ser feito milhares de vezes até ele se incorporar na sua inteligência de tal maneira que você faz isso automaticamente. É claro que, quanto mais burrinha é a pessoa da qual você está falando, mais fácil você delimitar o horizonte de consciência dela. Mas, se você está lendo Heidegger, não é tão fácil, mesmo porque ele leu cem vezes mais do que você, está sabendo muito mais do que você sabe, então não há outro jeito de compreendê-lo senão adquirindo os conhecimentos que ele tem e que lhe faltam.
Alunos: os conceitos abstratos que a nova filosofia vem criando, em oposição aos conceitos anteriores, que eram sensíveis. Agora a pessoa começa a pensar a partir desse conceito abstrato, como o senhor colocou na aula. Queria exemplos.
Olavo: Não, os termos não são exatamente esses. Veja: desde Aristóteles até o fim da Idade Média se acreditava que a forma externa de um ente manifestava sua forma interna, ou a sua forma inteligível, ou dito de outro modo, a fórmula daquele ser. E você o definia nesta base. A partir do momento em que, com Descartes e Bacon, se começa a aceitar somente os caracteres mensuráveis, então a ideia da forma inteligível desaparece e o objeto é conhecido somente pelas suas aparências externas mensuráveis. Contra isso, Leibniz alegava o seguinte: se você pegar só os aspectos mensuráveis, você não obterá nenhum objeto real: terá apenas um conjunto de aparências. Mas esse conjunto de aparências, uma vez descrito e delimitado, é objeto de estudo de uma ciência. Isso quer dizer que uma ciência pode perfeitamente estudar objetos dos quais não tem a menor ideia do que seja. E até a pergunta 'o que é?' não faz mais sentido, porque se está lidando apenas com a comparação entre aparências.
Por exemplo, você pode criar um edifício inteiro de biologia sem saber o que é um ser vivo. Você não precisa resolver essa questão. Você a resolve pelo método. Quer dizer: a nossa ciência só investiga isso, e mais isso, e mais isso. Se isso corresponde à fronteira real entre os seres vivos e os não-vivos, não interessa. Então os objetos das ciências são definidos, não pelos seus caracteres intrínsecos, mas pela grade metodológica pela qual são enfocados. São objetos inventados pelo método. Se, depois que se fez isso, você consegue dar ao conhecimento assim obtido alguma aplicação técnica, isso prova, não a veracidade, mas a funcionalidade e adequação da ciência que foi assim construída. Funcionalidade e adequação é tudo quanto interessa. O próprio critério de veracidade não existe mais. Não interessa saber se é verdadeiro; interessa saber se funciona. E isso começa nitidamente com Descartes e Bacon. Isso serve para o desenvolvimento da tecnologia, mas não resolve nenhum problema filosófico. Acontece que a tecnologia é algo que progride tão rapidamente que de certo modo as perguntas filosóficas são deixadas para trás. Porque a própria tecnologia sugere novas perguntas, e novas, e novas, e daqui a pouco a pergunta filosófica fundamental − 'quid est?' − desapareceu. E pior ainda, toda essa rede de conhecimentos criados apenas da comparação entre aparências medidas acaba sendo passada às pessoas como se fosse o universo real, quando evidentemente não é. Ela é apenas a parte do universo que é manipulável pela tecnologia -- uma fração ínfima da realidade. Por exemplo, para fazer um clone, você não precisa saber quais são os caracteres que definem o humano e o distinguem do não-humano. Você apenas sabe fazer um parecido. E a atividade de produzir ou modificar as aparências é algo tão veloz que se superpõe às perguntas fundamentais e acabam desaparecendo. Então cria-se uma situação em que você tem um domínio tecnológico aparente das coisas -- e ele até certo ponto funciona mesmo -- mas você não sabe com o que está lidando. Isso cria uma nova situação, que não faz parte da condição humana permanente (é uma condição local e historicamente condicionada), mas que pode ocupar todo o horizonte de consciência das pessoas de modo que não pensem nada fora disso.
A funcionalidade, a adequação e a eficácia tecnológicas [1:20] criam por si um novo mundo de aparências, e, para as pessoas que são criadas no meio urbano, isso é o mundo real. Mas é claro que não é real de maneira alguma. É o mundo no qual a consciência dessas pessoas está inteiramente determinada por um conjunto de convenções metodológicas criadas por intelectuais universitários. Você vive dentro de um mundo criado pelos cientistas, e eles delimitam o que você pode ou não pode pensar. E hoje em dia existe o problema da fraude científica que se universalizou. Esses dias alguém colocou no Facebook a história de um sujeito que criou uma pesquisa totalmente imaginária, com citações de autores inexistentes, e o trabalho foi aceito por cento e cinqüenta revistas científicas. Isso mostra que o critério de seleção dessas pessoas é absolutamente estratosférico. Também há o fenômeno de que em certas áreas do conhecimento as pesquisas estão tão especializadas ou fragmentadas que o chefe de departamento não pode entender a pesquisa que o sujeito está fazendo: ele tem que aprovar ou desaprovar a verba no escuro. Isso acontece a toda hora. Então o projeto de controle tecnológico do mundo criou um descontrole da própria tecnologia e da própria ciência; criou uma confusão dos demônios. Nessa confusão é quase inevitável que a fraude se propague para tudo quanto é lado e o resultado é que a confiabilidade das ciências 'vai para as cucuias'. Isso não quer dizer que todo cientista importante não tenha consciência das limitações filosóficas daquilo que está fazendo. Alguns têm. Mas não é isso o que se transmite à vida diária das populações.
A população urbana vive na ignorância dos elementos fundamentais da existência humana. Ela já foi criada dentro de um ambiente artificial e imagina que aquilo é natural, que sempre foi assim, e que tudo o que veio antes era atrasado, primitivo e que 'nós é que estamos na realidade'. Não, é o contrário: nós é que estamos dentro de um mundo bastante artificial que vive em grande parte de ilusão. Por outro lado, não se pode esquecer o seguinte: a ciência e a tecnologia não têm só a sua atuação própria no seu campo. Elas se incorporam ao sistema de poder. As ciências são árbitras, por exemplo, na discussão sobre uma nova lei. Chamam-se os consultores científicos para que digam se aquilo está certo ou está errado. Isso quer dizer que a ciência faz parte de um sistema de poder. O que cria novas situações mais complexas ainda. Para uma pessoa criada dentro dessa atmosfera a pergunta pelo seu testemunho interior é algo que nem faz sentido. O indivíduo acredita mais em frases ou sentenças que ele leu num livro de ciência do que naquilo que ele está vendo. Aquilo que ele está vendo não importa mais. Porque o mundo com que as ciências lidam não é o mundo que estamos vendo e no qual estamos vivendo. É o mundo recortado de acordo com a metodologia daquela ciência.
Até os anos 20 e 30, por exemplo, havia muita gente discutindo esse problema de maneira muito séria. Então, quando se desenhava o novo campo de uma ciência, as pessoas tinham a preocupação de marcar toda a articulação dela com os campos circunvizinhos, de maneira a saber quais são as limitações daquelas pesquisas. Mas isso já virou bagunça há muito tempo. Por exemplo, a preocupação de Hans Kelsen, ao criar a teoria pura do direito, era distinguir o que era o direito e o que são outros fenômenos que interpenetram no direito. Uma preocupação muito justa. E isso gerou décadas de discussão até que Miguel Reale resolveu o problema. Mas, hoje em dia, as pessoas não têm mais essa consciência. Por exemplo, o behaviorismo parte do princípio de que toda a vida interior, toda a vida psíquica não interessa; interessa só a conduta externa observável e mensurável. Isso existe? Alguém tem uma conduta externa observável e mensurável? Ninguém tem. A conduta externa mensurável é uma aparência dentro do conjunto da pessoa. É uma aparência mais acessível ao estudo científico do que o conjunto da pessoa real, sem sombra de dúvida. E essas delimitações são feitas justamente para facilitar o estudo. Só que em seguida os objetos que são assim delimitados e que são apenas aparências parciais são tomadas, pelas gerações que foram educadas dentro disso, como sendo as únicas coisas reais. Chega-se a esses absurdos, como este cientista brasileiro Nicolelis, que diz que Jesus Cristo era apenas um esquizofrênico que ouvia vozes. Bem, do ponto de vista da ciência dele, que estuda certos processos cerebrais, pode até parecer isso. Mas como é que por esquizofrenia se poderia produzir milagres, por exemplo? Há de ter outro processo qualquer em jogo que não tem nada que ver com sua pretensa esquizofrenia. Mas para ele isso é real. É claro que ele está no mundo da lua. Quando vemos, por exemplo, o fenômeno dos milagres eucarísticos (a hóstia que vira sangue e que examinada mostra que tem tecido cardíaco vivo ali dentro), como em Ricardo Castañón. O que isso pode ter a ver com um processo esquizofrênico na cabeça de quem fez isso? Como é que o sujeito esquizofrênico pode produzir isso? É claro que não. Mas para ele o mundo daquela ciência que ele estudou é o mundo real. Ele não entende que aquilo é um recorte abstrativo, em grande parte convencional, feito dentro de um campo imenso de experiências que abarca aspectos que são absolutamente inacessíveis à sua ciência. É o caso de que a formação científica coexiste com uma incultura monstruosa e começa a raiar a idiotice pura e simples. Então é natural que se prolifere a fraude e que se prolifere o apelo a procedimentos autoritários para impor o que não se pode provar. Você não consegue vencer a discussão, então demite o fulano. Isso hoje em dia é normal. Então o reino da razão já virou o reino da confusão há muito tempo.
Aluno: dentro do que o senhor falou podemos dizer que há neoateistas como Richard Dawkins, em livros como The God Delusion, que levam este fetichismo do que o senhor de grades metodológicas, que foram criadas através dessa inversão do pensamento filosófico ao extremo. Porque ele chega a discutir em seus livros questões fundamentais para o ser humano através de métodos que não são adequados.
Olavo: São métodos que não alcançam, claro, que são completamente inadequados. Existe um processo de auto-hipnose dentro da formação científica usual, em que os objetos delimitados por aquela ciência começam a adquirir, para aquele indivíduo, a validade e a presença de objetos reais. [1:30] Mais ainda (e aí entra a lei de Randall Collins): quanto mais isolada a comunidade, mais as suas crenças parecem objetos do mundo real, e não crenças em símbolos. Para compensar a formação de um sujeito, por exemplo, em biologia, ele teria de estudar história literária, para ver o que sua biologia pode fazer para resolvê-lo. Não pode fazer absolutamente nada. Só por ter essa dupla informação você já entende que não está lidando com objetos reais, mas com recortes metodológicos. Mas quantas pessoas fazem isso? A aquisição de uma formação científica é tão trabalhosa que consome vinte e quatro horas do dia do sujeito. Ele não tem tempo para pensar em mais nada -- só se for um gênio. Alguém como David Berlinsk, cuja formação era de matemático, mas ao mesmo tempo era um escritor de ficção, tinha conhecimentos de história da arte, de história da música, de tudo. Bem, o cara é um gênio. Mas você não pode exigir que todo cientista de ofício seja um gênio. Mas o que a gente pode exigir é que ele fique quieto para não falar daquilo que não sabe.
Aluno: em geral o cientista quando fala algo fora da sua área diz bobagem.
Olavo: Mas é evidente. Por exemplo: certa vez tive uma discussão na televisão com o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão. E a discussão era sobre astrologia. Então havia alguns astrólogos profissionais, e havia ele e eu. Do meu ponto de vista os dois grupos estavam dizendo besteira (falando coisas que não sabem). Mas a primeira coisa é a seguinte: se você fala de astrologia, a astrologia é algo que diz respeito a relações entre fenômenos celestes e terrestres. Astronomia estuda fenômenos terrestres? Não. Então quarenta anos de estudos de astronomia não permitem que você diga disto aqui. Você não sabe se isto existe ou não. Você nunca o estudou. Nunca colocou o problema. E, evidentemente, quando eu disse isso o homem levou um susto, tanto que saiu do programa dizendo 'eu nunca mais vou falar desse assunto'. Muito bem: 'fale do que você estudou, e não fale do que você não estudou'. Se existe essa relação ou não, este é o problema. Os astrólogos colocam este problema? Também não, porque partem do princípio de que [essa relação] existe, e não desenvolvem instrumentos para saber se existe, se não existe, em que medida existe e qual é a limitação. Então você está discutindo com dois grupos dogmáticos que têm uma posição social a defender. O astrônomo quer defender o seu prestígio científico contra os esotéricos, e os esotéricos querem defender o seu direito de exercer sua profissão. Mas quem aqui está buscando conhecimento? Ninguém. Estou eu aqui, que não estou ganhando um tostão com esse negócio, e você está ganhando dinheiro com a porcaria de sua astrologia, e você com sua astronomia. E eu não estou ganhando nada, pô! Ao contrário, as pessoas só falam mal de mim quando me meto nisso, só levo porrada! Então essas discussões não são sérias. E, para você encontrar alguém que esteja realmente buscando a solução de alguma coisa hoje em dia, você tem de procurar muito longe das discussões públicas. Há muita gente séria estudando milhões de assuntos, mas em geral estão longe das discussões que aparecem na mídia -- até na mídia científica! O que é mídia científica? A partir do momento em que se descobriu que a revista The Lancet (eu fui editor de revista médica durante muito tempo), que era a Bíblia (todo mundo podia fazer sacanagem, mas a Lancet não), estava aceitando propina para vender determinado remédio. Pronto, acabou! Virou bagunça. Depois acontece este negócio do aquecimento global, em que se pega os e-mails dos sujeitos planejando 'mentir assim ou assado, nós vamos sacanear o fulano para ele não poder falar'. O que é isso? Depois de quatro séculos de império das ciências o negócio virou esta sem-vergonhice generalizada. O que não deixa de ser bom, até certo ponto, porque desmoralizar uma falsa autoridade sempre ajuda em alguma coisa. Mas por outro lado isso também é traumático.
Porém, quando colocamos o problema cartesiano (qual é o conhecimento confiável? Em que eu posso confiar? Qual é o caminho do conhecimento seguro?), que é uma pergunta inteiramente legítima, desde que você não seja arrogante como Descartes a ponto de dizer que até então ninguém sabia nada e que ele era o primeirão. Se você admitir que antes todo mundo sabia alguma coisa e se você descobrir algo pequeno já é muita coisa. Você pode colocar esse problema e você será sempre recompensado por essa busca. Porque, no meio de toda incerteza, dificuldade, sempre sobra alguma coisa que se pode saber. Desde que você entenda que cada método, cada ciência, cada abordagem tem a sua limitação intrínseca, e que continua existindo o fenômeno da presença. Se você esqueceu a presença, você esqueceu tudo. É o fenômeno da nossa presença ao universo e da presença do universo a nós. Aí Louis Lavelle tem cem por cento de razão. Esta é a experiência básica que todo mundo teve (e eu até acrescentaria mais: a experiência do ápeiron, a experiência dos símbolos da razão, e a experiência da crise dos símbolos da razão todo mundo teve; isto é universal). Então não importa qual é o campo que você está estudando, você está sofrendo o impacto de tudo isso. Não é porque você tem uma formação especializada que de repente você se colocou fora e acima da condição humana geral.
Mas há também todo o problema do interesse grupal, da autodefesa corporativa, tudo isso está em jogo hoje em dia. E eu acredito que o número de pessoas que ousam fazer as perguntas e ir até o fim, até o último limite, é pequeno. Em geral o sujeito opera dentro de um corpo de convenções que é o de sua especialidade, do seu ponto de referência. Quando temos a experiência como a de Eric Voegelin de tentar estudar certas coisas dentro do campo e do horizonte metodológico de determinada ciência, e de repente ele descobre que o objeto que está estudando não existe -- o que lhe aconteceu com a História das Idéias Políticas. Ele escreveu oito volumes de História das Ideias Políticas e, depois, descobriu que ideias políticas não existem: existe algo completamente diferente dentro do qual essas ideias são aparências, e teve de começar tudo de novo. Ele chegou a isso porque queria realmente entender o que estava acontecendo. E essa decepção metodológica de Voegelin fez com que ele jamais publicasse a História das Ideias Políticas (obra muito valiosa sob outros aspectos), que só foi publicada depois que ele morreu. Ele queria jogar tudo aquilo fora. São anos e anos de trabalho. Quantos homens de ciência têm essa hombridade, essa dignidade? Há o famoso caso de Lucien Lévy-Bruhl que criou a teoria do homem primitivo, segundo a qual este pensava com categorias lógicas diferentes das nossas. Ele anunciou essa teoria; fez um baita sucesso; aquilo apareceu no Collège de France etc. Passados quarenta anos, ele disse: -- 'Estava tudo errado. Isso não existe'. Pouquíssimos são capazes de fazer uma coisa dessas. A maioria, se tentar dizer isso, os colegas dizem 'não, não fale, você vai se desmoralizar'.
Aluno (inaudível)
Olavo: Mas esse era maluco mesmo. Não foi esse que matou a mulher e depois se matou? É melhor não ler os seus livros, porque vai fazer mal. Eu, em princípio, não gosto de ler livros de suicidas, porque posso me sentir tentado a seguir o exemplo. [1:40]
Aluno: como eu trabalho na universidade e tenho contato com a academia, essa obsessão por recortes é tão grande que a teoria deflagrada pelos ingleses é a dos salames fatiados: o cara enxerga a realidade tão recortada e acha tão importante essa questão de ser especialista cada vez mais em sua área, que corta todo o seu conhecimento. E também tem a questão sociológica da ocultação 'não, descobri isso bem bacana, mas como eu preciso publicar vários artigos, eu vou publicando em doses homeopáticas'.
Olavo: O problema não é a especialidade: é a espécie sem gênero. Você não sabe do que aquilo é uma espécie. Agora, esclarecer quais são os limites, as fronteiras das várias especialidades foi durante décadas uma preocupação muito séria de muitas pessoas. Hoje em dia, não. Tomam-se essas especialidades como se fossem coisas em si. Elas não devem satisfações aos seus departamentos circunvizinhos, e depois você tenta conectar tudo num negócio que você chama interdisciplina, o que é pior ainda. O negócio não é a interdisciplina: é não perder a consciência da presença, que é o mundo real onde vivemos. É o que Husserl chamava o mundo da vida. Mas acontece que as pessoas só penetram neste campo determinado por esses recortes depois da adolescência. Até lá elas viveram no mundo em que todo mundo vivia. Eu acho que a aquisição dessa mentalidade dos recortes faz parte da conquista da autoconfiança adulta: o sujeito abandona o anterior, porque aquilo tudo foi infância, e agora é 'adultinho'. Pensando bem é uma coisa ridícula. Por que você precisa disso? Você vai vestir a camisa 'agora eu sou um biólogo', 'agora eu sou um neurologista'. Você não é mais o fulano de tal? Agora você é o membro daquela comunidade? Quer dizer: até a identidade abstrata do sujeito como membro de uma comunidade profissional se sobrepõe à sua identidade real de ser humano vivo. Daí surgir figuras como 'Zeca do PT': a sua inscrição no partido virou outra identidade que encobre a anterior. 'Você já nasceu dentro do PT? Já era petista no bercinho? Não, não era. Você era como todos nós, depois é que você decidiu'. Então, voltar continuamente, às vezes a experiências da própria infância, é absolutamente necessário. Por isso Jesus Cristo falou que se você não se tornar como um desses pequeninos você não vai entrar no reino dos céus. Se você achar que, agora que ficou adulto, você é outra coisa, que adquiriu uma independência em relação às experiências humanas fundamentais, você está completamente enganado. Qualquer especialidade vale, e é inteiramente necessária, útil etc. desde que tenha raiz nas experiências humanas fundamentais e não pretenda substituí-las.
Aluno: o senhor falou do chefe de departamento que não entende as pesquisas dos colegas. E chega a ser pior: dentro de um próprio grupo de pesquisa, os orientandos, que vão exercendo e desenvolvendo as pesquisas, o orientador fala 'estou tendo uma ligeira ideia, continue, interessante'. Eles não entendem o que o orientando está fazendo.
Olavo: Pois é! E pior: à medida que essa situação vai se tornando mais caótica, a presunção de autoridade das ciências é cada vez mais ambiciosa. Você quer proibir certas ideias, opiniões, porque não são científicas, no seu entender.
Mas, no meio disso, o que nos impede de continuar buscando o conhecimento, de continuar usando a razão? Nada o impede. É só o medo da opinião alheia, de perder emprego (coisa que não tenho, porque não tenho emprego nenhum). A independência é a melhor coisa do mundo. Às vezes, não se trata de uma independência real, mas de uma independência interior. Se você tem essa independência interior, não há pressão do meio que possa contra você.
Tem gente que passa a vida inteira dentro de uma universidade discordando de todo mundo e o que acontece? Nada. É só ameaça, é só blefe. 'Ah, eles vão falar mal de mim'. Mas eles já estão falando! Que diferença isso vai fazer? Você está aqui e o sujeito está falando mal de você no botequim da esquina. Uai, não estou ouvindo nada, não estou sentindo coisa nenhuma. Demais, ele fala mal de mim e eu falo mal dele. Que diferença vai fazer.
Mas hoje em dia essas coisas se tornaram piores porque desde o início o indivíduo já é treinado para ser um covarde, para se tornar um cara totalmente dependente. É o que diz David Riesman, em A Multidão Solitária: o homem-organização: ele só existe dentro da organização. Então é evidentemente uma pessoa criada na base do medo. Hoje mesmo eu estava lendo uma notícia de que, numa escola tal, as crianças estão proibidas de correr em grupo, porque 'podem se machucar'. O que é isso? Você vai criar as crianças como que numa redoma, com medo de tudo. Às vezes eu recebo umas mensagens que eu mesmo fico perplexo. 'Há coisas que não posso falar no meu emprego, senão elas vão falar mal de mim'. Qual é o problema de falarem mal de você? Eles vão lhe bater? Vão mata-lo? Se não chega ao risco físico imediato ou pelo menos num risco social considerável: 'Vão me tirar do emprego'. Mas esse é o único emprego possível? Eu perdi vinte empregos na minha vida. Perdia um e entrava em outro. Não é normal para o ser humano ser assim. Mas, se você quer conservar de qualquer maneira a condição social adquirida, se você não pode viver sem ela um único dia, então você já está vivendo desde uma sombra e vivendo na ilusão de que aquelas coisas que você tem estão incorporadas na sua pessoa eternamente, quando o fato é que você vai morrer e perder tudo. Então as pessoas não podem ter a consciência da morte: precisam viver dentro da ilusão da imortalidade. E quando pessoas frágeis e inconsistentes dessa maneira se tornam autoridades científicas e intelectuais está tudo perdido.
O panorama é este: os mais fracos estão humilhando os mais fortes, e não deixando que ninguém seja forte. Não é isso. Humilhar os fortes eles não conseguem, mas conseguem enfraquecer outras pessoas, enfraquecer os jovens cada vez mais. Estão dando mau exemplo.
Aluno: esses são os que têm mais medo de perder emprego, perder bolsa...
Olavo: Eu já vi gente dizendo 'eu não vou discutir com o Olavo porque ele me xinga'. Uai, e está doendo? Você tem medo de ser xingado? Você também pode me xingar. Aristóteles dizia 'a palavra cão não morde'.
Aluno: a pergunta se refere à aula 3 deste curso, em que falávamos sobre a sociologia da filosofia em si, e você começou a falar sobre o Bertrand Russel. Eu tenho interesse nisso porque convivo com o pessoal de engenharia que até idolatra Russel por causa da lógica, e queria saber o que está oculto nele, do que ele participava, o que está por trás de tomar tudo logicamente, reduzir a filosofia apenas à lógica.
Veja: criar uma lógica inteira não significa que se seja capaz de ser lógico na análise de qualquer coisa; assim como um fabricante de tintas não é necessariamente um bom pintor. E acontece que alguns dos maiores lógicos do século XX são especialistas em dizer coisas absolutamente ilógicas a respeito de tudo, como o próprio Bertrand Russel. Em História da Filosofia Ocidental Russel se mostra um especialista em não entender os outros filósofos. O capítulo a respeito de Hegel é uma das coisas mais ridículas que eu li na minha vida. Ele acha que é muito mais inteligente que Hegel, [1:50] e julga-o desde cima, mas está na cara que ele não está entendendo. Agora, se o sujeito é alguém de formação matemática, é evidente que o interesse que ele tem por Bertrand Russel é na parte lógica do trabalho, a qual é realmente brilhante. Mas não se pode esquecer o seguinte: a lógica é um instrumento da filosofia, ela não é a filosofia. Então apreciar um sujeito por causa de suas habilidades lógicas ou matemáticas não é apreciá-lo como filósofo, e as pessoas confundem essas duas coisas.
Aluno: a conexão da lógica com a realidade não é lógica.
Olavo: Nós não sabemos.
Aluno: é como o debate do senhor com o Joel Pinheiro, o qual idolatra a questão da lógica.
Olavo: Essas coisas são demonstração de força. É como ver um sujeito capaz de levantar peso. Isso não quer dizer que ele seja capaz de fazer algo além de levantar peso. Ou é como esses camaradas que fazem ginástica o dia inteiro e ficam da largura dessa mesa, como um Schwarzenegger. É aquele cara fortão que com cinqüenta anos tem um infarto e está inutilizado. É esse o modelo que eu vou seguir? Quer dizer: ele quer uma coisa especializada. Ele só sabe fazer aquilo. Mas, se você quer ter saúde em geral, produtividade em geral, então não é esse o modelo que você tem de seguir.
Aluno: e a ligação política de Bertrand Russel
Olavo: A ligação política de Bertrand Russel mudou muitas vezes. Ele começou propondo o bombardeio nuclear preventivo da União Soviética e terminou fazendo o tribunal dos crimes de guerra dos EUA no Vietnã. Ele mudou muito. Era uma pessoa muito instável. Bertrand Russel, realmente, sob certos aspectos, não era bom da cabeça. Agora, ele era um lógico de primeiríssima ordem e um escritor maravilhoso -- que diz besteira de maneira absolutamente encantadora. Se você ler o seu capítulo sobre Hegel sem ler Hegel você acha que está tudo certo, porque está tudo tão maravilhosamente explicado. Só que quando você vai ler Hegel, você vê que não era nada daquilo.
Aluno: professor, a análise das ocultações que o senhor fez agora de Bertrand Russel se aplicaria também ao Chomsky?
Olavo: Eu não sei. Eu não acompanho direito a atuação do Chomsky. Mas uma coisa notamos: Chomsky não é um intelectual de esquerda; ele é um cientista, um lingüista que, no começo da vida, fez um trabalho maravilhoso e, depois, escreveu uma série de intervenções puramente jornalísticas. Ele não tem uma obra teoria, de ideias. Nada, nada. Ele só denuncia uma coisa aqui, outra ali. O nível de atuação dele baixou formidavelmente. Inclusive porque uma coisa não tem nenhuma relação com a outra. Ele virou um polemista de imprensa apenas. Por que ele fez isso? Não sei. Mas eu acho que ele perdeu a vocação, perdeu interesse nas coisas científicas e decidiu criar outra fama. De tudo o que ele escreve, às vezes ele acerta, ele faz umas denuncias muito verdadeiras. Mas ele não tem retaguarda teórica, então o quadro geral da sua visão é baseado em estereótipos de esquerda -- estereótipos às vezes bocós. O que não quer dizer que tudo o que ele diz está errado. Ao contrário, ele tem muita informação. Há um monte de gente fazendo pesquisa para ele; aquilo não sai sozinho. E depois tem outra: cada coisa que ele fala, o pessoal imediatamente grava e no dia seguinte tem um livro. Um livro atrás do outro. É muita coisa. Então eu estou falando do pouco que eu sei do Chomsky. Eu sei que o conceito geral de Chomsky é esse; ele não é bem um intelectual de esquerda, como o é, por exemplo, Michel Foucault ou Žižek. A obra do Žižek é cheio de teoria; ele é um grande conhecedor de Hegel, e está fazendo algo na especulação teórica. Mas o Chomsky, nada. É zero. Zero ideias. Só denúncias. Ele é uma espécie de vermelho.org da intelectualidade. E não há relação entre sua obra científica e essa coisa. A sua obra científica serviu para criar um prestígio -- inteiramente justificável. Eu acho que a teoria da gramática gerativa está certíssima, por tudo o que eu estudei. Inclusive, porque muitos anos atrás, eu ajudei uma amiga minha a traduzir um livro que tinha sido feito por três estudantes do Chomsky, que durante anos gravaram tudo o que três crianças (que estavam apreendendo a falar) falaram; tudo, tudo. Ficaram com o gravador ligado vinte e quatro horas por dia. E elas mostravam ali na prática, no dia-a-dia, a gramática gerativa funcionando. Eu não lembro o nome do livro, muito menos o dos autores. Isso faz quarenta anos. Mas ali eles mataram o negócio: vai ser muito difícil refutar aquilo. Agora, existem críticas à gramática gerativa etc., mas eu acho que ele tem razão. Inclusive, eu mesmo aproveitei alguma coisa da gramática gerativa no meu livro sobre Aristóteles, e em outros lugares. De maneira que se o Chomsky está errado naquele ponto, eu também estou errando junto com ele.
Mas o comprometimento de Bertrand Russel com esse esquema globalista é profundo, total e abrangente. Ele está metido nisso desde o início. Tanto ele, como Aldous Huxley, Arnold Toynbee.
Aluno: Ele é da sociedade fabiana?
Olavo: É. Todo esse pessoal tem algo que ver com sociedade fabiana. O que é curioso, porque é o socialismo universal sob a hegemonia da aristocracia britânica. É uma coisa muito estranha. Então há muitas coisas que eles dizem que você não vai entender nos termos em que está dito. Você precisa de uma informação externa. Toda a obra do Toynbee, Estudo de História, não é um estudo de história: é um projeto globalista. Ele está mostrando como é que se desconstrói uma civilização e se cria outra. Se funciona ou não, eu não sei. Deve funcionar porque eles estão fazendo exatamente isso. O interesse dele não era realmente compreender o processo histórico, mas compreendê-lo em função de um projeto global.
Bem, por hoje é só.
Transcrição: Hugo Medeiros
Revisão: Eduardo Garcia de Queiroz