Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 220
14 de Setembro de 2013
Boa noite a todos, sejam bem vindos.
Eu queria lembrar, primeiro, que de 29 de setembro a 5 de outubro eu vou proferir, aqui em Colonial Heights, o curso Sociologia da Filosofia. Então, por falar neste curso, vários acontecimentos na semana me sugeriram oportunidade de dar uma prévia aqui de alguns temas que serão tratados neste curso. O primeiro desses acontecimentos foi que eu assisti a duas séries de documentários sobre a vida no Alaska, que eu recomendo enfaticamente para todos vocês. O primeiro chama-se Alaska: The Last Frontier, e o segundo Yukon men [Início do áudio] --- Yukon é uma região do Alaska bem afastada.
O primeiro trata de uma família suíça que, logo antes da segunda guerra [fugindo da confusão européia], comprou seiscentos acres de terra no Alaska e decidiu viver ali da maneira mais autossuficiente possível. É claro que o pai da família era um homem altamente preparado, com um alto conhecimento de engenharia, agricultura (...) tudo que era necessário para sobreviver ali; e então se muniu de um conjunto de máquinas essenciais, que os seus descendentes foram aumentando. Mas a coisa interessante que você vê ali é o seguinte: você não tem onde comprar coisas, não tem um supermercado, não tem serviço público, não tem água corrente, não tem eletricidade na rua; não tem nada, absolutamente nada. Então a vida é, vamos dizer, uma constante luta pela sobrevivência em condições quase inimagináveis para nós, porque o verão ali dura quatro meses --- só existem duas estações na verdade: o verão e o inverno. O verão dura quatro meses e, desses quatro meses, você tem de se preparar e acumular toda a comida para oito meses de inverno, durante os quais praticamente não dá para sair de casa. Então, nesses quatro meses, você tem de plantar, colher, caçar, pescar, acumular, fazer conservas, etc.: São quinze horas de trabalho por dia, as pessoas não param. Elas não têm um dia de descanso --- só às vezes, no inverno, elas têm um pouquinho se não houver problemas.
O outro documentário, Yukon Men, é mais ou menos sobre a mesma coisa. Só que não é uma família, é uma cidade --- uma cidadezinha de duzentos habitantes --- onde, também, ninguém tem descanso. O que significa o seguinte: se você não acumular comida suficiente no seu freezer para oito meses de inverno você vai morrer; é puro e simples, não tem "barriga me dói". Então, isso quer dizer que as condições materiais da vida terrestre aparecem ali de uma maneira muito límpida, muito clara, e o essencial ali é a capacidade de previsão e planejamento, que tem de ser elevada ao nível do gênio. O sujeito tem de pensar em tudo, absolutamente tudo. Então, se na hora "H" faltar um prego, a sua vida pode acabar por causa disto. Por exemplo, acontece o seguinte: uma galinha começou a comer os próprios ovos --- isto acontece, às vezes, quando a galinha fica velha; a galinha vira canibal. Se ela começa comer os ovos, o pessoal da casa fica sem ovos e eles podem morrer por causa disso. Agora, acontece o seguinte, você tem cinqüenta galinhas e tem de fazer uma investigação para descobrir qual galinha está comendo os ovos; para você não matar a galinha errada, o que seria um desperdício. Então todos os dias você tem desafios desse tipo. Mais ainda: quando acaba a comida, às vezes você tem de sair para caçar. E uma bela esperança, por exemplo, é achar um urso preto. O urso preto come-se, o urso marrom não se come; eu não sei por que, mas o urso marrom é aquele bem maior e mais feroz e a carne dele deve ser muito dura, então não se come. Mas o urso preto come-se. Então você fala "olha aqui, a situação engrossou a comida só dá para mais dois dias e eu tenho de sair e achar um urso preto". Bom, para achar um urso preto você tem de andar cem milhas na neve, às vezes com um metro e meio de neve. Você vai e procura o urso preto e ele não está lá; isso acontece sempre. Eu acho que em cada quatro caçadas, em três você não acha o bicho. Você não acha um urso, não acha um alce, não acha um caribu, uma rena; não acha absolutamente nada e volta para casa de mãos abanando.
Daí acontece o seguinte: você precisa de água e o rio está congelado; estar congelado significa que primeiro você tem uma camada de neve de um metro e meio, depois você tem uma camada de outro metro e meio de gelo para você furar até chegar à água e, às vezes, você não tem a furadeira elétrica (e nem de gasolina), então você tem de ficar fazendo assim. Ou seja, é um negócio absolutamente desesperador. E uma coisa que você observa ali é o seguinte: a solidariedade das pessoas, tanto naquela família quanto na cidade, é um negócio constante. Você tem de ser tão esperto contra o ambiente material que não sobra espaço para ser malicioso entre os seres humanos; não dá tempo. Quer dizer que as relações são muito mais lógicas, muito mais racionais.
Então isto nos dá um modelo de qual é a situação física real do ser humano nesse planeta. E é curioso você medir todas as transformações que foram sendo introduzidas desde uma situação básica como essa até a civilização urbana, com toda a sua complexidade, onde você raramente tem de fazer face à um desafio de ordem natural física. Os elementos da natureza não te atacam com esta força, mas você está ali dentro de uma rede de ameaças e perigos que são todas de origem humana; todos baseados na mentira, malícia, má intenção. É um negócio horrível. E aí você entende por que aquelas pessoas, tanto dessa família suíça quanto da cidadezinha no Yukon, estão tão felizes o tempo todo: porque a vida delas é muito difícil, mas não entra esse elemento de perversidade, malícia e ocultação. O Máximo de ocultação que tem ali é um bicho que se esconde de você --- se esconde para defender a sua própria sobrevivência.
Já se você foi criado no ambiente urbano --- um ambiente urbano não precisa ser uma grande cidade como São Paulo, Nova Iorque; pode ser qualquer cidade de cem mil habitantes e você já tem isso --- todas as suas dificuldades vêm de um fator humano, ou seja, de vontades adversas que você não conhece, que são praticamente invisíveis, que estão escondidas por trás de uma rede de leis, regulamentos, convenções, etc. E você tem de sobreviver no meio disto, na maior parte dos casos, conhecendo este ambiente muito menos do que esse pessoal do Alaska conhece o ambiente físico. Se você pegar um cidadão médio da capital e investigar o que ele conhece sobre a sociedade na qual ele está vivendo, é praticamente nada. Ele não sabe como as coisas funcionam, não sabe quais são as convenções. Então é natural que as pessoas, nestas condições, se apeguem ao seu grupo muito mais até do que o pessoal que luta pela sobrevivência física tem de se apegar às pessoas em torno.
Só que, lá, o apego é na base de uma colaboração objetiva. Por exemplo, a mulher cujo marido trabalha em uma cidade a cento e cinqüenta milhas de distância; fica a mulher com a filhinha, e ela vê um lobo rondando a cidade, então ela fica naturalmente apavorada. Ela pede ajuda então para um vizinho, que é uma espécie de factótum --- é o faz tudo da cidade: o sujeito que conserta carro, caça bichos, pesca; faz tudo (e o sujeito ainda leva uns vinte dias para conseguir achar o tal do lobo). O lobo não está onde você quer e na hora que você quer. No fim ele consegue matar o lobo, mas aí são vinte dias perdidos porque o sujeito só tem uma fonte de renda, que é vender pele de castor na cidade. E, para sobreviver, ele precisa de vinte peles de castor por ano. Você acha que é fácil achar um castor? A armadilha do castor é feita na água embaixo do gelo. Então para cada armadilha que você vai montar, você tem de perfurar aquela camada toda de gelo e colocar uma isca para o castor, ainda com o risco de ele escapar da armadilha. Então o sujeito tem de abrir várias dezenas de armadilhas, para chegar ao fim do ano e dizer "completei vinte castores, que dão dois mil dólares". E, dos dois mil dólares (embora comida ele não pague nada, é na base da caça e pesca), ele precisa de gasolina, armas e munições (sem isso ele não sobrevive lá). Então ele tem de fazer dois mil dólares por ano, e esses dois mil dólares custam o olho da cara.
Então o tipo de colaboração e apego grupal que você vê lá não é baseado em motivos psicológicos; não é dependência psicológica, é uma dependência física imediata na base do "olha eu não sei fazer essa coisa, mas o fulano sabe, e para compensar tem algo que eu sei fazer e que ele não sabe". Por exemplo, está acabando a lenha: se acabar a lenha você morre. A 40°C abaixo de zero [0:10] você vai morrer, então você precisa de madeira para queimar. Acontece o seguinte [um pequeno detalhe]: justamente no momento em que você mais precisa da madeira, que é no meio do inverno, as árvores estão congeladas, e para cerrar uma árvore congelada é um osso. Então precisa achar um sujeito que saiba cerrar a árvore congelada, que é uma tecnologia toda complicada. E este sujeito, por sua vez, pode estar precisando de um peixe seco ou de uma perna de rena que sobrou.
Então a colaboração é numa base muito objetiva, não é dependência psicológica. Porém, no meio urbano a colaboração é quase que inteira baseada na dependência psicológica, porque todos os fatores que estão em jogo são fatores que vêm não da natureza física, mas da complexidade das relações sociais.
Eu digo que o sujeito para viver no Alaska, naquelas condições, tem de ser um gênio. Porque tem de saber e entender de agricultura, engenharia, saber consertar as máquinas, entender de eletricidade, saber caçar, ler um mapa --- se o sujeito não souber ler um mapa ele está perdido ali; todo mundo tem de ser geógrafo. Então tudo isso são dificuldades que vêm diretamente da natureza e vêm de uma maneira brutal e ostensiva. Mas na sociedade urbana você está aparentemente protegido desses males; porém, está exposto a toda sorte de perigos invisíveis e desconhecidos. Por exemplo, até hoje [há quase cinqüenta anos] eu procuro uma descrição mais exata de como funciona a sociedade humana, e eu não tenho essa descrição até hoje.
Ora, você vivendo em um lugar como esse, no Alaska, durante alguns anos com alguém que te ensine, você logo entende todo o funcionamento da natureza em torno; e você entende, portanto, o conjunto de planos e ações que você tem de colocar em prática para sobreviver. Mas na sociedade humana é o contrário, ela se torna, às vezes, um mistério indecifrável. Você não sabe de onde as ações vêm, não sabe quem fez, por que fez, onde vai terminar e não sabe onde você está entrando na história. O simples fato de tomar consciência desta situação (...) o sujeito que tomou consciência de que ele não está entendendo a sociedade na qual ele vive; para isso precisa ser um gênio. Porque a maioria está como um cego em tiroteio, mas está defendido contra a percepção disso por dois fatores: a solidariedade grupal, que é puramente psicológica [e a sua própria ignorância], e aquelas crenças do grupo, que para você representam o mundo.
Ora, se existe uma coisa que é bem provada na sociologia é o seguinte: onde você tem grupos que são mais fechados, que os contatos entre as pessoas são muito intensos e se evita o contato com outros grupos, e se vê até, nos outros grupos, uma força hostil; então o que acontece? As crenças em símbolos --- que, para os membros do grupo, simbolizam a unidade e a integridade do grupo --- se tornam para essas pessoas como se fossem objetos do mundo exterior; não são mais idéias, são a realidade mesmo. Então não são pensáveis; não são coisas pensáveis que você possa simbolizar mentalmente e analisar criticamente. Você não pode mais analisar, não tem como analisar --- aquilo é a realidade mesmo! Então aquilo adquire uma espécie de exterioridade física. E existem outros grupos onde o contato com grupos estranhos é mais intenso, você tem mais intercâmbio; então o que acontece? Os símbolos de unidade grupal são passíveis de abstração e se transformam em conceitos que podem ser pensados e analisados criticamente. Isto quer dizer que a coesão grupal é tanto maior quanto mais o grupo ignora que as suas crenças e símbolos são invenções humanas. Quanto mais aquilo está introjetado como realidade, maior a coesão grupal.
Então nestasemana, como teve essa coisa do Renato Janine Ribeiro, que lançou uma fofoca a meu respeito, eu comecei a observar a coisa sob esse ângulo. E notei que, no site dele, as pessoas que enviavam mensagens apoiando as bobagens que ele tinha dito a meu respeito eram todas pessoas da USP, da camada universitária. Quer dizer, era um grupo social coeso. Ao passo que, no meu site, as pessoas que entram vêm de todos os meios sociais possíveis, de todas as regiões do país, de todas as idades; tudo diferente. Então realmente nós não formamos um grupo neste sentido. As pessoas só estão coeridas ali pelo fato de estarem prestando atenção e são meus alunos ou leitores etc. Mas você não tem uma unidade sociológica, ao passo que no grupo do Janine tem.
E a coisa mais notável que eu vi ali: estava todo mundo com raiva de mim, mas ninguém tinha lido um único livro meu; nada, zero. Às vezes não liam nem artigo. E ali perguntava-se "o que você tem contra o Olavo?". Daí vinham aquelas coisas de sempre; aquele negócio dos fetos da Pepsi, aquela história de que eu contestei a lei da gravitação universal de Newton (coisa que eu nunca fiz na minha vida), que eu contestei a teoria da relatividade (coisa que eu nunca fiz na minha vida) e de que eu tinha dito que o Geisel era comunista (coisa que eu nunca disse na minha vida). Então eram mitos, lendas grupais, mas que as pessoas acreditavam naquilo como se fosse realidade.
Então se você comparar, por exemplo, dois grupos extremos. Vamos pegar uma seita fechada como Rajnishi Moon, Meninos de deus etc., onde as pessoas têm os seus laços com o mundo externo cortados e veem o mundo externo como uma coisa hostil. E, do outro lado, você pega a comunidade intelectual internacional do ocidente, que está acostumada a ter contato com tudo quanto é diversidade [por assim dizer] e que, portanto, já não se sente tão identificada assim ao seu país, ou grupo etc.
Eu digo que este pessoal da USP parece mais uma seita do que uma intelectualidade, porque aquilo que lhes é estranho ou que eles vivenciam como hostil é uma coisa tão ruim que você não pode ter contato com ela; você não pode se abrir àquela influência. As pessoas chegaram a recomendar, "não leia Olavo de Carvalho". Então, o que está acontecendo no Brasil é um fenômeno único na história porque, se você pensar, até o desenvolvimento do marxismo ao longo dos tempos, é obvio que não foi assim. Você pega, por exemplo, o Georg Lukács; ele dedica um livro inteiro a discutir com as pessoas que pensam o contrário dele. No livro A Destruição da Razão ele está descendo o cacete em toda a filosofia ocidental, que ele leu e conhece. Ou seja, ele não tem medo de se contaminar com aquilo, ele acredita e confia no seu taco, ele acha que pode absorver e superar tudo aquilo; não tem medo. Se você vir, temos aí grandes historiadores e filósofos marxistas que passaram o tempo todo confrontando gente que pensava o contrário.
Eu acho que eles, em geral, se saíram muito mal, mas não têm medo. Veja que, quando houve o meu debate com o professor Dugin, ele não teve nenhum medo de conhecer as minhas idéias e nem eu de conhecer as dele porque nós achávamos que podíamos absorver aquilo e superar; nós dois achávamos isso. A maioria acha que eu venci o debate, mas tem o pessoal que acha que ele venceu, então é aquele negócio do Murilo da Silva, "até hoje ninguém sabe quem morreu, eu garanto que foi ele e ele garante que fui eu". E não nos fez mal algum; não saímos dali traumatizados nem chocados. Então quando você vê uma classe universitária se defendendo de um sujeito, ao ponto de não poder conhecer as idéias dele, e de no máximo ter um contato episódico momentâneo com um programa de rádio (como se eu não tivesse dezessete obras publicadas, mais não sei quantas apostilas, milhares de artigos etc.), é realmente o ambiente de medo e de desconfiança.
Então ali virou uma tribo. Este fenômeno eu não creio que tenha acontecido em parte alguma. Veja, por exemplo, que na URSS a cultura dominante --- [0:20] que era baseada nos manuais de marxismo e leninismo da academia de ciência da URSS --- era hostil a todo pensamento diferente, mas ela não o ignorava por completo. Claro que havia censura de livros (material mais ofensivo não entrava), mas pelo menos o pensamento clássico anti-marxista eles não podiam ignorar. Eu não conheço um caso de um ambiente fechado como este que eles formaram na faculdade de filosofia, letras e ciências humanas (FFLCH) da USP, onde você vive aquele ambiente de interconfirmação --- um fortalecendo o outro e o outro fortalecendo um; é uma troca de elogios o tempo todo, e não só desinteresse de conhecer o que os outros pensam, mas um terror, pânico.
Eu nunca vi um fenômeno desses na minha vida, e eu acho que tem de ser estudado sim. Às vezes as pessoas me perguntam "mas por que você presta atenção nesses caras?", eu digo "espera aí, eles são a comunidade universitária brasileira, meu Deus do céu, não é um sujeito que falou mal de mim; um cara isolado". Por exemplo, eu não vou ficar discutindo Paulo Ghiraldelli; Paulo Ghiraldelli não é nada. Mas esses caras são o centro do ensino universitário de filosofia e ciências humanas no Brasil. É um fenômeno importantíssimo e, sobretudo, inédito no mundo. [Comentário/Resposta] Certamente foi ali a origem do PT, e esse pessoal é petista até hoje, de algum modo. Então como é que eu poderia ignorar essas coisas como se fosse apenas uma crítica pessoal que estão fazendo a mim? É claro que não é isto; é um fenômeno coletivo, altamente significativo e que nos sugere de longe o problema de quem é o sujeito da história --- o problema da ação humana.
E uma das coisas mais extraordinárias, nessa ordem de estudos, é você verificar os dois pontos extremos --- por um lado, a ação racional planejada de um indivíduo (ou de um pequeno grupo), que decide exercer uma influência sobre uma vasta camada da sociedade sem ser percebido; o outro lado é a disseminação, mais ou menos espontânea, das idéias, opiniões e atitudes que aqueles indivíduos injetaram. Willi Munzemberg chamava isso criação de coelho; você cria um modelo, você implanta um casal ali e a coisa se multiplica sozinha. Na medida em que se multiplica sozinha, significa que o autor da coisa não tem o controle sobre o que está acontecendo, é um controle meramente estatístico; ele acha que X% dos casos vai dar certo. Então é uma operação de altíssima sutileza, mas você precisa saber exatamente quais são os pontos onde você tem de colocar a influência para que ela se reproduza. Isto significa que o agente aí tem de conhecer muito bem o ambiente social no qual ele vai estar e onde vai injetar a sua influência.
Nessa mesma semana eu li um livro muitíssimo interessante do Stephen Koch, que é o sujeito que escreveu Double Lives, sobre como a intelectualidade ocidental foi ganha para o movimento comunista. Daí ele pegou um caso especifico e fez um micro estudo, e o caso foi o do Ernest Hemingway e John Dos Passos --- como é que eles foram transformados em idiotas úteis. E, nesse caso, as vidas dos dois seguem circuitos exatamente opostos; John Dos Passos se tornou esquerdista porque quis, desde o início de sua vida. O grande clássico que ele escreveu, U.S.A (1938), é uma trilogia de romance. É um livro revolucionário nos dois sentidos; primeiro por que é o mais anti-capitalista que você pode imaginar; e, segundo, porque é revolucionário na sua forma. Forma narrativa que é completamente inédita também, ele usava tudo na base de fragmento, notícias de jornal, uma conversa solta, e ele ia montando aquilo até construir como se fosse com ladrilhos um panorama imenso. Então este livro foi celebrado como obra-prima desde o seu lançamento. E John Dos Passos entra na história da vanguarda literária na mesma estatura de, digamos, James Joyce, Apollinaire, o pessoal do surrealismo; mais ou menos nesta mesma estatura. E é imediatamente celebrado no movimento comunista internacional por ser um dos seus representantes, embora ele não fosse um membro oficial do partido comunista. Mas aquilo parecia, naquele momento, o suprassumo da literatura revolucionária.
Se você ler um livro do Modris Ekstein, Rites of Spring (os ritos da primavera), você verá até que ponto a idéia da mentalidade revolucionaria estava mesclada, fundida, com a idéia da vanguarda literária nos anos vinte (dez/vinte); ao ponto que ele explica ali a primeira guerra mundial como o confronto da mentalidade modernista (representada ali pelos alemães) contra a mentalidade conservadora, reacionária, representada pela Inglaterra e França.
Quando John Dos Passos estava no auge da fama, aconteceu que na URSS eles descobriram um negócio chamado realismo socialista. Daí houve um sujeito, que era um comunista holandês e que era um cineasta documentarista chamado Joris Ivens, que fez lá no comitê central da URSS um discurso para o comitê central condenando (...) Ele era um discípulo e amigo do Karl Radek. Então ele e Karl Radek promoveram este assalto ao modernismo literário. Disseram que o modernismo literário era um formalismo burguês que, sob aparência revolucionária, era de fato revolucionário e que, agora que existia a URSS, você fazer uma literatura revolucionária de pura crítica ao capitalismo não valia mais. Você tinha de exaltar o socialismo existente; a URSS, portanto. Então passava de ser uma literatura puramente destrutiva, de pura crítica e de pura análise a ser uma literatura de propaganda e exaltação do socialismo; foi isso que eles chamaram justamente de realismo socialista. O realismo socialista se tornava obrigatório e era necessário dar cabo dos representantes do modernismo literário, livrar-se deles de alguma maneira.
E eles davam como exemplo mais característico da literatura modernista justamente a trilogia do John Dos Passos. John Dos Passos já estava naquele momento condenado pelo movimento comunista. E este mesmo sujeito --- veja que coisa, como é que funciona esse negócio --- que, junto com Karl Radek, fez a caveira literária do John Dos Passos na URSS foi enviado pelo comitê interno para se aproximar do John Dos Passos nos EUA, fazer-se amigo dele (amigo da família) e usar o nome do John Dos Passos para um documentário que a URSS estava promovendo sobre a guerra na Espanha. Este documentário é um negócio essencial porque na época havia várias correntes de esqueda que apoiavam a república espanhola, mas nem todas elas eram vinculadas ao partido comunista; havia ali social-democratas, anarquistas (chamados sociais-liberais) e mais não sei quantas correntes.
A URSS já tinha chegado à conclusão: "esse pessoal todo está atrapalhando, nós mesmos temos de tomar conta do governo espanhol e sumir com essa gente" --- havia uma operação de prender e matar todos os caras destas correntes; o George Orwell descreve isto no livro Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha). E ele estava no meio dessa operação, então era importante mostrar a causa da república espanhola como sendo a mesma do partido comunista internacional; não só contra os fascistas, mas contra os anarquistas e outros inimigos internos (como eles diziam). E eles tinham um mandado o Joris Ivens para fazer um documentário nesta base. Só que, veja como são as coisas, esse camarada chegou lá e contratou para redigir [0:30] a narrativa do filme [a parte verbal do filme] o John Dos Passos e o Ernest Hemingway. O Hemingway a esta altura era um sujeito totalmente apolítico, estava pouco se lixando para tudo isto, e o John dos Passos já estava condenado.
Então era assim: você ia ver se ainda dava para aproveitar alguma coisa do John dos Passos como arma de propaganda. É claro que o roteiro que o Hemingway e o John dos Passos fizeram não foi aproveitado de maneira alguma; o pessoal do Comitê disse o que queria, modificou o filme à vontade e eles (Hemingway e John dos Passos) não tiveram o mais mínimo controle sobre o filme --- o Ivens fez do jeito que ele queria. Mas, para poder usar o nome, esse Ivens se infiltrou na família de John dos Passos --- John dos Passos morreu acreditando que o sujeito era amigo dele mesmo --- e, no meio disso, dos Passos inventa que ia para a Espanha, ele queria ver o que estava acontecendo lá. Daí tinha um amigo dele que era ligado aos anarquistas e que disse: "Olha, cuidado com o ambiente onde você vai pisar, porque ali você não tem uma guerra, tem duas: a guerra contra as tropas do Franco e a guerra interna; entre os comunistas e o restante da esquerda. E os comunistas querem matar todo mundo." E dos Passos não acreditou, achou que aquilo era teoria da conspiração --- "Onde já se viu acontecer uma coisa dessas? Isso não acontece...".
Ele foi lá e a primeira pessoa que procurou foi um amigo de juventude chamado Jose Robles, que era um cara que tinha um alto cargo importante no governo da república, era um republicano fanático e servidor fiel da causa. Acontece que o Jose Robles tinha desaparecido; ninguém sabia onde ele estava, a mulher dele também não sabia, os filhos também não sabiam. Dos Passos então chega lá e vai procurar um sujeito que é uma espécie de Ministro da Informação, é o cara que o havia convidado a ir para Espanha. E quando ele chega lá, depois de ter feito várias perguntas sobre o tal do José Robles em vão, essas perguntas chegaram aos ouvidos do ministro e ele não quis nem falar com ele, o atendeu durante dois minutos e disse: "Volta semana que vem." Aí ele falou: "Opa, quando eu cheguei aqui eu era uma celebridade, agora eu sou uma não-pessoa. O que aconteceu?" Ele ainda não entendeu, não queria acreditar na trama.
E aconteceu que, ao mesmo tempo, o Hemingway, que era um sujeito apolítico, estava sendo cada vez mais seduzido pela causa. Então o que aconteceu? Você vê essas duas vidas se cruzando ali; o John dos Passos vinha do auge do sucesso, o choque que ele teve, a desilusão que teve com o movimento comunista foi uma coisa tão devastadora que ele nunca mais conseguiu escrever nada à altura do que ele tinha escrito dos tempos em que era comunista. Nunca se tornou um escritor medíocre, é claro, mas também não voltou a mostrar a mesma força. E o Hemingway, ao contrário: ali ele descobriu o que estava fazendo no mundo, e o que estava fazendo no mundo era simplesmente propaganda comunista, pura e simples. Num outro livro, que é o livro do Humberto Fontova (NT: provavelmente The Longest Romance: The Mainstream Media and Fidel Castro), ele conta que o Ernest Hemingway gostava de assistir execuções em Cuba e inclusive convidava as pessoas para vê-las. O Hemingway ia até um lugar, chegava um caminhão, do caminhão desciam umas vinte pessoas amarradas, o sujeito passava fogo, jogava o cadáver de volta para o caminhão, levava embora, e ele assistia estas coisas; assistiu durante anos. E no fim, é claro, meteu a bala na cabeça.
O que este episódio mostra é a sutiliza e a delicadeza da ação empreendida pelo agente individual. Para este Ivens conseguir transformar dos Passos e Hemingway em inocentes úteis para legitimar aquele filme no qual eles não tinham dado palpite, praticamente nenhum, foram anos de trabalho --- para um sujeito ganhar duas pessoas. Mas quem eram essas duas pessoas? Eram celebridades, eram formadoras de opinião, eram modelos de conduta. Então para você formar um modelo do escritor revolucionário que apoiava a União Soviética foi preciso enviar vários agentes deste tipo, que ficaram anos acompanhando estas pessoas no dia a dia, fazendo-se de amigos, às vezes até arrumando mulheres para eles. Tudo para poder depois desencadear um efeito de massas. Uma vez realizada a primeira operação, o efeito de massas era realmente criação de coelhos: as pessoas começam a imitar sem saber tudo o que está por trás. E você acompanhar hoje essas operações, essas micro-operações, que são a parte decisiva da trama, é uma coisa altamente reveladora sobre como funciona a história. Você vê que um agente individual pode criar (se ele tiver as técnicas para isso) um negócio epidêmico entre as massas. E é claro que essa imitação é puramente irracional, não tem motivo; mas ela é baseada em que? No desejo de apoio grupal, no desejo de identidade grupal; o indivíduo tem de sentir que ele participa de uma coisa junto com um monte de gente, e em uma situação difícil ele terá o socorro dos companheiros --- que na verdade não terá, mas ele tem de sentir isto.
Então eu, aplicando isto aí ao caso do Renato Janine, vejo o seguinte: se as pessoas começam a ver que o sujeito está apanhando muito, que o seu ídolo está apanhando muito, elas o largam; já começou a acontecer. Eu desafiei o Janine para um debate, ele não veio, depois eu comecei a gozar da cara dele e começou a aparecer no próprio site dele gente dizendo: "Bom, mas não fica bem, não vale a pena você só ficar soltando frases isoladas, você tem de enfrentar o debate." Então você vê que a unidade do grupo, neste instante, sofre uma mutação; a invasão de um elemento externo, estranho, na cabeça deles hostil, faz com que o senso de unidade do grupo deixe de ser uma realidade externa na qual eles vivem e passe a ser uma representação mental que é passível de exame.
Então nessas coisas todas eu faço um experimento sociológico para ver como é que as elas funcionam, e a gente vê essa regra, que eu enunciei a vocês. Que é, aliás, sobre os dois padrões de unidade --- fechado ou aberto; eu li no livro do Randall Collins, que foi um dos livros que me inspiraram a fazer este curso da sociologia da filosofia. O livro dele se chama A Sociologia da Filosofia, aliás1, e ele segue uma estratégia que é exatamente inversa a daqui: ele pega a história da filosofia como um conjunto e quer ver ali os padrões de confrontação entre os vários grupos etc. Eu acho que é prematuro para isto; você só vai entender este processo se fizer o que os historiadores estão fazendo atualmente com relação ao movimento comunista, onde eles conhecem não só os efeitos gerais, mas também conhecem os detalhes de como estes efeitos foram gerados pela ação de agentes altamente preparados.
Quando você levanta a mesma questão com relação à situação política do Brasil --- estou falando mais da vida intelectual ---, você vê que os detalhes da ação são totalmente desconhecidos: não se sabe quem fez o quê. E, evidentemente, as pessoas que estão metidas nisto, que a sua segurança psicológica depende da unidade grupal petista, esquerdista etc., têm terror, pânico, de tocar nestas coisas. É curioso, no Brasil, por exemplo, o jornalista dizer assim: "Ah, eu trabalhei na Rádio Moscou.". Isto, no Brasil, é currículo jornalístico porque as pessoas não sabem que Rádio Moscou não é jornalismo, Rádio Moscou é da KGB; elas não sabem nem isto. Portanto, o treinamento que o sujeito tem (...) só tem dois tipos: ou é propaganda, ou é desinformação --- que não são a mesma coisa, de maneira alguma. Veja, por exemplo, [0:40] que tem pessoas no Brasil, no jornalismo brasileiro (como o Altamiro Borges e outros), que são pura propaganda; eles defendem o comunismo com unhas e dentes, alguns até fazem apologia de Stálin. Mas quando você pega um tipo como o Mauro Santayana, por exemplo, ou como o falecido Márcio Moreira Alves, [pensa-se assim:] "opa, eles não vão fazer propaganda comunista!", embora eles tenham esse treinamento, tenham trabalhado na Rádio Moscou, Rádio Cuba, Rádio Pequim etc. Ali é desinformação mesmo.
Veja que, no tempo em que eles estavam discutindo a questão do sistema de radares que iam instalar na Amazônia, tinha duas companhias: uma americana, Raytheon; e a outra companhia francesa, Thomson. A esquerda inteira apoiava a companhia francesa, mas o Márcio Moreira Alves, cujo bolso parecia que tinha sido engraxado, era o único cara na esquerda que defendia a companhia americana. Ao fazer isso, ele se torna um bom instrumento de desinformação, porque adquire uma confiabilidade entre os não-comunistas. Assim como, se você ler os artigos do Mauro Santayana, você não vai ver pregação comunista de maneira alguma; vai ver análises estratégicas aparentemente técnicas, que sempre acabam levando à mesma conclusão antiamericana, de uma maneira ou de outra.
Até hoje não se tem sequer um estudo sobre quem é quem no jornalismo brasileiro, sob este ponto de vista. Entende o que eu disse no começo a respeito das pessoas viverem em uma sociedade onde elas estão expostas a forças e ameaças que elas não sabem de onde vêm? É uma trama invisível: [invisível] não porque seja necessariamente secreta, às vezes não precisa nem ser secreta; as informações são difíceis de você alcançar e as questões são difíceis de se imaginar. Você não se lembra de fazer [por exemplo] aquela pergunta: "quantas pessoas, no jornalismo brasileiro, não são jornalistas, e sim agentes de influência a serviço de um departamento de inteligência, medidas ativas de um país comunista?" Se você não faz esta pergunta, nunca vai entender nada do que se passa no jornalismo brasileiro. E, evidentemente, quando você diz --- como eu disse --- que o jornalismo brasileiro é, na sua quase totalidade, pura desinformação, desinformação comunista mesmo, isso pode soar esquisito para o leitor que é vítima desta desinformação. Então ele acredita, por exemplo, que O Globo é um jornal de direita, que o Estadão é um jornal de direita. Claro, mas se eles não fossem jornais de direita, não poderiam servir de veículos de desinformação. E a diferença entre um jornal que é conservador mesmo e um jornal pseudoconservador ---que é veículo de desinformação --- é imensa.
Agora, em geral, quando você fala a palavra "comunismo", as pessoas pensam que comunismo é uma idéia, é um ideal, e que existem pessoas que acreditam neste ideal e estas são comunistas. Isto aí é só para quem não tem a menor prática do movimento comunista. A sinceridade da adesão do sujeito a um ideal comunista é uma coisa que não interessa, absolutamente; para um marxista, isso é uma coisa absolutamente irrelevante. O que interessa é o tecido de relações no qual o indivíduo está e a trama de ações na qual ele realiza a sua existência, por assim dizer. Então, não é tão usual as pessoas dizerem, por exemplo, --- isso apareceu praticamente na mídia brasileira inteira: "As FARC não são mais comunistas, elas abandonaram o ideal revolucionário e agora só pensam em dinheiro." Isto foi repetido por toda a mídia brasileira e por muita gente importante; isto é pura desinformação! Porque esta diferença entre o ideal revolucionário e a cobiça de dinheiro não existe; você ajuntar o máximo de recursos possíveis por todos os meios e, inclusive, beneficiar-se pessoalmente disto é uma coisa que está na estratégia comunista desde o início. Sempre foi assim, não há esta dicotomia. Esta dicotomia existe do ponto de vista não marxista, existe do ponto de vista burguês, onde a diferença entre o ideal e o real é sempre marcada.
Se você estudar um pouco de marxismo, verá que o marxismo odeia esta distinção. Todo o marxismo é baseado na frase de Hegel: "todo racional é real e todo real é racional." Não existe a separação entre o ser e o dever-ser, a separação entre o real e o ideal; as duas coisas são a mesma --- todas elas são o real. Mas, em geral, o burguês (sobretudo o burguês liberal, que estudou von Mises, Hayek etc., mas não estudou o marxismo diretamente) não sabe que as coisas são assim. Então, com todo o conhecimento de economia que o sujeito tem, ele não sabe como funciona o movimento comunista e acredita nessas patacoadas.
Quando foi que começaram a dizer que as FARC tinham traído o ideal revolucionário e se transformado apenas numa gangue de ladrões, de narcotraficantes? Há mais de vinte anos dizem isso. Onde estão as FARC hoje? Estão compartilhando o poder junto com o senhor Juan Manuel Santos. Então você entende a unidade da estratégia ao longo do tempo, entre todas as idas e vindas, todas as fintas, rodeios, manobras etc., e você entende o papel que a desinformação teve no meio disso. Por exemplo, no Brasil não tem um só liberal --- eu não conheço nenhum, no meio liberal --- que entenda exatamente o que é ideologia. Eles acreditam que ideologia é uma religião; que ideologia é uma coisa na qual as pessoas acreditam. E aqueles que não acreditam, mas que estão metidos nisso, estão lá por interesse vil enganando os idealistas revolucionários. Do ponto de vista marxista tudo isto é uma patacoada. Marx definia a ideologia como um vestido de idéias, uma vestimenta de idéias --- Ideenkleid, em alemão. Isto significa que existem interesses materiais objetivos; interesse material não quer dizer interesse econômico: é o interesse de dominação total no qual o aspecto financeiro é apenas um dos elementos. Se em uma determinada circunstância for para você escolher entre o poder econômico e o poder militar, é para escolher o poder militar, evidentemente, que engloba o poder econômico e o faz trabalhar para ele, como, por exemplo, a experiência do nazismo confirmou amplamente.
Esses interesses objetivos podem estar mais ou menos conscientes em uma determinada classe. Na medida em que a classe toma consciência de quais são os seus interesses ela tem de defendê-los, mas não pode defendê-los se não expuser esses interesses na linguagem da moral [da religião etc.], ou seja, criando um conjunto de pretextos nobres. Isto quer dizer que, entre um comunista e um anticomunista, a diferença essencial não é de ideologia; a diferença é dos interesses objetivos que estão em jogo. Interesses que o marxista descreverá de uma maneira esquemática dizendo "ou existe o interesse da revolução socialista, ou existe o interesse da burguesia exploradora". Mas isto não é verdade, isto faz parte do discurso ideológico. Eles sabem que a coisa não é exatamente assim. Tanto sabem que, nos momentos decisivos, podem apoiar políticas burguesas, porque sabem que precisam delas; como, por exemplo, Marx apoiava o livre comércio internacional --- que hoje a esquerda abomina ---, porque sem o livre comércio internacional não seria possível uma tomada de consciência proletária em uma escala global, o proletário ficaria isolado nos seus países sem ter contato com o proletariado das outras nações, dificultaria tudo para a revolução. Então Marx faz uma campanha em favor do livre comércio, que era o interesse da burguesia e era também o interesse dele. Ou seja, nem sempre os interesses da burguesia estão contra [50:00] os interesses supostos do proletariado.
A diferença de ideologia existe, mas não é o substancial na coisa. E, por baixo da ideologia, existe uma estratégia real, que é uma segunda camada de discurso que está embaixo dessa e que, em geral, não é discutida em público. Na ideologia sim, existe um campo para disputa ideológica em público, mas por baixo do discurso ideológico existe o discurso estratégico que é infinitamente mais importante e do qual o discurso ideológico não representa senão um elemento, não é bem um elemento de propaganda. O discurso ideológico tem uma função externa e interna: externa é para ganhar mais adeptos e para corroer a posição do adversário, mas interna é para criar o sentimento de unidade do grupo sem o qual nada se pode fazer.
A ideologia é um conjunto de pretextos, é um discurso pretextual; por baixo dele você tem de buscar o discurso estratégico. Por exemplo, o discurso estratégico, naquele livro do Ernesto Laclau, onde ele diz o seguinte: "a propaganda revolucionária gera a classe que ela vai representar". Que coisa importantíssima! Isso quer dizer que o marxismo mudou muito; desde a sua teoria originária, na qual existiria uma ideologia própria de cada classe e a ideologia seria apenas a expressão embelezada dos interesses da classe, para um ponto onde o elemento ativo deixou de ser as classes e passou a ser a vanguarda revolucionária, e a vanguarda revolucionária inventa o discurso e em torno dela cria uma classe, que vai tomar aquele discurso como expressão dos seus interesses e vai reivindicar as coisas naquele sentido. Ora, o livro do Ernesto Laclau não é um livro para ser lido por todo o mundo, é um livro para ser lido pela elite comunista; é um livro de estratégia, e não de ideologia.
Ideologia faz, por exemplo, Noam Chomsky --- tudo o que ele escreve é propaganda ideológica; não é desinformação, é propaganda. Só isso que ele faz. Não tem uma obra teórica, uma obra de estratégia; ou seja, dentro do movimento revolucionário, ele é apenas um office boy. Tem um amigo meu que fez um sambinha em que o office boy se apaixonava pela secretária de um dos clientes e ele cantava: "Eu sou apenas um fici boy (sic) e ela jamais vai olhar para mim". Daí ele entrega um documento para ela e a secretária entrega um protocolo, e ele canta: "não devolvi o procotolo (sic) para ela porque tinha assinatura dela". Noam Chomsky era apenas um fici boy (sic), ele está lá guardando o protocolo do Partido Comunista porque tem a assinatura dele (do partido) e ele está todo inchado por causa disso. Quer dizer, é um joão-ninguém no movimento revolucionário; na mídia é um cara importante, mas dentro do plano estratégico ele é um nada.
Onde você vê o sujeito fazendo propaganda, ele não é nada. Quem está por trás dele, quem coordena a operação dividindo o trabalho entre propaganda, agente de influência, desinformação, este sim é um cara importante. Eu até hoje nem sei quem é esse cara no Brasil; tenho minhas suspeitas, mas não posso nem dizê-las em voz alta. Só saberemos disso quando alguém for para os arquivos de Moscou e ver se descobre alguma coisa lá. Para vocês verem quanto esses arquivos são importantes, o William Waack passou uma semana lá e já descobriu uma coisa que mudou completamente a história do comunismo no Brasil, que é a história de que a Olga, a famosa Olga Benário, não era uma militante; era uma agente do serviço secreto militar soviético e que a troca de prisioneiros --- "ah, ela foi entregue para o Hitler" --- era uma coisa comum e banal entre a União Soviética e os nazistas [trocar prisioneiros]. Então na hora em que a Olga foi descoberta e queimada, a própria União Soviética mandou entregar para Hitler; era a coisa mais simples do mundo. Isto aí com um documentinho que o cara descobriu lá com uma pesquisa muito superficial. Imagina se ficar alguém por alguns anos lá, escavando. Aí saberemos o que se passou no Brasil, quem foram os agentes, quem fez o quê.
Mas é natural que as pessoas não queiram saber disso, que elas tenham uma espécie de horror instintivo de mexer com essas coisas. Por quê? Isto vai implicar que elas mudem de idéia? Não, isto vai colocá-las fora dos seus grupos de referência, vai acabar com seu círculo de amizades e as pessoas não vão gostar mais dele. E onde que essas pessoas, que são tão frágeis, tão coitadinhas, vão se encostar? O que ele vai fazer se romper com esta turma? Não se esqueçam de que, quando eu comecei a publicar essas coisas, eu era um sujeito sozinho; não tinha ninguém pelas costas, não tinha partido, organização, patrono --- não tinha coisíssima nenhuma. E eu comecei a fazer isso [essa série de artigos] --- que depois foram reunidos no O Imbecil Coletivo, agora no O Mínimo que Você Precisa Saber para não Ser Idiota etc. --- justamente para mostrar às novas gerações que essa rede de resistências, no fim das contas, é inofensiva porque é toda baseada na covardia, na carência afetiva e na necessidade do apoio grupal. E que um sujeito sozinho pode quebrar tudo isso; como de fato eu estou quebrando, e está cada vez mais quebrado, cada vez mais desmoralizado.
Isto é uma coisa que eu queria mostrar para vocês e eu acho que a maioria já percebeu que é assim. E hoje, de certo modo, nós também constituímos um grupo, embora não tenhamos contato pessoal nenhum, não exista um partido, não exista uma disciplina, não exista um plno de ação; não exista nada. Existem somente as aulas que você ouvem, os artigos que você lêem e, sobretudo, o nosso único "plano" --- é o de uma atuação cultural, de sanear a alta cultura no Brasil; porque alta cultura na USP (...) As provas de alta cultura eu digo para vocês quais são: trejeitos efeminados, voz de falsete e uma aptidão tremenda para a fofocagem; isto é alta cultura, o sujeito tem de falar de certas maneiras. Eu não estou exagerando, veja os professores da USP, todos eles falam igual. Não quer dizer que são gays, não precisam nem ser gays --- é a veadagem intelectual. Isto é importante, eu não estou brincando. Alguém deveria fazer um estudo, pegar os vídeos dos vários caras e mostrar [isso]. Mas como é que todos eles falam igual? O que é isto? Isto é impregnação grupal; o sujeito sente que ele precisa ser assim para poder ser aceito no grupo.
Vejam a situação do garoto que sai do ginásio se sentindo aprisionado em um ambiente culturamente provinciano, sem perspectiva, e de repente ele está na USP. [O garoto pensa] "agora eu vou ter abertura para o universo da cultura e da inteligência, agora eu estou na civilização, agora estou transformando o mundo". A adaptação do sujeito a esse novo meio passa por um aprendizado, por uma impregnação de costumes, de trejeitos, de símbolos etc. E isto é a parte principal do aprendizado, que é a socialização do indivíduo. Hoje nós sabemos que em todas as escolas o que importa é a socialização e não o conhecimento. E eu digo que no meio universitário uspiano é exatamente assim. Esta parte [se você quer saber] é a mais difícil de você aprender, porque são regras não escritas; que você tem de pegar pelos olhos, pelos ouvidos, pelo tato, até você se parecer com um deles. E na hora em que você fica parecido, sente que está protegido. Protegido? Não, eles fingem que te protegem, mas eles não podem proteger ninguém.
E você acha que essa turma que rodeia o Renato Janine Ribeiro tem condição de protegê-lo contra mim? Nada, ele está sozinho, e na hora em que virem um cara apanhando vão abandoná-lo; isso já aconteceu muitas vezes. Na hora em que eu humilhei o João Pedro Stedile na frente dos militantes dele, nenhum se levantou para defendê-lo, todo mundo ficou quietinho. Por quê? Porque o chefe é o símbolo da unidade e poder do grupo, e se o chefe caiu, quem sou eu para ficar aqui apanhando no lugar dele? Eu não! Claro que depois o efeito passou, porque ali eram 200 militantes e ele tem 30.000, 40.000, 150.000, sei lá; e os outros não ficaram sabendo de coisa nenhuma. Mas se alguém tivesse feito isso insistentemente com ele e dissesse "olha, onde o João Pedro Stedile estiver, eu vou lá humilhá-lo", a liderança acabava, porque isso é um falso apoio. [1:00] Quando você for ver no meio desses milhares de militantes, quantas pessoas estão efetivamente comprometidas com a organização até o fim? Só aqueles que sabem que ela não presta para nada, só aqueles que entendem o processo inteiro; então são dois ou três profissionais. Os outros estão lá, em grande parte, por este desejo de apoio. Outros esperam obter até algum benefício material, mas isso não é importante ― o quê que é o benefício material perto do apoio? Veja, por exemplo: No tempo da ditadura, se um comunista era preso, havia movimentação mundial para defendê-lo! Mais mundial do que local, é claro; as pessoas vão defendê-lo de longe porque elas não vão se comprometer. Então você podia botar até o Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir para denunciar: "Está lá o sujeito na cadeia".
Agora, se o neguinho é preso em Cuba, tem gente que se mobiliza fora de Cuba para defendê-lo, mas não é o New York Times, não é a CNN. Esses caras não falam nada do que está se passando em Cuba, nada; e no Brasil também não se fala. O número de apelos dramáticos que chega de prisioneiros políticos de Cuba e da China e que nunca ecoam na nossa mídia; é porque você tem um círculo de proteção. Eu mesmo, durante um tempo, pegava essas mensagens que saiam pela internet, ou que recebia por outros meios, e mandava para o Octavio Frias de Oliveira ― "como é?"; tanto falei que um dia ele acabou dando uma matéria sobre prisioneiros políticos na China, uma ― ao longo de 30 anos!
Então o sistema da desinformação realmente funciona, mas onde há desinformação não pode haver propaganda. É isso que (...) você veja: eu falo uma coisa dessas para um cara tipo Renato Janine Ribeiro, ou esses corriolas da USP, eles dizem "ah ele está dizendo que a imprensa é comunista!" ― Oh meu Deus do céu! Se a impressa fosse comunista, não poderia servir de órgão de desinformação; então o comunista que assume a direção de uma coisa dessa, como, por exemplo, o Luis Garcia, o Mino Carta, ele não é louco de transformar aquilo num instrumento de propaganda comunista, porque daí não pode ser usado como desinformação, que é infinitamente mais importante. Então ele tem de fazer uma média. É por definição que a coisa é assim!
Você veja, por exemplo, a instrução de Stálin para o partido comunista americano foi justamente essa: "Vocês não vão fazer propaganda comunista; deixa a propaganda comunista para a arraia miúda, para o pessoal da militância proletária. Vocês, que são a elite do partido, vão se infiltrar nas altas esferas para obter duas coisas, dinheiro e o apoio de pessoas isentas, nos momentos decisivos". Então, por exemplo, eles ganharam lá um juiz da Suprema Corte. O que você vai fazer? Vai botar propaganda comunista na boca do juiz? Só se você for louco. Você deixa o juiz quietinho no seu canto e quando existe uma questão pública de importância estratégica decisiva aí o juiz diz "não, eu acho que eles estão com a razão". Tem de ser uma pessoa isenta, da qual ninguém desconfie; e eles pegaram milhares de pessoas para isso.
Agora, na cabeça do brasileiro é assim: ou o sujeito é comunista explícito, crente, ou então ele não é. Eu digo, mas é uma coisa tão primária, tão boboca, meu Deus do céu. Às vezes eu fico consternado e falo "'peraí', eu sou o especialista na coisa, eu a estudo há 40 anos, por que eu tenho de discutir com pessoas que chegaram agora? Porque o sujeito chega agora e ele acha que sabe.
Eu fico impressionado com essa questão da astrologia. Então, durante anos tem um monte de uspianos e outros, que olham para mim de cima para baixo com narizinho empinado e dizem: ele é astrólogo. De repente você descobre que tá cheio de astrólogo lá no meio deles, porra. Como é que aconteceu isso? Eu conto para vocês; eu acabei de contar no facebook. Nos anos 70, eu comecei a estudar este negócio de astrologia porque o doutor Müller me chamou a atenção para isso e, evidentemente, eu não sou nenhum boboca; eupercebi imediatamente a complexidade da coisa, percebi que aquilo era um saco de gatos, era um enigma. Tinha gente que dizia que era uma ciência, outros diziam que era uma pseudo ciência, mas eu digo: isso não é nem uma ciência e nem uma pseudo ciência, isso é um problema científico terrível, para o qual aparentemente não existe solução.
Então vamos dizer que, por volta de 77/78, eu já dominava todo o debate astrológico do século XX que é uma bibliografia imensa, no qual entraram pessoas, vamos dizer, do mais alto nível; todo mundo tentando resolver o problema, cada um com a sua versão, e no fim ninguém (...) não houve conclusão nenhuma. Então eu vi que ali, nesta coisa da astrologia, havia uma pista para algum fenômeno real, uma coisa que existia mesmo. Mas entre você dizer "olha, parece que existe uma relação, uma correlação entre fenômenos terrestres e celestes", e você dizer "astrologia funciona", a distância é imensa. Isso é a mesma coisa que eu saber que existem seres vivos e eu dizer que domino a biologia. A diferença é mais ou menos esta. Você constatar um fato e você ter uma ciência pronta a respeito, a diferença é imensa.
Então quando chegou ao começo dos anos 90, eu dei aquele curso de Astrocaracterologia, que pegava todo o debate astrológico do século XX, equacionava (...) "Olha, as coisas estão neste ponto". Ali eu expus o status quaestionis; e daqui para diante eu não tenho mais como prosseguir, porque daqui para diante nós temos de passar da fase, vamos dizer, do equacionamento conceitual da coisa para as pesquisas empíricas, e pesquisas empíricas precisam de gente e de dinheiro, e eu não tenho nem uma coisa nem outra, então vamos deixar o assunto como está.
Bom, acontece que houve alunos meus que estavam também na USP, entre os quais o Amâncio Friaça (que era do departamento, eu acho que, de física; eu não lembro direito, ou era física, ou era astronomia, uma coisa assim). Era um sujeito de alta capacidade. E, evidentemente, ficou então este vírus astrológico ali na USP, e por volta do ano dois mil e tanto o vírus parece que impregnou. Então apareceu o Renato Janine Ribeiro falando da astrologia do ponto de vista junguiano; acabaram de descobrir a coisa, e tão logo o sujeito descobre que existe algum interesse intelectual na coisa, o primeiro elemento que lhe desperta a atenção é Jung, evidentemente. Só que isto é o be-a-bá, é o começo da astrologia; eles acabaram de descobrir isso e estão deslumbrados.
Eu digo: olha, eu já passei pelo Jung, já entendi tudo que ele disse sobre astrologia, já entendi que isto não leva a parte alguma; eu tenho uma certa admiração pelo Jung como médico, como clínico ― ele era um grande médico, curou um bocado de gente e ele sabia fazer as coisas na prática. Como teórico, o Jung é uma das mentes mais confusas que já existiram, eu tinha essa impressão e um dia o doutor Müller disse para mim, ele falou: "os caras falam de psicologia de Jung, não existe nenhuma psicologia do Jung; só existe auto- biografia. Tudo o que o Jung escreveu é auto-biografia. Eu falei: pô é isso mesmo. É autobiografia de um médico que não chega a conclusão alguma, e ele mesmo, no fim da vida, no livro Memórias, Sonhos, Reflexões ele diz: querem saber, eu não estou entendendo nada ― e os caras vão procurar um suporte teórico no Jung! Eu digo, meu Deus do céu, eu já comi o Jung no café da manhã, já passei adiante, já estou no jantar, e os caras descobriram o Jung e estão achando que aquilo é um deslumbramento.
Então você vê que essa turma da USP, quando eles percebem que foram passados para trás, eles dizem "não, agora nós não podemos deixar passar". Como assim? Quando eu publiquei o meu livro sobre Aristóteles, fazia 30 anos que não saía um livro sobre Aristóteles no Brasil! Quer dizer, ninguém estava ligando para isso. Daí saiu o meu livro sobre Aristóteles, a USP disse "nós temos de fazer alguma coisa, não pode ficar assim". Daí eles descobriram numa gaveta uma tese do Osvaldo Porchat Pereira de 25 anos antes, ninguém tinha pensado em publicar. "Vamos publicar a tese para mostrar que nós também entendemos de Aristóteles". É uma coisa tão pueril, tão de criança. Ridículo!
Eu não me interessaria por isto se isto não fossem os órgãos de cultura, de alta cultura no Brasil. Não adianta eu me fazer de superior a isso, eu não sou superior, eu sou uma vítima disso, eu estou no meio disso. Eu estou tentando apenas, vamos dizer, me manter à tona, não me deixar submergir neste mar de estupidez que esta gente espalhou por aí. Eu não me considero uma pessoa superior a eles, eu considero apenas que fui mais afortunado. Se tem algum mérito, [1:10] é o seguinte: Eu pedi que Deus me orientasse; eu queria a verdade e sabia que não a tinha. Eles não, eles se contentam com este ambiente de inter-confirmação meio mafiosa, meio pueril, e acreditam que são alguma coisa; ou seja, eles não viveram o problema, eles não viveram a dúvida, eles não viveram a perplexidade em profundidade. Eles não têm uma coisa que se chama sofrimento intelectual, que é a coisa de que falava o Pascal. Eu digo: eu não respeito nem aqueles que vaiam, nem aqueles que aprovam, eu aprovo apenas os que buscam entre gemidos.
Então, meu filho, eu busquei esta coisa entre gemidos, entre dúvidas e perplexidades terríveis durante 40 anos, meu Deus do céu; e eles não têm o senso do problema, eles não têm o sofrimento intelectual profundo. Isso é a mesma coisa que dizer que nunca ficaram seriamente em dúvida a respeito de nada, ao passo que eu fiquei em dúvida sobre tudo.
O próprio Jung diz "teve uma fase da minha vida em que eu só tinha certeza de duas coisas: meu nome e meu endereço, o resto para mim era tudo duvidoso. Eu digo que é um sinal de que o Jung era uma pessoa honesta e sempre foi. Agora, ele não era um gênio do pensamento, ele era um gênio da clínica. Algumas curas dele são absolutamente espetaculares. Como o doutor Müller era exatamente isso; o doutor Müller era um gênio da clínica. Se você pedisse para ele explicar o que estava fazendo, aí você não entendia mesmo. Não entende porque ele também não estava entendendo, eram tudo sacações que ele tinha na hora. Então são tipos específicos de gênios, o cara é um gênio da medicina e eu ainda vou exigir que ele seja um gênio da pedagogia para me ensinar tudo? Não é possível, né.
Então esses fenômenos, todos eles têm de ser, vamos dizer, estudados sob esta grade de perguntas que eu ensinei para vocês na apostila Problemas e Métodos nas Ciências Sociais, e que vim mencionando em vários outros cursos; quer dizer, o que eu tenho de perguntar para entender o que está acontecendo? Às vezes você não tem a resposta, mas se você já tem as perguntas certas, bom, é a mesma coisa que dizer assim ― você não pegou o bicho ainda, mas você já montou a armadilha. Pode ser que o bicho apareça lá, pode ser que não, mas pelo menos você tem uma chance a mais. E lembrando a questão, sobretudo (...) a coisa que as pessoas mais perdem de vista: a questão da ação humana. Várias modalidades de ação humana que existem, quer dizer, a microação individual que você pode reconstituir quase que passo por passo, e o efeito coletivo que é mais ou menos estatístico e imprevisível. Você tem de levar em conta tudo, desde o começo até o fim, se não você cai em erros monstruosos. Vamos dar um exemplo de acerto e erro misturado. (Dá tempo ainda?).
Nessa semana me chegou um livro que eu estava atrás fazia muito tempo, que é esse daqui ― The Rising Tide of Color, Lothrop Stoddard. Eu ouvi falar deste livro no romance do F.Scott Fitzgerald ― O Grande Gatsby. Numa das primeiras cenas do Grande Gatsby, tem um milionário idiota que é jogador de pólo e que pergunta para o rapaz: "você leu o livro (...) ― ele dá um título parecido e o nome ele põe Goddard ―? E eu vi que era referência a um livro que existia. Então ele dá impressão do seguinte, essa questão, que é a questão das raças que ele estava discutindo, era um assunto de interesse somente de uma elite milionária, superficial, mundana etc,, etc., e que tinha o seuorgulho racial branco ameaçado; e eu falei: olha, se um romancista americano está gozando da cara da coisa, então é por que deve ser (...) alguma seriedade tem. E eu fui lá ler, comecei a ler o livro do Stoddard e vi o seguinte, ele dizia (isso em 1910 mais ou menos) que a raça branca, vamos dizer, a hegemonia da raça branca no mundo, estava ameaçada e ia terminar em breve. Você quer uma coisa mais certa do que isto?
Hoje, quando você vê que aqui nos Estados Unidos, por exemplo, você tem obviamente um preconceito anti-branco subscrito pelo próprio governo. Você vê que tem leis para assegurar o sucesso de pessoas de outras raças, mas você não pode fazer nada para defender o branco. Bom, a guerra está ganha; os caras ganharam realmente. Então são negros, são asiáticos, são mexicanos etc. Aconteceu exatamente como o cara disse. Quer dizer que a tese dele estava certa? Não, porque ele, como um bom racista que era, acreditava que as raças são agentes históricos ― quando não são.
Quando você for ver o que criou esta Rising Tide of Color, quer dizer, esta ascensão dos povos não brancos, não foi uma guerra racial. Foi o movimento comunista internacional, que, já nos anos 20, Stálin já tinha percebido que você podia dar, vamos dizer, a conflitos de raça ― mesmo puramente potenciais, virtuais ― o tom de guerra de classes e você então instigá-los contra o Ocidente. Então os agentes não foram as raças. As raças não têm identidade ,não existe organização de uma raça, não existe o líder de uma raça; isso não existe. Pode existir um líder comunista que use a raça como elemento I-DEO-LÓ-GI-CO! E daí eu digo: as raças não são agentes da história, mas o racismo é.
Então você vê que, no século XX, não houve propriamente a luta de raças, mas houve a luta, vamos dizer, entre o poder capitalista e o poder comunista usando elementos ideológicos ― usando como elemento ideológico a raça. Então esse Stoddard, é claro, era um homem de muita cultura, mas ele estava obcecado pela idéia de raça; então até no diagnostico certo ele errou, porque você vê que houve de fato esta ascensão das raças, mas quem subiu não foram as raças, foi o poder político que está por trás dela e que não tem nada a ver com raça, absolutamente. [inaudível, pergunta 1:16:55] Ele ignorou o agente! Exatamente. Ele tomou, vamos dizer, o instrumento pelo agente. O que é isto? É o exemplo daquilo que eu vivo chamando de pensamento metonímico, onde você toma a parte pelo todo, ou o instrumento pelo agente, e que é um vício intelectual de todo mundo que tem a contaminação ideológica.
Eu não acho que contaminação ideológica seja fatal, eu acho isso a coisa mais ridícula do mundo. A ideologia não poderia existir se ela fosse soberana; se o pensamento ideológico fosse uma força que se apossa de todas as mentes, e ninguém escapa daquela contaminação, ninguém poderia tê-lo inventado, meu Deus do céu. É incrível! Se existe um movimento que é capaz de conceber uma ideologia como seu instrumento, é porque ele próprio não está submetido àquela ideologia. Ele sabe algo para além dela, e nesse sentido você vê: o marxismo, como teoria econômica, é bastante furado, mas como teoria da revolução ele tem uma validade objetiva tremenda, eles sabem como fazer isto. Quer dizer, como ciência estratégica é um negócio de uma validade impressionante e que tem de ser estudado.
Significa o seguinte, o próprio marxismo não é totalmente contaminado pela sua própria ideologia. Se nem o marxismo é, por que eu tenho de ser? Mas existem estes bobocas, que acreditam que tudo no mundo é ideológico. Eu digo "bom, os marxistas disseram isso, mas eles próprios não caem no engodo de sua própria ideologia"; por exemplo, marxista não acredita que o poder econômico rege o mundo, eles fazem os outros acreditarem nisto, mas eles não acreditam.
Então o que esse Stoddard fez; ele fez como quem interpreta figuras formadas pelas nuvens. Você diz "olha, parece um elefante, parece uma girafa, parece uma tartaruga..." Eu digo, "de fato parece". Então o efeito, o rumo da história do século XX parece uma guerra de raças ― por quê? Porque de fato houve a queda da raça branca, mas não foi a raça branca que caiu, foram os poderes do Ocidente. Se os poderes do Ocidente fossem compostos de pessoas da raça amarela, seria a raça amarela que ia estar caindo; quer dizer, o que houve foi de fato o alastramento universal do movimento revolucionário, isto sim. E como ele, em parte, usa as raças como elemento ideológico, as raças vêm atrás.
Mas o que faltou para o Stoddard? Conhecimento do [1:20] marxismo. Ele não sabia. Não conhecia direito, mas conhecia Charles Darwin, Houston Stewart Chamberlain ― teóricos do racismo; e ele acreditou nisso. Então este livro é uma mistura de genialidade e estupidez ao mesmo tempo, como tantos outros na História ― quer dizer, o sujeito ouviu o galo cantar mas não sabia onde. Mas, de qualquer modo, não é um livro que seja digno do desprezo, porque ouviu o galo cantar mas não sabia onde.Você fazer previsão, às vezes previsão certa mas pelo motivo errado. Spengler fez isso, Arnold Toynbee fez isso, Karl Marx fez isso; todo mundo fez.
Isso quer dizer que o coeficiente de veracidade que havia na teoria racista não tem nada a ver com a teoria racista, é uma outra coisa; e assim por diante. Você, para viver no meio dessas ambigüidades todas, precisa ter, vamos dizer, um gosto pela busca da verdade e saber que a verdade é uma coisa evanescente, que ela passa pela sua mão e vai embora. E isso não quer dizer que você esteja sempre na incerteza a respeito de tudo; às vezes você consegue uma certeza total a respeito de algum ponto, mas acontece que este ponto é sempre um detalhe dentro de um conjunto que continua tão duvidoso e evanescente quanto tudo o mais.
Eu acho que o Jean Brun tem muita razão naquele texto que nós estudamos aqui, quando ele mostra que todos esses macro-esforços teorizantes que existiram ao longo da história são como os macro-esforços de ordem tecnológica para proteger o ser humano contra, vamos dizer, aquilo que o atemoriza; mas a cada vez que você cria um aparato desses, você cria em troca outros perigos, às vezes piores e mais complexos. Ou seja, a vida humana, na terra, é desconforto; ela é medo, ela é insegurança, e vai ser assim até o último dia ― tanto insegurança do ponto de vista físico, quanto social, quanto intelectual. E a nossa única esperança está realmente no Juízo Final e na passagem à vida eterna.
Se uma vida não é eterna, ela, por definição, não pode ter segurança, meu filho. A vida que está marcada para morrer é insegurança na sua própria base, não adianta fugir; e aqueles que aceitam, vamos dizer, a insegurança e que confiam na vida eterna não constroem expectativas ilusórias a respeito desse mundo. E é isso o melhor que nós podemos obter na nossa passagem por este planeta.
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[1:24:07] (...)
Aluno: Uma noção substantiva de civilização poderia ser obtida a partir de uma derivação em escala social do esforço individual filosófico, isto é, o grau de civilização de uma socidade significaria o quanto de experiência e possibilidades contraditórias ela consegue absorver e coordenar?
Olavo: Isto aqui é absolutamente fundamental. Você não pode esquecer que a civilização é uma forma, é um conjunto de símbolos e regras abstratas que em princípio pretende abarcar a totalidade da experiência de uma dada sociedade, de modo a poder ordenar os seus vários setores, inclusive as vidas individuais em vista desses valores e critérios. E uma civilização pode ter uma abrangência maior ou menor. Um exemplo dessa abrangência era, por exemplo, o panteon romano que absorvia as divindades das culturas menores que ela conquistava e as integrava no panteon romano, de modo que aquelas culturas menores se tornavam elementos da cultura maior, romana, da civilização romana. Isto é claro mostra uma superioridade pelo menos mental dos romanos sobre as demais culturas no sentido de que eu posso compreender você, você não pode me compreemder, ou seja, eu sei quem você é, você não sabe quem eu sou. Eu acho que nesse sentido de superioridade intelectual esse fato é mais do que probante; e, neste sentido, se você pegar a cultura ocidental moderna, nunca houve ao longo de toda a História uma cultura capaz de absorver tão bem as outras culturas. Absorveu todas, quer dizer, eu acho que não há nenhum elemento criado por nenhuma cultura ao longo de toda existência humana, pelo menos da qual tenha sobrado documentos, que não esteja, vamos dizer, perfeitamente integrada dentro da cultura ocidental, e neste sentido obviamente ela é superior. E neste sentido ela pode também ver os seus próprios valores e símbolos de uma maneira relativizada com uma certa distância, uma distância crítica. Ela pode fazer com que seus próprios valores fundantes se tornem matéria de discussão, e neste sentido usar também os valores absorvidos de outras culturas como elementos para fortalecer os seus próprios valores, mas também pode usar como meio para destruí-los. Quer dizer, a fronteira aí entre,vamos dizer, a absorção positiva (a absorção que fortalece) e a absorção negativa (que se torna puramente critica) é muito difícil de você decidir.
Eu acho que a tendência maior, nos últimos 50 anos, é para absorção negativa. Mas isso não foi um processo espontâneo; isto realmente foi gente da KGB na indústria de artes e espetáculos e na universidade, que começou a usar tudo quanto é elemento de outras culturas, vamos dizer, como argumento contra; tentando mostrar, por exemplo, que os índios americanos eram moralmente muito superiores aos brancos. Quer dizer, embora eles matassem os bebês, vendessem mulheres, esfolassem as suas vítimas vivas, eram moralmente superiores porque eles eram pessoas sinceras e não mentiam.
Você vê que dificilmente aparece um índio no cinema americano que não tenha, vamos dizer, uma sabedoria digna, superior à de São Tomás de Aquino; isso tudo é uma operação que começou com John Howard Lawson, nos anos 40, e que continua. Então isso não faz parte do processo normal de uma civilização, quer dizer, isso é um elemento de guerra ― você tem uma cultura antagônica e que se infiltra nesta cultura para tentar destruí-la por dentro. Esse é um fenômeno inédito na História Universal, não se verá exemplo anterior disso.
Por exemplo, quando os portugueses, os europeus, chegaram à China, houve uma discussão de séculos dentro da Igreja para saber se os elementos da cultura chinesa, de que eles estavam tomando conhecimento, deveriam ser combatidos ou integrados; e os jesuítas foram os grandes defensores da integração e da preservação da cultura chinesa. Hoje vocês ouvem falar de I Ching, de Taoísmo, graças exclusivamente aos jesuítas. E você vê que esta preservação dos elementos chineses não fez mal algum à cultura européia, ao contrário, a enriqueceu. Você tem alguns elementos típicos da cultura européia; nós acabamos de falar da psicologia de Jung, eles simplesmente não existiriam sem esses elementos absorvidos da China.
Em outros casos você vê que não há uma absorção; ao contrário, o elemento da cultura externa permanece antagônico, ele não é absorvido, ele é usado como se fosse um veneno para dissolver e destruir a cultura local. De qualquer modo, aí você se referiu a duas coisas: uma coisa é absorver e outra é ordenar os elementos; uma coisa é recebê-los e outra coisa é integrá-los. Na medida em que a civilização consegue integrar, ela está provando a sua superioridade intelectual em relação à outra. A partir do momento em que ela não consegue mais integrar, em que há uma absorção passiva, auto-destrutiva, então significa que ela está chegando no limite do seu horizonte de consciência e começou, vamos dizer, a regredir e a cair.
É uma crise, porém essa crise pode ser superada. Mas depende de as pessoas terem a consciência de como isso aconteceu. Se você acha que isso é um processo normal de absorção cultural, não é. Aí vai ter de entrar o elemento do serviço secreto, das medidas ativas etc., que é uma coisa que já não tem tanto a ver com civilizações, mas tem a ver com nações, estados, movimentos políticos etc.
Aluno: A entrada do Islam na Europa, no Ocidente (...)
A entrada do Islam foi, vamos dizer, uma operação dupla. Houve uma iniciativa que partiu do próprio Islam; foi uma iniciativa, sobretudo, de ordem cultural para conquistar as elites, que foi o que se fez através do René Guénon e Frithjof Schuon. Não se pode esquecer que o Frithjof Schuon chega de volta à Europa nos anos 50, dizendo "vou islamizar a Europa", e começa a conquistar a elite intelectual. Tudo de maneira muito discreta, porque o povo ignorava completamente; e 30 anos depois aparece o problema islâmico e ninguém sabe de onde veio. Não haveria, por exemplo, as legislações que facilitam o ingresso do Islam (...) elas simplesmente não existiriam se antes não tivesse existido esta influência na intelectualidade e no círculo de governantes; círculo de governantes tão altos como, por exemplo, entre os discípulos do Schuon e os discípulos de seus discípulos ― havia lá o Príncipe Charles, havia um cara que foi primeiro Ministro da Suécia, havia banqueiros, havia gente enormemente poderosa que pressionou em favor, vamos dizer, da imigração aberta.
O problema visível da presença e da quase "invasão islâmica" --- da qual as pessoas [1:30] só tomam conhecimento quando aparece nos jornais --- não existiria se não tivesse sido preparado longamente por este trabalho feito por Guénon e Schuon através das tariqas. Vocês não imaginam o número de pessoas da elite européia que estão sob a influência destes caras; e não é influência intelectual --- a pertinência de um sujeito à uma tariqa é feita na seguinte base: o aprendiz, o fakir (como eles chamam) está nas mãos do mestre (sheikh), como o cadáver está nas mãos do lavador de cadáveres --- no Islam, o que importa é lavar o cadáver. Então ele está totalmente passivo, o mestre pode falar-lhe o que quiser; esta é a primeira regra. Segunda regra: você pode entrar, mas não pode sair. Você só sairá se for expulso; "se a gente ver que você não convém com os nossos planos, nós mandamos para fora". É uma ordem de disciplina e de obediência à um nível que as pessoas normalmente não podem imaginar. O Schuon, por exemplo, decidia que tipo de móveis você devia ter na sua casa, quantos cigarros você podia fumar por dia, como você tinha de se vestir e coisas assim. A esses detalhes da vida cotidiana, as pessoas obedeciam 100%, pouco importando se você era o zé mané que chegou da América Latina ou se você era o primeiro ministro da Suécia; ali todo mundo estava nivelado, nesse sentido tudo era democratizado, só tendo duas classes sociais: todo mundo e o sheik --- bom, tem uns funcionários intermediários.
Esta foi uma das linhas de influência. A outra foi a da KGB, que desde os anos 30 está formando um quadro islâmico [conceitos do mundo islâmico] para usá-los na guerra contra o ocidente. Os livros de Ion Mihai Pacepa, O Horizonte Vermelho --- Red Horizons e Desinformação --- Disinformation, contam tudo em detalhes; porque você sabe que a União Soviética, para lidar com os países do terceiro tundo, usava os serviços secretos dos países satélites --- Hungria, Tchecoslováquia, Polônia etc. No Brasil era a Tchecoslováquia, não sei se em outros países da América Latina também. E no mundo islâmico era a Romênia, portanto, Ion Mihai Pacepa era o agente direto que foi lá treinar Yasser Arafat etc.
A ascensão revolucionária islâmica no ocidente vem dessa dupla via. Na verdade, existe uma terceira via: a própria fraternidade islâmica, que é uma organização revolucionária que reinterpreta todo o Islam em termos ideológicos revolucionários, fundada por volta dos anos 20 por Sayyid Qutb. Mas a fraternidade islâmica, por si, jamais teria conseguido ingresso no ocidente se não fossem esses dois fatores: de um lado, a escola tradicionalista, que pretende refazer o panorama religioso do ocidente sob hegemonia islâmica e, de outro lado, a operação da KGB. Ou seja, a Fraternidade Islâmica é muito poderosa internamente --- nos países islâmicos ---, mas ela não teria este acesso ao exterior se não fossem essas duas forças agentes que abriram as portas do ocidente para ela.
Há aqui a pergunta de um aluno que é muito longa, nunca conseguirei responder tudo, veremos só o começo.
Aluno: Paralelo ao Poinsot, estou estudando outro luso-escolástico Francisco Suárez, o Doctor Eximius*, e desses dois me ocorreu uma dúvida em relação à concepção de ontologias regionais como marco de delimitação das ciências particulares. E* A Sabedoria das Leis Eternas*, "Nota Quatro", ao discorrer sobre o estudo das principais leis que descem desse plano das leis eternas ao plano da ordem da manifestação, fala-se da passagem do estudo das possibilidades puras ao das leis que efetivamente regem o ser, que correspondem em termos guénonianos a descida do plano da metafísica ao da ontologia geral. Ora, uma ontologia geral permenecerá sendo uma ciência do ser, campo exclusivo da filosofia, infelizmente ainda hoje muito distante dos símbolos e instrumentos conceituais das ciências desenvolvidas na atualidade. Então, como se daria a descida da ontologia geral às ontologias regionais? (...)*
Olavo: Note que mesmo as ontologias regionais ainda são disciplinas puramente filosóficas. Por exemplo, uma ciência delimita um determinado campo de fenômeno; então os fenômenos que vamos estudar são estes. A providência que o cientista tem de tomar é simplesmente conceber, a partir dessa delimitação que ele fez inicialmente, quais são os métodos experimentais necessários para estudar aquele objeto. Porém, simultaneamente tem de haver uma operação puramente filosófica que o praticante da ciência enquanto tal não pode fazer, a não ser que ele seja um duplo de filósofo e cientista. Mas você tem de examinar, primeiramente, se os objetos assim delimitados existem realmente ou se são uma convenção determinada pelo método, se é uma projeção kantiana do método --- isso é uma questão puramente filosófica. Eu não vejo como isso possa se mesclar no dia-a-dia da pesquisa científica, isso fica atrás da pesquisa científica. E o cientista pode prosseguir as suas investigações sem levá-lo minimamente em conta, porque ele não está interessado em produzir resultados que sejam ontologicamente válidos, mas que sejam apenas cientificamente válidos. Ou seja, que tenham validade dentro de um corpo de convenções, dos quais se possa tirar eventualmente alguma aplicabilidade técnica; e isso é tudo.
Eu já falei para vocês, nenhuma ciência estuda a realidade; só estuda esses esquemas abstrativos e é evidente que qualquer ação técnica nunca incide sobre a realidade, mas sobre um aspecto seletivo dela. Toda ação técnica é abstrativa, por isso ela só pode calcular os efeitos que ela tem dentro da linha de causalidade que ela enfoca. Os efeitos colaterais não estão ao alcance da pesquisa. Por exemplo, quais são os efeitos sociais da introdução de um novo medicamento? Isso não faz parte da pesquisa que produziu este medicamento e requer conhecimentos e investigações que estão infinitamente além da farmacologia. Isso quer dizer que a ação técnica nos impressiona porque ela tem efeitos materiais, mas nem por isso deixa de ser verdade que é uma ação abstrativa que só incide numa determinada linha de causalidade, que é aquela que está ao alcance daquela ciência em particular. Mas tudo o que age na realidade tem efeitos não abstratos, mas concretos, sob uma multiplicidade de dimensões da existência que estão fora da alçada daquela ciência. Eu me lembro que li, antigamente, o livro Le Macroscope, do biólogo francês Jöel de Rosnay, em que ele falava que idealizava um enfoque sistêmico que, no entender dele, conseguiria articular os pontos de vista de todas as ciências. Eu digo que isso é utópico, você só vai até certo ponto e depois não vai mais. A realidade não é um catálogo de dimensões da existência que coincidem com os nomes das disciplinas científicas. A realidade é um sistema aberto e ilimitado, e os domínios abrangidos pelas ciências estão continuamente se dissolvendo; às vezes, a vizinhança que tem entre uma ciência e outra já não é mais uma vizinhança, é uma mescla --- você não sabe onde termina uma coisa e onde começa outra. Quer dizer que não há ciência da totalidade, no sentido empírico. Para haver uma ciência empírica da totalidade, nós precisaríamos ter a experiência física da totalidade e isso não é possível. Portanto, só é possível a abordagem filosófica; isso é assim no campo da metafísica, da ontologia geral e das ontologias regionais --- não tem escapatória. O quanto os cientistas vão prestar atenção nisso e o quanto eles vão continuar agindo independentemente, como se só a ciência fosse o universo inteiro, eu não sei; depende da consciência de cada um.
Existem teorias científicas que, dentro de seus próprios parâmetros e da sua própria grade conceitual, são perfeitamente válidas, mas que ontologicamente não se sustentam; o que não quer dizer que você deva parar com essas investigações ou que elas estejam cientificamente erradas. É isso que esses cretinos que me ouviram falar sobre Newton ou Einstein não são capazes de entender: onde termina a validade científica de uma teoria e onde começa a sua validade ontológica.
O sujeito que estudou biologia só entende disso e acha que a biologia explica tudo. Então, o que quer que você diga, ele acha que está falando do ponto de vista da ciência biológica e daí começa a contestar nessa base; mas não entendeu uma palavra do que eu falei, meu Deus do céu! [1:40] Por exemplo, quando eu disse que a teoria da relatividade de Einstein está baseada num contra-senso lógico, isto não invalida a teoria, porque ela limita o seu alcance ontológico, não a sua validade dentro do campo a que ela se propôs; ou a teoria de Newton: quando Newton fala do tempo absoluto --- o tempo considerado sem acontecimentos e o espaço sem coisas ---, essas noções, ontologicamente, não são sustentáveis, mas você pode postulá-las (e isso é importantíssmo) como base de uma investigação científica, a qual não deixará de ser válida nos seus próprios termos por causa disso. Quando eu digo isso eu não estou contestando a lei da gravitação universal ou a relatividade; só na cabeça desses idiotas, analfabetos e metidos.
Examinar uma ciência do ponto de vista ontológico e da sua validade ontológica, seja ontologia geral ou regional, tem pouco alcance sobre a validade interna dessas teorias porque essas ciências não têm um alcance ontológico; nem têm como ter. Se você pegar a biologia inteira, não tem como validá-la ontologicamente. Ela só é válida dentro dos seus próprios parâmetros experimentais, e só; nunca além. Qual é a noção biológica do Ser? É possível você criar uma definição biológica do Ser, ou da realidade? Não existe isso. Isso quer dizer que qualquer investigação científica só é possível em cima de uma multidão de pressupostos filosóficos que não serão discutidos daí por diante dentro do corpo desta ciência, senão a ciência seria impossível. O primeiro passo que você vai dar já vai levantar tantas dúvidas filosóficas que você não vai conseguir fazer a primeira investigação. Por exemplo, quando Darwin escreve o livro A Origem das Espécies; [eu digo] o conceito biológico de espécie não é o mesmo conceito lógico de espécie, não é a mesma coisa. Isso quer dizer que o prosseguimento das investigações sobre a evolução ou não-evolução da espécie, mais dia, menos dia vai criar problemas lógicos.
Esses problemas lógicos podem ser deixados na gaveta durante um certo tempo, mas um dia eles vão aparecer; quando aparecerem, vai significar o seguinte: esta ciência entrou em crise, e quando ela entra em crise, ela é obrigada a retornar aos seus conceitos primários que é, evidentemente, a questão da validade ontológica ou não desses conceitos primários --- mas isso não acontece todo dia, apenas de vez em quando.
A física está em crise perpétua desde o começo do século XX. Isso, na verdade, não a derruba; antes a enriquece, mas a torna cada vez mais incomprensível porque, por um lado, os problemas filosóficos não foram resolvidos e, por outro lado, a física não consegue jogá-los completamente fora. Então fica este [vai/não vai] impasse que alimenta a discussão filosófica em torno da física há cem anos, para a qual o Dr. Wolfgang Smith sugeriu uma saída no livro O Enigma Quântico e em outros livros. A saída dele pode estar certa ou errada, eu não sei e acho que isso não vai ser resolvido tão cedo.
Então, o que é a análise filosófica de um discurso científico e o que é o próprio discurso científico --- tem pessoas que jamais entendem isso e nem poderão entender, porque, [note:] para estudar biologia basta você passar nos exames e fazer o curso de biologia; mas, para você entrar numa discussão filosófica, você precisa ter uma cultura geral monstruosa --- isto é característico do filósofo. Não existe filósofo especializado, só na USP. Na USP o sujeito faz o curso de filosofia e se torna especialista em Espinoza; e aí vai, só fala de Espinoza peloresto da vida. Mas isto é contraditório com a natureza mesma da filosofia, que é, como eu já disse, a unidade do conhecimento na unidade da consciência. Então o número de conhecimentos que um filósofo precisa ter para poder exercer o exame filosófico é ilimitado, e é evidente que, em grande parte, esses conhecimentos não terão a profundidade especializada que tem o praticante de determinada área. Mas você precisa saber, de cada uma dessas áreas, aquele mínimo indispensável para saber o quanto das conquistas desta área específica já se integrou na cultura geral e na história geral das idéias, e o quanto é apenas coisa especializada.
Mas esta parte das áreas de integração das várias ciências na história geral da cultura e das idéias, isso você tem de saber de qualquer modo; e isto é, por sua vez, uma especialidade. No Brasil existem até alguns cursos de especialidade que são sérios, mas as pessoas não têm cultura, não têm sequer o domínio da linguagem, não entendem nuances, não sabem distinguir entre uma comparação e um juízo categórico; é uma enorme incultura primária. Se você assinala uma dificuldade na teoria de Newton, eles acham que você está contra a teoria e que você tomou partido --- O que é isto? Parece que se está discutindo com universitários, mas não; está discutindo com meninos de ginásio. Quando eu tinha quatorze anos eu era um evolucionista, um darwinista; era cheio de modelos e retratos de dinossauros e de Charles Darwin. Então se alguém falasse mal daquilo eu ficava indignado. Até hoje eu não sei se a teoria da evolução é verdadeira ou falsa, e pior: ninguém sabe; mas tem gente que acha que sabe. Eu digo "eu não sei. Mas basta você dizer "não sei" que as pessoas concluem "pronto, ele é contra, ele é criacionista (...)". É uma mentalidade de clubinho, e isso que tem de acabar no Brasil. Para as pessoas superarem isso elas têm de adquirir cultura; e, primeiramente, cultura literária: elas têm de dominar a linguagem e pegar todas as nuances.
Outro dia alguém postou no facebook, dez teorias que abalaram o mundo; como o solipsismo etc. Escuta, qualquer dessas teorias tomadas materialmente é um absurdo, o que não quer dizer que, olhando por meio [pelos olhos] dessa teoria, o seu autor não tenha descoberto um monte de coisas interessantes, válidas e úteis para nós. Por exemplo, ao ler David Hume --- ele não acredita sequer que existe o "eu"; só tem estados que passam pela psique sem o "eu" por trás deles. Então quem escreveu esse livro, ó raios? Porque o sujeito, para escrever um livro, ele não escreve com os seus estados, ele tem de comprometer o seu "eu" inteiro. Então a teoria dele é absurda, evidentemente, o que não quer dizer que Hume seja uma besta quadrada e que este modo de encarar as coisas não o leve a descobrir muitas coisas interessantes, inclusive sobre os aspectos frágeis e problemáticos do "eu". Ou seja, foi uma intuição parcial que ele teve, que é muito rica e muito importante em si mesma; ele está nos ajudando, não está atrapalhando.
Os clássicos da filosofia são isso --- o sujeito tentou articular a unidade do conhecimento até o ponto em que ele podia apreendê-la e chegou a paradoxos; mas esses paradoxos existem, eles estão na cultura realmente. Agora, o sujeito, ao analisar uma teoria, pergunta se você concorda ou não; mas que coisa absurda. É claro que tem coisas com que concordamos e discordamos, mas concordar ou discordar não são as únicas atitudes possíveis perante essas teorias. Essas pessoas têm medo de absorver teorias com as quais elas não corcordem linha por linha, é uma coisa incrível! O sujeito começa a ler e, na primeira frase de que discordout, ele para; não quer mais saber disso. Entra um aspecto partidário, religioso, bocó; o sujeito adere às teorias científicas e filosóficas como se fosse um partido político, um clube de futebol ou uma torcida. E pior, eles acham que eu penso do mesmo jeito e que, portanto, se eu não estou torcendo para o time deles, logo, estou torcendo para o time contrário. Então eu estou discutindo com meninos de ginásio. Elas são, portanto, evolucionistas como eu era aos quatorze anos: aquilo não era uma teoria científica, era parte da minha identidade; eu incorporei aquilo, portanto qualquer ataque àquilo era um ataque à minha pessoa --- e todos eles vivem a coisa assim. Pior, eles não entendem que alguém seja diferente disso, pois para entender precisam ter muita cultura e muita experiência de vida; e eles não têm.
Essa questão da descida da ontologia geral às ontologias regionais é a condição geral de todo ser --- quer dizer, o que o objeto precisa ter para que você o admita como parte da [1:50] existência. Mas tão logo que fez isso, você percebe que existem modalidades diferentes de existência e cada uma delas tem de ser descrita na sua própria constituição interna --- pelo seu modo de presença, de apresentação --- e, portanto, pela sua consistência interna; e isto é uma ontologia regional. Por exemplo, se alguém diz "uma ontologia dos seres vivos"; significa que uma parte dos seres se apresenta para você de certas maneiras que não as maneiras pelas quais os outros se apresentam. Você não obtém conhecimento de uma lagartixa como obtém de uma equação de segundo grau, ou de uma ideologia política, ou de uma emoção humana --- cada objeto tem a sua própria modalidade. Essa modalidade pode ser descrita pelo método fenomenológico, no qual você terá a ontologia regional das lagartixas: para ser uma lagartixa precisa de tais traços e ela se apresenta de tais maneiras. Eu não acho que isso seja realmente uma grande dificuldade.
Aluno: (...) Se assim for, cada ontologia regional não teria seu núcleo axiomático legítimo circunscrito ao seu campo de atuação? (...)
Olavo: Sem dúvida tem, mas esse núcleo axiomático tem, por sua vez, de ser validado pela ontologia geral, ou seja, ter uma independência relativa, uma independência funcional.
Aluno: (...) Mas se assim for, deve haver uma zona de intercâmbio que permita a conexão entre as ciências desde que se respeite a ordem e os diferentes domínios do saber.
Olavo: Sim, isto é possível, mas é apenas uma possibilidade; e, pior ainda, a humanidade mal começou a arranhar isso. Os esboços de interdisciplinaridade que eu vejo por aí são de uma grossura extraordinária. É possível que você faça a passagem desde uma ontologia geral para uma ontologia regional, daí para a delimitação no campo científico e então, para a investigação desse campo em especial. É possível fazer a passagem conservando, na medida do possível, a coerência ou a continuidade entre esses vários núcleos axiomáticos, como você os chama, do menor para o maior. Nodia em que eu divulgar o meu curso de astrocaracterologia você vai ver que é assim. A questão que eu coloquei foi a seguinte: como pegar esta maçaroca, esta confusão inabarcável que são os livros de astrologia, as doutrinas e técnicas astrológicas etc. e tentar dar a isso um encaminhamento científico, ou seja, como tornar isso investigável cientificamente. Note que eu não estou discutindo a questão vulgar, boba, cretina de provar cientificamente se a astrologia funciona ou não --- isto é o pré-mobral deste estudo e não é disso que estou falando. Qualquer tentativa de validar ou invalidar cientificamente a astrologia, eu demonstro ali no curso que é absolutamente impossível, porque você não pode, numa mesma pesquisa, investigar um objeto e o modo de conhecê-lo; isto aí são duas questões. Por exemplo, investigar se existe realmente alguma correlação entre os acontecimentos terrestres e os celestes é uma coisa, investigar se a astrologia funciona é outra completamente diferente. Praticamente todo o debate astrológico está infectado disso até hoje, e esse pessoalzinho da USP que está se metendo no assunto, não chegou nem a perceber que este problema existe.
Eu estava tentando fazer uma ontologia regional --- se existem estas relações entre acontecimentos terrestres e celestes, de que tipo elas são? Ou seja, que aspectos da existência terrestre podem, em hipótese, serem relacionados com acontecimentos terrestres e quais não podem? Por exemplo, Santo Tomás de Aquino fez um esforço para responder essa questão; ele diz: "os astros são corpos; corpos não exercem uma influência psíquica; corpos só agem sobre outros corpos". Então, para investigar isso nós deveríamos nos ater aos aspectos fisicamente descritíveis. Essa resposta de Tomás de Aquino é certa, mas ela não abrange o território inteiro, porque os fenômenos astrais se caracterizam pelo seu caráter cíclico --- eles se repetem. Portanto, a princípio, tudoaquilo que não for ou uma estrutura estática (correspondente a um momento X), ou que não for cíclico, não pode ser estudado sob este ponto de vista. Com isso você já exclui 97% das coisas que os astrólogos dizem. O que eles dizem pode até ser verdade, mas não pode ser estudado cientificamente pois esta comparação não é possível.
Você tem ali, no curso de astrocaracterologia, uma ontologia geral, uma ontologia regional e uma proposta de investigação científica. Tudo isso, no meu entender, está coerido. O problema é que o curso durou dois anos, as suas transcrições são uma maçaroca [confusão] sem fim e até hoje eu não encontrei uma boa alma que quisesse redigí-las. E eu mesmo não tenho tempo nem cabeça para fazê-lo. De qualquer modo, existe o livro O Caráter Como Forma Pura da Personalidade, que é um índice do curso.
Aluno: Como começar a estudar essa complicada novela da esquerda brasileira? Por onde começar?
Olavo: A primeira coisa é você juntar bibliografias da própria esquerda brasileira que mostrem a sua evolução, a história da sua auto-imagem e, com base nisto, a imagem que ela tinha da sociedade brasileira --- com episódios, alguns bastante interessantes, como a discussão que houve nos anos 60 para saber se tinha havido feudalismo no Brasil ou não. As duas grandes teorias eram a do Caio Prado Júnior e do Jacob Gorender. Ambas convergiam em dizer que não houve feudalismo no Brasil, e sim um empreendimento capitalista, mas por motivos completamente diferentes. E tinha a doutrina mais oficial anterior, de Nelson Werneck Sodré e outros, que dizia que existia um feudalismo brasileiro. Esta discussão desembocava imediatamente numa decisão estratégica do Partido Comunista: porque se houve feudalismo, estamos em plena revolução burguesa e, portanto, a nossa função agora é ajudar os burgueses a realizar a revolução burguesa, para depois chegar à etapa em que seja possível a revolução proletária; se não houve feudalismo, se foi tudo capitalismo desde o início, estamos na fase da revolução proletária propriamente dita e, então, temos de partir para a porrada. Qual foi a solução? Não sabemos, portanto, vamos fazer as duas coisas ao mesmo tempo. É um capítulo muito interessante. Você vê que a relação entre a auto-imagem da esquerda e a imagem que ela fazia da sociedade era muito interessante. Uma vez que você tenha isso [essas bibliografias], você vai ter de estudar uma parte da história da esquerda que não faz parte da auto-imagem dela; portanto, os julgamentos de terroristas, a história da Intentona Comunista de 1935 tal como foi contada pelos seus antagonistas, e assim por diante.
Aluno: ... da semana de 1922?
Olavo: Não. O aluno fala da semana de 1922. O comunismo brasileiro tem uma remota raíz na semana de 1922, mas é uma ligação muito tênue. O Partido Comunista, no Brasil, parece que foi fundado em 1925; e mesmo assim não se tornou mais importante antes do meio da década de 30. E, em terceiro lugar; aí você vai chegar ao mais interessante: ver como se estudou essa mesma coisa em outros países. Como, na França, se estuda a história da esquerda francesa? Como, nos EUA, se estuda a história da esquerda americana? E daí você vai ver como nós estamos longe, nós não sabemos nada a respeito da esquerda brasileira. Praticamente tudo o que nós sabemos é a sua história interna, é a sua auto-imagem; ou então observações casuais feitas por inimigos que nunca produziram uma obra científica sobre a história da esquerda. Os esquerdistas pelo menos têm este mérito, eles pretendem contar a sua história cientificamente --- não é científico, mas ao menos eles têm esta presunção. E o pessoal do outro lado, não; só escrevem coisas criticando duramente e contando um ou outro episódio isolado. Não é uma reação intelectual à altura do que a esquerda está produzindo, [2:00] nem isso eles chegam a fazer. Tendo este modelo de como nesses outros países, um pouco mais civilizados, se trata o problema e se estuda essa história, daí você pode tentar fazer a mesma coisa no Brasil. Só que você vai chegar a um ponto onde você vai entender que a documentação da história da esquerda brasileira não está no Brasil --- está em Moscou, em Pequim e está em Havana. Desses três, você pode ter acesso à uma parte dos arquivos de Moscou, e você verá que, sem elucidar esses pontos, você não saberá nada do que se passou porque você só vê os estados de coisas já prontos. Você não vê a origem, o micro-trabalho dos agentes, como eles foram montando as coisas aos poucos, que é uma coisa que nos EUA e na França já se sabe de trás para adiante. Quanto mais se sabe essa história, mais repulsivo o comunismo lhe parece, porque você vê que ele é todo baseado no engodo, na traição, na maldade, na malícia e na mentira --- tudo, 100%.
Eu fui perdendo o respeito pelo marxismo aos poucos. Primeiro, eu deixei de ser marxista, mas ainda o respeitava; depois fui vendo que não era bem assim. Hoje eu entendo que tudo isso é engodo, tudo isso é mentira. Acho que foi Pio XI que disse: "esse é o maior inimigo que a humanidade já teve". O resto é tudo mixaria, até o nazismo; o nazismo é um pedacinho da história da revolução. Aliás, alguém me recomendou, nessa semana, o livro O Socialismo de Camisa Parda [Le Socialisme En Chemise Brune]. Um livro excepcional escrito na França por um jovem de 21 anos, chamado Benoît Malbranque.
Ficamos para a semana que vem. Até lá. Muito obrigado.
Transcrição: Charles Santos, Tamas Souza, Adi Neves Rocha e Cláudia Makia.
Revisão: Leonardo Yukio Afuso
Footnotes
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The Sociology of Philosophies: A Global Theory of Intellectual Change ↩