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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 219

7 de Setembro de 2013

Boa noite a todos. Sejam bem-vindos!

Eu queria continuar com a leitura e análise do texto do Ronald Robson e depois, se houver tempo, retornar ao Jean Brun. Eu creio que nós paramos na página quatro do texto do Ronald Robson onde ele estava dizendo o seguinte:

Existiria um vínculo indissolúvel entre a objetividade do mundo e a individualidade da experiência, a qual é preterida em um meio cultural de politização geral (gramscismo) e disseminação de substitutivos das experiências realmente fundadoras do conhecimento (...)

Isto se deve ao simples fato de que o falatório geral, a circulação de slogans, chavões, topoi, etc., cria por si mesmo um mundo verbal e tem um poder de persuasão muito grande; um poder de penetração na mente individual de modo que, pelo simples fato de enxergar as coisas tal como os outros estão enxergando, o indivíduo acredita que aquilo é realmente a objetividade do mundo, o que é uma coisa absolutamente impossível. Até por estatística: se você toma um determinado meio social, a possibilidade de que o discurso da maioria esteja certo é praticamente nula. Isso significaria a mesma coisa que você tornar o conhecimento matéria de eleição [de votação] ao passo que a percepção individual tem suas exigências e ela pode ser encoberta e totalmente deformada justamente por esse discurso ambiente.

Eu sempre insisto na necessidade de você voltar as suas percepções reais; àquilo que Saul Bellow fala sobre os escritores intelectuais e das impressões autênticas --- isso é básico; mesmo quando tudo aquilo que você percebe seja difícil de expressar. A língua que nós usamos é um produto coletivo e ela não vem amoldada à expressão das nossas necessidades e percepções individuais, mas justamente ao contrário: ela é apropriada à repetição do discurso coletivo. Nós é que temos de amoldá-la para que ela consiga expressar exatamente aquilo que nós estamos vendo e não aquilo que o meio ambiente diz que nós deveríamos ver. E esta é precisamente a função dos escritores --- preservar a individualidade da linguagem é a primeira função de um escritor. Aquilo que chamamos de estilo [ou estilística] não é nada mais do que isso, é o indivíduo conseguir remanejar a linguagem para que ela diga o que ele está percebendo em vez de repetir cacoetes coletivos; os escritores existem precisamente para isso. É o que dizia Stéphane Mallarmé com a expressão "dar um sentido mais puro às palavras da tribo". É claro que a tribo já está falando mas as pessoas recuam desde esse aglomerado de impressões padronizadas para a percepção direta e evidentemente têm dificuldade de expressá-la, tendo que remanejá-la e amoldá-la às suas necessidades expressivas pessoais.

Por exemplo, se você quer conhecer algo da psique humana, a quem você vai perguntar isso? Aos preconceitos e chavões que circulam na sociedade ou você buscará escritores como Dostoievski, Tolstói ou Stendhal? Só fazendo esta pergunta você perceberá que este império do linguajar coletivo é uma cortina que se interpõe entre o indivíduo e a realidade, criando-se assim uma segunda realidade como dizia Robert Musil, uma realidade feita somente de palavras. Eu já assinalei muitas vezes este fenômeno que no Brasil é endêmico: palavras e expressões que têm um efeito emocional por si próprias, independentemente dos fatos ou coisas a que elas se reportam. Então cria-se todo um mundo de emoções, de reações e crenças apenas na base da linguagem, sem nenhuma substancialidade por trás disso; é apenas um efeito lingüístico. A função dos escritores é justamente quebrar isso e devolver à linguagem a capacidade de ter um contato com a experiência real.

(...) ou seja: coletivismo, no fim das contas, é subjetivismo.

Sim! É um subjetivismo coletivo, como se um grupo ou uma coletividade tivessem combinado de todos enganarem-se mutualmente através da repetição dos mesmos cacoetes. A eficiência disso em tapar a realidade e tornar os fatos invisíveis é uma coisa monstruosa! Agora mesmo alguém me perguntou pelo Facebook: "você conhece algum livro sobre a atuação da CIA na América Latina?". A atuação da CIA na América Latina é um gênero literário altamente prolífico. Existem milhares de livros à esse respeito, em geral, fabricados pela DGI --- o serviço secreto cubano; quase todos são obras da DGI. Mas as pessoas se acostumaram com isso e não questionam se não haveriam agentes da KGB e, sobretudo, da DGI atuando no Brasil. Não existe um único livro sobre isso. As pessoas estão acostumadas a olhar as coisas por esse lado e o outro lado desaparece, some do interesse. Mesmo quando a presença da DGI é visível as pessoas não ligam, pois estão dessensibilizadas. Não podemos esquecer que um coronel da DGI, o José Dirceu, foi presidente de um partido --- um dos homens mais influentes desse país e ninguém sequer investiga. Todos dizem que ele é um ex-oficial do serviço secreto cubano. Porém não existe isso, ninguém saí do serviço secreto por aposentadoria, jamais; você fica lá até o fim da sua vida ou você saí morto! No entanto, ninguém tem sequer o interesse de investigar. A coisa mais óbvia é que a presença da KGB e da DGI na América Latina sempre foi muito mais intensa do que a presença da CIA ao ponto que o Ladislav Bittman no livro The KGB and Soviet Disinformation: An Insider's View disse que a equipe da KGB, em 1964, não conhecia um único agente da CIA que estivesse lotado no Brasil.

Com isso cria-se uma rede de impressões que sensibiliza excessivamente para certas coisas e dessensibiliza para outras. E para tentar ver as coisas por outro lado, para fazer outras perguntas, é necessário você fazer um esforço interior. E você precisa evidentemente se apoiar numa linguagem própria que não irá repetir esses chavões de sempre. Eu dei esse exemplo político, mas poderia dar milhares de outros.

E é contra este que se afirma o conhecimento como intuicionismo radical1: ao contrário do que é comum pensar, o que há de mais objetivo e especificamente humano no conhecimento é o que os antigos lógicos chamavam de "simples apreensão", ou seja, o ato pelo qual a consciência toma ciência da presença de um determinado dado da realidade.

Os lógicos antigos, sobretudos os escolásticos, definiam a simples apreensão como o fato de você tomar ciência de algo sem nada afirmar ou negar. Eu acho que essa noção tem que ser escavada mais profundamente porque tomar ciência de algo já é afirmar uma presença. Se eu percebo um gato, estou afirmando a presença do gato. Sem nada afirmar ou negar, não se tem um juízo a respeito do gato, mas já existe o juízo implícito sobre a sua presença ou sobre a sua existência, seja de qual modo essa existência for.

Em segundo lugar, o que denomino "intuicionismo radical" consiste em dizer que não existe a divisão entre conhecimento intuitivo e conhecimento racional. Só existe conhecimento intuitivo. Porque quando você faz um raciocínio, uma seqüência de silogismos, essa seqüência só tem valor se você [00:10] perceber a unidade dessa seqüência, porque é essa unidade que dará a conexão entre as premissas e as conclusões. Como é possível perceber esta unidade? É através de outro silogismo [você percebe racianalmente] ou de maneira imediata e intuitiva? Isso quer dizer que o próprio fundamento do raciocínio lógico é intuitivo ou ele não é nada. Significa que a razão não é um meio de conhecimento; só a intuição dá o conhecimento. O raciocínio é um modo de simbolização do conhecimento por trás do qual tem que haver alguma realidade que seja percebida intuitivamente, o que ocorre inclusive com a própria estrutura e unidade do raciocínio. Quando você diz "A=B e B=C, portanto A=C"; bom, você fez essa conexão. Se essa conexão dependesse de ser provada racionalmente você teria um segundo silogismo, um terceiro e assim por diante sem nunca terminar. É a intuição que concluí a percepção da unidade do raciocínio e, portanto, transfere a validade da premissa para as conclusões. Isso tem de ser um ato imediato e intuitivo. Dizer que existem dois tipos de conhecimento é uma bobagem: todo conhecimento é intuitivo ou é nada. Eu defino intuição como a percepção de uma presença.

O "raciocínio", a construção silogística e suas derivadas, é posterior e é uma aptidão de ordem construtiva e, portanto, mais dada a erros.

É lógico! Quando você percebe uma presença, percebe nela uma infinidade de detalhes e de aspectos que a linguagem não poderia representar. Por exemplo, você percebe um gato; que cor é o gato? É cinzento; em que ele se distingue de outros gatos cinzentos? Ele têm pintas; quantas pintas? E assim por diante... Basta você fazer essa pergunta para perceber que o ato de percepção é infinitamente mais rico do que o que você pode explicar com a linguagem. A linguagem se apóia no mecanismo da abstração, que consiste em separar um aspecto de outros aos quais ele está indissoluvelmente conectado na realidade, passando a partir daí, a raciocinar apenas com aqueles elementos que você abstraiu, acreditando, no fim das contas, que a conclusão a que você chegará, raciocinando a partir desse conceito abstrato, se aplicará retroativamente ao objeto originário da sua intuição. Na verdade, ele se aplicará somente àqueles aspectos que foram abstraídos e não aos demais. Portanto qualquer raciocínio precisa estar permanentemente fiscalizado por um retorno à intuição, ou então ele não tem valor, consistindo apenas em um mundo de palavras.

Vocês devem se lembrar da aula em que eu expliquei o que é um fato concreto, em que cujos componentes e os elementos estão presentes não apenas em suas essências, mas em suas propriedades e na totalidade dos seus acidentes, que são necessários para que aquele acontecimento se produza. É o que eu chamo de acidente metafisicamente necessário. Parece uma expressão logicamente incongruente, mas na verdade é perfeita; é o acidente que não faz parte da essência dos objetos considerados, mas sem o qual o fato não se produziria. Por exemplo, o fato de que tudo que acontece tem de acontecer em algum lugar, e que os componentes desse têm de estar no mesmo lugar ou conectado espacialmente de algum modo. Você pode dizer "o lugar pode ser indiferente". Por exemplo, se duas pessoas estão discutindo, elas podem estar discutindo no bar, ou em casa, numa praça, num escritório, em qualquer lugar... Porém elas não poderiam estar discutindo em lugar nenhum. Ou seja, se não houvesse aquele lugar, se naquele momento elas não estivessem ali, a discussão não aconteceria. Toda percepção leva isso em conta, mas a linguagem e o raciocínio dificilmente o levarão. Em geral você abstrai o que lhe parece essencial e continua raciocinando. E isso faz com que este encadeamento de essências lhe pareça a realidade --- enquanto ele não é a realidade, mas uma representação esquemática da realidade.

Além disso, outras representações esquemáticas sempre seriam possíveis porque qualquer acontecimento [por mais mínimo que seja]tem uma multiplicidade de aspectos sob os quais ele pode ser enfocado; e o que decide qual é o aspecto essencial é o interesse do observador. Por exemplo se você é um zoólogo e está estudando uma vaca, seu enfoque será sobre certos aspectos que lhe parecerão essenciais a uma vaca (é um animal, que está num determinando lugar numa escala biológica etc.); porém se você é um comerciante de gado, a vaca é essencialmente uma mercadoria e as suas características biológicas entram apenas como um acréscimo. Mas uma vaca, como qualquer outro elemento, é essas várias coisas simultaneamente e o discernimento de uma essência depende de uma escala de valores e interesses pelos quais se enfoca o elemento. Não que metafisicamente não exista uma essência que predomina sobre as outras. Existe, mas não é que o ente tenha só uma essência, ele tem várias; ele é um aglomerado de essências que se articulam umas com as outras para formar um objeto concreto, junto com as propriedades e com os acidentes. Podemos perguntar "existe um ponto de vista predominante sobre os demais e que possa subordiná-los?" Existe: é o ponto de vista metafísico, que é o ponto de vista da estrutura da realidade. Porém esse ponto de vista só predomina desde o ponto de vista de quem está estudando metafísica. Para o zoólogo ou comerciante de gado esse é um ponto de vista secundário. Qual é o lugar da vaca dentro da escala geral do ser? Nenhum dos dois está interessado nisso, somos nós que estamos interessados! Dificilmente poderemos dizer que nosso ponto de vista tenha um predomínio objetivo sobre os outros --- ele pode ter um predomínio cognitivo, se é isso o que se está procurando. Isso implica dizer que a percepção é a base que está no fundo de todo discurso, e se ela for removida o discurso perderá todo o sentido.

Para qualquer frase que você use [qualquer comunicação verbal] o mundo de percepções que está subentendida ali é um negócio infinito. Por exemplo, você entra no supermercado e pergunta quanto custa uma salsicha; a partir dessa frase, suprima imaginativamente a existência do supermercado, da salsicha, a fábrica da salsicha etc., e então a frase perderá todo seu significado. Isso quer dizer que toda comunicação verbal é intermitente, é escandida por percepções que estão ao fundo e que dão sentido ao que está sendo falado. Por isso mesmo, a idéia de estudar a língua como se fosse um sistema é justa, pois sob certos aspectos, ela é um sistema mesmo. Mas no seu funcionamento real ela nunca é um sistema; ela está sempre em aberto. Por exemplo, se você está em um país estrangeiro, fala mal a língua e não domina o sistema gramatical, o que você faz? Você indica os objetos dos quais você está falando, você faz um gesto ou uma careta. Porém, suprima imaginariamente tudo isso e a comunicação se tornará impossível! Isto quer dizer que a língua só é um sistema do ponto de vista do lingüista estrutural que a está estudando, mas em si mesma ela jamais é um sistema, nunca; um sistema é algo fechado e completo em si mesmo. E uma língua que fosse completa em si mesma dispensaria a presença dos objetos e do mundo, ela poderia ser estudada em si mesma.

Em um dicionário, o sentido de uma palavra é dado por outras palavras que as explicam; mas isso só funciona dentro do dicionário, no uso real da linguagem não é assim! Muitas vezes os lingüistas, os discípulos de Ferdinand de Saussure, pensam que "o mundo é o dicionário". [00:20] E o impacto dos estudos lingüísticos criou-se essa impressão [de uma segunda realidade]. Existe até um poema do Carlos Drummond de Andrade que fala do planeta Terra como tatuado de signos e de cálculos. Bom, a Terra já existia antes que alguém dissesse a primeira palavra, ela é uma realidade por si mesma independentemente dos signos que tatuamos nela.

E por falarmos demasiadamente e prestarmos atenção a esta rede de discursos, imaginamos que ele contém o objeto --- quando qualquer objeto, uma pulga por exemplo, é mais rica e mais complexa que qualquer discurso. Esse é um ponto que nunca será exageradamente enfatizado. Toda comunicação ocorre dentro de um ambiente físico que a sustenta, e sem a qual ela não existe. Isso implica que nunca podemos tomar o discurso como objeto de análise em si mesmo fazendo abstração do universo que está entorno. Mesmo porque, para o simples fato de falar, envolve a produção de uma onda sonora que tem de ressoar no tímpano de alguém para que ele escute, e toda essa transmissão ocorre dentro do universo físico, e não na linguagem. Onde se deu essa transmissão? Na linguagem ou dentro de um universo físico? Isso prova que a linguagem não é um sistema --- essa é uma das idéias mais cretinas. Podemos dizer que a linguagem é uma tentativa falha de sistematização e não um sistema. Tentativa que falhará pelos séculos dos séculos, ou seja, sempre dependeremos da referência a objetos de percepção que "colam" as palavras umas com as outras.

O que é dizer: o homem erra mais na expressão interior do que apreende do que na apreensão em si; (...)

Isso é a coisa mais óbvia do mundo! É claro que pode haver percepções erradas, mas em que sentido uma percepção é errada? Você viu um gato e achou que era um tatu. Mas o tatu apareceu na sua percepção ou na interpretação do gato? É na interpretação evidentemente. A percepção em si é sempre exata, ou não é uma percepção --- é uma invenção sua. Isso quer dizer que conseguimos nos comunicar uns com os outros porque nos reportamos continuamente a um mundo de experiência comum, que o mundo da linguagem comum imita longinquamente. Mas basta a ausência de uma referência externa [de percepção] para que a comunicação se torne inviável, ou para que se introduza nela erros fantásticos.

Hoje em dia com os computadores e com a internet criou-se uma rede de signos verbais e visuais que ela própria é uma realidade física, por assim dizer, mas que tende a encobrir o mundo do qual ela fala. Isso demonstra que a experiência está, cada vez mais, sendo substituída por signos e as pessoas acreditam que esses signos são coisas reais. Por exemplo, depois da invenção da camisinha o contato carnal profundo entre um homem e uma mulher tornou-se uma raridade. A quase totalidade do contato se dá através de uma película de borracha. As pessoas perderam essa percepção elementar que todos os animais conhecem, essa experiência básica do contato carnal direto. Daí podemos imaginar os efeitos disso na imaginação das pessoas onde [como o contato efetivo não existe] só existem sensações subjetivas de cada parte. "Eu sinto isso e você sente aquilo, mas nós não estamos nos comunicando efetivamente". . A experiência não é compartilhada. Então eu tenho um certo prazer e você tem um certo prazer, e nós nos comunicamos na esfera do prazer, mas não na esfera do contato real. Imagine o efeito que isso tem na cabeça de bilhões de pessoas!

Mais ainda, depois surgem os contatos através da internet, onde você conversa com pessoas que nunca viu e sequer sabe se elas realmente existem. Porém elas passam a constituir, na sua imaginação, uma constelação de entidades que constituem sua rede de contatos sociais. Com base nisso surgem teorias políticas da democracia internética, democracia cibernética etc., ou seja, cada vez mais o impacto do progresso dos meios de comunicação cria um mundo em cima do mundo ["mundos virtuais"]. É claro que o mundo real, da experiência originária, continua presente e conectando todas as coisas como uma cola. Porém, na prática, ocorre que essa cola pode ser substituída muitas vezes por um signo de cola, e isso pode se repetir recursivamente muitas vezes [tem o signo do signo do signo (...)]. Pior ainda é que com base nessa circulação de signos, na medida em que as pessoas participam disso, elas criam emoções que são disparadas por esses meros signos. Sempre que você tem uma emoção, tem também um impacto físico, uma experiência; e a experiência do que você sente [a experiência que foi disparada por um signo] passa a substituir para você o objeto real ao qual ela, remotamente e hipoteticamente, se refere. Ou seja, a intensidade da emoção passa a substituir a presença do objeto, e ela dá a você a impressão que o objeto está presente. Se não fosse por isso, o sexo cibernético, por exemplo, não seria possível. Se duas pessoas estão se comunicando através da internet, uma mulher fica pelada em um lado, o homem em outro, ambos têm suas imaginações e seus prazeres, mas a comunicação somente se dá através de uma rede muito indireta, não há contato real. Isso não se refere só a sexo, mas a milhões de relações a todo momento.

Então, para que serve um escritor? É o sujeito que vai buscar a experiência originária por trás disso. E a experiência originária consiste no seguinte: eu estou aqui, olhando para uma tela e apertando uns botões, e isso é tudo que está acontecendo; o resto constitui-se de construção mental --- e essa construção é vivenciada como uma experiência simulada da realidade direta. Significa que o advento da internet, por um lado facilita a comunicação científica, o acesso a informações, etc., mas por outro lado cria novas modalidades de falsa percepção que podem estupidificar as pessoas até o fim! Não convém a utilização desses equipamentos se você não consegue distinguir o que é uma apreensão do que é um signo. Só que para fazer isso você precisa de um treinamento que você não recebe em parte alguma.

(...) pois os métodos mais refinados da lógica apenas desencavam, analiticamente, algo que já estava dado na primeira intuição.

E a própria compreensão da unidade do discurso lógico é compreensão intuitiva ou é coisíssima nenhuma. Porém, note bem: você perceber a unidade de uma demonstração lógica, portanto, ser capaz de saber se ela está certa ou errada, não é a mesma coisa que saber que ela é verdadeira; ou seja, que ela se refere a algo e se refere corretamente. Qualquer que seja a veracidade de um raciocínio lógico, é sempre uma veracidade secundária dependente de objetos de intuição. Muitos anos atrás eu já dei uma aula sobre isso dizendo que a primeira condição do conhecimento científico é a existência do conhecimento intuitivo. Se não temos a intuição de objeto nenhum, não temos sobre o que desenvolver uma ciência. Em segundo lugar, é preciso que haja a possibilidade de uma transferência de veracidade, uma premissa para uma conclusão. [00:30] A conclusão é verdadeira porque a premissa é verdadeira e porque, de algum modo, ela estava contida logicamente dentro dela. Porém, neste caso você tem um nexo entre o percebido e o concluído, mas este nexo, por sua vez, tem de ser do tipo intuitivo, senão ele não existe. Agora, o nexo que conecta uma conclusão a uma premissa não é do mesmo tipo do nexo que conecta a premissa ao seu objeto real; é um outro tipo, embora os dois sejam intuitivos.

A percepção da presença de um gato ou de uma vaca não é o mesmo tipo de percepção pelo qual você percebe que uma conclusão estava contida na premissa; os dois são de tipos intuitivos, mas são intuições de objetos diferentes: um objeto real [da experiência] e um objeto puramente mental [construído]. Quando você percebe a coerência da sua construção, está tendo um ato intuitivo, mas esse ato intuitivo se refere a um objeto que foi você mesmo quem criou --- que foi o seu raciocínio. É muito fácil o sujeito se perder na passagem de uma coisa a outra, na passagem do objeto para seu conceito, do conceito para o juízo, e do juízo para o silogismo, que vai levar a determinadas construções.

E cada intuição, por sua vez, inaugura uma cadeia potencialmente ilimitada de outras intuições; disso trata a teoria da tripla intuição2: o ato pelo qual o indivíduo intui (primeira intuição) é, ao mesmo tempo, intuição de algo (segunda intuição) e intuição das condições desse ato intuitivo (terceira intuição). Isso explicaria ainda, por exemplo, certos simbolismos naturais, como a identificação do "sol" ou da "luz" com o conhecimento em inúmeras culturas, [...]

Quando você percebe algo visualmente, está percebendo ao mesmo tempo uma presença e está percebendo o meio luminoso que torna aquilo visível. Ou seja, a percepção da luz é coexistente com a percepção do quer que seja no espaço. Mais ainda, a luz que ilumina o objeto é a mesma luz que ilumina o seu olho, e que torna possível, portanto, a percepção. Então é isso que eu chamo de tripla intuição: você está percebendo um objeto, está percebendo a luz e está percebendo a conexão. Assim, esta conexão entre os três elementos de qualquer intuição é que é a base da lógica. Não haveria possibilidade do raciocínio lógico se não houvesse esta conexão; se ela só nos aparecesse na esfera puramente [racional] verbal, nós jamais poderíamos ter a certeza da veracidade de qualquer raciocínio. Então, é a tripla intuição que fundamenta o edifício lógico inteiro.

(...) a identificação do "sol" ou da "luz" com o conhecimento em inúmeras culturas, porquanto em sociedades primitivas, sem o recurso do fogo, só se vê algo -- e a visão é o sentido identificado mais diretamente ao conhecimento -- quando há luz natural;

Se não tem luz, você não enxerga coisíssima nenhuma. Então, se a luz desaparece, desaparece a sua percepção. A percepção de que toda percepção depende da luz significa que não existe nenhuma percepção no mundo -- nenhuma! -- que seja apenas uma ligação sujeito e objeto. Tem de ter um terceiro objeto que conecta os dois; e este elemento é a luz.

Portanto, você vê que toda a filosofia do idealismo moderno que discute, por exemplo, a existência do mundo exterior etc., é baseada nesta dicotomia de sujeito e objeto, a qual não existe porque, se o sujeito e o objeto não são conectados por um meio luminoso, não há percepção alguma. Assim, a idéia de que todas as nossas percepções são apenas idéias que estão na nossa cabeça --- por exemplo, eu vejo uma vaca e digo: "isto é uma representação da vaca, e não uma percepção" --- é uma impossibilidade pura e simples, porque se não houvesse a luz, eu não veria a vaca: basta retirar a luz e a vaca se torna invisível. Logo, toda percepção de algo nunca é uma relação sujeito e objeto, mas é uma relação entre sujeito e objeto dentro de um meio que possibilita esta relação; e a percepção do meio é coexistente e instantânea junto com a percepção do objeto.

Dessa maneira, você falar em "sujeito e objeto" já está falseando a coisa totalmente. Tem o sujeito, o objeto e o onde --- o meio onde isto se deu. A dicotomia sujeito-objeto leva diretamente ao idealismo subjetivo, à ideia de que tudo que existe é somente uma representação; ou então leva ao negócio kantiano de que tudo que nós percebemos é apenas um reflexo das nossas estruturas a priori de percepção. Portanto, jamais conhecemos as coisas em si, conhecemos somente os seus fenômenos que estão amoldados e estruturados de acordo com a nossa estrutura de percepção, e o que escapa da nossa estrutura de percepção nós não percebemos. Tudo isto está muito bonito, mas tem o seguinte: onde nós percebemos estas coisas? É só nas nossas estruturas de percepção? Apaga a luz e veja se é possível perceber alguma coisa.

Então, existe a nossa estrutura de percepção, existe a estrutura de exibição do objeto --- porque para você perceber o objeto não basta apenas que ele esteja amoldado à sua percepção, à sua capacidade de percepção; por exemplo: tem certas ondas sonoras que nós não percebemos, mas um cachorro percebe. Então para ele isso existe, para nós não existe. Isto aí é verdade, mas não basta. É necessário que o objeto, além de estar amoldado à sua estrutura de percepção, tenha a sua estrutura de exibição; isto é, ele é capaz de mostrar certas coisas e não outras. Outro exemplo: se você pega um animal qualquer, ele tem na sua estrutura um certo repertório de cores que ele pode exibir, mas algumas estão fora --- um gato pode se exibir cor de rosa com bolinhas? Ele não pode, ele não tem esta capacidade. Assim como nós não temos esta capacidade de perceber certas ondas sonoras, o gato não tem capacidade de mostrar certas coisas.

Existe uma estrutura a priori da percepção e uma estrutura a priori da exibição. Sem isto seria absolutamente impossível (...), e esta estrutura a priori da exibição tem de conferir, por sua vez, com a nossa estrutura de percepção. O que significa que cada ente tem a capacidade de mostrar certas coisas para outros entes, e outras certas coisas para outros entes. O que significa que é uma relação perfeitamente objetiva, e não subjetiva. Isso aqui é absolutamente fundamental. Agora, como Kant aparece depois de dois séculos de especulações que giram em torno de sujeito e objeto --- especulações nas quais o sujeito, que é o ser humano, aparece sempre como sujeito e nunca como objeto; e o objeto aparece sempre como objeto, e nunca como sujeito ---, ele chega a esta conclusão de que tudo que nós percebemos depende exclusivamente da nossa estrutura de percepção e nós percebemos somente fenômenos amoldados àquilo. Eu digo: "E os fenômenos? Como fazem para se amoldar à nossa estrutura de percepção? Eles são livres para nos mostrar o que eles quiserem?" Claro que não! Eles têm a sua limitação intrínseca. Como é que sei isso? Eu sei isso porque eu também sou um objeto e só consigo mostrar certas coisas até para mim mesmo.

Eu dei o exemplo de que se você está a 20 centímetros do espelho, se vê de perto; se recua 5 metros, você se vê de longe. Faça o contrário se puder. Veja-se no espelho, a 20 centímetros como se estivesse a 5 metros, e vice-versa: você não consegue. É uma limitação da sua percepção? Não, é também uma limitação da sua capacidade de exibição. Então se cada um de nós é também um objeto de percepção, é muito fácil eu perceber que na percepção de qualquer objeto existe não a projeção de um esquema de percepção meu, mas uma interação entre um esquema de percepção e um esquema de exibição. Portanto, a questão da objetividade ou da veracidade da percepção, fica automaticamente anulada; a percepção é necessariamente verdadeira, embora ela não seja total.

Eu sempre dou esse exemplo: Você está vendo um sapo aqui, a dois metros. Mas lá no céu tem uma águia, a dois quilômetros; ela vê o sapo perfeitamente, e vê que é o seu almoço. E você tem a capacidade de ver o sapo como a águia o vê? Não, você pode conceber isso, mas não pode ver. Isto quer dizer que o sapo tem a capacidade de se mostrar [0:40] de uma certa maneira para mim, e de se mostrar de uma outra maneira para a águia. Se ele não se mostrasse assim a águia não o veria.

Então, a multiplicidade das visões possíveis de um mesmo objeto, longe de colocar em dúvida a objetividade desse objeto, é a própria estrutura da objetividade dele. Cada objeto tem a capacidade de mostrar certas coisas para determinados entes; e outras coisas, ou as mesmas, para outros entes, e assim por diante. O ente [o objeto] não é só uma coisa que está ali: é uma multiplicidade de pontos de vista possíveis, que estão não somente nos observadores, mas nela também. É como a estação de rádio que emite em certas frequências, e a frequência vai ser captada diferentemente, conforme o lugar onde esteja o ouvinte.

Eu espero que estejam entendendo tudo isso aqui. Isso aqui para você ver que três séculos de especulação subjetivista são tempo completamente perdido. Ninguém mais é idealista subjetivo, no sentido de Berkeley, por exemplo. Porém, o idealismo subjetivo deixou marcas profundas em toda a cultura contemporânea. O que é a linguística de Ferdinand de Saussure? É um idealismo subjetivo da linguagem onde ele diz que a linguagem por si mesma é um sistema. O que é isto? É você fazer abstração do objeto, é querer considerar somente o sujeito em si mesmo; isto é uma herança do idealismo subjetivo. O que é o famoso relativismo que hoje circula por aí? Uma herança do idealismo subjetivo --- a idéia de que tudo varia conforme o observador. Eu digo que não, varia conforme o observador e a coisa observada; ou seja, uma mesma coisa pode ser vista de muitas maneiras, mas não por qualquer um. Ela tem certos aspectos que pode mostrar para um e certos aspectos que pode mostrar para outros.

Tem o famoso exemplo: você coloca aqui uma paisagem marítima e pede para vários pintores desenharem aquilo. Claro que os quadros vão ficar diferentes, mas nenhum deles vai ser uma paisagem de montanha, nem o retrato de um elefante. Por quê? Porque a paisagem marítima não tem a capacidade de parecer isso quando ela quiser. Ela diz: "Ah, eu sou o mar, mas agora eu vou virar uma montanha."; isso não existe. Isto quer dizer que a variação subjetiva não abole a estrutura objetiva da presença, mas, ao contrário: mostra apenas a sua riqueza.

Isso, por fim, afirma a possibilidade de conhecimento objetivo contra todo o discurso contemporâneo de que só existem verdades convencionais, inexistindo as objetivas e, por assim dizer, naturais.

Por exemplo, essa coisa desconstrucionista toda, que diz que um texto não tem nenhum sentido em si mesmo, que você lhe atribui o sentido que você quiser. Mas e o sujeito que escreveu o texto não lhe atribuiu nenhum sentido? Se eu, que estou apenas lendo, posso lhe atribuir um sentido, quanto mais o sujeito que escreveu o texto! Mais ainda: se eu não fosse capaz de apreender o sentido que ele quis colocar lá, como é que eu vou transmitir a terceiros o sentido que eu quero atribuir? Entenderam a pergunta? Se o que ele diz não tem nenhum sentido em si mesmo e sou eu que atribuo, o que eu digo também não tem nenhum sentido e só tem o sentido que os outros vão atribuir. Portanto, não adianta nada. Eu dizer que o texto não tem nenhum sentido que eu atribuo é uma frase totalmente sem sentido, não quer dizer absolutamente nada.

Se o sentido está apenas nos olhos do leitor ou nos ouvidos do ouvinte, nada impede que o sujeito me interprete exatamente ao contrário do que estou dizendo. Eu digo que o texto não tem nenhum sentido em si mesmo e sou eu que lhe atribuo [sentido]. O indivíduo ouve isso e entende da seguinte maneira: o texto tem um sentido objetivo em si mesmo, e assim por diante. São coisas que refletem uma debilidade mental --- sem brincadeira, uma espécie de psicastenia. Nada impede que o indivíduo que é treinado em certas disciplinas seja realmente um imbecil. Não existe o fenômeno dos mongolóides prodígios, o garoto de cinco anos que não é capaz de falar, mas toca Bach? Então, também no mundo universitário tem gente capaz de mostrar uma sofisticação muito grande em certas coisas e não ser capaz de distinguir um elefante de um tatu.

O fato é que quando você começa a perceber estas coisas você sente uma insegurança muito grande. Por quê? Porque você já vai ter um discurso próprio que não coincide com o discurso que os outros estudantes, ou a massa, está dizendo. Mas você precisa ver o seguinte: se você se apoia no discurso da massa, a sua segurança é a mesma segurança que a massa tem. Você não tem nenhuma garantia a não ser a opinião dos outros, a qual pode mudar amanhã ou depois. É claro que isto é uma ilusão; só existe alguma segurança quando você se apega à realidade originária, então você sabe do que está falando, ainda que todo o mundo diga o contrário. Não é porque todo mundo diz que 2+2 =5 que as contas passam realmente a dar 5.

VI. Um capítulo adicional de crítica cultural volta-se para a paralaxe cognitiva, que teria se disseminado em larga escala na modernidade. Ela se definiria como o deslocamento entre o eixo da experiência individual e o eixo da formulação teorética. Ou, dito de outro modo: ela seria responsável pela formulação de idéias que são desmentidas pelas próprias condições concretas de que o indivíduo depende para formulá-las.

É claro que, no Brasil, quando você inventa uma expressão qualquer e a coloca em circulação, o pessoal começa a usar aquilo a torto e a direito. O sujeito vê a contradição no discurso de um político e diz "é paralaxe cognitiva". Não, uma auto-contradição não é necessariamente uma paralaxe cognitiva, uma mentira não é uma paralaxe cognitiva, um truque de propaganda não é uma paralaxe cognitiva. Só existe paralaxe cognitiva quando o ato de o sujeito dizer uma coisa desmente o que ele está dizendo. Não é quando ele é contraditado por outra parte do discurso, ou contraditado pelos fatos; é só quando é contraditado pelo fato mesmo de ser dito.

Quando eu leio toda a filosofia de Kant eu penso nisso. Muito bem, mas se eu não posso perceber nenhuma coisa em si, posso eu entender a filosofia de Kant em si ou apenas a sua aparência fenomênica? Se é assim, eu nunca posso ter certeza de que Kant disse isso ou aquilo, só que a mim me parece que ele esteja dizendo isso ou aquilo. Isso transformaria todo o estudo sobre Kant em uma confissão autobiográfica, que quando você lesse teria de lhe acrescentar uma outra confissão autobiográfica, e assim por diante. A coisa minaria na base toda a possibilidade de um diálogo interfilosófico.

Portanto, se o livro de Kant é uma presença física --- quer dizer, um objeto que eu posso tocar --- este objeto tem certos signos e eu vou interpretar certos signos; então isso é incompatível com a teoria da incognoscibilidade da coisa em si. Se o livro de Kant existe, ele está errado; e se ele está certo, ele não existe. É uma coisa bastante simples de perceber, mas eu reconheço que é uma verificação escandalosa, chocante. Mas eu não fiz com o propósito de chocar, eu fiz porque eu percebi as coisas realmente assim. Não estou aqui a fim de assustar criancinha. Outro exemplo: a famosa teoria da ideologia de classe. Se o indivíduo de uma classe pode aderir à ideologia da outra, em que sentido essa ideologia é da outra mesmo? É uma coisa que, tão logo ela se expressou, tão logo se formulou em palavras (...) o fato de ter sido formulada em palavras já mostra que tem alguma coisa furada nela.

É a mesma coisa do indivíduo que diz "eu sou um mentiroso". Você é um mentiroso habitual que agora está dizendo a verdade ou isto que você está dizendo agora é também uma mentira? É o velho paradoxo do mentiroso. A paralaxe cognitiva é uma versão sofisticada do paradoxo do mentiroso

Ou, dito de outro modo: ela seria responsável pela formulação de idéias que são desmentidas pelas próprias condições concretas de que o indivíduo depende para formulá-las. A obra de Maquiavel seria exemplar nesse sentido, toda construída sobre dados intrinsecamente conflitantes, mas sobretudo conflitantes com aquilo que o próprio Maquiavel sabia -- ou deveria saber -- ser manifestamente falso, porque patente à sua experiência mais imediata. A manifestação aguda da paralaxe cognitiva se encontraria na mentalidade revolucionária, (...) [0:50]

Tem o subjetivismo, do subjetivismo sai a paralaxe cognitiva, da paralaxe cognitiva sai a mentalidade revolucionária. Mas note bem: eu digo isso só da mentalidade revolucionária concebida como estrutura lógica porque, como inspiração, ela vem de outros lugares. A mentalidade revolucionária vem dos movimentos messiânicos que pretendiam instaurar o paraíso na Terra, no muque. E que implica, evidentemente, em uma antecipação do Juízo Final --- uma antecipação e uma terrestrialização [já vem aí a inversão do tempo]. Porém, se essa mentalidade messiânica não tivesse se cruzado com a paralaxe cognitiva, então a mentalidade revolucionária jamais poderia ser exposta como teoria. Jamais poderia existir o marxismo, ou o pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Existe uma condição intelectual que vem por um lado, que é a paralaxe cognitiva, nascida do idealismo; e por outro lado existe uma condição, por assim dizer, emocional, ou psicológica, ou imaginativa que vem do messianismo e da esperança de antecipar o Juízo Final. Na hora em que essas coisas cruzam, aparece a mentalidade revolucionária no sentido atual.

(...) mentalidade revolucionária, caracterizada basicamente por duas inversões: a inversão temporal, pela qual o revolucionário passa a levar em conta o futuro hipotético pelo qual trabalha como o parâmetro de julgamento de suas ações, não mais prestando contas ao passado (e, afinal, a ninguém, pois por definição sua sociedade utópica se afasta à medida que o processo revolucionário avança, nunca se concretizando e, portanto, nunca havendo tribunal no qual se possa julgar abertamente ações ou idéias); e a inversão de sujeito e objeto, pela qual o revolucionário, no ato mesmo de atacar os adversários de sua sociedade futura, os toma na verdade como os atacantes que lhe impedem a consecução de seus planos, (...)

Quando você vê a violência desencadeada da mentalidade revolucionária, ela vai dizer que a culpa da violência é daqueles que resistiram aos planos. Como se os planos já fossem uma realidade e como se eles já fossem uma fonte de direitos quando, na realidade, esses planos só vão se realizar hipoteticamente no futuro, eles não têm substancialidade alguma.

(...) os toma na verdade como os atacantes que lhe impedem a consecução de seus planos, de modo que a relação causal entre um e outro é invertida.

Se um sujeito dá um tiro e o outro leva o tiro, foi o cara que levou o tiro quem passou a ser o autor da ação.

A paralaxe cognitiva e, em especial, a mentalidade revolucionária inviabilizam um ambiente intelectual no qual o método confessional leve o indivíduo a se dar conta do conhecimento que lhe é imediatamente presente (...)

É claro! E qual é a vacina contra tudo isso? É o método confessional, é você reconhecer aquilo que está efetivamente percebendo. É claro que a capacidade que você tem de expressar essas coisas é limitada, mas a impossibilidade de expressar não quer dizer impossibilidade de saber. Ademais, quando duas pessoas contam umas para outras aquilo que elas estão efetivamente percebendo, elas não precisam ter uma linguagem perfeita. Por quê? Porque elas estão dentro do mesmo mundo, e esse mundo sempre pode ser usado como mediador da comunicação. Isto acontece com toda e qualquer comunicação onde você mostra alguma coisa cujo nome desconhece, ou que não é capaz de expressar corretamente.

(...) -- a primeira, porque faz do sujeito do conhecimento um ser diverso do indivíduo autor de sua própria vida; a segunda, porque, além disso, ameaça destruir todas as bases sociais de convivência humana, já que revolução consiste em concentração de poder nas mãos de uma elite revolucionária com vistas à instauração de um projeto de sociedade, o que rouba aos indivíduos liberdade, senão mesmo, em última instância, a própria existência física, como o demonstram os totalitarismos revolucionários do século passado.

VII. A teoria política deriva não tanto de alguma proposta contrária ao estado de coisas analisado nesses estudos de crítica cultural, mas de adaptação metodológica ao tipo específico de objeto da ciência social. Sua premissa fundamental é a de que poder é possibilidade de ação, em sentido geral, mas na política tem o sentido estrito de possibilidade de determinar a ação alheia. Em sentido universal o homem só tem três poderes, o de gerar, destruir e escolher, que correspondem respectivamente ao poder econômico, o poder militar e o poder intelectual ou espiritual, os quais podem ser exercidos ativa e passivamente e correspondem tipologicamente às castas dos produtores, dos nobres e dos sacerdotes. O primeiro se exerce pela promessa de um benefício, o segundo pela ameaça de um malefício e o terceiro pelo convencimento ou cooptação. Em cada civilização, os três tipos de poderes tendem a se cristalizar em grupos específicos (hoje em dia seriam, em ordem respectiva, o globalismo ocidental, a aliança russo-chinesa e o Islã) (...)

Veja que o tipo de autoridade [o tipo de poder] que eles se arrogam são exatamente estes: um personifica o poder econômico; o outro, o poder militar; e o terceiro, o poder espiritual. É claro que eles participam das três modalidades de poder; porém, quando eles falam, falam em nome disso.

"(...) mas a especificação de quais são estes grupos é procedimento posterior à detecção de quem pode ser sujeito da história: (...)"

Este é outro assunto básico, básico, básico.

"(...) não podendo ser um agente individual, porque perecível a curto prazo e limitado geograficamente em sua ação, só o podem ser as tradições, as organizações esotéricas (ou sociedades secretas), as dinastias reais e nobiliárquicas ou demais entidades de natureza similar."

Muito bem, aí parece que nós temos um problema porque, como dizia Aristóteles, "tudo que existe só existe individualmente". Não existe uma existência geral ou coletiva, a existência sempre se presentifica sob a forma de presenças individuais. E, por outro lado, o sujeito da história não pode ser apenas um indivíduo, a não ser que este indivíduo dure mais do que os outros; ou invente uma modalidade de ação que prossiga atuando depois da sua morte. Toda ação cujo efeito se esgota no prazo de duração da vida do seu agente não se incorpora na história, é apagada, não deixa rastros.

Algumas ações individuais deixam rastros, porém já não são controláveis pelo seu agente inicial. Por exemplo: Napoleão Bonaparte criou uma série de dinastias, criou um código civil etc. Tudo isso continuou existindo depois da morte dele, porém ele já não estava lá para controlar os efeitos. Em alguns casos esses efeitos podem ser notavelmente fiéis ou coerentes com a intenção originária, mas o agente não está mais lá. Como exemplo de ação coerente, temos os ritos da religião judaica que foram prescritos por Moisés não sei quando3; e que os caras continuam praticando os mesmos ritos, passados milênios. Moisés não está mais aí, ele não pode conferir se os caras estão fazendo as coisas direito, mas de fato eles estão.

Existe este caso e esta mesma possibilidade de continuar agindo em um sentido coerente depois da ausência do agente --- ela é a medida real do poder individual. Um indivíduo tem muito poder quando ele consegue determinar um curso de ação que continua sendo seguido de maneira mais ou menos invariável depois da sua morte. Por exemplo, a história dos revolucionários de 1789; se você dissesse para um deles "tudo isso aqui que você está fazendo vai terminar com um surgimento de uma nova monarquia, uma monarquia imperial", eles iam meter uma bala na cabeça; iam pensar "não é para isso que nós estamos trabalhando". Isso quer dizer que tudo que os revolucionários fizeram tomou um rumo completamente diferente quando chegou o tal do Napoleão. Aquilo era imprevisível para eles --- significa que é uma ação de muito curto prazo.

Quando Hitler disse que ia criar um Reich para durar mil anos, [1:00] durou doze, acabou com a destruição de vários países e do país dele mesmo; isso significa que é um poder ilusório, é um poder de fazer confusão, mas não o poder de fazer o que quer fazer. A ação eficaz é aquela que realiza o que queria realizar, não outra coisa qualquer--- a não ser que você esteja disposto a aceitar as duas possibilidades. É o negócio do Freud, "flectere si nequeo superos, Acheronta movebo", ou seja, se eu não puder abalar os céus, abalarei o inferno. Tanto faz para você? Se tanto faz, você aceita as duas possibilidades, então tudo bem. Mas isso significa que o curso da ação não está em suas mãos, você está dando um tiro no escuro. Hitler também previu isso, ele disse: "Ou vamos impor esse poder germânico a essa área do universo ou então vamos acabar". Você topa as duas possibilidades? Topa. Então significa que você não decidiu nada.

Um estudo interessantíssimo seria você fazer a comparação da estratégia de Hitler e da estratégia de Stalin. A de Hitler fez um forrobodó desgraçado e não conseguiu nada, e a de Stalin, muito mais discretamente, conseguiu tudo o que queria, inclusive pelas vias mais antagônicas e imprevisíveis. Então Stalin, nesse sentido, tinha muito mais poder do que Hitler: as situações criadas por Stalin prosseguiram vigentes por muito tempo depois da morte dele, e as idéias e propostas dele ainda estão presentes. Então digo que este cara tinha poder; o outro não, o outro só fazia barulho.

E se você levanta o problema do sujeito da história, você precisa ver que muitos livros de História tem um título puramente metonímico. "História do Brasil": Existe um agente chamado Brasil? Um agente autoconsciente, capaz de tomar decisões e atuar no mundo? Claro que não existe. Existe um território, e lá dentro existe um monte de gente; até o fim do período Colonial essas pessoas e grupos estavam completamente isolados uns dos outros, portanto não tinham ação comum nenhuma. Então você falar "História do Brasil" é metonímico, você está dizendo a história do que se passou num território chamado Brasil --- então não é historia do Brasil. Agora, se você diz "vida de Stalin", aí existe; história de Stalin. História de Napoleão existe.

No fim da guerra apareceu, nos estudos de política internacional, a doutrina Morgenthau, de que os agentes do processo histórico são os Estados. Essa doutrina ainda tem influência até hoje, você vê até hoje gente analisando ações dos líderes políticos como se fossem expressões diretas de um interesse nacional, de um interesse estatal. Essas análises sempre dão errado. Em primeiro lugar, porque o Estado não é agente de coisa nenhuma; o Estado é uma estrutura abstrata que é preenchida por pessoas e essas pessoas, por sua vez, representam determinados grupos que combinaram certas coisas e que estão agindo de maneira coerente dentro do Estado. E é a esses interesses que você tem de se reportar, não a um abstrato interesse nacional. O interesse nacional freqüentemente é apenas um pretexto que os indivíduos usam para lutar pelos seus próprios interesses ou pelos interesses da sua corriola.

O verdadeiro poder e a verdadeira fonte da ação não é, jamais, o Estado; não é, jamais, o governo. Mas sim grupos humanos concretos que o ocupam. Quando eu digo "um grupo humano concreto", quer dizer um grupo de pessoas que sentaram, conversaram e combinaram. Não é uma mera convergência abstrata de interesses, porque eu posso ter convergência abstrata de interesse com um sujeito que nem conheço e eu acabo pisando no calo dele sem perceber. Para que exista um interesse subjetivo é preciso que as pessoas sentem e decidam o que vão fazer. Então em vez de falar de um Estado, vamos ver quais são esses grupos que se reuniram, conversaram e têm planos em comum ---isto sim, estes são agentes.

Freqüentemente, estes grupos não vão coincidir com os nomes dos partidos em disputa porque, o que é um partido? Um partido é apenas um elemento da ordem formal existente: a lei reconhece a existência de uma organização chamada partido, e daí os indivíduos entram nesse partido; mas não quer dizer que o partido em si mesmo tenha interesses, um partido pode mudar em 180° a sua política, um partido de esquerda pode virar de direita e vice-versa. Por que acontece isso? Porque eram outras pessoas que estavam lá querendo outras coisas. Então os estudos destas coisas têm de sair dessas abstrações, desses nomes genéricos, e se voltar para a investigação de quais eram os grupos humanos efetivamente envolvidos no processo.

Por exemplo, quando as pessoas dizem "a Maçonaria domina o mundo ocidental" --- você não tem a menor idéia do que é a Maçonaria. A Maçonaria é um saco de gatos, as pessoas vão lá dentro e discutem. Portanto, lá dentro existem grupos em disputa, são estes grupos os verdadeiros agentes. A maçonaria é um meio, é um canal por onde estes grupos acabam exercendo a sua influência. Do mesmo modo falar "Igreja Católica". Se você estudar a história dos concílios, você vê que às vezes as divergências lá dentro eram tão grandes que chegava a crime de morte. Esses indivíduos representavam os interesses da "Igreja"? Eles achavam que sim, mas na verdade era um interesse de um determinado grupo que estava lutando para dominar aquele canal, aquela instituição etc.

Os nomes das instituições são enormemente enganosos. Para haver uma ação, é preciso haver não apenas uma convergência objetiva de interesses, mas é preciso haver um diálogo e um plano comum. As coisas não acontecem assim sem mais nem menos. Quando o indivíduo fala que "fulano representa os interesses da burguesia". Está bem: então você vai me mostrar que os burgueses se reuniram, discutiram os seus interesses, chegaram a uma conclusão e decidiram que iriam pagar o seu fulano para representá-lo. É possível uma classe social fazer isso? Nunca. Quantas pessoas compõem a burguesia? São milhões, eles não podem se reunir. Então ninguém representa os interesses da burguesia, podem representar os interesses de um certo grupo de burgueses, às vezes um contra o outro ou contra outro grupo qualquer.

Tudo isto aí é o abstracionismo: pegar nomes de conceitos abstratos e hipostasiá-los, personificá-los como se eles fossem agentes reais do processo. Isso é um autoengano, é uma hipnose, porque a pessoa acaba vendo esses grupos; ela cria um esquema de tipicidade, um tipo ideal, e em seguida vê esse tipo ideal agindo. Evidentemente isto leva a erros monstruosos, mas erros que têm um poder de persuasão hipnótica. Quando você vê hoje esse pessoal da esquerda discutindo os blogs de direita; eles acreditam que esses blogs representam a burguesia, mas na verdade o dinheiro da burguesia vai para eles. Quando o pobre bloguinho Mídia Sem Máscara recebeu dinheiro da burguesia? Nunca. Quando eu conversei com algum burguês para saber o que ele queria que eu dissesse? Nunca na minha vida. Então é uma espécie de sociologia invertida em que as identidades de classe dos indivíduos aparecem trocadas. Evidentemente tudo isso é uma alucinação, mas essa alucinação por sua vez se torna um fator real na dinâmica da ação, porque você ajunta um número de pessoas que acredita naquilo e que age em conseqüência.

Assim, a Igreja Católica e o movimento revolucionário, nessa acepção específica, são os sujeitos da história, [1:10] mas não São Francisco nem Lênin.

O certo não é dizer "a Igreja Católica", mas sim "o papado". O Papa é um indivíduo que tem lá suas convicções e tem certo poder sobre um certo número de pessoas e, às vezes, ele consegue controlar a Igreja e fazê-la agir no sentido que ele quer, outras vezes não. Eu mesmo usei a expressão "Igreja Católica", mas está errado --- o certo é dizer "o papado".

O poder realmente decisivo, a longo prazo, é de ordem sacerdotal ou intelectual.

Isto é a coisa mais óbvia do mundo: somente esses têm uma influência de longo prazo.

Essa multiplicidade de assuntos e disciplinas recoberta na produção de um único filósofo não é fortuita. Ele mesmo define filosofia como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Qualquer outra definição quedaria parcial, tornando difícil apontar no que se distinguem fundamentalmente um filósofo e um cientista, um filósofo e um poeta.

Esta é a atividade especifica do filósofo: os conhecimentos crescem e se multiplicam os seus registros, eles se alastram por toda parte a ponto de tornarem-se absolutamente inabarcáveis e caóticos. E, no entanto, as pessoas continuam tendo ou buscando alguma orientação geral no meio deste conjunto. Esta orientação geral não tem como ser obtida por meios científicos, porque isto subentenderia absorver o conjunto inteiro das informações e delas deduzir constantes etc. --- Isso é impossível. Existe um certo coeficiente de variação individual neste senso de orientação.

Acontece que algumas pessoas se tornam especialistas em buscar esse senso de orientação; e elas criam o quê? Leis gerais que devem submeter todos os outros? Não, de maneira alguma. Essas leis gerais teriam de ser obtidas por meios científicos, e não é possível. O que elas dão é um simples exemplo de como é possível você se manter à tona, no meio deste oceano de informações desencontradas, ou seja, é possível orientar-se minimamente. E o filósofo tem de dar um exemplo disto, ou seja, ele tem de obter um senso de orientação melhor do que a sociedade geralmente dá aos indivíduos e, baseado neste modelo, outras pessoas vão ter de fazer o quê? A mesma coisa, tudo de novo, ou seja, você vai ter de buscar o seu próprio senso de orientação. Você pode se inspirar no meu ou no de outro filósofo qualquer, mas ele não vai substituir o seu trabalho.

Isto quer dizer que a filosofia é uma espécie de arte ---uma técnica. É uma arte de você não afundar no meio do caos dos conhecimentos e, nesse sentido, é uma atividade absolutamente imprescindível, porque ou você vai ter a filosofia ou você vai ter uma pseudofilosofia que parece lhe dar um senso de orientação, mas na realidade não está sequer buscando; está apenas repetindo chavões, slogans etc. É isso mesmo o que fazem no Brasil estes pseudofilósofos, como Marilena Chauí ou Emir Sader, essa gente toda. Eles nunca buscaram o senso de orientação porque, para buscar o senso de orientação, em primeiro lugar, você tem de enfrentar as contradições em toda a sua complexidade, ou seja, você tem de aceitar um período de desorientação e de dúvida profunda; e essas pessoas nunca tiveram dúvidas sobre coisa nenhuma, elas aderiram a um negócio quando tinham 15 anos e estão lá até hoje. Ou seja, fugiram das contradições.

E quando fogem das contradições, acontece como os instintos reprimidos na psicologia do Freud: quanto mais você reprime mais ele aparece sob forma camuflada e caricatural. Quando o indivíduo evita as contradições, elas acabam aparecendo no próprio discurso dele da maneira mais flagrante, o indivíduo se desmente a cada linha e não percebe. Não percebe por quê? Porque, em primeiro lugar, ele se desensibiliza para as contradições, ele não quer ver porque isso vai torná-lo inseguro. Mas a insegurança é a base da filosofia. Se você não aceita o estado de dúvida por muitos e muitos anos, você nunca vai obter este senso de orientação que você quer. Senso de orientação que tem de ser continuamente reformado, modificado, adaptado às novas circunstâncias e que coincide inteiramente com a estrutura da sua consciência individual. E essa consciência individual só permanece ativa e saudável quando ela continua praticando o método da confissão pelo resto dos seus dias, o que significa que ela tem de fazer um exame de consciência; e o exame de consciência o que é? É a pergunta antagônica. Se você se livra da pergunta antagônica, acabou a sua confissão. Ou seja, se você se consolida, se você se estratifica em um corpo de convicções, então você vai evitar a pergunta antagônica. Mas é ela que tem de ser atualizada diariamente para que essa entidade [a sua consciência individual] se mantenha viva e atuante.

É claro que nem toda pergunta é legítima, tem perguntas cuja resposta você já sabe há cinquenta anos e não adianta voltar lá porque você vai obter a mesma resposta. Mas sempre pode haver uma pergunta nova que você não tinha pensado e que vai colocar você em dúvida de novo. Para quê ter medo da dúvida se aquilo a que você está querendo chegar não é um corpo de doutrina que tenha validade universal e que todas as pessoas tenham de aceitar, mas apenas a integridade de uma consciência que ainda está viva, está atuante. Então não tem porque ter medo disto, a dúvida é sempre bem vinda desde que não seja evidentemente uma dúvida idiota. Por exemplo, há muitas dúvidas que nascem da ignorância pura e simples, essas não valem. Mas a dúvida que nasce de uma informação efetiva, nova, importante, essa é sempre legítima.

O cientista pode produzir conhecimento sem que para tanto tenha que se empenhar no resgate confessional pelo qual cada novo dado conhecido se integra ao conjunto daquilo que ele, enquanto indivíduo, é naquele momento.

Ou seja, é perfeitamente legítimo um cientista expressar certas conclusões científicas que são completamente incoerentes com tudo que ele pensa, sente, enxerga etc., na vida [ele não é obrigado a fazer isso]. Por quê? Porque a ciência é eminentemente uma atividade coletiva, é uma atividade baseada no consenso e não na integridade da consciência individual. Isto quer dizer que um cientista não é responsável pelas conseqüências filosóficas do que ele diz, o que é o mesmo que dizer que ele não precisa compreender o que ele está dizendo: ele não precisa compreender o seu significado, o seu alcance dentro da sociedade, da história em geral. Ele pega aquele pedaço isolado e diz aquilo. O significado daquilo às vezes é tão enormemente mais complicado do que ele pode abarcar, que seria injusto exigir que o sujeito, além de exercer a sua função normal de cientista, ainda fosse um filósofo. Alguns podem fazer isso; têm muitos filósofos que começaram nas ciências --- Edmund Husserl começa como matemático, Karl Jaspers começa como psiquiatra e assim por diante. Mas é evidente que, no decurso das suas investigações, eles transcendem enormemente a condição de cientistas na medida em que o seu grande esforço é justamente para criar essa unidade do conhecimento na unidade da consciência. Note que não se trata de uma unidade material do conhecimento e muito menos uma unidade efetiva, é uma unidade virtual que está sempre crescendo e se modificando.

Dito de outro modo, o que o filósofo realmente passa para os outros é o exemplo dessa luta pela integridade da consciência --- isto é mais importante do que o conteúdo específico da filosofia dele. É por isso que tem muitos filósofos cujas conclusões você não concorda, mas que são enormemente úteis para você. Por exemplo, quando você lê Leibniz, que é um sujeito que abarcava um universo de conhecimento absolutamente monstruoso e que estava sempre coerindo aquilo e buscando a conexão de uma coisa com a outra;. ele pode errar neste ponto ou naquele, isso não tem importância. O que importa é você ver a força unificante daquele trabalho, e é isto que caracteriza realmente o filósofo e não as suas teses explícitas.

Eu propus o curso "Sociologia da Filosofia", e existe um livro excelente, por outro lado, de um autor chamado Randall Collins, com este título: Sociologia da Filosofia. Ele usa o seguinte método: [1:20] ele parte do princípio de que a filosofia é conflito [diálogo] entre várias pessoas e, portanto, cria a sociologia dos antagonismos. Este método é bom para certas finalidades, mas não é isso o que eu quero fazer, porque esses antagonismos só existem entre teses explícitas. E elas [as teses explícitas] são o produto final de uma filosofia e não a sua raiz originária. Eu preferiria uma investigação de quais foram as experiências originárias das quais esses filósofos partiram --- e daí essas experiências evidentemente são historicamente localizáveis por nação, por classe social, por educação recebida etc. Quer dizer, é um estudo completamente diferente do feito pelo Randall Collins. Randall Collins pega a história inteira da filosofia e começa a demarcar grupos, regiões e etc. É exatamente o método inverso: Ele parte de um produto final e o estrutura. É claro que isto é mais fácil de fazer do que aquilo que estou propondo --- aquilo que estou propondo não dá para fazer na escala que ele fez [na escala universal], eu só posso pegar um caso ou outro aqui e ali.

(...) O filósofo não se limita a nada disso, pois seu esforço é direcionado por uma técnica filosófica específica, que consiste em sete pontos:

Eu cheguei a essa formulação da técnica filosófica pelo exame do que os filósofos realmente faziam, do que todos os filósofos fizeram --- todos, sem exceção. Pouco importa que tenham chegado às conclusões mais diferentes, e pouco importa também que tenham falhado no exercício dessa técnica; a técnica está lá de qualquer maneira.

1. A anamnese pela qual o filósofo rastreia a origem das suas idéias e assume a responsabilidade por elas.

Nem todos os filósofos fizeram isso com a devida eficiência ou com a devida honestidade, mas todos fizeram de um modo ou de outro.

2. A meditação pela qual ele busca transcender o círculo das suas idéias e permitir que a própria realidade lhe fale, numa experiência cognitiva originária.

3. O exame dialético pelo qual ele integra a sua experiência cognitiva na tradição filosófica.

Randall Collins pega as coisas a partir deste ponto. Ou seja, o exame dialético, a confrontação do que eu estou percebendo com o que outras pessoas perceberam.

4. A pesquisa histórico-filológica pela qual ele se apossa da tradição.

É claro que se o indivíduo não conhece a história da filosofia, não sabe o que os outros filósofos pensaram, como é que ele vai confrontar as suas conclusões com as deles? Ele tem de ter um lado filológico: a apropriação do legado escrito das filosofias. O curioso é que no Brasil se acha que é estudar filosofia é isto, só isto.

5. A hermenêutica pela qual ele torna transparente para o exame dialético as sentenças dos filósofos do passado (...)

Ou seja, não basta você ter na mão os documentos das filosofias do passado, você tem de fazer um esforço de compreensão e descobrir determinados significados efetivos ou virtuais que estão lá contidos. Às vezes, para isso, você tem de ir muito além da letra do que o filósofo disse: você tem de descobrir o subentendido, o não-percebido, mas que estava lá de algum modo; aquilo que o filósofo não pensou, mas deveria ter pensado para ser coerente com o que ele está dizendo, e assim por diante.

6. O exame de consciência pelo qual ele integra na sua personalidade total as aquisições da sua investigação filosófica.

7. A técnica expressiva pela qual ele torna a sua experiência cognitiva reprodutível por outras pessoas.

Mesmo que seja uma técnica expressiva puramente oral, como a de Sócrates ou, em grande parte, a do Petre Ţuţea [que é mais conhecido pelo que outras pessoas o ouviram dizer do que pelo o que ele mesmo escreveu]. Todos os filósofos fizeram isso de uma maneira maior ou menor, com maior ou menor fidelidade à sua vocação; mas também é o que lhe dá um critério para o julgamento dos vários filósofos --- em que medida o sujeito é um filosofo no sentido pleno, em que medida é um meio filósofo, e assim por diante.

Vemos, por exemplo, que Nietzsche falha em vários desses pontos, ou seja, ele não é totalmente responsável pelo que está dizendo. Ele expressa impressões de momento com uma intensidade, com uma eloqüência monstruosa, e depois expressa outra impressão que não tem nada a haver com a primeira. Aí ele está trabalhando como um poeta e não como um filósofo, ou seja, ele está fazendo um esforço de extrusão: pegar certas percepções profundas e transformá-las em expressão lingüística. Isso não é fácil de fazer e tem um valor por si, tem pelo menos um valor documental sobre a sensibilidade da época. Mas falha na parte do exame de consciência. Ele não tenta rever o que ele disse em outras épocas e confrontar uma coisa com as outras, ele não se incomoda absolutamente com a contradição e com a incoerência total, ao ponto que o Eugen Fink, secretário de Husserl, tentando descrever a estrutura da filosofia de Nietzsche, encontrou cinco filosofias diferentes. Se há cinco filosofias diferentes, não quer dizer que ele seja cinco filósofos, quer dizer que ele é um poeta com elementos filosóficos ali dentro.

Em Nietzsche, às vezes é muito difícil você pegar as sentenças dele e dizer qual é a afirmação, a proposição formal, que ele está enunciando. Você não chega a isso porque tem a ambigüidade da expressão; a ambigüidade da expressão verbal é intensa demais para que você chegue a dizer que Nietzsche acreditava nisto e não naquilo --- às vezes acreditava nas duas coisas ao mesmo tempo. Aquela famosa frase que Jean Brun citou: "É uma pena que Deus não existe, porque pelo menos alguém me compreenderia". Isto quer dizer que ele concebe a idéia de uma hiperconsciência capaz de abarcar tudo e compreender não só o todo, mas um detalhe insignificante chamado Friedrich Nietzsche no meio disto tudo. E, em seguida, quando ele diz "Deus morreu", eu digo: mas se Deus morreu como você concebe alguém que o compreenda desta maneira? Você está atribuindo a um Deus hipotético uma capacidade atual da qual você participa ainda que em modo menor; aí você tem um problema, mas Nietzsche nunca tratou desse problema. Se Deus não existe ou Deus morreu, como é que eu sei que Ele me compreenderia? Como é que eu nutro essa esperança de ser compreendido?

Aí termina o trabalho que o Robson diz que é apenas "um mapa preliminar pelo qual só eu respondo (creio que ao próprio Olavo não agradaria)". Ao contrário, agradou muito. Alguém tinha de fazer essa coisa, nem eu mesmo fiz. Claro que essa coisa poderia ser exposta em muitas outras ordens possíveis, mas pelo menos a leitura disto mostra que as coisas que eu digo e escrevo não são opiniões soltas; eu estou continuamente referindo a este núcleo central de preocupações, mesmo quando eu estou tratando de algum detalhe insignificante da vida brasileira. Quer dizer que a lente pela qual eu estou olhando a coisa é uma lente de muitos lados que estão de algum modo interconectados.

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Aluno: Louis Lavelle diz que o conhecimento do Ser se encontra presente no conhecimento particular que temos dele, mas pelo que pude entender só aquele é absoluto e este é relativo. Ele diz que o homem que busca diversos conhecimentos particulares na tentativa de compor o Ser torna se um escravo. Daí duas questões surgem: o conhecimento que advêm da nossa inscrição no Ser seria meramente subjetivo e particular, apesar de nele estar presente o Todo e o Ser? Essa repreensão à tentativa de composição do Ser seria uma critica a algum método científico como se fosse um discurso dialético?

Olavo: Por um lado, o Louis Lavelle diz o seguinte: Nós não podemos compor o Ser dos seus vários dados objetivos e tentar representá-los em nossa frente como se ele fosse uma espécie de macro objeto, um "objetão", pelo simples fato de que nós estamos nele. Ele não é um objeto para nós, ele é a condição dentro da qual estamos. Como diz o apóstolo: nele nos vivemos, nos movemos e somos.

Então isto não quer dizer que esta representação do Ser, como ambiente que nos envolve, dentro do qual existimos, seja subjetiva, pelo simples fato de que nós estamos neste ambiente e não ele em nós; portanto não pode ser subjetivo de maneira alguma. É o reconhecimento de uma condição externa que nos abrange e nos transcende [a todos], e que pode ser reconhecida pelas pessoas no instante em que você menciona.

A idéia de uma concepção científica do Universo, por exemplo, sempre fará do Universo um objeto e estará falhando no mesmo ato por causa disso. Toda concepção filosófica responsável tem de dar conta da possibilidade da sua própria existência; então suponhamos que Stephen Hawking chegue a uma representação "completa" do universo. Eu digo: ela não é completa, porque não explica a possibilidade da existência de um sujeito chamado Stephen Hawking, que oferece essa representação. Vai ser sempre uma visão alienada, que é como uma coisa hipnótica, uma imagem que você projeta na parede e é uma representação abstrativa que não dá conta da sua própria existência --- então vai cair de novo na Paralaxe Cognitiva. Aliás tem uma pergunta muito interessante sobre a Paralaxe Cognitiva.

Aluno: Que relação existe entre a Paralaxe Cognitiva e a chamada Contradição Performativa, que ocorre quando uma afirmação é desmentida pelos pressupostos mesmos da sua enunciação?

Olavo: É exatamente isto. Do ponto de vista da sua estrutura lógica a Paralaxe Cognitiva é uma Contradição Performativa, mas acontece que a definição lógica desta figura lógica não basta. Eu chamo Paralaxe Cognitiva não a Contradição Performativa, mas um fenômeno histórico em que esta contradição performativa se transforma numa coisa endêmica na cultura ocidental, portanto eu não estou usando Paralaxe Cognitiva como nome de uma figura lógica, mas como nome de um fenômeno histórico; você poderia também dizer, chamá-lo de paradoxo do mentiroso, é outra figura lógica.

É evidente que se a mera definição da Contradição Performativa bastasse para descrever o fenômeno, então a Paralaxe Cognitiva já teria sido conhecida muito séculos antes dela acontecer. O fenômeno que caracteriza a Paralaxe Cognitiva é justamente o fato de esta figura de linguagem, este erro de lógica, ter se tornado endêmico, mas ele não é somente um erro de lógica porque não é uma coisa fácil de perceber em um primeiro instante. Em primeiro lugar, você precisa reconstituir as condições de experiência individual real que aquele filósofo teve, com que problemas ele se defrontou realmente portanto é claro que a simples análise lógica nunca vai bastar para você discernir uma Paralaxe Cognitiva, mas continuando aqui a pergunta:

Aluno: (...) Essa "repreensão" à tentativa de composição do Ser, seria uma crítica a algum método científico ou mesmo de um discurso dialético?

Olavo: Não ao método científico em si, mas ao fato de se tirar conclusões filosóficas de conclusões científicas. A coisa mais óbvia do mundo é que: I-) em primeiro lugar, não existe uma abordagem científica de nenhum fato concreto; só pode haver um estudo científico depois que o fato já foi abstrativamente separado das suas condições acidentais etc., etc., e que já foi definido um método específico para aquilo. Portanto de qualquer conclusão científica para uma conclusão filosófica a respeito, o caminho é imenso e às vezes é impossível de percorrer.

Então a própria expressão "fato científico" é um pouco errada, porque a ciência jamais nos dá fatos. Ao contrário, ela parte dos fatos e cria, descobre alguma regularidade, constância, associação, elo de necessidade, elo de probabilidade etc e etc. Então tudo o que a ciência nos dá são sempre teorias, algumas dessas teorias batem com os fatos e outras não.

À ciência não cabe nos dar fatos, o fato é o material bruto do qual parte a ciência. Todo o edifício da ciência é uma tentativa de você passar do meramente factual para o elo de necessidade --- ou de necessidade absoluta, quando possível, ou de necessidade relativa probabilística, que é o que acontece na maior parte dos casos. Portanto fatos científicos não existem, o que existe são teorias científicas verdadeiras, falsas ou duvidosas.

II-)Em segundo lugar, essas teorias jamais se referem a nenhum fato concreto que seja e sim aspectos de fatos. O simples fato de você ter várias ciências que podem estudar o mesmo objeto mostra que nenhuma delas está apreendendo este objeto na sua concretitude, mas sim nos seus aspectos abstrativos; e tem de ser assim, não há outra maneira de não ser assim. Agora, o retorno da conclusão abstrativa final para o objeto concreto originário não é uma tarefa que incube a nenhuma ciência, mas incube somente à filosofia, mesmo porque isso não pode ser feito pelo método científico tem de ser feito pela técnica filosófica, não há outra maneira de fazer isso. Vamos ver aqui outra pergunta.

Aluno: Assisti a algumas aulas do senhor dizendo sobre Santo Tomás de Aquino em que ele afirmava que as leis são sempre gerais e universais e as que situações são sempre particulares e concretas (...)

Bom, este é o problema estrutural da filosofia. A filosofia de Aristóteles termina com um enigma onde ele diz que toda existência é individual, só existe existência individual, e por outro lado só existe ciência do geral. E agora como é que fica? Bom, daí Aristóteles morreu e nada mais disse e nem lhe foi perguntado, portanto ele nos legou este abacaxi pelos séculos dos séculos. Qual a relação entre o concreto e o abstrato? Qual a relação entre existência e conhecimento? Ele próprio, nos seus estudos sobre dialética, dá várias dicas de como você pode elaborar isto aí, mas ele de fato não deixa uma solução. O ponto final da filosofia de Aristóteles é este abismo por assim dizer, entre conhecimento --- o conhecimento e o Ser --- e justamente preencher este abismo é o nosso esforço pelos séculos dos séculos. Isso nunca será preenchido totalmente, porque isso seria incompatível com a nossa própria condição de existência. Note bem, que o conhecimento total ser possuído por um individuo de duração X é uma coisa absolutamente impossível, porque mesmo que ele conheça tudo --- vamos supor que o sujeito conhecesse tudo; ele conheceria durante quanto tempo? [1:40] Ele manteria isso na sua consciência o tempo todo ou isso iria para o inconsciente, se perderia? Então a idéia do conhecimento total, ela é (...) isto não é uma limitação da natureza humana, isto é a própria natureza humana, ou seja, a natureza humana consiste numa existência precária e limitada e, portanto, nosso conhecimento também. Como ele é apenas parte da nossa existência, será limitado e precário. Isso não o torna duvidoso, isso é que é importante entender.

Um indivíduo que só tem uma existência parcial e limitada ter um conhecimento parcial e limitado não é um defeito do conhecimento: é uma perfeita adequação entre o conhecimento e a sua situação existencial real; ao contrário, a idéia de você querer conhecer as coisas como se fosse Deus é que faz você saltar do processo cognitivo real para uma idealização hipotética impossível, e daí você escapa da realidade. Também a idéia da objetividade total ou da inexistência de objetividade, tudo isso são figuras de linguagem, são hipérboles que na verdade nunca funcionam.

A nossa realidade é assim: nós temos um tempo para viver, não sabemos nem mesmo quanto tempo, a nossa percepção das coisas é limitada; portanto nós não percebemos o universo inteiro, só percebemos uma parte dele e sabemos que estamos dentro do resto, e a veracidade a que nós podemos alcançar nunca é a verdade total porque a verdade total não nos serve para coisa nenhuma. De que serve a verdade total na cabeça de um ente parcial? Mas a adequação entre a nossa situação existencial e o conhecimento que temos; isso é a que nós temos de chegar.

Aquilo que eu conheço não é a totalidade, não é a verdade final, mas é tudo o que eu preciso conhecer para eu estar na realidade, para eu estar me relacionando com a minha condição e com o universo em torno de uma maneira efetiva. Neste sentido, [o próprio Aristóteles, embora ele não tenha resolvido o enigma] a vida dele é a demonstração de que dentro deste enigma, você pode se arranjar de uma maneira perfeitamente decente e eficaz, e chegar ao conhecimento de muitas coisas que você precisa conhecer.

A pior maneira de estudar filosofia é pegar certas questões gerais, que você chama de problemas filosóficos, e meter na cabeça do aluno, por exemplo: existe o mundo exterior? Podemos conhecer a coisa em si? Assim você vai começar de formulações já muito elaboradas, e não da experiência originária; ou seja, quando o sujeito lhe apresenta um problema filosófico, o problema tem de lhe mostrar as suas credenciais. Primeiro ele tem de provar que ele é um problema de verdade e não um erro de linguagem; em segundo lugar ele de que provar que ele é importante, que ele é vital e que ele é vital para você na sua situação existencial real.

[o verdadeiro ensino da filosofia] Por isso que eu digo, no começo eu insisti na importância de uma formação literária, por quê? Porque o problema todo começa com a expressão das impressões. Se você não consegue dizer o que você está percebendo, o que você está sentindo, então muito menos você vai conseguir elaborar aquilo filosoficamente. Quer dizer que um grande poder de expressão verbal ― não no sentido da atuação social, da persuasão etc., mas da simples expressão, ou seja, não é na clave apelativa do Karl Bühler, mas na clave expressiva ― um grande poder de expressão é muito importante para o filósofo, porque se ele não consegue expressar as suas impressões reais muito menos ele vai conseguir trabalhá-las conceitualmente. Isso quer dizer que, em vez de trabalhar com as suas impressões reais, ele vai lidar com conceitos já elaborados que ele recebeu da tradição filosófica, do vizinho, da mídia, de qualquer lugar; então a filosofia dele não vai ter raiz na experiência real.

A expressão literária é o começo das coisas. Na verdade é começo para todo mundo. Por exemplo, quando você tem uma criança; agora aqui tem uma aluna, a Mariana, que tem um bebê lindo e tal. O que você vai ensinar para ele? Vai ensinar trigonometria? Você vai ensinar história? Você vai ensinar antropologia? Não, você vai ensiná-lo a falar pô! Não é isso é a primeira coisa? Isso é a primeira coisa sempre.

Veja, por exemplo, ensinar aritmética. Eu digo: "muito bem". Aritmética é um processo de formalização que supõe que você já conheça um montão de coisas e que você já é capaz de expressá-las. Se você não é capaz de dizer "banana", você não pode somar o número de bananas, está entendendo? Isto quer dizer que a habilidade aritmética é posterior, mas a fala é a coisa básica do ser humano. Veja que a razão passou a se chamar "razão" em Roma, com a palavra ratio. Ratio quer dizer proporção, então enfatiza o lado aritmético da coisa, a capacidade de você avaliar proporções. Claro que isso é importantíssimo, porém, na Grécia, antes disso, já se chamava logos ― capacidade de falar. Ou seja, se não tem a fala, não tem a expressão; você não sabe com o que está lidando e, pior ainda, a linguagem [como ela é um bem social] adquire uma autonomia em relação aos objetos. Para a pessoa que está aprendendo a falar, por exemplo, este menino, a linguagem é um objeto do mundo exterior também e não é só um instrumento interior dele. Ele a recebe como um dado exterior e ele vai ter de personalizá-la. Esse processo não é fácil, é daí que saiu o negócio que eu chamei de trauma da emergência da razão.

O ser humano nasce com a capacidade racional, mas a apropriação dos meios de exercício da razão é uma coisa altamente problemática; e isso tanto é pior, porque os problemas da vida, as dificuldades da vida que requerem às vezes a mais alta capacidade racional para serem elaborados já nos chegam desde o princípio, desde que nós somos pequenos, e eles têm sobre nós o mesmo impacto que teriam sobre um ser humano adulto e altamente preparado. Por exemplo: você é um sujeito pequeno e, de repente, o seu pai fica doente e morre; daí está lá você com sua mãe, os dois na miséria não sabem o que fazer. Bom, esse não é um problema para uma criança resolver. A criança não tem capacidade de elaborar isso, no entanto o problema já está lá, totalmente presente em cima dela, muitos anos antes que ela tenha sequer condição de compreender o que aconteceu. Eu acho fantástico que este problema do trauma da emergência da razão nunca tenha chamado a atenção de ninguém. Os caras vão pensar em traumas sexuais; eu digo "meu Deus, você só pode ter um trauma sexual se você já tem o trauma da emergência da razão antes", este é muito mais básico.

A presença do homem no mundo se define como a presença do animal racional [zoon logisticon] em um meio que exige dele o máximo da sua capacidade racional, e só lhe dá esta capacidade aos pouquinhos. Este drama é muito pior do que qualquer drama sexual, ou a vontade de poder [como Adler], ou arquétipos do inconsciente coletivo. Isto é a própria condição básica; na hora em que o neguinho nasce, ele já está com problemas que só a razão pode resolver e que ele não tem ainda o domínio suficiente da razão para resolver. Todos os sofrimentos humanos, sem exceção, vêm disto. Isso aqui é que é o pecado original. Você vê que, na Bíblia, Adão dá os nomes dos animais; então Adão sabe praticamente tudo que um ser humano precisa saber. Já nasce sabendo, ele é feito. Ele não nasce pequenininho, ele é feito adulto, portanto ele tem a posse da razão em toda a sua extensão. A gente não é assim, a gente nasce pequenininho e burro. Claro que temos toda a capacidade racional que Adão tinha, só que nós temos de conquistá-la de pouquinho e, nesse ínterim, enquanto você vai conquistando, os problemas já vêm e já te atropelam.

Quando você faz, por exemplo, uma análise [você vai ao psicanalista e faz uma análise]. O que você está fazendo? Você está voltando a certos dramas que você viveu e que não pôde articular racionalmente na época, e você vai articular racionalmente ex post facto, depois que a porcaria toda já está feita, e vai tentar salvar alguma coisinha.

Eu acho uma vergonha que a psicologia do século XX tenha enunciado tantas teorias e nunca tenha parado para pensar numa coisa dessas. É claro que eu não sou psicólogo clínico, eu não vou dar a essa teoria todo o alcance psicoterapêutico que ela poderia ter, mas alguns de vocês certamente são psicoterapeutas e podem desenvolver isso aqui. A simples dificuldade que o ser humano tem de equacionar racionalmente os problemas e, portanto, obter um domínio técnico sobre a situação; às vezes, quando ele [1:50] chega a este domínio técnico, o problema já veio, já passou e já deixou a sua marca, e ele não pode fazer mais nada. O máximo que ele pode fazer é, como dizia o doutor Muller, reescrever a história do eu para se adaptar tardiamente a uma situação já vivenciada e na qual ele já sofreu derrota. Eu estou continuamente fazendo este reexame. Eu repenso a minha vida e vejo emoções que eu tive quando era criança e que de algum modo ainda estão presentes, só que eu tenho de reequacioná-las à luz do que sei agora e isto não é (...) por exemplo, quando você vai contar a sua auto-biografia. Tem muitos críticos que enfatizam a deformação. "Ah o sujeito vai deformar a sua vida retroativamente!"; eu falo "isso é uma mentira". O sujeito que recorda a sua vida e conta o acontecimento da sua infância tal como ele o vê agora, ele não está deformando. Porque aquele acontecimento não é uma coisa isolada no tempo, feita para ficar congelada eternamente do jeito que era, mas feita para ser transformada pela memória e pela razão posteriormente. Portanto essa elaboração posterior feita pelo sujeito, também faz parte virtualmente daquilo que aconteceu antes. Claro que pode haver deformação, pode haver mentira, pode haver falsificação, mas o simples fato de você está elaborando agora não quer dizer que seja uma falsificação. É aquele negócio que diz o Lavelle: "a minha memória é o meu verdadeiro ser". As coisas passaram, a memória ficou e ela está presente aqui em mim; de certo modo ela é muito mais real do que aqueles acontecimentos que já passaram, porque a minha memória eu a tenho simultaneamente, ela está toda presente. Este jogo do passado e do presente, da experiência originária e da sua elaboração racional, quem quer ser filósofo tem de ter isso presente o tempo todo. É claro que isto [o conjunto] é uma confusão, mas não é uma confusão obscura; é um jogo de luzes onde você está iluminando um aspecto, outro, outro, outro e nunca está totalmente perdido. Continuando aqui.

Aluno: (...) De modo que uma das técnicas filosóficas consiste em tentar fazer esta conexão, ou seja, o caminho entre o universal e o particular concreto nosso de cada indivíduo. Pelo que entendi isso faz parte do exercício filosófico e a busca da unidade do conhecimento e da consciência, partindo desse ponto minha pergunta é a seguinte: É daí que vem as concepções e idéias dos filósofos e pensadores?

Olavo: Nem todas elas, porque algumas delas se referem a problemas, vamos dizer, do próprio geral; não é só a adaptação do geral. A conexão geral e particular que é um problema filosófico. O encontro, a descoberta, das próprias leis gerais faz parte [uma grande parte] (...) uma grande parcela dos problemas filosóficos vêm exatamente disto --- as leis ou princípios gerais que o sujeito conhece parecem não bater exatamente com a experiência individual dele, ou há aspectos da experiência individual para os quais não existem sequer nomes e que, portanto, não podem ser integradas facilmente numa lei geral. Isso é um problema gravíssimo e afeta sobretudo a esfera moral.

Quando neguinho lê o Evangelho e diz "ah eu vou cumprir isso aqui exatamente como tal". Espera, mas tudo que está no Evangelho são princípios, são regras, são enunciados normativos gerais, e daí até a situação particular o caminho é longo e problemático, portanto ― isto é o que diz o Nikolai Berdiaev com muita a razão ― a aplicação do Evangelho na vida diária é um processo criativo, não é uma simples dedução que você vai fazer, que se colocar no computador (...) está aqui a regra geral e está aí as variáveis, e em tal caso eu tenho de agir assim e assim". Não, isto não existe, porque daí não existiria incerteza moral, e se não existisse incerteza moral nós seríamos apenas maquininhas. Isso é importantíssimo, se você não faz um esforço pessoal de transição do princípio normativo geral para a situação particular, com toda a ambigüidade que existe aí, isso significa o seguinte: você não está dando atenção ao que Deus disse, você se contenta com pegar a interpretação geral que vigora no seu meio e segui-la. Você não está fazendo um esforço interior, não está prestando atenção em Deus. Você esta prestando atenção na opinião pública, você está seguindo-a.

Agora, se você fizer o esforço real (...) o que diz a Bíblia? Meditar dia e noite a lei do Senhor. Não diz isso? Para que você vai meditar se já sabe a significação, já sabe o que tem de fazer? Você vai meditar justamente porque você tem de reconhecer "não estou entendendo"; a primeira coisa, Não estou entendendo e isso aqui é barbaramente importante. Então você medita dia e noite, você não foge da contradição, não foge da dificuldade e no fim você encontra mais ou menos um guiamento do que você deve fazer. Nunca é com certeza absoluta, mesmo porque ao ser humano não é dado alcançar a verdade completa sobre si mesmo. Um certo coeficiente de falsificação e de mentira para si é inextinguível no ser humano --- ele faz parte da natureza humana. e então, por exemplo, quando Kant dizia "nós temos de dizer sempre a verdade"; por exemplo, se entra um ladrão na sua casa e pergunta onde você escondeu o dinheiro, você é obrigado a dizer, porque você não pode mentir. Claro que isso é uma coisa puramente maquinal e estúpida. Uma situação dessas seria enormemente complexa e não tem uma regra para você seguir. Às vezes você deve dizer para ele onde está, às vezes você deve esconder e só a situação concreta é que dirá para você o que fazer, portanto não tem receita. Isso é importante, o Evangelho não é um receituário da conduta moral certa, ele não é isso de jeito nenhum. Ele é algo para ser meditado, onde cada linha tem um mistério que tem de ser desvendado por cada individuo, trabalhosamente, em cada situação.

Aluno: (...)Sobre alguma lei geral ou universal o filósofo entende esse caminho geral e caminha no sentido ao particular e concreto que a sua experiência própria e somando a própria experiência a de outros, talvez, faz-se então o caminho inverso que seria do particular e concreto para o geral e universal.

Olavo: É assim mesmo que se faz. Você está continuamente indo do geral ao particular, geral que você imagina conhecer, porque ele chega para você por uma fórmula simples: seja um dos Dez Mandamentos, seja o E = mc^2^. É alguma fórmula geral, mas que não implica conhecimento verdadeiro. O conhecimento verdadeiro só existe na hora em que você consegue descobrir o geral no particular e vice-versa, e isso é o que estamos fazendo o tempo todo, isso não vai parar nunca. Quando eu falo, por exemplo, [a técnica da confissão] o método da confissão --- a descoberta da mentira interior é diária; você nunca vai se livrar dela, nunca. Você diz "ah eu estou me confessando para Deus". Bom, você está se confessando para uma Pessoa que você não está vendo. Primeiro, já é uma situação de diálogo um pouco estranha porque, fisicamente falando, você está sozinho. Bom, então eu já tenho de fazer um esforço para, como se diz, me colocar na presença de Deus. Mas você está se colocando na presença de Deus ou colocando Deus na sua presença? Esse já é um problema. Você nunca vai escapar disto, desta dificuldade, porque ela é inerente à condição humana e isso deriva do pecado original. Nós não temos a visão de Deus, mas Deus interfere às vezes, e às vezes mostra de uma maneira fantasticamente evidente que Ele está vendo a situação, embora você não O esteja vendo. Eu já tive essa experiência milhares de vezes, de você orar pedindo uma coisa e a coisa acontece na mesma hora --- parece que você está falando no telefone e, no entanto, eu não vi ninguém agir, eu apenas vi a coisa acontecer. Nós conhecemos Deus por Seus indícios, pela Sua presença. Esta presença é que vai nos indicar depois o sentido daquilo que Ele disse no Evangelho, não é o contrário. "Aqui você vai ter o Evangelho primeiro e depois pegar a presença de Deus". Escuta, se Deus estivesse somente no Evangelho, Deus seria somente o personagem de um livro; se Ele não está agindo aqui e agora, Ele não é nada, absolutamente nada --- uma coisa mitológica sobre a qual se escreveu. É a ação divina que faz você entender o Evangelho, mas você precisa prestar atenção.

Por exemplo [2:00], alguém propôs aquele negócio do Sam Harris: "Desafio as pessoas a derrubar o meu argumento". É a coisa mais fácil do mundo. Ele quer dizer que tudo, inclusive as novas morais, pode ser objeto de investigação científica. É claro que pode, mas você está falando da ciência atualmente existente ou de uma ciência futura e hipotética que teria descoberto [as leis da natureza] -- que ele mesmo coloca entre parêntesis --, tal como isso viria a se revelar no fim. No fim do quê¿ No fim dos tempos¿ E em segundo lugar, ele parte do princípio de que a consciência humana é um fenômeno natural. Sim, a sua consciência é um fenômeno natural, mas a consciência do padre Pio é natural? Você tem de chegar a uma noção de consciência que explique não o seu caso, mas todos os casos e, se houver uma exceção, a sua generalidade já foi às cucuias. Isso quer dizer que se existe um ser humano [um único] que chega a uma informação que não poderia ter chegado a ele por vias naturais, então você dizer que a consciência humana é um fenômeno natural quer dizer absolutamente nada. Então são frases vazias e ocas. É claro que o sujeito que vive num meio universitário [que é altamente falante] tem a tendência de se deixar levar por palavras o tempo todo e nunca procurar as coisas que estão por baixo.

Aluno: Durante uma aula de direito penal na universidade Estácio de Sá, a terceira maior em educação no mundo, a professora e advogada criminalista (autora de seis livros de direito penal e conferencista da escola de magistratura do Estado do Rio de Janeiro) acha que a humanidade em poucas décadas vai extinguir as penas restritivas de liberdade.

É mesmo? Isso aqui é absolutamente impossível sob qualquer aspecto que se imagine. Alguma restrição de liberdade você sofre mesmo sem ter sido condenado por nada. Toda e qualquer lei sobre o que quer que seja restringe a liberdade. Não precisa ser penalidade. A restrição de liberdade é um elemento fundamental de qualquer sociedade --- assim como a discriminação. Uma sociedade sem discriminação é o quadrado redondo. Se todos os seres humanos têm os mesmos direitos e as mesmas possibilidades de ação, eles têm de tê-las desde que nascem. Portanto, o garoto pode nascer e ser presidente da República no dia seguinte. São concepções que são puramente masturbatórias. O sujeito imagina algo que dá uma satisfação para ele; aquelas palavras dão uma satisfação para ele, mas ele não é capaz sequer de imaginar concretamente como isso vai funcionar. Não vai mais haver penas restritivas de liberdade; não vão pôr as pessoas na cadeia (...), talvez. Mas vão por as pessoas em algum lugar e vai funcionar exatamente como se fosse uma cadeia. Por exemplo, aqui tem esses chips que você coloca no sujeito e se ele passar num raio de x km vai tocar uma campainha na polícia e ela vai atrás dele. É a cadeia eletrônica, tanto faz. Ele não vai ter uma pena restritiva da liberdade¿ É claro que vai. Ela não sabe do que está falando. É uma pessoa que não sabe raciocinar elementarmente. Agora, como para o indivíduo adquirir um diploma de processo penal basta apenas ele repetir frases, qualquer idiota pode obter isto. O sujeito não vai ser testado em confronto com a realidade. nunca é testado. Se você quer saber, a universidade brasileira é uma máquina feita para proteger os indivíduos contra esse confronto; é uma máquina de trocar frases por frases o tempo todo. E se você repete as frases devidas, eles lhe dão a autorização para você exercer uma profissão, isto é, para você enganar os outros. Isto é realmente assim; não é um exagero ou uma caricatura que estou fazendo. A situação é caricatural por si mesma.

Aluno: Apoiada nas teses ardilosas contra a pena de morte no filme A vida de David Gale*, a senhorita afirmou taxativamente que os EUA são totalitários em matéria penal.*

Eu não assisti ao filme. Isso não é totalmente errado. Não em matéria penal, mas em direito de família, aqui [EUA] é um estado totalitário, no momento. Mas um estado totalitário não quer dizer matança em massa. É a ditadura científica, doce e amável, feita para manter as pessoas em controle estrito sem precisar matá-las ou aterrorizá-las. Eu mesmo escrevi vários artigos sobre isso, citando o livro do Stephen Baskerville, onde você vê que a parcela masculina da humanidade já está virtualmente presidiária. Mas são diferentes modos de totalitarismo. Há muitos anos, um sujeito da Romênia tomou um taxi e estava conversando que veio da Romênia, que é um país comunista etc., e o motorista de taxi disse: "País comunista é aqui, pois o senhor está pedindo para que eu vá um pouco mais depressa para o aeroporto para não perder o avião, mas se eu avançar eu posso levar uma multa e se eu levo uma multa, na semana seguinte eu vou à Igreja e está lá o pastor dizendo: 'tem certas pessoas na nossa comunidade que dirigem com imprudência etc., etc.'. Está lá o meu filho na escola e é obrigado a fazer uma redação contra as pessoas que violam leis de trânsito etc., etc. Eu estou cercado aqui!". Do ponto de vista social, aqui, a partir dos anos 1950 e 1960, está virando realmente um estado totalitário, porém é um estado totalitário virtual. Estas [restrições] modalidades de opressão não chegam a afetar todas as pessoas, afetam só algumas por sorteio. Um entre cada um milhão sofre o impacto daquilo, os outros não. Por exemplo, ouço dizer que um sujeito foi expulso da escola porque entrou com um crucifixo, mas ao mesmo tempo tem milhões de pessoas entrando na escola com crucifixo e não acontece nada. A lei não é aplicada na maior parte dos casos. Então é um totalitarismo virtual, não é como o totalitarismo chinês, como diz aqui, que mata em média (nos EUA são 40 condenados à morte por ano) 6 mil por ano. Na China há um totalitarismo efetivo e aqui um totalitarismo virtual. Obama passou um decreto que permite ele mandar prender ou matar qualquer cidadão americano, sem processo. Só que até agora não usou. O primeiro que usar (...) as pessoas vão perceber que o sujeito sumiu e vão acabar descobrindo quem sumiu com ele. Esse totalitarismo virtual, entretanto, está implantado aqui. Só que a mulher não tem o senso das proporções, ao fazer comparação de uma coisa com a outra.

Aluno: Acabo de ler o livro do Lima Barreto, Os Bruzundangas, onde Barreto com a sua verbe transfere uma fulminante crítica acerca da cultura perniciosa brasileira. A leitura desse livro teve para mim um forte impacto na alma.

Eu acho que todo mundo tem de ler esse livro. Todo mundo tem de ler o Lima Barreto inteiro, porque quase tudo que está lá ainda está presente de maneira muito pior.

Aluno: E me suscitou uma série de efeitos emocionais absolutamente angustiantes. A cada dia que passa, sinto-me cada vez mais isolada e esmagada pela mesquinhez e loucura brasileira. Loucura esta que me torna cada vez mais cristalina à medida que vou me adentrando nas aulas e vou lendo literatura. Ao mesmo tempo em que tudo me parece mais claro, também me parece um tanto mais nebuloso. Ou seja, sei nem expressar exatamente do que se trata.

Isso aqui é fundamental. Você perceber que está percebendo algo cujo nome você não sabe e você não consegue expressar. Se você quer saber, ela pergunta se isso tem algo a ver com o espanto de que fala Aristóteles: Isto é o espanto. Você está claramente percebendo algo, mas você não tem o domínio verbal e, portanto, lógico da coisa. É neste momento que entra a importância da formação literária [adestramento literário]. Sem isso, tudo o que você vem a filosofar depois vai ser somente sobre idéias e conceitos, e não sobre a realidade. Para que a filosofia adquira esse arraigamento na realidade, é preciso que você mesmo tenha criado os conceitos, que você mesmo tenha elaborado o conceito desde a experiência. E não você pegar o conceito pronto que você recebeu de um livro ou de uma aula etc. Tudo isso aqui que eu estou falando para vocês faz quatro anos, não é suficiente para te dar o instrumento de expressão necessário para você elaborar a sua própria situação. [2:10] Eu não posso fazer isso por você, só você pode fazer. Eu só estou mostrando mais ou menos como eu fiz. Deve haver milhões de outras técnicas diferentes para fazer e você vai ter de descobrir alguma. Ela pergunta se isso é normal: Isso é sinal de saúde. Se você percebe que o círculo das suas percepções é mais complexo e rico do que a sua linguagem, muito bem, você começou a pensar. O pensamento filosófico começa aí. E se você sabe que não sabe nem dizer o que está se passando, então sabe que o círculo das suas opiniões não tem tanta importância, mas o círculo da sua experiência tem. Deve-se partir disto aí e chegar naquilo que o Camões falava: "um saber de experiência feito"; que vem direto da experiência da realidade que você elaborou e sabe do que está falando. Agora, na universidade você aprende só a trocar palavras por palavras.

Eu queria que alguns alunos se apresentassem como voluntários para fazer determinadas pesquisas que podem resultar depois em livros ou pelo menos em trabalhos de conclusão de curso. São vários temas que eu tenho tocado nas aulas ou em artigos, mas que transcendem infinitamente a minha capacidade de pesquisa pessoal. Isso é um trabalho que deve ser de grupo.

Por exemplo, este artigo que acabei de publicar que se chama Monopólio e Choradeira, alude a um fato que eu conheço pessoalmente (eu estava lá e vi): a mídia brasileira desde os anos 1950 ou 1960 é quase que inteiramente dirigida ou por comunistas ou por simpatizantes do Partido Comunista, com exceções evidentemente. Mas a proporção está na base de 90% para cima. Por exemplo, eu assinalava que no tempo da ditadura militar os mesmos fulanos dirigiam os órgãos de comunicação e eles mesmos faziam a imprensa nanica que se opunha a esses órgãos de comunicação. Isto equivale ao velho esquema soviético da desinformação, de espalhar a mentira não por um órgão nitidamente hostil à vítima da mentira, mas por algum órgão que seja da confiança dele. Esta é a coisa mais fácil de fazer e é a regra número um da desinformação. Então não é preciso ser muito inteligente para perceber que a mídia brasileira inteira é um órgão de desinformação --- não de propaganda comunista, pelo amor de Deus não confundam. Se um jornal faz propaganda comunista, ele já não serve para fazer desinformação. Isto me parece a coisa óbvia. Se você lê uma denúncia qualquer no Paulo Henrique Amorim ou no vermelho.org, você pode achar que aquilo é deformação comunista, mas se você lê a mesma coisa em O Globo, já tem outro grau de confiabilidade. Portanto, esses órgãos que são usados como veículo de desinformação, eles têm de manter a sua aparência de neutros ou até de direitista. Só que estes órgãos são de fato dirigidos por comunistas e que tem um perfeito controle do processo. Eu citei alguns nomes [até bastantes nomes ali], porém uma reconstituição da história da presença dos comunistas na mídia brasileira ainda está para ser feita. Existe esta tese universitária que eu citei no artigo de dois caras da Universidade Federal Fluminense que assinala ali a presença vital dos comunistas na modernização do jornalismo brasileiro, quando foram adotados nos 1950 os critérios do The New York Times, The Washington Post e do jornalismo profissional moderno. E que isso foi basicamente uma operação feita por um grupo de comunistas. É evidente que se eles fizeram isso, eles não pretendiam usar esses órgãos como meios de propaganda comunista --- somente de desinformação. Por exemplo, eu tinha um livro que foi publicado pelo sindicato de jornalistas de São Paulo há uns 15 anos que se chama 60 anos de jornalismo, que é uma publicação que sumiu das minhas mãos -- e por coincidência saiu um livro com o mesmo título que trata do jornalismo no Maranhão e não deste que estou falando. Você vendo ali os 60 anos de história do sindicato dos jornalistas -- que é a história do jornalismo paulistano --, você vê que mais de 90% dos nomes são comunistas. E camaradas de direita explícitos são dois ou três. Então isto já é altamente significativo. E, no entanto, esta história jamais foi contada. Quando você menciona isso, as pessoas ficam loucas da vida porque elas sabem que isso é verdade. Todos eles sabem que é verdade. Mas como é que uma coisa tão importante nunca foi objeto de história no Brasil? Então, eu preciso de um ou mais alunos que se disponham a pesquisar a história do esquerdismo jornalístico no Brasil. Contar a história como ela realmente foi. Por exemplo, uma vez me fizeram uma exposição do jornalismo nanico --- aqueles semanários que o pessoal fazia no tempo da ditadura ---, e dava a impressão que era outra mídia completamente diferente da grande mídia que apoiava o governo. Só que os caras que faziam esse jornalismo nanico eram os mesmos que estavam na grande mídia. Você pega um Narciso Nanile, que era o patriarca do jornalismo nanico, ele estava sempre nos mais altos postos na mídia e ao mesmo tempo fazia o seu próprio jornal nanico. O Marcos Ferman, que era ao mesmo tempo repórter especial do Jornal da Tarde -- uma posição altamente privilegiada, dentro do Estadão, e diretor de vários jornais nanicos. Eram as mesmas pessoas sempre. Milton Severino da Silva também; todos eles.

Quero que o sujeito reconstrua a história de um por um: Fulano era um militante comunista etc., etc., e exercia tal cargo na imprensa tal e fazia o jornal nanico tal. Isso já muda todo o panorama da história da época. Os donos dos colaboradores eram sempre gente importante nos dois tipos de jornalismo ao mesmo tempo. Outro assunto que nunca foi investigado é a presença da KGB e da DGI [Serviço Secreto Cubano] no Brasil. A coisa mais óbvia do mundo, a KGB teve muito mais gente no Brasil do que jamais a CIA teve. É uma multidão e estão por todo lado. Você não tem um estudo e, no entanto, tem milhares e milhares de estudos sobre a CIA no Brasil e na América Latina; acaba de sair mais um de Taquari. Isso já virou um gênero literário. Mas em geral o material para isso vem de onde? Vem da DGI. A DGI cria a desinformação, passa a informação para o jornalista brasileiro e os caras reproduzem. Outro dia estava vendo aqui um sujeito não sei o que English que publicou um livro sobre Cuba. O livro foi um sucesso, todo mundo falou bem do livro -- o melhor livro sobre Cuba -- mostrando a máfia em Cuba. No tempo do Batista, a máfia mandava em Cuba, com uma rede de cassinos etc., e todo mundo badalou o livro. The New York Times, CNN badalou. Só que a única fonte dele era um cara da DGI. E quando você ia verificar os dados um por um, você que era tudo mentira do começo até o fim. Por exemplo, ele dizia que o chefe da Máfia Judaica [Meyer Lansky] todo ano botava milhões nas mãos do Batista. Em Cuba, porém, só havia três cassinos. E se você somar os rendimentos dos cassinos era menos do que o mafioso que estava dando para o Batista. Ou seja, Meyer Lansky estava perdendo dinheiro em Cuba. E assim por diante. Os três cassinos rendiam menos juntos do que um só cassino de Las Vegas. E no total, o rendimento da jogatina dava uma fração insignificante do rendimento de Cuba. Toda a história da máfia -- como aparece no filme O Poderoso Chefão --, é tudo inventado. Mais ainda, esse cara citava documentos e alguém foi verificar: esses documentos não existiam. Era tudo inventado pela DGI. E muito do que esse pessoal está publicando no Brasil, é tudo inventado pela DGI mesmo. Não tem ninguém, não tem um pesquisador para verificar isto aí. [2:20] Quando você verifica você fica assombrado. Como é possível mentir tanto? Mas os pesquisadores históricos do Brasil são todos como aquele Júlio José Chiavenato, o sujeito recebe uma versão pronta da desinformação comunista, repete aquilo e daí vem outro desinformante comunista e fala bem do livro e assim por diante. E você não tem nada que se oponha a isso no Brasil. Nada. Eu acho que a inexistência de algum estudo sobre a KGB e a DGI no Brasil é o maior escândalo. Não há país no mundo onde isto aconteça. Isto é só no Brasil. Aqui nos EUA você tem esses livros sobre a CIA etc., etc., mas você tem um monte de livros que mostra o outro lado também. No Brasil não tem outro lado. Essa história de que a CIA fez o golpe de 1964 -- que é a coisa mais furada do universo --, e se você pegar a população universitária inteirinha do Brasil, todos eles acreditam nisso porque nunca ouviram uma palavra contra. Houve um professor universitário que ficou escandalizado quando eu disse que a mídia no Brasil é essencialmente dirigida por comunistas. O senhor é jornalista, já esteve dentro de uma redação? "Nunca". Então o senhor não sabe quais são as pessoas das quais eu estou falando. "Ah ele está dizendo que o Globo é comunista hahaha". Eu não disse isso, eu disse coisa muito pior: é um órgão de desinformação comunista, onde é essencial que ele não seja comunista notório. Essas pessoas nem entendem o que eu estou falando. Isso precisa ser pesquisado. Eu preciso de dois alunos entre vocês que pretendam se dedicar anos da sua vida -- 10, 15 ou 20 anos -- a investigar esses assuntos. O jornalismo comunista no Brasil e a presença da KGB e da DGI no Brasil. Existe outros temas que eu gostaria que alguém investigasse, que vamos falar depois. Mas estes dois aqui são urgentes até para vocês mesmos se orientarem. Quem puder, por favor, me escreva e vamos trabalhar.

Muito obrigado a todos. Até semana que vem.

Transcrição: Pedro Vasconcelos, Tamas Souza, Tadeu Cruz Vieira, Adi Neves Rocha e Evandro Santos de Albuquerque

Revisão: Leonardo Yukio Afuso

Footnotes

  1. Aula 15 do COF

  2. Apostila A Tripla Intuição; Seminário de Filosofia

  3. NT. Cerca de 1440 a.C., segundo comentários da Bíblia de Estudo Plenitude, 2002, editora Sociedade Bíblica do Brasil