Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 213
27 de julho de 2013
Boa noite a todos, sejam bem-vindos.
Eu quero lembrá-los de que a gravação do curso "Introdução à Filosofia de Eric Voegelin"1 já está à venda, disponível no site do Seminário2 e também na minha página pessoal, e quero lembrá-los também do curso "Sociologia da Filosofia"3, cujo programa eu acho que já está publicado e que será [ministrado] de 30 de setembro a 5 de outubro aqui em Colonial Heights, Virginia.
Espero que todos que estão acompanhando esta aula tenham assistido às duas anteriores, quando começamos a comentar o primeiro capítulo do livro de Jean Brun, Filosofia e Cristianismo4. Para o meu gosto, é o livro mais importante que já li a respeito desse tema nos últimos vinte anos. Embora Jean Brun seja pessoalmente um protestante, não está muito bem enquadrado em sua raiz luterana, e [está] mais próximo da Igreja Católica sob muitos aspectos. No trecho que leremos hoje, Jean Brun explica mais ou menos o empreendimento de Georg Hegel, mas [como] eu creio que no texto a coisa não tenha ficado inteiramente clara, terei de fazer uma introduçãozinha.
O empreendimento filosófico de Hegel é uma tentativa majestosa, na verdade, de resolver talvez o problema mais antigo da filosofia, problema que começa já com Parmênides e Heráclito, com o contraste entre duas verdades absolutamente inquestionáveis. A primeira é a de que a verdade em si mesma é eterna e independe do pensamento humano e das vicissitudes da vida humana. Por exemplo, dois e dois são quatro eternamente e independentemente até da existência de quatro objetos. Antes que existisse qualquer objeto, ou mesmo o mundo, as leis da matemática elementar já valiam. A distinção de Parmênides de que "o ser é e o não-ser não é" é absolutamente definitiva: do nada, nada surge; o nada não ocupa espaço, nem é um tipo de ser. Por outro lado, [há] a constatação, que aparece mais claramente em Heráclito, de que tudo aquilo que está ao alcance da nossa experiência está em constante transformação e está constantemente sendo diluído, aparecendo e desaparecendo.
Essas duas coisas são verdadeiras, e escavando-se direito no próprio Heráclito encontra-se uma tentativa de solução desse problema. Heráclito não era tão "heraclítico" quanto as pessoas imaginam. Não é absolutamente verdade que ele seja o filósofo do fluxo e da transformação, enquanto Parmênides é o filósofo da permanência, essa é uma visão popular da coisa, pois Heráclito dizia claramente que todo esse universo em constante transformação está, por assim dizer, emoldurado, balizado pelo logos, pela lei eterna. Então, ele está dizendo, no fundo, a mesma coisa que Parmênides.
Duvido que o próprio Parmênides tenha ficado muito satisfeito com a sua tese inicial de que "o ser é e o não-ser não é", porque isso levaria à negação da existência das coisas que fluem, inclusive do próprio Parmênides, que nunca foi eterno, e duvido que ele fosse suficientemente bobo para dizer: Somente o ser existe, e eu não existo. O fato é que o pensamento dos filósofos desse período, chamados pré-socráticos, nos chegou em fragmentos e às vezes sob a forma de depoimentos de terceiros. Então, não podemos ter nenhuma certeza sobre o que era realmente o pensamento deles; temos apenas opiniões soltas, das quais podemos verificar que algumas são obviamente verdadeiras mas contraditórias.
Pode-se dizer que o problema da filosofia começa com essa contradição entre o ser eterno e o mundo dos seres perecíveis, impermanentes, transitórios. Essas duas coisas obviamente existem. A uma delas chega-se por uma exigência interna da própria razão: não se pode pensar em uma verdade que, sendo verdade em si mesma, dependa exclusivamente de condições transitórias; a verdade até mesmo do momento transitório --- [do] que aconteceu e depois cessou [de acontecer], ou seja, [do] que saiu do universo acessível ---, por sua vez, não é transitória. Por exemplo, embora a Batalha de Waterloo e o próprio Napoleão Bonaparte já tenham acabado, o fato de que ele perdeu a batalha continua sendo verdade. A própria palavra "fato" vem do latim factum, quer dizer "aquilo que foi feito", e portanto não pode ser desfeito --- pode-se fazer uma outra coisa que anule os seus resultados, mas o fato mesmo não tem retorno. Nunca ninguém viu acontecer algo como em O Exterminador do Futuro, [em que] o sujeito retorna ao passado para modificar o seu próprio presente. Isso só é possível na esfera verbal; você pode dizer isso, [porque] a gramática é compatível com esse jogo entre os tempos, mas é evidente que a estrutura dela --- [assim como] a da lógica --- não é de maneira alguma a estrutura da realidade.
O fato é que a filosofia começa com esse problema, e a solução que Platão dá é propor uma espécie de coexistência entre os dois mundos: existe um mundo acessível à nossa experiência, que está em contínua transformação e onde tudo está condenado à decadência e à morte, mas esse mundo é como uma esfera que bóia num oceano de eternidade, onde as coisas não mudam. A eternidade aparece [aí] mais ou menos como em Heráclito, como a moldura do transitório e do impermanente --- ou seja, tudo muda, mas [muda] de acordo com uma regularidade que já está predeterminada nas leis eternas. As leis eternas não se colocam no mesmo plano dos fatos da vida terrestre, elas não são afetadas por eles, mas tudo o que acontece nessa esfera não é senão a variação ou a manifestação da estrutura das leis eternas.
Essa solução, na verdade, não resolve coisa nenhuma, ela apenas esclarece um pouco mais o problema. Em Aristóteles, com a teoria da potência e do ato, parece haver uma solução: tudo aquilo que acontece, que se transforma, o faz porque não existe em ato --- [existir] em ato aquilo significa estar em ação no momento ---; há uma parte de sua ação que está retida, e que só se manifestará no tempo --- isto é o que ele quer dizer com potência. Os escolásticos distinguiam entre potência, ato primeiro e ato segundo. Por exemplo, toda mulher tem a potência de ser mãe; quando ela engravida está em ato primeiro --- ela já está se transformando em mãe ---, e quando a criança nasce, está [em] ato segundo --- ela já é mãe mesmo [0:10], [e] isso não pode mais ser desfeito, ao passo que a gravidez pode ser interrompida.
Isso quer dizer que tudo aquilo que se observa no estado presente manifesta um aspecto de ato e um aspecto de potência. Ato é aquilo que já se manifestou, que já está, por assim dizer, claramente na nossa frente, e potência é tudo aquilo que pode acontecer, é tudo aquilo no qual aquele ser pode se transformar. Isso implica evidentemente que a definição das várias substâncias --- a definição de uma pedra, de um gato, de um estado ou do que quer que seja --- tem de ser vista não como a descrição de um objeto estático, mas de um sistema de potências.
Muito mais tarde, já no século XX, um sujeito chamado David Bohm diz que o conceito de substância tem de ser abandonado, porque tudo está em constante transformação, e portanto não existe o ser, existe apenas o sendo. Então, um gato não é um realmente um gato, ele é apenas um gatando, por assim dizer, é algo que está sendo um gato. Mas isso é uma bobagem, porque esse aspecto da transformação já está esclarecido perfeitamente no conceito de definição tal como o entende Aristóteles, segundo o qual a definição de um ente não é apenas a descrição do seu estado presente ou do seu estado eterno, mas de um sistema de potências que o define, sistema que naturalmente tem de ser limitado, senão o ser não poderia ser definido. De modo geral, o ser, no seu sentido universal --- o ser que tem todas as potências ---, não pode ser definido, porque se ele tivesse todas as potências, não estaria sendo tudo o que é. Seria preciso supor para acima dele uma instância maior que abrangesse o que ele já é e o que vai ser. Como isso é impossível, diz-se que o ser só existe permanentemente em ato. Ser e ato são exatamente a mesma coisa. No ser como totalidade não existe potência, tudo é ato, mas todos os vários entes que existem estão divididos entre a sua potência e aquilo que já está neles em ato.
Ainda assim sobra o problema: se o ser está todo em ato, por que os entes singulares que o compõem têm potência e ato? Por que eles já não estão todos manifestados? Dito de outro modo: se o ser é eterno, por que existe o tempo? Essa contradição vem sendo trabalhada ao longo dos tempos e nunca houve solução. O que se observa no começo da modernidade não é uma solução, é o que Jean Brun chama de regionalização da verdade: os filósofos, incapazes de resolver esse problema magno da filosofia, se concentram, se resumem a uma área menor e só se ocupam daquilo, e determinam que o resto é irrelevante ou incognoscível.
Isso aparece claramente, por exemplo, na filosofia de Spinoza, quando ele nega todo o valor ao conhecimento da experiência e [diz que] só o conhecimento obtido por dedução racional tem validade. Ele diz que a experiência nada nos ensina, porque todas as conclusões que tiramos dela são apenas probabilísticas e não nos dão certeza nenhuma. Claro que Spinoza disse isso numa época em que o estudo das probabilidades ainda era insipiente. Leibniz vai dar um passo enorme no estudo das probabilidades, e, mais recentemente, com o avanço da ciência estatística, entendemos a noção de probabilidade de uma maneira mais extensa, pelo menos, do que no tempo de Descartes e Spinoza, e compreendemos que a probabilidade é um tipo de certeza, porque toda probabilidade ou é quantificada ou não é nada. Uma probabilidade não quantitativamente definida não é absolutamente nada. Se eu disser, por exemplo, que há uma probabilidade de setenta e dois por cento de que um candidato seja eleito, os setenta e dois por cento são absolutamente setenta e dois por cento, e não oitenta e três ou dezessete. Se eu disser que há uma probabilidade de que alguém seja eleito, tenho de saber de quanto é essa probabilidade, pois nem uma probabilidade [de] zero [por cento] nem de cem por cento são probabilidades. Portanto, a noção da quantificação, que aliás o próprio Descartes fez avançar bastante, e Leibniz também, nos esclarece muito quanto à natureza da probabilidade, e hoje praticamente toda a ciência física é estruturada na base de um probabilismo e de uma quantificação cada vez mais exata.
Portanto, a idéia [de Spinoza] de que a experiência não nos traz conhecimento algum é, de certo modo, autocontraditória, pois poderíamos perguntá-lo de onde ele tirou essa idéia, que experiência o levou [a isso]. Quando, por exemplo, Spinoza diz que um louco que em pleno dia fala "É dia" não diz uma verdade, Spinoza só sabe disso porque viu um louco dizer alguma coisa que coincidia com a verdade mas [que] nem por isso era verdade, e portanto, algo ele deve à experiência.
Então, a tentativa de negar completamente a experiência não funcionou, mas ela foi só uma das várias tentativas feitas na modernidade para, como diz Jean Brun, regionalizar a verdade, ou seja, demarcar um território e dizer que daquele momento em diante só se iria estudar uma determinada coisa, porque o resto ou jamais será conhecido, ou é demasiado incerto, ou é inconveniente por esta ou aquela razão. O cúmulo da regionalização chega, como vimos na última aula, quando Kant diz que tudo o que recebemos da experiência são fragmentos, átomos, por assim dizer, sem forma, aos quais a nossa mente dá a forma. Isso quer dizer que projetamos apenas os elementos caóticos que recebemos do mundo exterior, mas [o fazemos] dentro do nosso próprio mundo interior, do nosso próprio corpo, da nossa própria alma, e os estruturamos de acordo com o que Kant chama de formas a priori (a priori é aquilo que é anterior à experiência). Essas formas são, no que diz respeito à sensibilidade, o tempo e o espaço, e, no que diz respeito à razão, são as categorias, como identidade, probabilidade, causa e efeito, etc. É a nossa mente que dá unidade ao mundo, e se o mundo mesmo tem uma unidade jamais saberemos. Isso é o mesmo que dizer que só sabemos aquilo que a nossa mente projeta, cria, ou instaura. A noção de veracidade fica praticamente abolida, e instaura-se em seu lugar a noção de "adequação", ou seja, [de que] o conhecimento é adequado porque todos temos as mesmas formas a priori, e [que] todos veremos uma mesma coisa de um mesmo jeito, e não há nenhuma maneira de sairmos de dentro do quadro do espaço-tempo que delimita a sensibilidade, nem de sairmos do quadro das categorias que delimita as possibilidades da razão. Essas formas a priori são eternas e imutáveis, e não é possível escrever uma história delas --- isso é fundamental em Kant. Ele diz, [portanto] que todo e qualquer ser humano percebe e raciocina dentro do quadro das formas a priori da sensibilidade e da razão.
É curioso que aqui Kant lance antecipadamente um argumento temível contra qualquer teoria da evolução, pois não se pode conceber um ser humano que tivesse uma estrutura cognitiva diferente, e também não há um modo de contar a história da formação dessas categorias --- da criação dessas formas a priori ---, porque a própria história já subentende essas formas mesmas. Por exemplo, tudo o que percebemos está emoldurado pelo espaço e [pelo] tempo, e isso é universalmente humano. [Se perguntarmos] quando isso se formou na mente humana, a palavra "quando" já subentende o tempo, e entraríamos num círculo vicioso. Este é um problema temível [0:20] que não vejo como abordar de um ponto de vista evolucionista, porque quando se fala de uma evolução da espécie, é muito fácil pegar exemplares, fósseis colhidos de várias camadas, às vezes em lugares completamente diferentes --- um aqui na América, outro no Amazonas, outro na China --- que, colocados em linha, dão uma impressão de seqüência. Essa evolução física é fácil de imaginar, é só colocar os exemplares numa linha temporal imaginária que dê uma impressão de evolução, mas e a evolução cognitiva? Recue a um tempo onde a estrutura cognitiva humana não tinha, por exemplo, a noção de causa. Se o sujeito não tem a noção de causa, não consegue conectar uma coisa que vem antes com a que vem depois e morre no dia seguinte.
Para descrever essa evolução cognitiva do ser humano, seria preciso dar um salto sobre todas as limitações humanas e ver tudo desde um ponto de vista, por assim dizer, divino. É por isso mesmo que esse aspecto fica fora das discussões sobre evolucionismo ou design inteligente. (Na verdade, a teoria da evolução só adquire sentido dentro de uma perspectiva de design inteligente. O próprio Charles Darwin percebeu isso, porque foi ele quem inventou a teoria do design inteligente, quando, nos parágrafos finais de A Origem das Espécies, ele diz que toda aquela seqüência de transformações é dirigida por Deus.) A única possibilidade de descrever evolutivamente o aparato cognitivo humano seria desde um ponto de vista divino, em que a inteligência divina cria as categorias, ou as tem em si, e aos poucos vai implantando-as no ser humano. Mas, que uma mente incapaz de conceber, por exemplo, causa, se tornasse capaz de percebê-la depois é absolutamente inconcebível. Só percebemos causa porque percebemos causa, e só somos capazes de pensar [em] causa porque percebemos causa; é um círculo vicioso. Eu acho que Kant nesse ponto estava certíssimo, as categorias da razão humana são eternas, e elas estão presentes em todos os seres humanos desde a origem dos tempos, não há como escapar delas. Mas esse é um aspecto mais ou menos lateral [desse assunto].
Na medida em que Kant diz que nada conhecemos fora das categorias do espaço e [do] tempo e das categorias da razão (ele faz uma lista de doze), ele conclui também que essas categorias são apenas do conhecimento humano, elas não têm nada a ver com a estrutura do mundo exterior, ou seja, não conhecemos a estrutura do mundo exterior. Esse é um problema que me atormentou por muitos anos, e do qual acabei me livrando pelo artifício mais simples que jamais ocorreu a Kant: eu me lembrei que não sou só um sujeito cognoscente, eu também sou conhecido, e se eu não fosse conhecido, não poderia ter aprendido a conhecer, porque não teria aprendido a falar, ninguém teria trocado as minhas fraldas etc. etc. Isso quer dizer que todo o sistema das categorias do Kant pode ser simplesmente invertido. Elas não são apenas categorias do conhecimento, são categorias do que eu chamo de objetualidade, isto é, a possibilidade de algo ser um objeto. A chave da "jaula kantiana", como falava Ortega y Gasset, é muito simples: é só inverter.
Por exemplo, deixem eu lhes contar um episódio cômico. Eu conheci uma dupla de irmãos que viviam tomando todo tipo de drogas. Um dia um deles me disse: "Esse negócio de LSD realmente abre as portas da percepção, porque quando o meu irmão está a cinqüenta metros de distância, eu cochicho o nome dele e ele ouve como se estivesse a cinqüenta centímetros." Então eu [lhe] perguntei: "Mas como é que você sabe se é ele que, estando a cinqüenta metros [lhe] ouve como se estivesse a cinqüenta centímetros, ou [se é] você que, estando a cinqüenta centímetros o enxerga como se ele estivesse a cinqüenta metros?" Então ele [me] disse: "Puxa, eu nunca tinha pensado nisso!" Esse é evidentemente um problema kantiano, o da relação entre sujeito e objeto. Se eu me olho no espelho a dez centímetros, eu só posso me ver a dez centímetros, e se recuo três metros, passo a me ver a três metros. Não tem jeito de eu me colocar a três metros do espelho e continuar me vendo de perto. Isso significa que a percepção que tenho de mim mesmo no espelho depende de uma distância objetiva que evidentemente não é uma forma da minha mente, mas é um condicionante do meu corpo e da presença do próprio espelho. Portanto, jamais podemos dizer que espaço e tempo são apenas categorias da nossa percepção, e que nada sabemos a respeito deles no mundo objetivo.
Outra experiência que eu tive foi que quando criança eu ficava doente [por] muito tempo e passava meses delirando. Quando eu acordava, eu tinha de mais ou menos refazer o esquema de referências, e sempre me baseava no mundo exterior para saber onde estava, quais eram as direções do espaço --- para cima, para baixo, direita, esquerda --- etc. Em suma, eu recebia do mundo exterior como se fosse uma impressão, um molde, uma estrutura dentro da qual depois as coisas se arrumavam. Eu também pensei o seguinte: Quando se observa o mundo, vê-se que ele está tão repleto de objetos, fatos e situações, que ele, para nós, é inabarcável. Em seguida observa-se uma coisa chamada cérebro humano, que não é maior que o cérebro de um golfinho e que é mais ou menos do tamanho de um pão italiano. Então, pensei: o que está dentro do que? É o meu cérebro que está dentro do mundo, e não o mundo que está dentro do meu cérebro. Isso para mim me pareceu óbvio. Inclusive, o mundo parece que já estava aí antes de eu chegar, tanto que eu não tive de fazê-lo, e provavelmente ele continuará aí depois da minha retirada.
Muito provavelmente, a visão que o Kant teve dessa estrutura toda é certa, só que ela está no lugar errado. As formas a priori são as formas do mundo que são impressas em nós e dentro das quais vivemos. Isso quer dizer que podemos aceitar toda a teoria e a descrição kantianas do espaço e tempo e das categorias da razão com a ressalva de que elas não estão dentro de nós, nós é que estamos dentro delas.
Porém, no tempo de Hegel não parecia haver saída para aquela regionalização brutal que Kant havia feito do conhecimento. Depois de Kant e em toda a linha de seus continuadores prevalece a idéia de que só temos conhecimento daquilo que é acessível aos nossos sentidos e daquilo que disso podemos deduzir pela razão. Mas esse conjunto de conhecimentos é apenas uma aparência, é como vemos o mundo. O conjunto das ciências inteiras é o conjunto do que pensamos sobre o mundo, mas não sabemos se o mundo é realmente assim, e evidentemente tudo o que não é verificável pelos cinco sentidos fica fora do universo do conhecimento. O universo do conhecimento já é duvidoso em si, e o que está fora dele é mais duvidoso ainda. Por incrível que pareça, em vez disso alimentar um ceticismo universal e uma atitude de tolerância para com todas as hipóteses --- já que não sabemos nada, todas as hipóteses deveriam ser válidas de algum modo, ou pelo menos não teríamos base [0:30] para recusá-las ---, alimentou exatamente o contrário: uma espécie de dogmatismo que diz que somente os conhecimentos obtidos por esse método são válidos.
Era assim que as coisas estavam no tempo de Hegel; mas Hegel parte de uma observação que é terrivelmente verdadeira: se existe verdade, a verdade só existe no todo, pois aquilo que é parte tem o seu fundamento no todo, logo a verdade da parte depende da verdade do todo. Portanto, só podemos conceber a verdade como verdade universal, e esta não pode excluir absolutamente nada. Isso quer dizer que não podemos conceber verdades isoladas, [já que] toda verdade isolada depende de outra coisa. Por exemplo, a verdade de uma percepção que eu tenho depende de que eu a perceba, e minha percepção dela depende de que eu tenha esta estrutura corporal e não outra, e para que eu tenha esta estrutura corporal, tenho de ter a hereditariedade "x" e não "y", e assim por diante. Desse modo, as verdades vão se encadeando e se exigindo umas às outras. É claro que essa reação de Hegel a Kant era perfeitamente legitima: se [da realidade] só podemos separar um pedacinho e investigar apenas ele, porque do resto nada sabemos, também não poderíamos saber nada sobre ele, porque nós mesmos o recortamos, e nunca teremos certeza de que ele existe. Se não temos essa certeza, o conjunto do que chamamos de ciência é apenas uma história da carochinha. Essa é a grande descoberta de Hegel: só existe verdade no todo; a verdade é o todo, e o todo só pode ser concebido sob a forma de um sistema, de uma articulação total de todas as descobertas da razão. Eu acho que isso é absolutamente inegável.
Quando, porém, é dito que só existe verdade no todo, retorna-se imediatamente ao problema platônico dos dois mundos. Só existe verdade no todo, mas só se concebe o todo como uma idéia da razão que é em si mesmo plena, porque o todo contém tudo, idéia porém [que] no instante em que é pensada fica vazia, porque não se pode preenchê-la de nada em particular. Eis o velho paradoxo: o conceito do ser, que é o mesmo que o conceito do todo, é ao mesmo tempo o conceito mais cheio e o mais vazio. Como resolver isso? O que Hegel faz é voltar ao problema inicial da filosofia, mediante a exigência de que a verdade só pode ser concebida como uma totalidade, e a totalidade, a expressão filosófica da verdade, por sua vez, seria o que ele chama "o sistema" --- a articulação completa de todas as verdades possíveis. Se a verdade só existe no todo, esse todo não nos é completamente desconhecido, podemos pensá-lo, mas só o pensamos negativamente. O todo é a ausência de limitação, a qual sabemos o que é porque temos a experiência dela. Se suprimirmos mentalmente todas as limitações, sobra conceito do ser, a respeito do qual não podemos dizer absolutamente nada, porque o que quer que se diga [dele] já o está limitando de alguma maneira, de forma que não há definição do ser, pois todas as definições remetem a ele. Então o ser é apenas uma categoria do pensamento? Isso também é autocontraditório, porque se ele fosse só uma categoria do pensamento, seria do nosso pensamento, e evidentemente o nosso pensamento não produz as coisas ao nosso redor, ele também é apenas uma parte.
Então, temos uma relação ambígua, por assim dizer, com esse todo e com esse ser. Podemos concebê-lo, mas só negativamente, ou seja, aquilo que contém tudo só podemos conceber como se fosse um nada. Essa tensão entre a plenitude do ser e o nada da sua definição é uma constante da história humana, e Hegel acha que pode resolver isto mediante "o sistema" --- a exposição total da verdade, desde o seu plano de universalidade abstrata até os últimos detalhes dos entes em transformação. Esses entes em transformação já estão contidos no todo, e são de algum modo a manifestação dele, que considerado em si mesmo é vazio. O conteúdo do todo é a sua manifestação, portanto o ser só existe como tempo, como aquilo que se manifesta; o ser é a sua própria manifestação e nada mais. Hegel acredita que é possível descrever esse processo, mas esse processo só pode ser descrito analogicamente, contando-se uma história da carochinha que imita, por assim dizer, a manifestação total do ser no tempo e fecha o circuito entre tempo e eternidade, entre o ser e os entes, mas [que] será sempre um modelo analógico.
Tomada como um modelo analógico, a filosofia inteira de Hegel é absolutamente genial; só que ela não é verdadeira, é apenas um símbolo. Existem duas maneiras de ler Hegel: lê-lo como a ficção mais genial que já se fez, no sentido de mostrar o processo inteiro do ser na sua manifestação no tempo, ou levá-lo a sério literalmente, acreditando que essa descrição que ele fez é realmente o processo do ser no tempo. Acontece que a verdade só existe no todo, e o todo implica necessariamente a totalidade dos tempos, portanto a descrição integral do processo só poderia ser feita no fim dos tempos, e esse era um problema que Hegel não podia resolver, porque ele morreu, e depois disso a História continuou. A filosofia de Hegel é uma imagem totalizante parcial, portanto fictícia, mas com um valor analógico absolutamente inegável. O próprio Evangelho, que é uma narrativa sacra, revelada, diz que Jesus fez e disse muito mais coisas que do que estava relatada ali, e os livros que precisariam ser escritos para contar isso não acabariam mais5. Portanto, o próprio Evangelho é uma estrutura em aberto, e Hegel cria uma estrutura fechada que, no entanto, sabemos que é aberta --- é assim que se lê Hegel.
No tempo de Hegel, o conhecimento da História universal era muito precário. A história cientifica tal como se entende hoje estava sendo criada naquele mesmo instante por um contemporâneo de Hegel, Leopold von Ranke, segundo o qual a finalidade da História não é ficar filosofando sobre o sentido último das coisas, mas simplesmente, [na] expressão dele, "Contar as coisas como elas efetivamente se passaram". Isso não é uma tomada de posição filosófica, é apenas um preceito metodológico --- a História só vai se ocupar daqueles pedaços que ela sabe e que pode contar ---, [o que] é também uma regionalização da verdade, mas não proposta como uma tese filosófica, mas apenas como uma declaração de missão: Eu, o historiador, estou aqui para contar as coisas que eu sei [0:40] como elas efetivamente se passaram; as outras, não sei. Então, ao mesmo tempo, aparecem a idéia da História como um todo, como um movimento universal descritível e abarcável pela mente de Hegel, e [a idéia da História] como uma coleção de fragmentos laboriosamente e duramente obtidos dos documentos, dos testemunhos etc.
É claro que todo historiador tem na sua prática essas duas visões da História. Por um lado, ele sabe que vai poder reconstituir [do todo] somente um pedaço, e que mesmo esse pedaço ele só conhecerá parcialmente, e por outro lado ele sabe que se ele não tiver alguma visão geral dos movimentos históricos, mesmo que seja uma visão fictícia, não vai conseguir se orientar nem mesmo nesses pedacinhos. Essa é outra coisa que não tem solução. Eu pessoalmente acho que a ausência de solução de certos problemas filosóficos é uma parte da estrutura da realidade. É aquilo que Eric Voegelin chamava de tensão. Viver nessa tensão é o nosso destino nesta vida, portanto não podemos nos pronunciar nem pela ciência universal e nem pela ignorância universal, porque nunca estamos [nem] em uma nem na outra. A possibilidade da ciência universal que explique tudo só é concebível como uma lenda, uma utopia, mas o ceticismo integral, que renega o conhecimento de tudo, como o é segundo Pedro da Fonseca, também não é concebível, porque pelo menos isso seria preciso saber. Como é que o indivíduo sabe que nada se sabe? [Se] ele ficou sabendo disso lendo os céticos, Sexto Empírico, Francisco Sanches, Pedro da Fonseca, então ele sabe pelo menos que existe o ceticismo e que essa é a escola certa. Então, essas duas coisas são absolutamente inconcebíveis, e vivemos nessa tensão perpétua, tensão esta que a meu ver não resulta de nenhuma limitação humana ou de uma limitação da estrutura das coisas, mas ela é a própria estrutura das coisas, mesmo porque ela é a única coisa compatível com o fato de que a nossa vida transcorre no tempo, de que ela começou, e de que ela terminará.
Notem que as duas coisas que as pessoas menos gostam de pensar é na sua morte e no seu nascimento. Por exemplo, eu nunca encontrei --- e já estou com sessenta e seis anos --- uma pessoa que tivesse uma consciência clara de que para ela chegar ali ela passou por uma fase de dependência na qual alguém teve que alimentá-la, porque nem comer a desgraçada sabia, e que a vida dela, por assim dizer, é uma espécie de doação de terceiros, da sua mãe e do seu pai. As pessoas não gostam de pensar nisso porque isso as torna inseguras. [Elas pensam:] "Então tudo o que eu estou fazendo, falando, pensando etc. depende de alguém ter me dado uma mamadeira quando eu tinha seis meses de idade?" [Eu lhes respondo:] "Sim, depende". Então, esse universo de pensamentos que constitui o mundo adulto, por assim dizer, tem uma raiz muito fraca. O homem é necessariamente um ídolo de pés de barro. Não há nenhuma espécie animal que seja dependente de cuidados maternos por tanto tempo quanto o ser humano, e mais ainda, é enquanto ele recebe esses cuidados maternos que se formam nele algumas das idéias mais fundamentais. Uma vez me perguntaram no curso de filosofia política, [que dei] no Paraná, qual é a origem da autoridade. Eu respondi: A autoridade é o fascínio do bebê pela sua mãe. Ele depende inteiramente dela para absolutamente tudo, sua vida depende dela, então é natural que cada vez que ele a veja, a olhe completamente fascinado. Se ele pudesse exprimir a sua experiência em palavras, [certamente se] perguntaria: Por que ela está me dando leite ao invés de me jogar pela janela? E se ela me largasse aqui? Ela foi à cozinha, e se ela não voltar? Alguns bebês tiveram essa experiência terrificante. Portanto, a total dependência de alguém que tem o poder e que nos dá proteção, alimento etc. é a nossa primeira experiência da autoridade, [que é] diferente da experiência do poder. O poder é, nesse sentido, algo muito mais limitado do que a autoridade. Mas não é esse o nosso tema.
Do mesmo modo que as pessoas não gostam de pensar na morte e muito menos na vida após a morte, também não gostam de pensar no seu nascimento. Isso quer dizer que normalmente todo o universo de pensamentos da nossa vida adulta está construído dentro de uma moldura ficcional, uma moldura na qual não nascemos e não vamos morrer. Não é extraordinário? Também não deixa de ser curioso que todo adolescente quando chega à adolescência tenha uma fase de auto-afirmação, para que se livre do terror da recordação da sua primeira infância, quando ele era totalmente dependente. Poucas pessoas são capazes de conviver o tempo todo com a recordação da sua fragilidade e da sua morte. Quando elas começam a lembrar disso, aí é que começam a ficar sábias, a se livrar do mundo da ilusão. Todos os demais pensamentos humanos, sem exceção, são ilusórios. Qualquer pessoa que não passe pelo teste do nascimento e da morte está negando a condição da sua própria existência, porque se ela não tivesse nascido, não estaria dizendo nada, e se não fosse mortal, seria eterna e já saberia tudo ao mesmo tempo. Portanto, a negação da temporalidade é, por assim dizer, o começo do desenvolvimento humano a partir da adolescência, mas essa negação faz com que todos os pensamentos sejam baseados numa ficção. É por isso que Platão dizia que filosofar, no fim das coisas, é aprender a morrer; é lembrar que a morte dará sempre a medida. Mas por que só a morte e não [também] o nascimento? Platão esqueceu de dizer isso. É na figura da convivência com a mãe que recebemos nos primeiros meses praticamente toda a moldura dos pensamentos que teremos depois. A noção de causa, por exemplo, está dada ali. É claro que o bebê nasce com a aptidão de perceber causas, senão ele jamais as perceberia, mas, por exemplo, quando ele está com fome e sua mãe lhe dá de mamar, a fome acaba, e ele é logo capaz de perceber que uma coisa causou a outra.
Todo o universo de Hegel, que é o universo do ser que se manifesta, que se desdobra nos acontecimentos deste mundo, vale como uma imagem analógica, e nesse sentido eu acho que estudar Hegel é absolutamente imprescindível, porque às vezes o homem dá lições de uma maestria filosófica absolutamente extraordinária. Seu projeto, porém, está viciado na base, pois, [em primeiro lugar], ele nos mostra uma História total que, no entanto, pára no momento em que ele pára de falar; já estamos a dois séculos de Hegel, e a História continua depois dele. Em segundo lugar, a filosofia completa da História é impossível, porque a História não terminou. Este é o argumento de Voegelin: não podemos saber o sentido da História porque ela não acabou. Quando assistimos a um filme, conseguimos entender o seu sentido porque ele acaba, mas se tivéssemos de ficar sentados o resto das nossas vidas no cinema, [0:50] [o filme] não teria sentido nenhum. A História então é um processo em aberto, e não podemos saber aonde ela conduz, mas há algo que sabemos aonde conduz: a nossa vida pessoal. Sabemos que vamos morrer, e temos uma idéia aproximada da distância que nos separa dessa morte. Mesmo quando jovem, podemos conceber quanto tempo iremos durar. Podemos investigar qual é a duração média dos nossos familiares, por exemplo. Se não houver um acidente e o sujeito não for atropelado por um trem, ele pode durar uns sessenta, setenta, oitenta anos --- no meu caso, felizmente, todo mundo [da minha família] dura [uns] cem anos; minha tia, com cento e dois anos, acaba de ser levada para um asilo (mas isso não quer dizer que eu vá viver cem anos).
A recordação da infância e da origem é sempre possível e vai estar sempre à nossa disposição; ela não vai mudar, o que aconteceu está acontecido. Talvez por ter ficado muito doente quando era criança eu tenha uma noção mais clara da dependência, porque eu continuei dependente, estrebuchando com febre, delirando, tomando injeção, quando os outros garotos já estavam andando, brincando etc. Para mim está muito claro que o universo da minha vida adulta não é algo fechado, amarrado; ele ainda tem uma raiz lá [no início], eu ainda sou dependente daquilo.
Eu acho que essas indicações já são suficientes para podermos ler e comentar o texto de Jean Brun.
"Tal é a situação metafísica e histórica --- histórica porque metafísica --- ante a qual se encontrou Hegel, o qual se deu por missão colocar fim a tudo o que pudesse separar a compreensão do conhecimento, o conhecer do pensar, o fenômeno da coisa-em-si, o homem de Deus."
Kant diz que das coisas só vemos as suas aparências fenomênicas, não a coisa-em-si. Isso parece um problema, mas existe alguma solução não hegeliana para ele, ou seja, podemos escapar dessa separação sem precisar construir uma filosofia da totalidade universal? Eu acho que sim, e acho que a maneira de sair disso é [usar] o mesmo truque de se ver não como sujeito cognoscente, e sim como objeto. Por exemplo, vocês estão me vendo agora com a idade que eu tenho, vocês não estão me vendo aos três ou aos cinco anos de idade, então [essa] é apenas uma aparência, o Olavo de verdade já teve várias aparências, não apenas esta que está mostrada aqui, e isso parece dar razão a Kant. Acontece que eu também não tenho a capacidade de me mostrar com outra idade que não a que eu tenho. Eu não posso miraculosamente me mostrar como eu era aos três anos e aparecer aqui de fralda. Isso quer dizer que a limitação não está só na aparência que o sujeito vê, mas [também] na aparência que o objeto mostra; existe uma limitação intrínseca do objeto, que é a sua modalidade de ser. Por exemplo, quando vemos um cubo, só o vemos por três faces; então Kant diria: Está vendo? Sabemos que o cubo tem seis faces, mas só vemos três, então só vemos a aparência, e não a coisa-em-si. [Mas] eu digo: Mas o cubo tem a capacidade de me mostrar as suas seis faces ao mesmo tempo? Ele também não tem. Para isso, seria preciso desdobrá-lo no plano, como na geometria descritiva, mas aí já não seria um cubo, seria o desenho de um cubo num plano. Então, essas formas a priori existem tanto no sujeito quanto no objeto, mas quando Kant explicou a coisa pela primeira vez dava a impressão que era exatamente como eu estava dizendo, que por trás do fenômeno, que é o que aparece, existe a coisa-em-si, que é inalcançável e que não se pode sequer saber se existe.
Como Kant chegou a isso? Quando Descartes colocou a consciência que o sujeito tem de si mesmo, enquanto pensante, como o primeiro princípio absolutamente certo, como o fundamento de toda a certeza, era natural que daí por diante todo mundo que tratasse de assuntos filosóficos começasse a raciocinar com base na prioridade do sujeito, porque não se lembraram de examinar o sujeito enquanto objeto. Se Descartes não fosse um objeto, como é que eu poderia saber de sua existência e ler suas obras? Ele seria apenas um sujeito que conhece, mas não é conhecido jamais. É daí que se origina o fenômeno que eu chamo de "paralaxe cognitiva", fenômeno que está ligado ao subjetivismo moderno, em que a condição para que um sujeito diga uma coisa prova que essa coisa é falsa; o fato de que ele possa dizê-la prova que é [ela] falsa. É o caso de um sujeito que diga para alguém: Eu não estou aqui. Às vezes, quando o telefone toca, pedimos para alguém dizer que não estamos ali. Mas para que eu diga isso é preciso que eu esteja ali, [pois] se eu não estivesse, como eu poderia dizer que não estou? Se acreditamos na sentença sem examinar a condição real na qual ela pôde ser emitida, caímos na paralaxe cognitiva, que significa negar a condição real que permite que façamos a negação. [Aí] não há uma contradição no texto ou uma contradição lógica: há uma contradição existencial, real entre o que foi dito e a possibilidade de dizê-lo. Se Kant não fosse também um objeto, ninguém poderia conhecê-lo, e basta considerá-lo como objeto para ver que as limitações que ele diz serem do conhecimento humano são limitações da própria condição de apresentação dos objetos.
Mas essa é uma especulação minha, não foi isso que Hegel fez. Ele achou que para sair da jaula Kantiana precisava fazer uma filosofia da totalidade universal e demolir todas as separações de uma vez. Ora, esse problema da separação ou da diferença entre os dois mundos --- entre o tempo e a eternidade, entre os entes e o ser, ou, como dizia Platão, entre o mundo das aparências e [o mundo] das formas eternas --- é o grande tema da filosofia. O que Hegel faz é negar a separação, negar todas as diferenças.
"Ao elaborar a síntese de uma filosofia da história e de uma teologia do Deus vivente, Hegel põe a Eternidade em marcha na história a fim de que os dados se tornem focalizações momentâneas do doador, (...)"
Ele usa a palavra donnant, "doante", mas acho que isso não existe em português, então pus "doador". Não é uma tradução muito exata, mas é a única possível. Isso quer dizer que tudo o que aparece, todos entes particulares, os fatos, as situações etc. não são realidades em si mesmas, são focalizações momentâneas da fonte de onde tudo isso emerge.
"(...) o qual se constitui a si mesmo através delas, (...)"
Essa negação da realidade autônoma dos entes e a redução delas a "focalizações momentâneas", como diz Brun, poderiam ser entendidas no sentido hindu ou parmenídico de que tudo é ilusão e que só existe a fonte ou o ser eterno. Não é isso que Hegel diz. Ele diz que esse ser eterno que é a fonte de tudo está se constituindo a si mesmo através desses entes, a realidade dele consiste nessa doação.
"(...) e a fim de que a Verdade dinamizada possa aparecer como o devir de si mesma6." [1:00]
Notem que um certo treino hegeliano ajuda muito a compreender o processo da sucessão das idéias na História, ou o processo histórico mesmo. Independentemente de sua validade filosófica absoluta, a qual não existe, o exercício dialético fornecido por Hegel de observar a verdade em processo à medida que ela vai aparecendo, em que o próprio processo de descoberta da verdade é parte dela, é um exercício que não há dinheiro que pague. Por isso, tenho a maior apreciação por Hegel; ele é um grande filósofo, sem sombra de dúvida.
"Que Hegel tenha podido declarar que era luterano e que pretendia permanecê-lo não impede que seu pensamento se apresente como um esforço para chegar a uma dinamização da verdade, mediante a Parusia do Absoluto em devir."
"Parusia" significa a presença real. [O termo] é usado [nas Escrituras], por exemplo, para a segunda vinda de Cristo, quando Ele estiver presente novamente entre nós. Há uma presença permanente do Absoluto em seu processo de revelar-se e de tomar consciência de si mesmo. Não é que existe o Absoluto que tudo sabe, e o processo temporal é apenas uma manifestação --- como numa perspectiva hinduísta ou guénoniana. Não é isso que Hegel quer dizer. Ele quer dizer que o Absoluto toma consciência de si mesmo no seu devir; é o pensamento do Absoluto em ação. Tudo que está acontecendo é o próprio pensamento do Absoluto que está pensando, tomando consciência de Si mesmo e, por assim dizer, se autoconstituindo, pois Ele consiste apenas do pensamento. Sua única realidade é aquilo que Ele pensa, o que, por sua vez, é o que chamamos realidade --- a realidade total que nos envolve e da qual somos parte.
"A regionalização da verdade que, em Descartes e Kant, resultava da sua instauração mesma, não tem mais razão de ser a partir do momento em que a verdade cessa de residir numa ilha e se torna um continente em perpétua expansão."
Isso quer dizer que a verdade não é um conjunto de afirmações nem uma doutrina sobre a realidade, mas ela é a própria realidade no seu devir, [devir] que existe à medida em que [ela] se pensa e toma consciência de si mesma.
"Se 'a natureza da verdade é brotar quando seu tempo chegou e manifestar-se somente quando esse tempo chegou'7, é porque o tempo se confunde com o surgimento contínuo do verdadeiro."
Aparece aqui uma indistinção --- que é um dos problemas mais sérios em Hegel --- entre uma verdade que se revela para uma pessoa e outra que se revela para todos. Acho que não há nenhuma verdade que tenha se tornado instantaneamente conhecida por todas as pessoas ao mesmo tempo. Quando dizemos que chegou o tempo da verdade, que o mundo está maduro para conhecê-la, não nos referimos ao mundo todo. Mesmo que [ela] fosse anunciada ao mundo todo, os bebês e os retardados mentais não ficariam sabendo de coisa nenhuma, os doentes não seriam informados [etc.]. Mesmo na melhor das hipóteses, essa revelação universal da verdade não existe. Essa expressão de que uma verdade apareceu porque seu tempo chegou significa que chegou para algumas pessoas, e por isso não há como absolutizar esse momento da revelação da verdade, como parece fazer Hegel. A verdade sempre aparece para uns primeiro, para outros depois, e às vezes para outros ela não aparece nunca.
De qualquer modo, a idéia de que o tempo se confunde com o surgimento contínuo do verdadeiro não pode ser totalmente rejeitada, porque a sucessão do acontecer é uma das bases mais fortes que temos para pensar o que é a verdade. Aquilo que aconteceu é sem dúvida verdade, mesmo que você não o saiba. Ou seja, a sucessão do acontecer nos é preciosa: quando conseguimos contar o que aconteceu, ainda que não tenhamos compreendido absolutamente nada, temos pelo menos uma seqüência temporal. Suponham que uma pessoa chegue à casa de vocês assustada com algo que viu e não compreendeu. Se vocês lhe perguntarem o que houve, o que ela faz? Ela conta o que ocorreu. Essa ordem narrativa é uma primeira articulação racional do que aconteceu, e se nem ela há, nada se pode fazer, não se pode avançar no conhecimento da coisa.
"O tempo se confunde com o surgimento contínuo do verdadeiro". Esta é uma frase que tem de ser aceita, porém de modo analógico. O verdadeiro não se resume ao tempo, pois para nós não existe "o tempo", só existe a sucessão dos momentos. "O tempo" é um conceito abstrato que idealmente soma todos os momentos passados e futuros, mas numa escala que nos é inalcançável. Se o tempo é identificado com o conjunto do verdadeiro que se manifesta, automaticamente o verdadeiro --- ao menos o verdadeiro total --- é colocado fora do nosso alcance, uma vez que não viveremos o tempo total.
"O tempo hegeliano não é outra coisa senão a Parusia de Deus que se faz no tempo e pelo tempo, (...)"
Isto é, a presença de Deus na totalidade do real.
"(...) dimensão mesma do Calvário do Espírito Absoluto incessantemente recomeçado. Eis por que ele chega mesmo a estar em condições de proclamar que o Absoluto é resultado8 (...)"
É a famosa frase de Hegel de que a essência de uma coisa é aquilo no qual ela se torna, ou seja, só podemos perceber a essência de algo depois que ele alcançou seu completo desenvolvimento. Ele dá o seguinte exemplo: Se pergunto o que é uma árvore, não me contento se alguém me mostra uma semente. Essa semente, se plantada, resultará em uma árvore, e então saberei o que [ela] é. Essa é outra regra filosófica muito útil que embora não seja válida em todos os casos, o é numa multidão deles: é preciso esperar que um processo chegue a um determinado nível de maturação para que se saiba o que [ele] é. De certo modo isso repete a frase do Evangelho: "Pelos frutos os conhecereis"9. Ou quando Cristo conta a parábola do trigo e do joio10, segundo a qual o trigo e o joio crescem juntos, e no começo não podem ser separados. Só depois é que se sabe o que é joio e o que é trigo, e aí é que se separam, antes não é possível. Isso que Hegel está de certo modo repetindo aqui, como regra prática de aplicação limitada, é de um valor extraordinário.
"(...) ou de dizer que 'o verdadeiro é o devir de si mesmo'11.
Decerto, numerosos textos de Hegel podem incitar a pensar que esse devir não é senão uma explicitação de algo que o domina, e que ele tende a um fim."
Então voltaríamos à hipótese hindu.
"É assim que o heraclitismo hegeliano, segundo o qual não há senão o devir, se encontra às vezes duplicado em uma filosofia que afirma que não há devir senão do ser; (...)"
O ser é o devir, mas devir do quê? Devir do ser eterno. Este é um problema que Hegel tenta solucionar, e seu fracasso em solucioná-lo é o edifício majestoso da sua filosofia. Ele pega um problema e não o resolve, mas no percurso lança uma infinidade de idéias úteis.
"(...) isso é o que sugerem as Lições sobre a História da Filosofia, onde Hegel esclarece que, antes de fazer a história de uma noção, é preciso desde logo dar uma definição dessa noção, sob pena de não saber do que se faz a história."
Se se tem a definição, se tem a essência, [1:10] e se esta é o resultado, só pode vir no fim. Aqui há uma tensão. É preciso ter a definição para saber a História do que se está contando, porém se o único ser que este ente tem é o seu desenvolvimento e o resultado a que ele chega, então não há como saber [a definição] de antemão. Então, tem-se uma definição inicial que será dialetizada e depois absorvida em uma definição final. É só assim que se pode entender o que Hegel está dizendo.
Agora, perguntem-se o seguinte: No Brasil inteiro, um país de duzentos milhões de habitantes, quantas pessoas hoje são capazes de aplicar essas distinções na análise do que quer que seja? Não há mais ninguém, acabou. Trinta ou quarenta anos atrás havia vinte ou trinta pensadores que estudaram Hegel e sabiam lidar com essas coisas, e que ao analisarem elementos de história da cultura, da política, da arte etc., tinham essa retaguarda quase que instintivamente. Era algo que estava em seus corações; não era um bicho de sete cabeças. Porém hoje não se encontra mais quem consiga fazer uma análise dialética de qualquer coisa levando isso em conta. Pode haver alguém escondido em algum lugar, mas entre os intelectuais públicos, que publicam livros, falam, escrevem artigos de jornal, dão entrevistas, palpites, não há nenhum, mesmo entre aqueles que se dizem marxistas. Não são marxistas de forma alguma: ninguém é marxista se não estudou Hegel. Essas pessoas não têm a menor idéia do que seja dialética. Não conheço mais nenhuma inteligência no Brasil que consiga lidar, por exemplo, com aspectos contraditórios da realidade. Todos já querem uma coerência em bloco desde o início.
Hoje, as idéias no Brasil são uma auto-afirmação adolescente, uma pseudo-identidade à qual o sujeito se apega para esquecer e anestesiar a angústia da sua fragilidade e o [seu] medo de viver. Uma auto-imagem adequada é aquela que se baseia na experiência real. Se o sujeito aos quatorze ou quinze anos veste uma identidade, seja religiosa, ideológica ou qualquer outra, e se apega tanto a ela que a defende com bravura e ardor, então ele já entrou na falsificação completa, porque recebeu essa imagem pronta, ela não vem da sua experiência. Ao contrário, ela serve para apagar a sua experiência. Essas idéias não contêm nada de elementos reais, são apenas uma fantasia que o sujeito vestiu para ir a um baile gay, olhar-se no espelho e se achar bonito.
É evidente que um idéia assim adquirida tem para ele um valor muito maior do que qualquer doutrina filosófica possa ter para mim, por exemplo. Eu posso assimilar e jogar fora doutrinas filosóficas quantas vezes quiser. Sou livre para fazer isso porque nenhuma delas é minha auto-imagem nem minha identidade. Agora, se a auto-imagem é vestida na adolescência ou no começo da juventude como uma espécie de prótese na qual o sujeito se apóia, então ele a defenderá como se defendesse a própria vida. É só isto que se vê aparecer no mundo "universitário" brasileiro hoje em dia. Que palhaçada são todos esses garotos que se dizem comunistas, marxistas! Dou-lhes cinco páginas de Hegel, e na quinta eles morrem, não entendendo uma palavra do que ele disse, não porque (e isto é o mais incrível) o texto de Hegel seja difícil; ele geralmente escreve frases não muito longas, ao contrário de Schelling, que tem aquelas frases de três páginas sem nenhum ponto. Hegel escreve com frases curtas de uma contundência terrível, difíceis [apenas] porque as pessoas não têm a experiência interior do que ele está falando. A fama de obscuridade de Hegel é inteiramente injusta. Hegel é um autor para quem se conhece e já percebeu as contradições da existência. Ele lidará com contradições o tempo todo, e quem quer uma solução rápida, não é nele que deve procurar.
"Nem por isso deixa de ser certo que a importância da virada hegeliana na história do destino da verdade reside no impulso dado à idéia de que a verdade não é de maneira alguma algo feito e pronto, mas algo que está se fazendo, (...)"
Mas Hegel não disse que antes de contar uma história é preciso definir o objeto? Se na definição do objeto, que é sua essência, já está dado o desenvolvimento, e, por outro lado, somente esse desenvolvimento, quando completado, permitirá conhecer a essência, tem-se aí um problema. Acontece que tudo na vida é assim. Mário Ferreira dos Santos, baseado em Aristóteles, dizia que primeiro tem-se uma síntese confusa, em seguida se faz a análise, e depois substitui-se a síntese confusa por uma síntese distinta: aí está dado Hegel. É isso que ele está fazendo. Se o sujeito toma uma síntese confusa que lhe é importante, que tem um valor existencial para ele, e tem de se apoiar nela porque ela virou sua identidade, não pode sair dela nunca mais, e a possibilidade de analisá-la é vista com horror. Em Hegel há estes dois lados: por um lado, é preciso ter a definição do objeto cuja história se está fazendo; por outro lado, essa definição só será conhecida no fim. O sujeito pode ficar desesperado, se perguntando o que Hegel quer afinal de contas. [Mas] ele está mostrando os problemas tal como os percebeu, e acontece que ele percebeu como os problemas são na realidade. Essa tensão, de sempre partir do conhecido para alcançar o desconhecido já existe em Aristóteles. Mas se se é capaz de formular o desconhecido, é porque algo já se conhece, e portanto [o desconhecido] não é totalmente desconhecido. Quem não é capaz de acompanhar essa dialética entre o conhecido e o desconhecido na sua própria experiência cognitiva jamais entenderá Hegel.
Quando faço aquele famoso teste em que eu pergunto para as pessoas de onde elas tiraram uma determinada idéia, elas fazem a defesa da idéia, sem ser capazes de contar a história de sua origem. Como eu posso discutir hegelianamente com essas pessoas? Como posso dialetizar? Não posso, porque elas só têm imagens estáticas imantadas de um poder mágico de sustentar sua psique de pé, já que ela não se agüenta sozinha.
Então, por um lado não há devir senão do ser, mas por outro lado não há o ser senão o devir. Vocês não irão resolver isso; Hegel não resolveu; isso faz parte da própria estrutura da realidade. Eu acho que só é possível conhecer qualquer coisa quando se consegue vivenciar essa tensão. [Esse] é um problema sem solução teórica, mas cuja viabilidade prática lhe aparece continuamente. Somos capazes de entender inumeráveis processos históricos, psicológicos, sociológicos etc., apenas com base nessa tensão do devir e do ser.
"(...) de que ela não é uma substância inerte a ser descrita nem uma região imutável a ser explorada, mas antes um sujeito que se desenvolve a si mesmo.12
As obras lógicas de Aristóteles, com suas teorias sobre as inferências imediatas e mediatas, tinham podido dar a pensar que a verdade exprimia antes de tudo a coerência interna de um sistema de proposições e que, desde então, se tornava possível denunciar [1:20] os sofismas ou falar de erros de cálculo nos raciocínios, como o sustentará mais tarde Leibniz."
Notem que ele não diz que Aristóteles disse isso, mas sim que [as obras dele] "tinham podido dar a pensar". A idéia de que o edifício da ciência é totalmente lógico, coerente do começo ao fim, se parece com [a idéia de] Aristóteles. Porém, ele estava muito consciente de que isso não é alcançável em todos os problemas, e que, portanto, nenhuma ciência chegará a se organizar como um discurso dedutivo perfeitamente lógico do começo ao fim; sempre haverá hiatos. Por isso é que Aristóteles, embora tenha sido o inventor da lógica, jamais a utiliza em nenhum de seus tratados; ele usa sempre a dialética, pois ele está sempre transitando do conhecido para o desconhecido, e nunca está falando do totalmente conhecido. Quando ele usa a palavra "ciência", ele a usa em um sentido idealizado, como a totalidade do conhecido, mas não existe nenhum conhecimento que atenda perfeitamente ao requisito de ser totalmente conhecido. Um conhecimento depende de outro, que depende de outro, e assim sucessivamente. Em princípio, essa idéia do todo e do sistema já estava insinuada em Aristóteles.
"Em Hegel, já não se trata de limitar-nos às verdades esporádicas de raciocínios específicos, pois os sistemas de deduções cedem lugar ao Sistema em si, que não é outro senão a verdade em marcha em processo de autoconstituir-se: 'A verdadeira figura na qual a verdade existe não pode ser senão o sistema científico dessa verdade'13; (...)"
Acontece que esse sistema científico não seria apenas um discurso sobre a verdade, mas uma etapa do desenvolvimento e do aparecimento da própria verdade.
"(...) não poderia portanto haver, de um lado, um saber e, de outro lado, uma filosofia que fosse amor a esse saber; não há outra realidade efetiva senão a do sistema orgânico da verdade autodesvelando-se no e pelo todo: 'A verdade é o todo. Mas o todo é somente a essência realizando-se e perfazendo-se por meio de seu desenvolvimento'.14
Esse autodesvelamento dialético da verdade em devir, esse Absoluto que se autoconstitui nos seus resultados, esse Deus em marcha na história, essa Eternidade vivente no tempo recoloca-nos na situação em que se encontrava o mista a quem se desvelava a verdade (e Hegel com isso devolve a palavra aos Mistérios de Elêusis, que ele deplorava haverem silenciado desde o desaparecimento da civilização grega); (...)"
De algum modo Hegel está se referindo ainda àquela primeira noção de verdade (como vimos no sistema helênico), em que a verdade é uma dimensão superior a este mundo e à qual se tem acesso mediante um processo iniciático. Não é preciso dizer que ela, depois que o indivíduo a comtemplou, torna-se indizível, e ele a leva consigo; o que quer que [dela] ele tente explicar para os outros não adianta, pois, ou eles passam pelo mesmo processo iniciático, ou não saberão nada. É uma verdade, por assim dizer, muda.
"(...) mas ele nos recoloca igualmente na perspectiva cara a Plotino e segundo a qual o homem, esculpindo a sua própria estátua, pode se identificar a Deus."
Quando Hegel toma a palavra em nome do todo, dizendo que o todo é o próprio Deus e que a essência d'Ele é manifestar-se na História sob as formas das verdades que aparecem, então evidentemente Hegel é o próprio Deus falando. Por este motivo Voegelin chama isso de uma operação de feitiçaria15. Ele quer nos dar a impressão de que é Deus. Mas em que medida essa operação é realmente uma bruxaria, e em que medida é uma fatalidade da própria condição humana, que, na medida em que quer superar a separação entre a coisa e o discurso, é obrigada de certo modo a tomar a palavra em nome de Deus, mesmo sabendo que não O é, e que d'Ele é apenas uma procuradora? Repetir o discurso divino é uma fatalidade à qual todos nos expomos sempre que conseguimos enunciar uma verdade dentro não só do seu sistema, mas condição real e existencial da sua revelação.
"Encontramo-nos aqui em presença de uma atitude que se situa na mesma linha de pensamento de Mestre Eckhart; o filósofo hegeliano é, com efeito, uma espécie de teognosta."
Isto é, um conhecedor de Deus.
"Eckhart não hesitava em escrever: 'Deus e eu somos um. Pelo conhecimento, atraio Deus para dentro de mim'16. Mas, sendo Deus o Deus vivente, Eckhart daí conclui: 'A essência de Deus é minha vida. [...] O ser de Deus deve ser o meu ser, nem mais nem menos [...]. Tudo o que Deus opera é Unidade, eis porque ele me engendra enquanto seu filho, sem qualquer distinção'17. O Deus oculto desvela-se no e pelo homem. Eckhart chega mesmo a dizer: 'Eu sou uma causa de que Deus seja Deus'18."
É fácil perceber que Eckhart, ao dizer tais coisas, cai no mesmo engodo em que Kant cairá: considerar-se apenas como sujeito. Eckhart já entra no círculo moderno como subjetivista radical. Ele diz o seguinte: Quando me conheço, me vejo como Deus me vê, mas o "como Deus me vê" é o que realmente sou; logo, na medida em que sou um pensamento de Deus, estou penetrando em Seu pensamento, portanto, eu sou Deus. Isso está certo se não se levar em conta a existência física do ser humano e o fenômeno da criação. Para ele fazer esse raciocínio, precisou antes existir fisicamente, e, portanto, ser apenas mais um elemento dentro da criação.
A perspectiva do Mestre Eckhart, como a de Kant, não está errada, mas é apenas metade da coisa. Se o fenômeno da existência do "eu" como um objeto presente no mundo for apagado, o raciocínio que segue está inteiramente correto, e chega-se à conclusão de que de fato não há separação entre o homem e Deus. Ela, por sua vez, só existe do ponto de vista existencial externo. No momento em o indivíduo está fazendo essa meditação, ele está inteiramente unido a Deus. Mas por acaso ele a faz vinte quatro horas por dia? [Ele] não pára para comer, dormir etc.? Ele sabe disso permanentemente? Esta é uma pequena diferença entre ele e Deus. Que naquele momento ele coincidiu com Deus e é Deus, até concordo; mas Deus continua sendo Deus, e ele, não. Essa dialética entre a união e a separação também não tem solução, porque é a própria condição humana. A separação total só é concebível como o inferno, e a reintegração em Deus, como o paraíso. Mesmo nessa reintegração, Sto. Tomás diz que estaremos fundidos, mas não confundidos; as distinções individuais continuam. Deus seria um verdadeiro idiota se tivesse criado todo o mundo somente para depois reabsorvê-lo e "nadificá-lo".
"Deus desdobra sua presença no e pelo homem que se põe à sua escuta, de tal modo que aquilo que este se torna 'não é outra coisa senão aquilo que Deus mesmo se torna'19."
Ou seja, aquilo que estou me tornando é aquilo que Deus sabe de mim, portanto um pensamento divino; é o que o próprio Deus está se tornando: Ele está me pensando e Se tornando aquilo que Ele me faz ser. Isso não está errado, mas há aqui uma confusão entre o processo cognitivo e o processo existencial. Do ponto de vista cognitivo, Eckhart tem razão, [1:30] mas nós não existimos somente como sujeitos conhecedores, existimos também como entes reais no mundo, e portanto esse "momento de união", além de ser somente analógico, passa, não se pode viver nele permanentemente.
"Hegel pôs todas essas idéias em marcha na história; a autodeificação do homem é assim tornada possível por uma recuperação dialética da kenosis, (...)".
A Kenosis é o auto-sacrifício total de Jesus Cristo; é cessar de existir, como diz São Paulo: "Já não sou eu que existo, é Cristo que existe em mim"20; ou seja, é me anular para que Ele possa existir em mim, e nesse mesmo sentido Ele me constitui e me reafirma.
"(...) que faz desta última aquele movimento pelo qual Deus se esvaziou de si mesmo para se identificar ao homem, identificando o homem a Deus. O homem é autodeificado por Deus que se auto-humaniza."
Isso está certo, só que Ele não fez isso apenas com um homem. E que coisa é esse tal "homem": é a espécie humana, é cada um, é apenas Hegel ou apenas o Mestre Eckhart? Se não existisse esse aspecto quantitativo, esse raciocínio estaria inteiramente correto, mas sabemos que existe esse aspecto, a separação das substâncias --- [o fato de] que embora tenhamos todos a mesma essência, [que] sejamos todos seres humanos e participemos da mesma essência, estamos, como diria Sto. Tomás, compostos quantitativamente como porções de matéria diferente. Não ocupamos o mesmo lugar no espaço: estamos fundidos, juntos, porém separados. Se o indivíduo abole esse aspecto quantitativo e parte para o exame filosófico, crente, orientado nisso por aquela regra cartesiana de que tudo aquilo que aparece com nitidez é verdadeiro, ele chega a isso. Por isso, temos de lembrar aquele versinho de Antonio Machado: "En mi soledad he visto cosas muy claras, que no son verdad". Aquilo que nos parece evidente pode ser evidente em si mesmo, mas se não for reinserido no quadro existencial real, biográfico, por assim dizer, no qual o pensamos, aquilo se torna uma falsidade, porque é um momento intuitivo que está encobrindo o resto do universo inteiro.
"Pretende-se assim que as objeções segundo as quais não podemos compreender Deus se encontram por isso mesmo suspensas, ao mesmo tempo que é afastada toda tentativa para regionalizar a Verdade, já que é preciso afirmar doravante que 'é a consciência-de-si de Deus que se conhece no saber do homem'21."
É o mesmo problema das Confissões de Santo Agostinho, nas quais ele começa a contar sua história para Deus, mas Deus o conhece melhor que ele mesmo e, no curso da confissão, lhe revela coisas sobre ele que ele mesmo não sabia. Essa dialética de fato existe, e Santo Agostinho poderia ter dito que naquele momento ele coincidiu com o pensamento de Deus, porque foi o próprio Deus quem lhe mostrou aquilo. Só que Deus sabe muito mais coisa. Portanto, essa coincidência é analógica, não substantiva, por assim dizer.
"Deus toma consciência de si mesmo à medida dos progressos dialéticos da consciência humana."
Talvez isso seja dessa forma; aquilo que "a humanidade" vai descobrindo o próprio Deus está pensando naquele mesmo momento. Acontece que no processo do conhecimento humano existe também o esquecimento, a perda de conhecimento, e se toda vez que ela esquecesse uma coisa Deus também esquecesse, como Ele faria para recuperá-la? Será que Ele perguntaria para nós? Então, vemos que tudo isso é uma imagem, uma figura poética que, como tal, vale. Já dizia Benedetto Croce que a poesia é uma expressão de impressões. Ou seja, a impressão que temos em certo momento, enquanto impressão, é legítima, só que ela não é verdade no sentido objetivo, substantivo da coisa.
"A teofania já não é senão a mesma coisa que a história; a Fenomenologia do Espírito [título da obra de Hegel] é uma autobiografia da Verdade que se confunde com uma teogonia na qual Deus se pensa através dos atos do homem."
Parcialmente isso pode até ser verdadeiro, mas e o que se passa no restante do universo? Deus também está pensando o que está se passando [agora] na estrela Sirius ou nas outras galáxias, e eu não sei nada a respeito. Então, o segredo é lembrar desses dois preceitos: primeiro, o sujeito é também objeto. Se Kant ou Hegel não fossem objeto, não ouviríamos falar deles, e seria inútil eles ficarem falando o resto de suas vidas, porque não tomaríamos conhecimento da existência deles. O segundo é lembrar sempre do lado quantitativo, ou seja, o número. Segundo Sto. Tomás de Aquino, o número das criaturas é um fator material, nós estamos separados não pela nossa definição, mas pelo fato de sermos compostos de matérias diferentes (sem levar em conta por enquanto a questão de Duns Scot de que existe uma essência individual para cada um). É só lembrar do aspecto quantitativo para essas coisas, que parecem então verdadeiras no instante em que em são lidas, deixarem de sê-lo, quando olhadas de fora.
"Com isso encontra-se realizado aquele Reino do Espírito do qual Joaquim de Flora anunciava o advento histórico em seguida ao Reino do Pai e ao do Filho, (...)"
Ele dividia a História em três etapas: O Reino do Pai, o Reino do Filho e o Reino do Espírito Santo --- do qual, de acordo com Joaquim de Flora, ele mesmo já seria o primeiro capítulo.
"(...) numa história curada e curativa, escatológica e auto-redentora. 'A natureza divina e a natureza humana, diz Hegel, em si não são diferentes [...]. Deus se torna Deus a fim de que o espírito finito tenha, no mundo finito, consciência de Deus.'22"
Isso também é analógico, é uma maneira de dizer que expressa a experiência real que o indivíduo tem quando pensa nessas coisas, mas só expressa uma impressão.
"A Verdade manifesta-se, nasce e morre para ressuscitar em seguida de uma maneira nova, como a Fênix renasce das suas cinzas, numa série de Aufhebungen (...)"
Aufhebungen significa superar alguma coisa e absorvê-la, ao mesmo tempo.
"(...) onde a positividade do negativo e a negatividade do positivo fazem que, por fim, nada nasça nem pereça."
[Sobre] esse pequeno elemento da dialética do Hegel --- a positividade do negativo e a negatividade do positivo ---, vou lhes confessar: nos últimos trinta anos, eu não encontrei um brasileiro que entendesse isso, ou que pelo menos fosse capaz de vê-lo na prática. Por exemplo, na simples política do dia a dia, os marxistas que receberam da geração anterior de marxistas mais qualificados alguma herança tático-estratégica ainda entendem vagamente que uma política negativa pode ser às vezes mais positiva do que uma [política] positiva. Por exemplo, no marxismo, não propor nada politicamente, só combater e criticar constantemente os outros, é uma coisa óbvia. O que se está propondo e se quer nascerá apenas da negatividade, somente; na medida em que se for negando repetidamente, o valor positivo vai aparecendo por si mesmo. Isso não quer dizer que as pessoas que aplicam isso na prática tenham consciência do que estão tentando fazer, isto é, que estão aplicando uma regra hegeliana. Eles [o] fazem apenas porque alguém os ensinou a fazer assim. Por exemplo, uma idéia prática e simples: se alguém propõe alguma coisa, sua proposta será criticada e vira telhado de vidro imediatamente. Então, se alguém tem uma proposta que [lhe] é muito querida, [que] não a apresente, apenas destrua o que se opõe a ela. Tem comunista que ainda sabe como fazer isso, o que não quer dizer que ele esteja entendendo o processo --- estou falando de comunistas de quarenta anos atrás, de grandes intelectuais. O maior que eu conheci foi Nabor Caires de Brito, um sujeito que aos setenta anos estava estudando Hegel. [1:40] Ele entendia esse processo. As pessoas hoje em dia sabem aplicar [isso] porque seu chefe mandou, dizendo mais ou menos a mesma coisa. Só que tem o seguinte: isso funciona.
Tem muita coisa na dialética de Hegel que funciona, não porque ela expressa a estrutura da realidade, mas porque expressa a estrutura da mente humana. Por exemplo, não podemos conceber nada senão por negação de alguma coisa, [porque] não temos o conceito [dela]. Aristóteles diz que a definição é o gênero próximo e a diferença específica. O gênero é como se fosse um bolo, e a diferença, uma fatia cortada. Essa já é a negação. Se não há a negação das outras espécies, não há o conceito. Absolutamente tudo na mente humana é pensado por contrastes, por isso a mente humana é, por assim dizer, naturalmente dialética. Portanto, a análise dialética, mesmo quando não reflete a realidade objetiva --- a natureza externa ---, reflete o processo humano, porque reflete a estrutura da mente humana, da qual não conseguimos escapar. O pessoal da esquerda ainda entende um pouquinho disso, mas para a turma da direita, isso é inconcebível!
Perguntem-se: Quantos "intelectuas" de direita [ou de esquerda] que vocês conhecem leram alguma linha de Hegel? Antigamente havia vários: Djacir Menezes, que escreveu vários livros sobre Hegel; Nabor Caires de Brito, que era o maior dos intelectuais comunistas; Miguel Reale, que escreveu coisas importantes sobre Hegel; uma montanha de gente conhecia isso. Nos últimos vinte anos, eu afirmo: [não há] nenhum. Eu não conheço um [único direitista] que tenha aberto um livro de Hegel. Por isso, quando eu lhes sugeria uma política negativa, uma política exclusivamente crítica, eles achavam isso um absurdo, achavam que era preciso ter um programa positivo. Mas se um programa positivo é apresentado, ele começou a morrer na mesma hora. Eles acham isso porque pensam em termos mercantis, em que é preciso anunciar o produto, não se pode só falar mal dos outros. Na indústria e no comércio [até que] isso funciona.
A verdade morre para ressuscitar, mas nessa série de auto-superações, graças à positividade do negativo e à negatividade do positivo, por fim, nada nasce nem perece, de modo que a realidade universal eterna e estática coincide com a totalidade do movimento no tempo. Há, por assim dizer, há uma dissolução do espaço no tempo [e] uma dissolução final do tempo no espaço, e é por isso que Brun vai dizer mais adiante que o movimento total coincidirá com o repouso total.
"Deve-se portanto falar de um 'movimento da vida da verdade' que manifesta o Deus vivente desvelando-se no e pelo Saber do homem; o conhecer, o fazer, e mesmo o Ser doravante não são senão um e o mesmo.
O entusiasmo do mista grego encontra-se agora dialetizado e a embriaguez extática confunde-se com aquela salvação pelo conhecimento trazida pela gnose fenomenológica: 'O verdadeiro é assim o delírio báquico, do qual não há nenhum membro que não esteja embriagado; e, como esse delírio resolve em si imediatamente cada momento que tenda a se separar do todo, esse delírio é igualmente o repouso translúcido e simples.'23"
Na hora em que Hegel escreve isso, ele acredita realmente que ele transcendeu a diferença entre os dois mundos de Platão --- o mundo das verdades eternas e o mundo do devir. O devir considerado na sua totalidade é o repouso do Ser eterno, e o Ser eterno é aquilo que se manifesta no devir. Hegel acredita que matou a questão. Sob certo aspecto ele matou, mas continua lidando com conceitos vazios. Essa regra --- a de que um processo inteiro corresponde a uma estrutura fixa, e a estrutura fixa não existe senão pela sua manifestação no tempo ---, não tomada como expressão da própria estrutura da realidade no seu todo, funciona em muitos e muitos casos específicos. Só que a filosofia de Hegel tem inúmeros desses pares opostos, que precisam ser todos levados em conta ao mesmo tempo para a coisa funcionar.
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Aviso: O Grupo de Transcrições e o Grupo de Revisões das apostilas do curso estão precisando de gente, de mão de obra qualificada, que domine bem a língua portuguesa e que possa ajudar nas transcrições ou nas revisões. Então, por favor, voluntários, para as transcrições, escrevam para Mariana, no endereço [email protected]. E para as revisões, escrevam a Jussara em [email protected].
Aluno: Eu gostaria de saber se o sr. conhece ou tem alguma informação sobre o jornalista da Rede Record, Percival de Souza, referente à participação dele como agente da KGB ou outras inteligências de esquerda, pois o Cabo Anselmo afirmou que o livro escrito por Percival referente à época da ditadura não passa de um engodo. Lembrando como o sr. nos ensinou como é de vital importância para a história nacional a descoberta dos jornalistas pagos pela KGB no Brasil.
Olavo: Esse assunto é realmente fundamental. Embora eu tenha convivido com Percival de Souza na redação do Jornal da Tarde, não sei de nenhuma ligação dele com alguma organização de esquerda nacional --- isso é importante. Outra coisa, Percival, se teve alguma participação nessas coisas, foi como agente de influência, porque o agente de influência caracteristicamente é um sujeito discreto, que não costuma tomar posição pública, não faz propaganda comunista etc. Se ele teve alguma ligação, então ela foi lá em cima. Com as organizações nacionais eu nunca soube de absolutamente nada. Ele, inclusive, era uma das pessoas mais discretas e politicamente neutras, pelo menos em aparência. Parecia ser apenas um profissional, e era inclusive pastor protestante nas horas vagas, fazendo pregações para presidiários. Mas pode ser que ele tenha alguma ligação lá em cima. O pessoal vive falando em "abrir arquivo", mas a história inteira do movimento comunista no Brasil está nos Arquivos de Moscou, e ninguém quer abri-los, evidentemente --- a esquerda por motivos óbvios e a direita por burrice.
Aluno: Como o sr. considerou grande demais a mensagem anterior, resolvi reformular resumidamente o meu questionamento. Minha breve incursão na ortodoxia legou-me um problema. Sinto hoje uma ansiedade com relação à salvação da minha alma. Segundo os ortodoxos, eles é quem são a verdadeira Igreja de Cristo, o Espírito Santo está somente com eles e o papa é, na melhor das hipóteses, um bispo cismático com ilusões de grandeza. Um ortodoxo chegou a me dizer que o Vaticano é um grande circo cheio de cardeais fantasiados (...)
Olavo: Eu acho que ele tem toda a razão.
Aluno: (...) brincando de sacerdotes de Cristo. Então, pergunto: Se a Igreja Católica Apostólica Romana desde o Cisma de 1054 é uma grande heresia da Igreja Ortodoxa, nós católicos vamos todos para o inferno? E se o Espírito Santo estiver ambas as igrejas, como explicar sua separação?
Olavo: Em primeiro lugar, eu não vejo nenhum motivo para um brasileiro se aproximar da Igreja Ortodoxa Russa, porque ela é uma igreja eminentemente estatal e foi profundamente penetrada pela KGB. Então, é difícil separar ali alhos de bugalhos, e você vai procurar sarna para se coçar. Como o problema teológico que você levanta aparece sobre um fundo existencial de alguém que foi procurar algo na Igreja Ortodoxa, eu [lhe] advirto que evidentemente você está procurando sarna para se coçar. Eu não tenho a resposta dessas perguntas e acho que ninguém tem. Só que eu acho que a iniciativa do Cisma foi do pessoal da Igreja Ortodoxa, que se afastou de Roma. Eu não acredito que nos últimos [1:50] mil anos tenha havido uma grande heresia tomando conta do Ocidente, isso é desmentido pela própria história da Igreja Romana. Veja o número de santos e milagres extraordinários que aconteceram nesse período. Eu considero os milagres o "Pelos frutos os conhecereis". Onde está o Padre Pio da Igreja Ortodoxa? Onde estão os corpos incorruptíveis dos santos ortodoxos? Na hora em que eles aparecerem, eu me preocuparei; até lá, eu simplesmente não me interesso por isso.
Temos de graduar a nossa capacidade de resolver problemas, e graduar por algum critério prático imediato, por assim dizer. Acho que um critério prático imediato é o da presença de Deus no mundo. Quando você ver essa ação, saiba que Deus está aí de alguma maneira. E de fato eu vejo muito mais essa ação na Igreja Católica Romana do que nas outras [igrejas]. Quem serviu de agência para a própria autodestruição da Igreja Católica, que virou, como disse o sujeito, um grande circo cheio de cardeais fantasiados, foi a Igreja Ortodoxa, que enviou para o Concílio Vaticano II dois bispos que eram agentes da KGB. Portanto, abriram, arrombaram as portas do Concílio Vaticano II. O próprio agente corruptor dizer que o outro está corrompido para mim isso não serve. Eu não tenho nada contra a Igreja Ortodoxa considerada historicamente, mas na Igreja Ortodoxa tal como existe desde o último século você tem que pensar dez vezes [antes de entrar]. [Se] nem no Vaticano você sabe com quem está falando, porque tem muita gente [ali] que é agente da KGB, [imagine] na Igreja Ortodoxa, onde para cada dez, nove são agentes da KGB. Para resolver isso, você precisaria passar cem anos investigando, e uma das características fundamentais de uma maturidade intelectual é não procurar problemas que estão muito acima da sua compreensão e sobretudo dos seus meios de investigação. Para lhe responder essa pergunta, eu precisaria dedicar a minha vida a isso.
Aqui há outra pergunta que eu também acho que transcende a minha capacidade:
Aluno: Segundo John Deely, estudioso moderno de semiótica e especialista no mestre João Poinsot, essa disciplina sofreu um atraso de pelo menos trezentos anos, pelo menos, com o equívoco no trato do problema da indução, devido a uma certa obsessão sobre o conhecimento experimental e positivista a partir de Locke e Comte, que praticamente se restringiu à lógica dos Analíticos Anteriores de Aristóteles. (...)
Olavo: Isso é inteiramente verdade! Sobretudo, se você leu o meu livretinho24 sobre os Quatro Discursos de Aristóteles, vai ver que a perda da ligação orgânica entre lógica, dialética, retórica e poética torna impossível compreender a lógica de Aristóteles.
Aluno: (...) Entretanto, o problema maior da semiótica entre a visão ascendente da indução e a descendente da dedução só pode ser adequadamente abordado com o entendimento da questão dos universais*, justamente a que foi interrompida pela excessiva confiança nos meios instrumentais da ciência da época. (...)*
Olavo: Certíssimo também.
Aluno: (...) Segundo Anabela Gradim, tradutora do Tratado dos Signos*, de Poinsot, (...)*
Olavo: Eu nem sabia que essa tradução existia! Esse Poinsot é a maior raridade da história universal, ninguém fala do sujeito. Se você sabe quem tem a indicação dessa edição, por favor, me envie, porque eu nem sabia que [isso] tinha sido traduzido e que existia uma edição moderna.
Aluno: (...) a disciplina somente poderia evoluir com as noções de ordem valorativa e de universalidade deste último grande escolástico, o dominicano João de São Tomás, a quem atribui o verdadeiro papel de pai da semiologia. Deely sugere que houve uma ruptura entre a lógica como atividade interpretativa (Maritain, Bocheński, Étienne Gilson) e a lógica como atividade construtiva, (Saussure, Carnap, Husserl etc.), o que tem a ver com a inevitável perda de consistência dos projetos formalísticos (simbólica natural versus artificial mostrada pela Teoria da Incompletude de Gödel).
Olavo: Tudo isso aqui está majestosamente certo, todas essas observações são profundamente verdadeiras. Você pergunta qual o status quaestionis dessa matéria. Eu não sei, estou menos informado do que você. Pelo menos você sabe da existência desse tratado. Deixe-me lê-lo, e depois lhe digo. Mas, por favor, me informe qual é a edição, onde se adquire etc. É um tema de altíssimo interesse.
De fato, a concentração obsessiva nos Analíticos de Aristóteles deforma tudo, porque leva à idéia da "formalização integral", que vai terminar nesse delírio de Kurt Gödel dizer que isso é irrealizável, que não é possível, que não existe sistema dedutivo perfeito. Quem quer que tivesse lido as obras lógicas de Aristóteles juntamente com a Dialética, a Retórica e a Poética, jamais cairia nisso, porque entenderia que, segundo Aristóteles, tudo aquilo que se chega a raciocinar tem de ser conceitualizado, tem de ser transformado em uma definição. Para isso, é preciso partir daquilo que é recebido dos sentidos, que por sua vez é filtrado e organizado na imaginação e na memória (para Aristóteles imaginação e memória são a mesma coisa, que ele chama de "fantasia"), depois isso se torna objeto de uma tensão, dificuldade ou dúvida, que então é elaborada dialeticamente, e, no fim, se der tudo certo, tem-se uma definição. Diante de um horizonte de experiência enorme, e de um horizonte imaginativo apenas um pouquinho menor do que esse horizonte de experiência, vai ser separado um ou outro conceito, de maneira que a lógica é algo que vai tocar na realidade apenas em determinados pontos. Quem entendeu isso não precisa chegar ao Teorema de Gödel para dizer que qualquer dedução é sempre incompleta; ela é incompleta por definição. Essa ambição da formalização total --- na qual, no começo, Wittgenstein acreditou, acabou chegando à uma decepção total, e depois partiu exatamente para o contrário, [para] o exame das frases banais do cotidiano --- já estava condenado de antemão. O pessoal realmente não entendeu Aristóteles, mas não entendeu porque não quis. Porém, como é que eu posso culpá-los se, ao longo dos tempos, a menção à unidade dos escritos lógicos de Aristóteles só aparece em dois autores, Avicena e Sto. Tomás? Ninguém mais falou disso. Ademais, Sto. Tomás só conhecia a Poética por ouvir dizer, ele não a leu, mesmo porque a primeira edição só foi redescoberta em 1548, mas ele sabia que existia um discurso poético que tinha um encaixe com aquele sistema, ou seja, ele percebeu que havia um sistema dos discursos (ou, como digo eu, uma Teoria dos Quatro Discursos); mesmo sem conhecer o texto da Poética, ele sabia que ela tinha de existir, mas ninguém prestou atenção nisso. É só isso que eu posso dizer no momento; no mais, preciso ler esse livro. Mas essas observações estão muito corretas.
Aluno: Se a verdade está no todo, como fica a Teoria dos Sistemas de Ludwig von Bertalanffy, que fala sobre a emergência das partes? A soma das partes é maior que o todo, e o sistema está incluído em outro sistema? (...)
Olavo: Todas estas questões para Hegel não fazem o menor sentido. Você está tentando entender Hegel à luz de coisas que apareceram muito depois. Eu precisaria saber a qual é a posição de Ludwig von Bertalanffy a respeito de Hegel --- que eu não sei, [2:00] eu precisaria estudar este caso especificamente ---, mas a emergência das partes, segundo Hegel, é o próprio todo que se manifesta, as partes não existem enquanto tais. Agora, se você parte de uma perspectiva mais moderna e científica, que toma o dado experimental como ponto de partida, então você já saiu do universo hegeliano. Não dá para comparar alhos com bugalhos, se bem que essa comparação seria muitíssimo interessante.
Às vezes, a pergunta que o sujeito me faz aqui é uma tese universitária inteira. Por exemplo, [esta]: A noção de sistema em Hegel comparada com a Teoria Geral dos Sistemas. Você pode passar vinte anos estudando isso, [mas] pode sair uma coisa muito bonita ou pode não sair nada, eu não sei.
Aluno: (...) Seria impossível falar em Teoria Geral dos Sistemas?
Olavo: Eu acho que não, porque todo sistema, para sê-lo, tem de atender a determinadas condições; não acho que a coisa seria impossível em si. O que eu não posso entender é qual é a relação que isso pode ter com a noção de sistema em Hegel. Quando ele fala em sistema, está falando de um só, não existem "sistemas". Falar em "sistemas" dentro do ponto de vista hegeliano é autocontraditório. Hegel fala do sistema integral do conhecimento, o que é o mesmo que dizer que é o conhecimento que Deus tem de Si mesmo.
Aluno: Na Aula 210 [há] uma pergunta de uma aluna sobre fazer uma investigação do imaginário da intelectualidade universitária, que forma os atores do sistema jurídico no Brasil, e percebi que será um esforço monumental fazer esta investigação, pois, visto que a norma jurídica leva em conta os aspectos sociais, históricos e culturais, seria necessário fazer uma investigação do imaginário não só dos formadores dos atores do sistema jurídico que geraram o ordenamento jurídico patológico, mas também dos que geraram uma literatura e uma ciência estética patológica, uma sociologia patológica, uma psicologia ou terapia patologizante etc.
Olavo: Este é um tema fundamental! Você tem razão quando diz que não adianta tentar investigar o imaginário dos juristas ou dos advogados, porque [houve] uma modificação geral do imaginário brasileiro desde os anos sessenta. A história disto não foi contada, são transformações que se passam no escuro; é como o dragão de Excalibur, que se esconde atrás da névoa para mudar de forma. A história psicológica do Brasil nos últimos quarenta anos é um mistério total, porque houve muita interferência de gente agindo sem ter a menor a noção do todo e das conseqüências a que [aquilo] iria levar, pensando somente na imposição daquele seu programinha político, daquela sua ideologiazinha, e o efeito total [disso] ninguém sabe.
Por exemplo, se se levar em conta que só nos últimos dez anos morreram assassinados quinhentos mil brasileiros, isso não tem nada a ver com o nosso imaginário? Será que isso aparece, assim, do nada? É uma modificação sociológica profunda: um povo relativamente pacífico que se transforma em um povo assassino. Some-se isto à degradação cultural de um país que ficou sem literatura. Por exemplo, aquelas discussões da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) estão abaixo do nível daquelas menininhas de ginásio que levavam um livrinho para coletar autógrafos dos amigos, meu Deus do céu! Vocês viram pelos dois artigos25 que eu publiquei as duas figuras eminentes da festa falando uma coisa inteiramente absurda, um show de ignorância. Isso nunca aconteceu no mundo! Isso, que vem junto com toda esta coisa de gayzismo, abortismo, negritude, reservas indígenas, e de uma sucessão de leis feitas para proteger os criminosos e atar a mão da polícia, tem um impacto tremendo. Já são quase trinta anos de campanha contra as Forças Armadas e a polícia, como se elas fossem culpadas de tudo. Vocês acham que isso não tem impacto, que isso não muda a cabeça das pessoas?
Hoje mesmo apareceu no Facebook um rapaz dizendo que num instituto de Minas Gerais as pessoas aprendiam que Galileu foi perseguido pela Inquisição porque demonstrou que a Terra era redonda. Isto é ensinado para as pessoas! Outro exemplo: aquele livro de Júlio José Chiavenato, Genocídio Americano, que é uma fraude do começo até o fim, durante pelo menos quinze anos foi repassado em tudo quanto é escola secundária do Brasil como se fosse a verdade última sobre a Guerra do Paraguai, até que Francisco Doratioto, um professor da USP26, que escreveu Maldita Guerra, demonstrou, ponto por ponto, que o livro de Chiavenato estava totalmente errado. Só que este segundo livro não é repassado para as crianças. Houve uma devastação cultural e mental no Brasil, e a história disso tem de ser contada, porque isso é como uma psicanálise: se o sujeito não rastreia por onde a porcaria entrou na sua mente, não consegue se livrar dela. A perda da consciência histórica no Brasil foi uma coisa monstruosa.
Então, eu sugiro o seguinte: para estudar essas mudanças no imaginário, vocês têm de buscar na fonte do imaginário: nas artes e nos espetáculos, evidentemente; em segundo lugar, na mídia, no teatro, na televisão, no cinema, no rádio, na música popular etc. É por aí que a coisa começa, e ela tem de ser contada nesse nível. [Daí], para chegar à modificação que há dentro de um grupo específico, como, por exemplo, [o dos] estudantes de direito, falta muito, porque todos os processos que se verificaram aí não tiveram como agentes principais os próprios atores deste meio, é coisa que vem de fora. Imaginem, por exemplo, o poder que a televisão tem sobre a cabeça dessas pessoas. Quando elas chegam à faculdade, estão vendo televisão desde os três anos de idade, e a suas cabeças já estão cheias dessas imagens. A simples idéia de como argumentar, de como propor uma idéia é uma observação que eu faço todo dia, mas as pessoas não têm mais [isso], porque elas não têm noção do tamanho dos problemas.
Outro dia apareceu um rapaz que viu em algum lugar um direitista qualquer dizendo que Marx era racista; então, o rapaz [disse]: "Imagina! é só um imbecil, um ignorante, não sabe nada, eu o desafio a me mostrar uma obra em que Marx pregue o racismo." Só que eu conheço a história, eu sei que quem levantou a lebre do racismo de Marx foi um sujeito chamado Nathaniel Weyl, num livro27 já antigo, em que ele diz primeiramente que há uma diferença brutal entre o Marx publicado e o Marx das correspondências pessoais, e que nas cartas pessoais este revela todo o racismo que esconde nas obras. Ora, se o rapaz soubesse disso, não ia exigir como prova uma obra; portanto, ele entrou na briga sem sequer ter lido o primeiro livro que lançou o problema no ar, e entrou com uma inocência e uma autoconfiança patéticas. Mas são todos assim!
Também [há] o fato de que essas pessoas adquiriram essas idéias e crenças políticas muito jovens, e precisam delas para sustentar suas personalidades de pé, pois são as idéias que vão marcar a diferença geracional deles. [O sujeito pensa:] "Agora eu sou um hominho, eu não obedeço mais ao papai e à mamãe, eu decido por mim, eu se fiz por si mesmo." É claro que [isso] é uma ilusão, mas as pessoas têm de se apegar a ela desesperadamente. Elas não agüentam ter uma dúvida por cinco minutos; diante da dúvida, ficam horrorizadas, [e] basta alguém lhes dizer que estão erradas que elas acham que se trata um terrorista [2:10] --- é um terrorista porque as aterrorizou. Esse é evidentemente um sintoma histérico, porque elas não graduam seu temor pelo tamanho do perigo, mas, ao contrário, graduam o perigo pelo tamanho do seu temor.
Tudo isso foi uma devastação monstruosa, e contar essa história, só nas artes e espetáculos, vai dar um trabalho enorme, mesmo que seja só sob o aspecto de um tema, por exemplo, o tema da valorização do bandido, do marginal, do maluco, do doente, que virou praticamente obrigatório e é um dogma no Brasil. Se alguém negar que os anormais são superiores aos normais, chamam-no de racista. Essa é uma confusão mental monstruosa e totalmente incapacitante. Nós temos de contar essas histórias até para salvar essas pessoas, dizendo-lhes que elas começaram a pensar isso porque antes delas entrarem neste mundo aconteceu uma sucessão enorme de coisas. Elas então ficam sabendo a origem das suas idéias, sobre a qual nunca pensaram porque ao ouvirem uma coisa, já a incorporam, achando que isso é a natureza, a vida delas, que aquilo é elas mesmas.
Eu não sei se é possível fazer esse trabalho com relação a essa comunidade em particular; eu escolheria fazer por temas da modificação. Por exemplo, a idéia da valorização absoluta do desejo sexual. Isso não surge no Brasil, evidentemente, vem da Nova Esquerda americana e faz parte do Maio de 68. Daniel Cohn-Bendit28 espreme o ministro da educação [francês] na parede dizendo que havia lido o relatório dele e que ele, nem de longe, menciona os problemas sexuais da juventude. (Vocês sabem como começou a rebelião de Maio de 68? Os caras queriam livre acesso aos dormitórios das meninas! Foi esta a grande e majestosa causa que começou tudo aquilo). [Eu lhe teria dito:] "Meu filho, seus problemas sexuais são problema seu. Você quer que o Estado pague os seus prazeres? Eles vão pagar com que dinheiro? Pague você mesmo". O fato de o indivíduo estar sexualmente frustrado faz dele, na visão atual, uma vítima da sociedade. Mas quem estudar o restante da história humana verá que no século XX as pessoas tiveram acesso a prazeres sexuais absolutamente incomparáveis, prazeres que só os césares tinham. Eu olho o que fiz na minha [própria] juventude e vejo que eu vivia uma gandaia maravilhosa! Antigamente, só imperadores tinham acesso àquilo, hoje até eu tenho. [Hoje] o sujeito tem quantas mulheres quiser, as pessoas emprestam [até] apartamento para ele levar as meninas, ou seja, é muita sem-vergonhice ele querer [ainda] mais e achar que está frustrado. Seria o caso de perguntar para o sr. Cohn-Bendit: Quantas mulheres o senhor já teve até hoje? Mais de quatrocentas e vinte? E a gente ainda tem de pagar agora a 421ª, a 422ª e a 423ª?
Essa idéia do direito ao prazer sexual é uma das idéias mais absurdas e monstruosas que já entrou na cabeça humana. Imaginem, por exemplo, quantas mulheres um camponês da Idade Média poderia conseguir. Se conseguisse uma para casar, ele já era um afortunado! E sempre foi assim. Quando a Igreja institui o casamento monogâmico, ela está dizendo que o homem [só] vai ter uma mulher na sua vida, uma só, e isso é mais do que suficiente; ele pode transar com ela pelo resto dos seus dias, quantas vezes quiser, mas vai ser [com] a mesma. Milhões de católicos viveram assim, não morreram, e não acharam que isso fosse um problema, mas que isso era normal. O casal monogâmico tem sido a norma há séculos, mas algumas pessoas não se contentam com o fracasso do casamento. Claro, há sempre uma margem de insatisfação, mas não é justo os jovens exigirem que o Estado lhes dê acesso a mais de uma mulher, e [que] todo dia, quantas vezes quiserem, entrem e saiam do alojamento [da universidade] --- o CRUSP**,** que na verdade é o PUTUSP --- [com uma diferente]. Eu não posso reclamar, porque me beneficiei disso, embora não fosse aluno da USP; eu entrava lá, fazia o que tinha de fazer e saía. Eu me beneficiei de toda essa "sex lib" dos anos sessenta, mas eu pelo menos não fui tão sem-vergonha a ponto de achar que isso era um direito e que o Estado tinha de me dar mais, que eu estava tendo um problema, e [que] um ministro tinha de se preocupar: "Coitadinho, ele só saiu com oitenta meninas, precisamos providenciar-lhe mais vinte".
O direito ao prazer ilimitado, no Brasil, virou um dogma, um mandamento, e quem quer que o conteste dizendo, se tiver um pouquinho de modéstia, que não precisa de tanto prazer assim --- não precisa e não merece ---, é considerado pelas pessoas um nazista, um fascista. Não se esqueçam que o estado nazista --- [assim] como Vladimir Putin, na Rússia --- favorecia o sexo livre, porque precisava de mais soldados, então [dizia à população que] tratasse de fazer sexo com quem pudesse, não importa [com quem]. A noção de filho ilegítimo não existia no Estado nazista nem [no] comunista, qualquer um valia. Tudo isso foi entrando na cabeça das pessoas, e hoje isso é a própria alma delas; elas se apegam não só ao direito de penetrar no quarto das meninas, subsidiado pelo Estado, mas ao direito a todo e qualquer tipo de prazer --- [o sujeito acha, por exemplo, que tem] o direito à operação transexual porque não quer ser mais homem e quer virar mulher, e que acha [o Estado ainda] tem de pagar para ele realizar sua fantasia. [E] com que conseqüências? Eu tenho um livro de um ex-travesti americano que conta que quarenta e sete por cento dos transexuais operados se suicida, [ou seja,] o sujeito quer que o Estado lhe pague para fazer uma coisa da qual depois ele tem grande chance de se arrepender e de se matar, e nós somos obrigados a ajudar o sujeito a fazê-lo. Outro exemplo é o direito à eutanásia --- [o direito do indivíduo] não querer mais viver [e achar] que os outros têm a obrigação de matá-lo. Chegou a isto! Na França, um sujeito que nasceu deformado processou o pai e a mãe porque não o abortaram e ganhou o processo!
Toda a idéia da auto-satisfação total e obrigatória --- [a idéia] de que os outros têm de dar [ao indivíduo] a sua auto-satisfação, têm de torná-lo feliz à força ---, que existe nos outros países, mas existe como exceção, no Brasil virou a noção oficial: o Estado pensa isso, a mídia pensa isso, a classe universitária inteira pensa isso --- aqui [nos Estados Unidos] só a metade pensa; no Brasil, acho que noventa por cento [pensa], pelo menos. Isso tem um efeito absolutamente devastador sobre as consciências, e quem vai contar pelo menos a história disso? Tem gente que sai brigando contra essas coisas, fazendo a campanha contra o aborto, contra o gayzismo. Tudo isso é perda de tempo! Eles não ganhar nenhuma dessas brigas, porque o sistema está instalado. Essas brigas só são boas quando se tem uma democracia normal, em pleno funcionamento, quando o que vale é a luta parlamentar --- lutar por ou contra projetos de lei. Quando já se tem um sistema hegemônico montado, lutar pró ou contra projetos de lei só serve para legitimar o sistema, ele vai ganhar sempre.
Eu explico isso para o pessoal da direita, para os católicos, e eles ficam loucos da vida, dizendo que eu não quero que eles façam campanha contra o aborto. Não é que eu não quero que eles façam a campanha; [é que] ela só vale se estiver articulada com uma estratégia geral para quebrar o sistema de poder que está por trás disso. Se é só para falar do aborto em si, eles [só] estão demonstrando burrice. As pessoas no Brasil reagem conforme seus sentimentos ou interesses grupais ou pessoais sejam ofendidos: se são fazendeiros, reclamam contra o MST; se são católicos, reclamam contra o aborto; se são das Forças Armadas, reclamam contra os territórios indígenas e contra a desnacionalização do território, e assim por diante. [2:20] Mas esses interesses grupais estão competindo contra uma estratégia total que já delimitou o marco legislativo dentro do qual eles vão discutir. Ora, é preciso ser muito palhaço para acreditar que uma vitória parlamentar significa alguma coisa. Não significa nada, ela pode ser abolida no dia seguinte!
Eu já expliquei milhares de vezes que essa Nova Ordem Mundial não precisa do canal parlamentar. Quando ela não consegue se impor por um canal parlamentar, se impõe indiretamente, através de decretos administrativos, portarias, regulamentos etc., e tudo acaba sendo feito do jeito dela. Portanto, o problema não é abortismo, gayzismo etc.; o problema é o sistema hegemônico. Isso levou trinta anos para ser montado, mas não se tem sequer a história de como [isso] foi montado, e, no entanto, querem levantar suas bandeirinhas e disputar o parlamento. Isso é coisa de gente burra! Porém, nós que estamos estudando aqui não temos nada a ver com isso, não temos culpa dessa porcaria toda que foi feita, e também não temos culpa da burrice alheia. Também não temos a ilusão de que vamos consertar tudo, de que vamos mudar o estado de coisas, mas nós estamos debaixo de uma avalanche de porcaria, de elementos venenosos, da qual queremos pelo menos manter a nossa cabeça um pouquinho acima. Podemos ser derrotados politicamente, juridicamente etc., mas não queremos ser esmagados espiritualmente. Nós queremos levantar as nossas cabeças e dizer: Se alguém não está entendendo, eu estou entendendo; se não sabem o que fazer, eu sei o que fazer; quem quiser me ouvir, ouça, quem não quiser, não ouça.
Quem teme ficar sabendo de muita coisa e dar conselhos que os outros não vão ouvir, saiba que eu estou vivendo isso há mais de vinte anos. [Isso acontece], por exemplo, quando me trazem uma conferência de algum general falando do Foro de São Paulo. Meu Deus do céu! Vinte anos atrás eu falava disso no Clube Militar, na Escola de Comando e Estado-Maior [do Exército], e sabe o que os milicos estavam querendo fazer? --- eu vou até citar o nome [de um]: general Meira Mattos; ele era a grande inteligência do exército --- estavam querendo se unir com o pessoal da esquerda, [com] o PT etc., com a intenção de usá-los e depois os jogar fora. E eu [lhes] explicava que isso não se faz, ninguém vai conseguir manipular o PT e o Foro de São Paulo. Isso é loucura, mas perderam tempo com isso. O general Ibiapina, que era presidente do Clube Militar e que todo mundo achava um grande direitista, estava procurando relações com o pessoal do jornal Hora do Povo, porque corporativamente os militares estavam todos revoltados com FHC, que diminuiu o salário deles. Então, contra FHC, vale até aliar-se ao PT. E eu [lhes] dizia que eles estavam sendo feitos de trouxa, mas eu dizia isso vinte anos atrás! Agora, aparece milico falando do Foro de São Paulo, mas nestes termos: "Eles estão preparando um golpe comunista". Ah! mas que estupidez! Estudem um pouco Antonio Gramsci e verão que não há golpe nenhum! O golpe já foi dado, e foi dado a partir de 1993, com as "campanhas contra a corrupção", nas quais o PT foi cortando as cabeças de todos os seus inimigos, e quando chegaram lá em cima não havia mais inimigo nenhum, só havia candidatos de esquerda! O golpe já foi dado, e ninguém percebeu! Então, é assim: a mulher [do sujeito] está grávida do vizinho, já tem três filhos dele, e o marido começa a desconfiar: "Ah! eu acho que ela está me traindo. Meus filhos estão todos com cara de japonês, não sei por quê!". Isso é incrível!
Isso foi uma tragédia. Portanto, esse tema que você está falando demanda uns vinte alunos deste Seminário, numa divisão de trabalho em que cada um irá pesquisar o assunto sob um certo aspecto, para depois matar a charada. Eu acho muito pouco possível um [só] autor reunir tudo. Para isso, ele precisaria ser um Leopold von Ranke, um Hippolyte Taine, um Jacob Burckhardt --- um gênio da historiografia, e mesmo assim passaria vinte anos escrevendo. Então, vamos ajudar uns aos outros a compreender o problema, começando por coletar material.
Por exemplo, eu pensei em fazer um site com o nome A Destruição do Brasil. Vamos documentar graficamente a destruição do Brasil. Por exemplo, pegamos a foto da Rua São Bento, da Rua Direita, em São Paulo, nos anos cinqüenta, e tiramos outra agora. Naquela época todo mundo andava de terno, gravata, bem arrumadinho. Agora só se vêem os caras com bermuda, chinelo de dedo, barrigão à mostra, vestidos de criança! Vocês acham que isso não significa nada? Vejam fotos de como era as cidades naqueles anos, [de] como era o Rio, e vejam agora os prédios todos grafitados, caindo aos pedaços, ao mesmo tempo que está sendo construído, do lado, um palácio absolutamente esdrúxulo que não combina nem um pouco com o resto da rua. No Brasil, as pessoas pensam que cada edifício é um universo separado que não precisa combinar com a rua. É claro que, por mais que cada coisa seja bonita individualmente, o conjunto vai ficar feio.
Observem a obra de destruição arquitetônica que os militares fizeram: a porcaria que fizeram da Praça da Sé, da Praça Roosevelt; tudo na base do imediatismo e da engenharia militar. A engenharia militar foi feita para construir uma ponte, atravessá-la e dinamitá-la. Então, é evidente que aquilo não precisa combinar com nada, não tem consideração estética nenhuma. E eles foram fazendo obras nessa base, meu Deus do céu! O Minhocão, [por exemplo], matou a Av. São João e a transformou num antro de banditismo. Eles não conseguem avaliar as conseqüências sociais duma obra arquitetônica porque não têm essa noção. Então, a arquitetura, a aparência física das cidades e das pessoas, o modo de vestir, tudo isso [revela essa operação destruidora] --- aqui [na sala] há dois de bermuda, o que eu perdôo por causa do calor; mas o dia em que me verem vestido de bermuda em algum lugar que não seja não digo nem a minha casa, mas o meu banheiro, podem me internar num hospício. Eu não vou fazer isso nunca! Sou um homem adulto, e não quero ter cara de criança. Eu já fui criança, não preciso ser de novo. As pessoas simplesmente não sabem mais ter a idade que têm. Agora, todo mundo quer ser jovem! Mas para quê ser jovem? Eu já fui, e fui uma bela porcaria! Quem não assume nem a idade está num estado mental muito ruim.
Tudo isso é a devastação psicológica do Brasil, que começa com os criadores do imaginário; não é [para] qualquer um, mas para profissionais: o pessoal das artes, espetáculos e mídia. Então é lá que tem de começar. Mas a documentação é imensa.
Aluno: Isso começa no Brasil?
Olavo: Não começa no Brasil, começa com a importação, quando, por exemplo, os homens começam a usar cabelo comprido. Tudo isso evidentemente vem de fora. Porém, eu já observei que essas coisas têm no Brasil um impacto muito maior do que têm nos seus [próprios] países de origem, porque o Brasil não tem história cultural. É [como] naquele poema29 de Murilo Mendes, em que o Brasil é [um menino] deitado numa rede pela qual todos os países que passam dão uma balançadinha. O Brasil não é o autor da sua história, ele é a vítima da história alheia. As coisas entram lá como [por] quem arromba uma porta aberta: não há resistência, não há análise crítica, não há nada! Só há uma ânsia de imitar alguma coisa para sentir que é alguém.
A vulnerabilidade começa na educação doméstica. Eu dificilmente conheci algum brasileiro que não tivesse vergonha dos seus filhos, porque cada vez que ele vê os seus defeitos no filho, ele o odeia, e o usa como bode expiatório para exorcizar os próprios defeitos. Em vez de curar os defeitos dele para que o filho não os copie, é o contrário: ele quer curar o filho para ver se [a cura] reverte nele. Isso é impossível.
Em segundo lugar, há a superficialidade da religião no Brasil. O papa João Paulo II falou a coisa mais certa sobre isso: "Os brasileiros são cristãos no sentimento, mas não na fé". Isso quer dizer que eles sentem o cristianismo, mas não o vivem na realidade, ou seja, não julgam as coisas de acordo com o critério cristão. Vejam que o maior país católico do mundo é o país onde as pessoas mais adoram recusar esmola, algo moralmente obrigatório. Quando o papa vai ao Brasil, todo mundo vai à rua, tem emoção e chora; depois, voltam para casa e continuam obedecendo a Satanás. Isso é assim [2:30] porque o Brasil ficou praticamente todo o século XIX sem instrução católica. Quando começou o Império, o Brasil tinha três mil monges, o que para aquele território já era nada. Quando terminou, tinha oito! E ainda vem aquele imbecil daquele não sei o quê Almeida30 dizer que a culpa do nosso atraso educacional é da Igreja Católica. Mas não houve educação católica, meu Deus do céu! Ela foi proibida, e ninguém sabe disso.
Vejam, só nesses dez minutos que eu falei sobre isso, a multidão de temas que levantei e que devem ser investigados. Isso, se querem saber, é uma especialidade minha: levantar assuntos sobre os quais ninguém sabe nada --- e que eu também não sei, mas gostaria de saber ---, e implorar, pelo amor de Deus, que alguém estude e venha me contar. Nas notas de rodapé do livro O Jardim das Aflições31 há umas quarenta teses universitárias que não existem, mas que precisariam existir. Eu lembro, por exemplo, de ter levantado o tema do ateísmo comparado. Existe religião comparada, mas as formas de ateísmo que surgem nas várias sociedades são diferentes conforme a religião que elas renegam. Há um ateísmo judaico, um greco-ortodoxo, um católico, um protestante, e assim por diante. Eu não tenho tempo e nunca vou poder fazer estudar isso, mas alguém que tenha tempo e goste do assunto, pelo amor de Deus, estude e me conte.
Isso é o que eu chamo de "mapa da ignorância": a listinha dos assuntos que você precisaria saber e não dá para saber, porque para isso precisaria haver toda uma cultura --- a cultura que nós vamos produzir! Nós temos condição de produzir, só entre os alunos daqui, uma cultura brasileira mil vezes mais pujante não digo nem do que a que existe agora --- até porque agora não existe nenhuma ---, mas mil vezes mais pujante do que a que existia nos anos cinqüenta, na melhor época. Nunca houve um círculo tão vasto de estudantes dedicados a temas tão profundos e tão difíceis como há neste Seminário. Então, nós podemos fazer a coisa reviver, e se Deus quiser nós o faremos. Às vezes temos um interesse pessoal por uma questão, mas para que ela seja resolvida é preciso antes ter resolvido esta, aquela e aquela outra. Nesse caso, é melhor começar lá do início e dividir o trabalho com os outros. Peguem esse tema da história psicológica do Brasil nos últimos quarenta ou cinqüenta anos, dividam-no em subtemas, e façam uma central de documentação. Primeiro, vamos juntar a documentação --- para isso, até a documentação visual eu acho importante.
Transcrição: Aline Ribeiro Borges, Tadeu Cruz Vieira, Gio Fabiano Voltolini Jr., Kay Lyra e Tamas Souza
Revisão: Pedro Arthur Carlos de Lima
Footnotes
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Curso em seis aulas, gravadas entre 27 de abril e 2 de maio de 2009, disponível para aquisição no link: https://www.seminariodefilosofia.org/produto/introducao-a-filosofia-de-eric-voegelin/. [As notas feitas pelo revisor da transcrição, como é o caso desta, serão designadas por "N.R.", as designadas por "N.T.R" são as notas do transcritor e do revisor, as marcadas como "N.T." são as notas do tradutor, e as que não receberem designação são do autor do texto das citações.] [N.R.] ↩
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Curso também em seis aulas, disponível em: https://www.seminariodefilosofia.org/produto/sociologia-da-filosofia/. [N.R.] ↩
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Traduzido por Olavo de Carvalho do original Philosophie et Christianisme (L'Age d'Homme, Québec, 1988). [N.R.] ↩
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Referência ao Evangelho de S. João, capítulo 21, versículo 25, o último versículo do livro. [N.R.] ↩
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Cf. Hegel, Phénoménologie de l'Esprit, trad. de J. Hyppolite, Paris, Aubier, 1939, t. I, p. 18. ↩
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Hegel, op. cit., t. I, p. 61. ↩
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Hegel, op. cit., t. I, p. 18. ↩
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Evangelho de S. Mateus, 7:16. [N.R.] ↩
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Evangelho de S. Mateus, 13:24--30. [N.R.] ↩
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Ibid. ↩
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Hegel, op. cit., t. I, p. 17. ↩
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Hegel, op. cit., t. I, p. 8. ↩
-
Hegel, op. cit., t. I, p. 18. ↩
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Referência ao artigo de Eric Voegelin chamado "On Hegel --- A Study in Sorcery" (In: Fraser J.T., Haber F.C., Müller G.H. (eds.) The Study of Time. Springer, Berlin, Heidelberg, 1972). [N.R.] ↩
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Maître Eckhart, Traités et Sermons, Sermon nº 6: "Dieu m'engendre comme lui-même et s'engendre
comme moi-même", trad. de F. A. e J. M., Paris, Aubier, 1942, p. 150. ↩ -
Maître Eckhart, op. cit., pp. 148-149. ↩
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Maître Eckhart, "Pourquoi nous devons nous affranchir de Dieu même", in: op. cit., p. 158. ↩
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Maître Eckhart, "Mon ɶil et l'ɶil de Dieu, c'est um Seul ɶil", in: op. cit., p. 177. ↩
-
São Paulo, Epístola aos Gálatas, 2:20. [N.R.] ↩
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Hegel, Leçons sur la philosophie de la religion, IIIe partie, 2, Leçons sur les preuves de l'existence de Dieu, 5e
leçon ; trad. de J. Gibelin, Paris, Vrin, 1959, p. 33. ↩ -
Hegel, op. cit., IIIe partie, La religion absolute, ch. IV, L'homme Dieu et la réconciliation, trad. de J.
Gibelin, Paris, Vrin, 1954, p. 134. ↩ -
Hegel, Phénoménologie de l'Esprit, t. I, p. 40. ↩
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Olavo de Carvalho, Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos (Topbooks, Rio de Janeiro, 1996). [N.R.] ↩
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Olavo de Carvalho, "Alguém e Ninguém" (Diário do Comércio, 2 de julho de 2013) e "A esquerda e os mitos difamatórios" (Diário do Comércio, 10 de julho de 2013). [N.R.] ↩
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Francisco Doratioto é, na verdade, professor do Instituto Rio Branco (IRBr), onde leciona desde 1998. [N.T.R.] ↩
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Nathaniel Weyl, Karl Marx, Racist (Arlington House, New Rochelle, NY, 1979). [N.T.R.] ↩
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Importante líder estudantil de Maio de 68 e atualmente político na França. [N.T.R.] ↩
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"Fiquei sem tradição sem costumes nem lendas. / Estou diante do mundo / deitado na rede mole / que todos os países embalançam." Murilo Mendes, O Menino sem Passado. [N.R.] ↩
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Alberto Carlos Almeida, cientista político e escritor. [N.R.] ↩
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Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições: De Epicuro à ressurreição de César: ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil (Diadorim, Rio de Janeiro, 1995). [N.R.] ↩