Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula Nº 196
16 de março de 2013
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.
Temos um texto novo para a aula de hoje, de Jean-Louis Vieillard-Baron, filósofo bastante conhecido no Brasil, onde esteve várias vezes, pronunciou várias conferências notáveis. É um homem que organizou vários congressos sobre Louis Lavelle, escreveu um bocado a respeito, tem inclusive um livro inédito que está para sair nas próximas semanas.
Essa série de aulas sobre o Louis Lavelle deve culminar, na minha pretensão, numa espécie de capacitação dos alunos para que transformem essas explicações numa técnica da vida interior. Ao longo das aulas, vou acrescentar algumas explicações deste tipo porque neste aprofundamento o Louis Lavelle fala na consciência da presença do eu no mundo e do mundo para o eu --- uma coisa é entender o conceito, outra coisa é, como diz o Lavelle, retornar a essa percepção de novo e de novo e de novo. E isto então já requer uma prática de uma concentração, de uma atenção concentrada. E isso, evidentemente, o puro estudos dos textos não vai dar para você. Vocês podem se reportar neste caso (aqueles que o tenham) ao curso "Consciência de Imortalidade": ali eu mencionei alguma coisa, aqueles exercícios que mencionei têm muito a ver com isso. Ao longo da aula de hoje, vou voltar a este ponto algumas vezes.
Vamos ler este texto aqui e comentá-lo:
A filosofia de Lavelle é inteira fundada na experiência da reflexão: tal como para Malebranche, a filosofia [para ele] é desde logo um chamado da consciência a ela mesma, um despertar à intimidade espiritual. A reflexão primeira é a descoberta da existência como minha; minha existência me é dada e não tenho como parar de aprofundar esse mistério. Mas o que aí me é dado não tem nada a ver com uma coisa; minha existência me escapa se quero objetivá-la. O que me é dado tenho de tomá-lo nas mãos, modelá-lo: tenho de fazer da minha existência uma essência. O erro de Narciso (...) é recusar a ação e a educação; Narciso crê que pode se contentar em contemplar sua essência, como um mistério de beleza insondável. Em vez de agir, ele se imobiliza na contemplação da sua própria imagem e, por isso mesmo, cessa de viver. A morte é a conseqüência inelutável do seu erro.
Se o ser humano é educável, é porque ele não é uma substância e sim um ato. A educação é a descoberta de um ato que é eu. A primeira experiência que tenho da existência como minha é a experiência do movimento voluntário; quando movo o meu corpo, ainda que seja apenas o dedo mínimo, tomo consciência da minha iniciativa e da minha potência. Comentando a frase de Goethe, "No começo era a ação", Lavelle escreve: "Todos os modos do ser são os modos de uma atividade que ora triunfa e ora sucumbe. Estou ali onde ajo. O ato é o primeiro motor pelo qual não cesso de criar a cada instante minha própria realidade".
Tem-se aqui um problema terrível. Por um lado, dizer "estou ali onde estou agindo e, quando ajo, quando movo o meu corpo, tomo consciência da minha iniciativa e da minha potência", aparentemente isso é tão óbvio que não precisaria nem ser dito. Porém é verdade que você toma consciência disso ou você apenas sabe disso? Saber é ter uma informação, tomar consciência é perceber aquilo no momento mesmo. Então eu gostaria que cada um de vocês perguntasse a si mesmo assim: quantas vezes na minha vida tomei consciência de mim mesmo como autor ou como causa de uma modificação no conjunto da realidade, por pequena que fosse essa modificação? Ao contrário, a idéia corrente, a nossa percepção usual dessas coisas é que as nossas ações e as nossas palavras não modificam absolutamente no cenário do universo.
Quando você fala "universo", já está querendo dizer universo ou em sentido histórico ou em sentido físico, naturalístico. Quando você move o dedo mínimo, ou os dez dedos, ou move os braços e as pernas etc. você não provocou nenhuma mudança significativa nem no universo histórico --- ou seja, aquilo não vai ter conseqüências históricas ---, nem no mundo físico, naturalístico --- você não vai mudar a ordem dos planetas, não vai alterar a lei da gravidade etc. A experiência mais comum e corrente é a da banalidade e inocuidade dos nossos atos. Mas, esta experiência vem do fato de que, quando você e refere ao universo ou ao ser, está tomando o termo no sentido já culturalmente recebido, que divide o universo em termos históricos e físicos. Você não está tomando o universo ou o ser no sentido ontológico estrito, onde o que se entende como ser é tudo aquilo que não é um nada. Surpreender e captar esse seu ato, essa sua interferência no ser precisamente na fronteira entre o nada e o alguma coisa é, na verdade, uma experiência raríssima.
Você pode ter tido essa experiência quando era um bebê, quando percebeu que estava agindo e deve ter ficado maravilhado com isso. Mas, depois, essa ação se torna tão banalizada que prevalece a impressão de que você não está mudando nada. Você não está mudando nada no universo convencionalmente dividido em histórico e físico, mas, no campo total do ser, o que quer que tenha ido para além do nada já é alguma coisa e já está no ser. E é neste sentido que ele diz que quando eu movo o dedo mínimo, eu já introduzi uma modificação no ser. E esta modificação não tem causa externa, a causa disso sou eu mesmo, não há outra causa que eu possa conceber. Não se trata de uma forma externa de ordem física ou de ordem histórico-cultural que me fez mover o dedo. Eu estou dizendo, como o presidente Jânio Quadros, fi-lo porque qui-lo. Fui eu que introduzi essa mudança não no universo histórico ou no universo físico --- que são conceitos, na verdade, mais ou menos convencionais ---, mas na esfera total do ser, ou seja, na fronteira do nada.
Este é um ponto que tem de ser meditado várias vezes até que você chegue a percebê-lo. E percebê-lo significa ter a sensação e o sentimento correspondente. Quer dizer, essa experiência banal de fazer alguma coisa ou dizer algo ou mover um dedo, etc. e etc., claro que é uma experiência banal, mas é somente examinando isso e meditando isso que você vai se perceber como agente causal autônomo. E este retorno a essa experiência é a base, no fim das contas, de toda a compreensão filosófica possível, porque este é o único ponto onde você pode ter certeza de algo. Então aquilo que, do ponto de vista sociológico ou físico, seria banal, do ponto de vista da ontologia, é de uma importância extraordinária.
E é justamente para isso que o Lavelle está tentando chamar, insistentemente, a nossa atenção. Mesmo porque para você tomar consciência de si mesmo como agente causal autônomo - que está criando alguma coisa, que está introduzindo na esfera total do ser uma modificação, por pequena que seja mas que não exista antes, e da qual o único agente foi você - exige-se que o seu círculo de atenção recue desde a periferia de onde vem as suas sensações, percepções, pensamentos etc. até a raiz mesma da sua potência de agir, da sua força de agir; é você se perceber como agente, é você se perceber como força criadora. Esta força criadora não está nos seus pensamentos, não está nas suas sensações, não está na sua experiência cotidiana, na própria raiz da sua pessoa. Isto quer dizer que o que o impede de tomar consciência disso é o fluxo de sensações e de pensamentos que mantêm você ocupado o tempo todo, quando, na verdade, você não teria nem sensações nem pensamentos se você não fosse antes de tudo isso um ato, ou seja, uma força agente. É porque você é uma força agente que você tem pensamentos e sensações etc. Se você fosse um ente totalmente inerte, você não teria nada disso.
Recuar para dentro de si até encontrar aquela raiz interna que faz de você um ato: uma coisa é entender isso como doutrina filosófica, outra coisa é refazer isso como experiência pessoal. É isto o que o Lavelle está pedindo ou implorando para que você faça; ele diz que é preciso retornar a essa experiência, e retornar, e retornar, e retornar, porque somente ela vai lhe esclarecer a real estrutura do universo onde você vive e da sua própria condição existencial. É claro que este recuar é uma atividade muito diferente de qualquer auto-análise que você faça, de qualquer estudo psicológico, de qualquer rememoração biográfica. E, na verdade, é uma coisa que se obtém mediante uma simplificação do círculo de atenção. Nosso círculo de atenção geralmente se dispersa por uma infinidade de sensações, pensamentos, evocações, etc. e etc. --- isso é uma máquina que não pára, a mente humana nunca pára ---, e você quer ir para aquele ponto que está embaixo de tudo isso e que está no centro de tudo isso, que é justamente a percepção de si mesmo como força criadora, como força agente autônoma.
Para isso você vai precisar desenvolver um tipo especial de atenção que deixa o fluxo das sensações e dos pensamentos prosseguir imperturbavelmente, mas de tal modo que você lhe recusa atenção, você não se importa mais com ele. Não se trata de não pensar em nada, não pensar em nada é impossível. Você deixa o fluxo dos pensamentos continuar, só que não é nele que você está interessado, você só está interessado numa coisa: em você mesmo como força agente no mundo, no real. Então você está interessado em se perceber como aquilo que realmente é e sempre foi. Ou seja, não estamos falando da sua psicologia, não estamos falando da sua personalidade, não estamos falando do seu caráter, mas estamos falando da força básica de criatividade que existe por baixo de tudo isso, sem o qual tudo isso não existiria. Dito de outro modo, você está recuando para o centro de si mesmo.
Podemos usar a imagem dos raios do sol: eles espalham a luz do sol por toda parte, mas todos eles vêm de um núcleo. Também você pode fazer a imagem de uma planta que cresce e se expande, mas tudo veio da semente. Esse movimento expansivo mediante o qual a planta cresce e interage com o ambiente pode ser concebido em sentido inverso, como se você tivesse filmado o crescimento da planta desde a semente, e depois você passa o filme em modo inverso e recua até a semente. Fisicamente você não pode retornar, mas não estamos falando de um retorno físico, estamos falando de um retorno puramente espiritual, ou seja, de uma tomada de consciência. E, quando você consegue retorna a esse centro ativo, se percebe exclusivamente como força agente por baixo e independentemente de todos os enlaces que a percepção ou o pensamento criou, que a interação com o meio criou, então neste momento você tem uma idéia de quem você é. Só que isso não pode ser percebido como coisa. Você percebe esta força na medida em que a assume, porque ela mesma que está se voltando para si mesma para se conhecer, não é um terceiro observador. Portanto, tomar consciência da força criadora é uma atividade criadora também, que você está exercendo naquele mesmo momento em que, do conjunto de coisas que você pode fazer, você escolheu efetivar esse mergulho na interioridade, que também pode ser entendido como um mergulho no passado ou como um retorno ao centro ou uma coisa do tipo.
Tão logo você alcança essa condição, verá o seguinte: o que você está procurando não é uma coisa pensável, você não pode pensá-la; pode somente vivenciá-la, do mesmo modo como você não pode pensar um esforço. Por exemplo, no instante que você está correndo, como é que você percebe o esforço? É porque você pensa nele? É porque doem as suas pernas? Não, a dor é um efeito do esforço e não o próprio esforço. Então você só percebe o esforço porque você o está desempenhando. Esse trabalho é realmente você perceber-se a si mesmo como força agente e não como simples recipiente de pensamentos, de sensações e de experiências. Claro que uma boa maneira de fazer isso é manter a sua mente ocupada com alguma coisa que possa continuar sendo feita da maneira mais automática e impensada possível, para de certo modo defende-lo do fluxo de pensamentos que atraem. E evidentemente a prece, a oração, serve muito bem para isso.
Vamos supor que você esteja rezando um Pai Nosso --- não vou falar Ave Maria porque tem uns que não são católicos, e até os mulçumanos podem rezar o Pai Nosso. Você conhece as palavras do Pai Nosso e não precisa pensá-las para recitar, você pode continuar recitando aquilo indefinidamente sem precisar pensar. Esta repetição cria em torno do seu centro de atenção uma camada protetora contra o fluxo dos pensamentos. Qualquer pensamento que lhe ocorra --- você pensa na dívida que tem de pagar, na sua hemorróida, em mulher pelada, você pensa em qualquer coisa ---, as palavras da oração trazem você de volta, como quem diz "isso aí não interessa, não é disso que se trata agora". No centro deste círculo que você cria com a oração, como se fosse um disco que está girando, está a percepção que você tem de si mesmo como agente criador que decidiu livremente fazer aquela prece naquele momento. De tudo o que se pode fazer, você escolheu isto: eu vou para o centro de mim mesmo, e lá vou ficar repetindo a prece. Estão entendendo como é que funciona isso?
Algumas pessoas, que são muito religiosas, podem dizer, "Mas ele está dizendo para não prestarmos atenção na prece, mas para prestar atenção numa coisa que está no centro da prece". Eu digo: é precisamente o que estou dizendo. Porque se eu vou, por exemplo, rezar o Pai Nosso, pensando no significa teológico ou simbólico de cada palavra, o primeiro Pai Nosso que eu for rezar vai levar uns dois anos e meio. E evidentemente isso vai criar um movimento de pensamento que não consigo mais controlar, porque vou por associação de idéias. Então é o que eu estou dizendo para vocês: é para rezar sem prestar atenção na reza, porque tem uma coisa que está no centro dela. O que está no centro? A sua intenção criadora que livremente decidiu orar. Entendeu como é que funciona isso? Você pode dizer que essa não é uma maneira religiosa de orarmos, nenhum padre jamais lhe ensinou isso. Eu digo: eu não sei, meu filho, não tenho aqui nenhum compromisso de catequizar vocês, tenho o compromisso de lhes ensinar algumas técnicas e doutrinas filosóficas, e esta que estou ensinando sei que funciona.
Quando você atinge esse centro de você mesmo e tudo o que se passa na sua mente e no seu corpo já não interessa mais, e você está firmemente ancorado, por assim dizer --- a palavra não é exata ---, está firmemente centrado neste foco da sua própria atividade criadora, então você está no centro de si mesmo, e é impossível que neste instante você não esteja conectado com o centro criador de todas as coisas. Neste instante você tem a experiência direta da fonte criadora da sua criatividade. Em termos religiosos, você poderia dizer, "Então aí sei que estou falando com Deus", eu digo, é exatamente isso. Você não vai ouvi-Lo, Ele não vai lhe dar revelação nenhuma, mas é impossível que, neste instante, você não tenha a experiência da tremenda responsabilidade de saber que está se comunicando diretamente com o primeiro ato que é a fonte única da sua própria criatividade. E é por isso que, mais adiante veremos aqui, essa experiência é acompanhada de uma intensa emoção, talvez a mais forte de todas as emoções perto da qual todas as demais emoções se tornam até banais.
E você não pode persistir nesse estado, isso dura apenas alguns momentos. Se você fosse um santo, se fosse o Padre Pio ou S. Francisco de Assis, você ficaria lá uma bela meia hora. Nós ficamos um minuto, dois minutos, depois você volta para a dispersão normal. Por quê? Porque o seu ato criador é limitado, a sua capacidade de criar-se a si mesmo é limitada pela sua condição física, histórica, cultural, social etc. que cerca você de obstáculos que, como diz o Louis Lavelle, são também os instrumentos da sua auto-realização no mundo. E daí esta experiência da concentração na sua força criadora se transmutará automaticamente numa segunda questão, que é a de quem você será no mundo. E isto é o que se chama o problema da vocação, que é justamente do que está falando o Jean-Louis Vieillard-Baron neste texto.
A educação como ato de atenção
A educação consiste, portanto, num ato de atenção pelo qual me destaco dos modos que determinam minha existência, para reencontrar o eu simples e nu que é a fonte do meu sentimento de viver. (...)
É isto que é eu. Eu não sou os meus hábitos, eu não sou as minhas qualidades e defeitos, eu não sou os meus pensamentos, eu não sou as minhas sensações, não: eu sou a fonte criadora cuja ação permite que eu tenha tudo isso, porque se não houvesse um ato dentro de mim, então eu seria um inerte e não teria nem pensamentos, nem sensações, nem coisa nenhuma. Veja que mesmo a mais passiva das modificações do ser humano, que é, por exemplo, uma sensação --- você ter uma coceira, você ter frio etc. e etc. ---, subentende que você esteja vivo. E não só vivo biologicamente porque o ser humano não tem só sensações, ele tem consciência da sensação. Então quer dizer que esse ato criador tem de estar presente até nas mais insignificantes e nas mais passivas das modificações que o nosso corpo e a nossa psique sofrem.
Pela primeira vez você vai dizer: "Agora sei que eu sou". Mas o que você sabe de si mesmo é muito pouco, na verdade. Tudo o que você pensa que sabe, porque você pode escrever páginas e páginas sobre a sua linda personalidade, sobre a sua história etc. tudo isso não é você, são apenas os modos que determinam a minha existência: uma modalidade sensorial, uma modalidade histórica, uma biográfica, etc. Mas tudo isso não é eu. Eu sou o ato que está por dentro e por baixo de todas essas coisas. E deste ato eu posso dizer muito pouco, porque ele não é uma coisa que eu possa definir, que eu possa descrever, é apenas algo que posso vivenciar. Vivenciar como? Não observando, mas assumindo no instante em que eu mesmo o realizo.
Você pode fazer uma análise disso mediante analogia com um ato qualquer que exija algum esforço e perceber que você, por exemplo, fazendo um esforço muscular pensando em outra coisa torna esse esforço muscular mais doloroso. Ao passo que se você se concentrar nesse esforço, você assume que aquela é a sua ação naquele momento, a sua força aumenta. Esta é uma experiência banal. Do mesmo modo esta tomada de consciência do verdadeiro eu, que é o eu criador que está por baixo de todos os seus estados e modificações, etc. não lhe dará um conhecimento de tipo perceptivo ou conceptual, ele lhe dará a experiência da sua autocriação, onde você vai assumir claramente que é o autor daquele ato, você vai sentir isso muito claramente. Esta técnica que falei da prece em torno não está no Lavelle, não está aqui, fui quem inventei para facilitar a guerra. Eu estudei várias dessas técnicas de concentração, no curso sobre a consciência de imortalidade mencionei algumas.
Quando eu praticava o Tai Chi, você tinha a concentração permanente no centro de gravidade do corpo, mais ou menos abaixo do umbigo. Quando mais você se concentrava ali, mais todos os seus movimentos se tornavam diferentes, porque agora todos eles vinham conscientemente de um centro. Então os movimentos adquiriam uma intensidade maior, um peso maior, uma força maior. Você se concentrava nisso e no peso, você tinha de sentir o peso do corpo o tempo todo. Claro que o nosso centro criador não está nem no umbigo, nem no peso do seu corpo, mas são suportes sensoriais da concentração. Esses suportes não são sempre necessários e não precisam ter uma base muscular ou fisiológica, como tinham no caso do Tai Chi.
Eu estou simplificando a coisa com as palavras da prece como se fossem palavras que estão girando: quando a prece termina, você começa de novo, começa de novo, e vai, vai, vai, não para de prestar atenção nela, para que ela o proteja de prestar atenção em outras coisas em volta, e você possa então recuar dali para o centro criador da mesma ação que está produzindo a prece. Então você vai rezar sem prestar atenção na prece, mas prestando atenção no ato de rezar, que é uma livre decisão sua.
(...) Na comunicação e no diálogo, coloco um ato de fé no eu de outrem, (...)
Ou seja, eu me comunico com as pessoas porque sei que dentro delas existe um centro criador exatamente como tem em mim.
(...) e estou em condições de ajudá-lo a tomar consciência do seu próprio eu.
Eu estou fazendo exatamente isto com vocês agora. Só que aí é preciso fazer um parêntese, e vamos nos reportar a uma apostila que está colocada no site do Seminário já há muito tempo, que é a apostila "O que é a psique?" --- que é um curso que eu dei há muito tempo, quinze, vinte anos atrás ---, onde, entrando no assunto por uma via que é completamente diferente desta do Louis Lavelle, fazendo perguntas diferentes, eu chegava exatamente à mesma conclusão. De tal modo que a leitura ou releitura dessa apostila pode reforçar a sua facilidade de percorrer esse caminho para dentro, porque lhe dá um suporte lógico para o que estamos tratando aqui.
Nestas aulas sobre o que é a psique, a pergunta que eu me fazia era a seguinte...Em primeiro lugar, eu usava a palavra psique e não alma, para dar a entender que eu estava usando o termo no sentido que a psicologia moderna usa, sem nenhuma alusão ao sentido tradicional, religioso, metafísico da alma. Eu estava usando a psique como um dado da ciência experimental, por assim dizer. E a pergunta que eu me fazia era a seguinte: dentro do campo da psicologia moderna, existem mil e uma definições diferentes da psique, cada uma diz uma coisa completamente diferente: Carl Jung diz que é uma coisa, Sigmund Freud diz que é outra, B.F. Skinner diz que é outra, outro diz que não é não sei quê, Gordon Allport diz que não sei que mais, e assim vai. Evidentemente eles não se entendem a respeito. A diferença chega a tal ponto que Jung via a psique em tudo, tudo o que existe no mundo, para ele, é psique. E, por outro lado, o Dr. Skinner dizia que não existe psique nenhuma, existe somente reflexo condicionado. Eu pergunto: eles dizem que praticam a mesma ciência? Um diz que o objeto dele é tudo e outro diz que o objeto não existe? E os dois se chamam psicólogos? Como é possível uma ciência cujo objeto é tudo ou nada? É evidente que havia uma confusão monstruosa a esse respeito no campo da psicologia.
Existe a confusão monstruosa, mas existe o diálogo, a confrontação de hipóteses e de teorias. Se não existe, por baixo de toda essa variedade de opiniões, alguma unidade do próprio objeto, eles não poderiam saber do que estão falando e o diálogo seria impossível. Isto quer dizer que algo desta unidade todos perceberam e, na hora de elaborá-la conceitualmente, cada um puxou para um lado e disse: "Isso é a psique". Como no caso dos cegos com o elefante: um tocou a perna do elefante e disse: "É um poste"; o outro tocou a ponta da orelha e disse: "É uma folha de papel"; e outro tocou o rabo e disse: "É uma serpente". Por baixo dessas três percepções, havia um elefante real, e todos haviam tocado o mesmo elefante. Digo: cadê o elefante por trás de todas essas concepções da psique?
Eu usei então o método de Aristóteles, que ensina: você vai rever as opiniões que os sábios emitiram a respeito; em seguida, você vai articular umas com as outras para ver onde elas coincidem. Às vezes elas coincidem em um nível que está abaixo do discurso delas, elas coincidem em algo que não disseram, mas que tiveram que perceber, porque se não tivessem percebido, não poderiam dizer nada. Então esta unidade muda, silenciosa e invisível do objeto por baixo dos vários discursos, é isso que estamos procurando. E na hora que pegamos isso, temos certeza de que tocamos algo de real. Já saímos então da esfera das opiniões que estamos examinando e permitimos que o próprio objeto falasse, que ele aparecesse e dissesse: "É disto que eles estão falando, e essas varias coisas que eles dizem se explicam pela minha própria estrutura". Ou seja, a unidade que você apreendeu desse objeto tem por sua vez de dar razão aos diferentes discursos que saíram dali: você tem de explicar por que deste mesmo objeto, que é um só, saíram tantos discursos diferentes, e você vai ter de justificar esses discursos como discursos que refletem aspectos, propriedades ou, pelo menos, acidentes de um objeto que permanece o mesmo.
A minha técnica não era a de examinar a psique em si. Se eu for examiná-la em si mesma, vou produzir só mais um discurso e destacar algum aspecto dela que chamou a minha atenção. Eu não quero fazer um discurso sobre a psique porque não quero dizer o que acho que é a psique, quero dizer o que eles todos sabem o que é a psique; captar o ponto de convergência e de concordância entre uma centena de discursos diferentes. Se eu tivesse tido tempo, teria feito essa análise um por um: pegava o Jung, o Freud, o Szondi, todos os psicólogos que li na minha vida, e teria analisado o texto de cada um para daí fazer essa dedução. Eu só fiz esta análise na minha cabeça, nunca tive tempo de escrevê-la, e só a enunciei em aula as conclusões deste estudo. Mas seria muito daí --- daria um livro de umas setecentas páginas ---explicar como todos esses conceitos diferentes da psique provieram de uma mesma percepção que permaneceu muda. Os cegos que tocaram o elefante na hora e dizem "é um poste, uma folha de papel, uma serpente", estão se comunicando. Estamos falando de um objeto que é ao mesmo tempo poste, folha de papel e serpente. Não existe nenhum outro objeto que seja assim, então já temos alguma pista sobre o que é o elefante. Da nossa divergência de percepções, já temos um sinal que nos indica, por baixo desses aspectos percebidos, a unidade de um objeto que permanece desconhecido, mas, do qual já sabemos algo de muito real. Ele é algo que sintetiza em si a possibilidade de nos dar essas três impressões diferentes.
O primeiro ponto que eu observei, que era comum em todos os discursos dos psicólogos que pretendiam definir a psique, é que eles se referiam à psique como uma dimensão causal dos atos humanos. Ou seja, eles se referiam a causas psíquicas das condutas humanas e dos acontecimentos. Por exemplo, ninguém pretende --- talvez Jung pretendesse um pouquinho --- que um terremoto tivesse uma causa psíquica ou que as órbitas planetárias tivessem uma causa psíquica. Todas as condutas humanas só são explicáveis, e só podemos conversar a respeito delas, porque supomos que existe, por trás dessas condutas e atos, uma causa psíquica. Se eu achasse que tudo é uma causa puramente física ou de ordem mecânica, simplesmente não haveria o que diagnosticar. E mais ainda, não poderíamos atribuir nenhuma ação a ninguém porque seriam forças físicas impessoais que simplesmente atravessam as pessoas e chegam até nós. Portanto, se eu estou andando na rua, e vem um cidadão e me dá um soco no nariz, eu não posso reclamar, porque eu digo que isso aí foi uma força mecânica que atuou através do coitado e esmigalhou meu nariz, sem nenhuma intenção da parte dele. Você falar em "intenção" já é uma causa psíquica. Ou, então, às vezes não é uma intenção, às vezes é o contrário, uma distração. O sujeito está dirigindo o automóvel, de repente bate no poste. Por que ele bateu no poste? Porque ele se distraiu, não viu o poste.
Tanto a intenção quanto a distração supõem, por trás desses atos e dessas situações, um negócio chamado "causa psíquica". Isto era universal entre todos os psicólogos: existem atos que têm causas psíquicas. Com a diferença de que os behavioristas radicais, como Dr. Skinner, reduziam a causa psíquica a outro tipo de causa que não era totalmente mecânica, que chamavam reflexo condicionado, portanto um fenômeno de ordem fisiológica. Ele admite que existem causas psíquicas que são de ordem fisiológica mas que são diferentes de outros processos fisiológicos, portanto têm a sua especificidade. Se eles se entenderam já neste ponto, então eles sabem mais ou menos do que estão falando. É como os cegos: eles sabem que estão falando de um treco que desconhecem mas que de algum modo percebera, e do qual tiveram alguma experiência.
Vamos continuar escavando esses vários discursos dos psicólogos para ver o que mais eles percebem em comum. Quando eles falam em psique ou em causas psíquicas, eles dão a essas palavras, a esses termos, um sentido que todos entendem. Então vamos esclarecer esse sentido e, da possibilidade da comunicação entre os psicólogos de orientações diferentes, tentaremos extrair a unidade do fenômeno psíquico a qual todos estão se reportando. Portanto, em parte, o método dialético aristotélico é isto: você vai pegar várias opiniões diversas e vai articulá-las e hierarquizá-las --- isto é o método aristotélico. E, por outro lado, estamos cruzando isso com um método fenomenológico descritivo do conceito de psique que cada um desses psicólogos apresenta. Então tem as várias fenomenologias dos conceitos de psicologia no fulano, fulano e fulano. Mais ainda, não só do conceito, mas vou tentar captar qual é a experiência real da psique que ele está tentando transmitir, e depois de fazer isso, daí eu articulo aristotelicamente. É um trabalho enormemente complicado. E, quando eu dou o resultado aqui, as pessoas pensam que tirei isso do ar, não deu trabalho nenhum. Tem vinte anos de estudo de psicologia por trás disso aqui.
Se sempre se usa a expressão "psique" para designar uma causa de acontecimentos, então que tipo específico de causa eles têm em vista? Quando eles dizem que um acontecimento qualquer se deu por uma causa psíquica, é curioso: eles pensam coisas diferentes a respeito da psique, mas em geral não se equivocam quando dizem que tal ou qual fato teve um causa psíquica, e concordam nesse ponto. Por exemplo, o Dr. Freud teve um caso com a sua cunhada. Por que ele fez isso? Tem uma causa psíquica naturalmente, e eu acho que o universo inteiro dos psicólogos concordaria com isso. Então vamos tentar distinguir o que estão querendo dizer com causa psíquica, distinguindo-a de outros tipos de causas possíveis.
O primeiro tipo de causa que existe no mundo é a causa lógica ou metafísica, que expressa uma necessidade absoluta. Quando você faz um cálculo, por exemplo, você chega a um resultado que está ligado com os elementos do cálculo por uma necessidade absoluta e inelutável: aquela conta não pode dar outro resultado, tem de dar este resultado necessariamente. Quando os fatos resultam de uma necessidade deste tipo, uma necessidade absolutamente inexorável, que não admite exceção, é aí que você fala da necessidade. Necessidade vem do latim nec cedo, "não cede", 'não cedo", ou nec cedere. Então aquilo que não cede de maneira alguma expressa a idéia da necessidade. Necessidade é o conceito cientifico fundamental, tudo o que a ciência busca, no fim das contas, é um elo de necessidade: captar uma relação que não seja arbitrária, porque se for completamente arbitrária, então não é possível ter um estudo cientifico sobre ela. Qual é a mais perfeita das ciências? São as matemáticas evidentemente. Por quê? Porque elas só lidam com a necessidade absoluta. A lógica também. É um ideal que as outras ciências, ciências que se referem ao mundo experimental, nunca alcançam. Por mais que elas usem técnica matemática, as suas conclusões nunca expressam uma necessidade absoluta e férrea como o resultado de uma conta de dois mais dois.
Então, ao lado da necessidade lógica ou metafísica, existe outro tipo de necessidade que é a necessidade física, que não é uma necessidade absoluta, mas é relativa e quantitativa, por assim dizer. Por exemplo, numa família que tem hereditariamente uma doença há várias gerações, qual é a possibilidade de que o próximo bebê nasça com aquela mesma doença ou nasça sem ela? Não há uma necessidade absoluta, há o peso de uma probabilidade, digamos 70%, 80%. É claro que a probabilidade em si, ela por si pode ser exata e exprimir no seu próprio domínio uma necessidade absoluta. Ou seja, se eu digo que há 30% de chance de alguma coisa, os 30% são 30% e não 29 ou 28. Porém, comparado com o total, isso não expressa uma necessidade absoluta e sim uma necessidade relativa que pode ser quantificada, que eu chamo de probabilidade. A característica principal da probabilidade é a sua quantificação, probabilidade não quantificada é nada. Eu digo, existe uma probabilidade de que eu seja eleito Papa. Probabilidade de quanto? Vai de 0% a 100%. Eu disse alguma coisa? Não disse absolutamente nada. Probabilidade e quantificação são exatamente a mesma coisa.
Então o primeiro tipo de causa que uma coisa pode ter é a causa necessária e absoluta. A segunda é a necessidade física e relativa. Todo o universo das ciências naturais lida com necessidades relativas, procurando quantificá-las da melhor maneira que possa. Quando o psicólogo diz que tal ou qual fato teve uma causa psíquica, ele está se referindo a uma necessidade lógica ou a uma necessidade física? Se for uma necessidade lógica, então todos os fatos psíquicos estariam automaticamente auto-explicados porque decorreriam fatalmente de tais ou quais fatores, como o resultado de uma conta resulta da soma desses elementos. Não é este o caso. Seria então a necessidade física? Se fosse assim, seria possível sempre quantificá-la. E nós sabemos, por exemplo, se uma pessoa tem um hábito, pode até haver uma probabilidade "x" de que ela, na próxima vez, reaja de acordo com o seu hábito, mas ela pode fazer outra coisa. E podemos quantificar isso? Não podemos. Qual é a probabilidade de que a probabilidade falhe? Já fica difícil calcular. Mas se a probabilidade falhou uma vez, qual é a probabilidade de que falhe duas, ou três, ou quatro? A conta se torna impossível. Portanto, quando se atribui a uma ação humana uma causa psíquica, nenhum psicólogo jamais a reduziu a uma necessidade absoluta ou lógica, nem a uma necessidade física ou probabilística. Você pode usar métodos probabilísticos, mas você sabe que eles terão ali limites incalculáveis.
Então, ó raios, se não é uma necessidade lógica nem uma necessidade física, nem uma necessidade absoluta nem uma necessidade relativa que obriga o sujeito a agir assim ou assado, então será que é o acaso? Ou seja, não tem causa nenhuma? Qualquer coisa pode acontecer? Se fosse assim, todo o diálogo sobre os fatos psíquicos seria impossível, não haveria nada o que dizer, seria tudo absolutamente incompreensível. Mas também não é assim. Então, ó raios, não é uma necessidade lógica, não é uma necessidade física e também não é o acaso. Conclusão: a psique é um tipo específico de causa que não se reduz a nenhum desses três, ela é diferente dos três. Porém, como tudo o que existe no mundo, exceto a psique, está submetido ou a uma necessidade, ou a uma necessidade física por seu elemento da natureza física, ou ao acaso, então isto quer dizer que a causa psíquica só pode agir combinando os outros três tipos de causas. Quer dizer, estas três causas --- a necessidade física, a necessidade lógica e o acaso --- são como limitações externas que pesam sobre a psique.
Por exemplo, a psique não pode fazer com que 2 + 2 dêem 7, ela tem de se ater a essa necessidade lógica; ela não pode fazer com que uma vaca saia voando. É fácil você perceber o seguinte: qual é a probabilidade de 2 + 2 darem 5? É zero. Qual é a probabilidade de uma vaca voar? Não é de zero, é 0,0000000000001 infinitesimal. Ou seja, o que impede a vaca de voar não é uma necessidade tão férrea quanto a necessidade matemática, é uma necessidade física. Uma mutação na gravidade terrestre, por exemplo, pode fazer com que as vacas voem. Se você botar uma vaca na lua, quando ela tentar andar, vai sair voando. Então, a necessidade física é sempre limitada a um conjunto de condições externas. Quando a psique quer agir, ela não pode violar estas outras três formas de causa --- a necessidade lógica, a necessidade física e o acaso ---, mas ela pode contar com as três e combiná-las de alguma maneira.
Por exemplo, se eu dou uma martelada num prego, quantos milímetros o prego vai aprofundar na madeira? É difícil de calcular, mas há uma probabilidade, não há um cálculo exato que se possa fazer. Quando você dá uma martelada, está contando com uma necessidade física que vai determinar a profundidade da entrada do prego. Quando você vai pagar uma dívida, faz as contas e vai contar com o quê? Com a necessidade lógica que determina o montante da dívida. E se você vai pedir uma redução da dívida ou um parcelamento, este parcelamento terá de ser calculado de acordo com as regras da aritmética, que são invioláveis. Isto quer dizer que a psique é um tipo de causa que não viola as outras causas, mas joga com elas. Você também pode jogar com o acaso. Quando você joga baralho, por exemplo, você está contando com o acaso. Claro que você usa também o cálculo, a lógica, etc., mas tem uma margem de acaso na qual você pode apostar ali, como tentando controlar o incontrolável. Muito do que fazemos no dia a dia é baseado nisto. Isto quer dizer, todos psicólogos do mundo sabem do que estou dizendo. E é porque eles sabem disso que eles conversam sobre a psique e conseguem divergir sobre ela.
Vamos cavar um pouquinho mais e ver quais as características internas deste tipo de causa. A primeira noção que todos obtemos e com a qual todos os psicólogos concordam é que a psique tem historicidade. Isto quer dizer que cada ato dela não é determinado pelo seu passado, mas nunca é indiferente a este passado, o que você faz agora tem algo a ver com o que você fez antes. A relação entre os atos presentes e os atos anteriores pode ser enormemente complicada: ela pode ser a simples repetição de um hábito, pode ser uma reação que você teve para quebrar o hábito, pode ser uma distração que fez você agir de outra maneira, mas de qualquer modo vai contrastar com o hábito. E nenhum ato será compreendido sem o seu passado, ainda que esse passado não o determine. Portanto, dentro da linha da sua causalidade interna, sua própria composição causal, a psique tem uma estrutura que é diferente das outras necessidades, nada nela está totalmente predeterminado, mas nada é alheio ao que foi determinado antes. E isto é o que chamamos precisamente a dimensão histórica. Tudo o que é histórico é exatamente assim. É claro que os fatores não históricos de ordem lógica ou física pesam sobre a história também, mas não chegam a determiná-la completamente. Então a psique tem a historicidade.
O que torna essa historicidade diferente dos outros três tipos de causas? É que a causa psíquica é estritamente individual. Isto quer dizer que todo e qualquer ato que possa ser explicado uniformemente em todos os seres humanos não é psíquico. Por exemplo, todos os seres humanos que existem nasceram e os que cessaram de existir também nasceram, e todos vão morrer um dia. Então isso é absolutamente uniforme para toda a espécie humana. Então isso é uma necessidade natural, portanto não é uma causa psíquica. Mas a causa psíquica tem de poder de ser diferente em cada ser humano de tal modo que o conhecimento que você tem dos outros não explique o que este fez. Se você puder explicar a ação de um inteiramente pela ação do outro, então não se trata de uma causa psíquica. Por exemplo, o sujeito deu uma martelada na minha cabeça e eu disse "ai". Aí eu estou no campo da necessidade física, doeu em mim. Então a minha ação é inteiramente explicada pelo o que o outro fez, inteiramente, 100%. Esta ação não passou por mim como agente criador.
Primeiro traço, historicidade; segundo, individualidade. E na relação entre individualidade e historicidade entra um elemento de quê? De liberdade, imprevisibilidade criadora. Este elemento pode ser pequeno, pode ter de enfrentar mil e um fatores externos que ele controla, mas tem de estar presente para você poder dizer que tal ou qual ato teve uma causa psíquica. E, notem bem, não há nenhum psicólogo que divirja disso. Até os behavioristas, que tentam explicar tudo pelo reflexo condicionado, sabem que o reflexo condicionado pode variar por um fator imprevisível. Então, historicidade, individualidade e liberdade são os elementos da psique que a definem como força causal. É exatamente disto que o Jean-Louis Vieillard-Baron está falando nesse texto. E é disso que o Lavelle está falando, quando fala da liberdade criadora do ser humano, e quando ressalta a importância de entender essa liberdade criadora não somente no sentido conceptual de "eu li o Louis Lavelle e entendi", mas de você apreendê-la em ação em você mesmo.
[INTERVALO]
Como sempre as perguntas estão muito interessantes. Tem algumas perguntas que são muito boas, porém muito cumpridas, eu não vou poder respondê-las. O Alexandre Müller Ribeiro fez duas perguntas, a primeira eu vou responder daqui a pouco, a segunda, mais cumprida, não dá agora.
Aluno: Deus criou o mundo do nada e, se pude compreender o que li, a matéria não Lhe resistiu. Para o Seu ato, além de não haver matéria, não havia ordem nas coisas quando a matéria foi criada. Nós repetimos imperfeitamente esse ato da criação, temos dentro de nós o mundo já constituído em sua matéria e, se bem que nos resista, podemos contar com a ordem que já existe fora de nós no mundo. De modo que se o trabalho, por um lado, nos é penoso, por outro lado, nos é facilitado. (...) Quando um filho quer formar-se à imagem do seu pai, ele começa por imitá-lo em situações mais fáceis e talvez com algum auxílio. Assim pergunto: também por esse nosso ato imitativo da criação podemos nos chamar filhos de Deus?
Olavo: Mas é exatamente disso que se trata. Filho de Deus, e não Deus. Quer dizer que a criatividade humana pode tudo no seu próprio domínio, mas tem duas coisas que ela não se dá: ela não se dá os instrumentos com que ela se realiza e ela não se dá a sua própria existência. Quer dizer, ela se realiza no mundo que você já recebe pronto, definido, delimitado, mundo que é composto de obstáculos e de oportunidades, de dificuldades e de meios que você não fez, esse mundo que já está aí; e, segundo, você não deu a sua própria existência, no sentido exatamente do cogito de Sto Agostinho: "eu sei que eu sou, mas não sei porque eu sou."
Agora, de qualquer modo, há uma observação que precisa ser feita aí. Quando você vai se aproximando desse seu centro criador, vai se afastando de toda a parafernália psíquica, intelectual, etc. voltando, como diz ele, ao eu simples nu e cru que é o eu criador, que é a condição de possibilidade de tudo o mais, quando você vai se afastando disso, várias certezas aparecem. A primeira é esta de que este eu não é causa sui e ao mesmo tempo não pode ser explicado por nenhuma causa circundante. A segunda é que, se você está ligado ao centro da sua própria realidade, é impossível que este centro esteja desligado do ato criador fundamental, porque senão seria a mesma coisa que você ser uma realidade que bóia no espaço totalmente independente, quando, no mesmo momento, você está percebendo a sua incompletude e está percebendo que você não é causa sui. Isto quer dizer que, se o centro criador de todas as coisas, se o ato criador não está presente em cada um dos objetos, então estes não existem evidentemente. Portanto, a sua ligação com o centro e origem de todas as coisas está praticamente garantida por essa experiência. Isso vocês vão ter de fazer várias vezes para vocês mesmo perceberem como a coisa é assim. Pode levar um tempo, pode complicar, mas no fim isso vai ficar bastante claro para todo mundo. E é por isto mesmo que temos aqui esta segunda pergunta.
Aluno: Quando o senhor profere a palavra "deus" a que precisamente o senhor está se referindo? (...)
Olavo: Acabei de dizer, ao ato propriamente dito, ao ato criador, ao ato inicial que está subentendido, que é permanente em tudo o que existe. Se o ato cessar, tudo cessa. Nós tomamos conhecimento das coisas como presenças mais ou menos estáticas e congeladas, mas sabemos que elas não surgiram do nada, sabemos que elas não podem existir apenas como presença, tem de haver um ato que as sustenta na existência, que é na verdade a própria existência, é a força criadora da própria existência.
Aluno: (...) O senhor acredita na narrativa transcrita no livro Gênesis com o mesmo teor de credibilidade com que se recorda da sua própria narrativa biográfica? Ou a considera uma espécie de mito? Quando o senhor orienta os seus alunos a se confessarem para Deus, quem ou o que é exatamente este Deus?
Olavo: Não precisa saber mais nada a respeito deste Deus além do que acabo de dizer aqui. Se você sabe isso, você já sabe muito. O resto, até as considerações teológicas, religiosas, pode mais complicar a sua vida. A última coisa que eu desejo é entrar neste tipo de discussão teológica. A perspectiva aqui realmente não é teológica nem religiosa. Isto eu já explique aqui: o que é ato criador, porque ele tem de existir necessariamente, porque ele é o fundamento de tudo o que existe. O restante que você venha a aprender sobre ele é por sua conta, não por minha conta. Se você quer usar o livro do Gênesis para lhe esclarecer alguma coisa, você use; se quiser continuar só assim, também vai funcionar do mesmo modo. Colocar esses problemas é só complicar a guerra. Você quer saber se há uma perspectiva religiosa por baixo desse ensinamento? Não, não há, realmente não há. Isto aqui não tem nada a ver com religião, absolutamente nada.
Aluno: No texto de Vieillard-Baron, ele afirma: "Ele [Lavelle] pensa que a reflexão filosófica pode tirar tudo dela mesma, salvo à existência que é dada". Isso tem alguma relação com a crítica kantiana do argumento ontológico de Santo Anselmo?
Olavo: Não, absolutamente nada. Tem a ver com o cogito agostiniano, isto sim. Quer dizer, a minha existência me foi dada. Não só a existência como o mundo também foi dado. Mas a partir daí, eu só existo como criatividade. E é neste sentido que ele vai dizer que "a existência precede a essência". É uma frase que é verdade no que diz respeito ao indivíduo humano, que ele se torna algo, portanto ele adquire uma essência ou cria uma essência no curso da vida, e que se torna automaticamente falsa quando aplica à espécie humana, porque a espécie humana pode ser definida por características constantes, entre as quais a liberdade. Portanto, ela tem uma essência fixa.
Aluno: Quando o senhor nos indicou o exercício da oração constante, usada como um recurso protetor para a integração da nossa atenção, eu me lembrei das palavras de Paulo: "Orai sem cessar".
Olavo: Mas o que eu disse aqui é só um dos múltiplos sentidos que pode ter essa sentença do apóstolo. Eu ressaltei um deles, quer dizer, um motivo que você tem para essa prática. E ainda ressaltei que o importante ali não é a prece mesma. Atenção! O que importa não são as palavras da prece mesma, que você vai continuar simplesmente repetindo como um disco rachado: é a intenção sua de fazer a prece que importa. É isto que vai abrir para você a consciência clara da ligação entre a sua criatividade e o ato criador. Mas isso precisa alguma prática, não adianta ficarmos especulando, é preciso tentar e obter algum resultado.
Aluno: Gostaria de entender como operam e como se relacionam os três tipos de sujeito a que alude o Louis Lavelle.
Olavo: O sujeito psicológico, o sujeito transcendental e o sujeito absoluto. Eu vou entrar nisso depois, você agüenta a mão mais um pouco, nós vamos chegar lá. É muito importante esclarecer isso aí, mas não vai dar para fazer já.
Aluno: Poderíamos dizer que existe alguma semelhança entre a psicologia e a lingüística quanto à definição precisa do seu objeto?
Olavo: Daí ele dá aqui alguns contrastes entre a definição que foi dada pelo Ferdinand de Saussure e os seus sucessores, ele enfatizando a língua como sistema e eles enfatizando mais a fala, quer dizer, o uso real da língua. É possível fazer o mesmo estudo, mas eu nunca fiz. Se eu disser que agora aqui quero pegar algo da essência da linguagem, da natureza permanente e universal da linguagem através desse método aristotélico de montar as contradições e articulá-las em torno de um objeto desconhecido, cuja presença está por trás dela, seria um estudo muitíssimo interessante, maravilhoso mesmo. Mas eu nunca fiz, nunca tive tempo de fazer e acho que não tenho capacidade para fazer. Os psicólogos, eu li um montão deles, já os lingüistas, li uns dois ou três, então não estou em condição de articular essas contradições.
Note bem que, para fazer isso, você precisa estar seguro de que a sua amostragem cobre pelo menos o essencial da história daquela disciplina. Não é pegar um lingüista aqui e outro ali, não: você tem de ter certeza de que o material que você está lidando expressa realmente o status quaestionis, quer dizer, a evolução dos debates até aquele ponto que você chegou. No caso dos psicólogos, eu tinha essa amostragem mais do que suficiente porque estou lendo essa gente faz quarenta anos. Na lingüística os meus conhecimentos não chegam a esse ponto. Eu não posso dizer que o que eu sei da lingüística reflete a história real dessa disciplina, não: reflete um capítulo aqui e um capítulo lá. Eu tenho uma idéia da história da lingüística, mas eu não li os materiais, eu sei por que eu li em histórias da lingüística, mas eu precisaria estudar cada um: Jakobson, Hjelmslev, todos eles, um por um. Não tive tempo para fazer isso.
Quem quiser fazer, vai levar uns vinte anos. Não digo que seja a única coisa que você vai fazer, você pode ir fazendo outra, mas não vai chegar a conclusões antes de vinte anos, ou seja, antes de ter lido e meditado todos esses. E ler sempre naquele espírito do Leibniz de concordar com tudo o que lê. Na hora que você está lendo, você está pensando exatamente como aquele sujeito, você não está procurando defeito, você não está discutindo, você simplesmente está absorvendo. Depois quando você ler outro que diz o contrário --- isto é fundamental ---, deixe que a discussão se monte sozinha, sem você interferir. O Ferdinand de Saussure diz isso, o Jakobson faz outro treco completamente diferente: já começou a discussão. Depois lê um terceiro, e a discussão vai sendo montada. Quando ela está montada inteirinha, então as estruturas do objeto invisível começam a transparecer por baixo, como filigrana.
Na verdade, essa é uma das experiências intelectuais mais deliciosas do mundo, quando você começa a ver que, por trás de um tecido de palavras, existe alguma coisa real, que está ali presente, que você não consegue pegar, mas ela está ali. E daí você vai deixando que as vozes dos próprios interlocutores, dos próprios debatedores complementem de algum modo esse objeto, como na história dos cegos: é o que eles dizem. Você precisa levar a sério o depoimento dele. Quando o cara que diz que é um tronco, porque foi isso mesmo que ele viu; o que diz que é uma cobra, foi isso mesmo que ele viu, mas havia um objeto real por trás de todas essas percepções parcelares. E sem a presença desse objeto real, eles não poderiam ter percebido nada disso.
Na verdade, é uma técnica de unificação; a dialética existe para você apreender a unidade por baixo da diversidade. Não se trata de você montar outra coisa, essa unidade de certo modo já tem de estar subentendida por baixo da discussão. Para que isso seja possível, no entanto, é preciso que essas discussões tenham prosseguido durante certo tempo para acumular a massa crítica. Se só dois ou três camaradas falaram a respeito, você não tem material para lidar, os depoimentos são poucos e a unidade do objeto ainda não aparece. No caso dos três cegos, é claro que as impressões dos três só não bastariam para construir um elefante, você precisaria outros que dissessem, ao tocar a barriga do elefante, que ele é um muro e assim por diante. No caso da psicologia temos isso por quê? A psicologia moderna, desde a instauração da psicologia experimental no século XIX, progrediu imensamente, talvez seja a ciência que mais cresceu, e o estado caótico reflete até esse crescimento, então material não falta. Todo esse material, ainda que seja muito parcial, é riquíssimo e de um valor extraordinário. Então vai lendo, lendo, lendo, acumulando, concordando. Dr. Freud diz isso, deve ser mais ou menos isso; Jung diz isso [e assim por diante]. E a discussão sozinha vai se montando.
Essa espontaneidade da coisa é importante para que você não crie o objeto, para que você deixe que o objeto vá aparecendo. O método dialético, na verdade, é uma articulação de contradições, essas contradições se cruzam em algum ponto. Então você vai vendo essas várias perspectivas como um desenhista que vai tomando as medidas de seu objeto desde várias direções e posições diferentes, e com isso o objeto vai aparecendo. É muito bonito fazer isso aí. Isto, se você quer saber, é a operação fundamental da vida intelectual. A boa e velha dialética de Aristóteles consiste em fazer exatamente isso. Mas para isso você precisa do status quaestionis. Para conhecer o status quaestionis, precisa ler muito. Claro, não digo que você vai precisar ler todos os livros a respeito, mas você vai ter de ler os principais pelo menos e tampar os buracos com alguma história daquela disciplina, caso exista.
Para dizer a verdade, eu nunca vi uma história da psicologia que me satisfizesse, sempre estava faltando alguma coisa essencial. Os caras escrevem a história da psicologia desde o ponto de vista da escola que ele segue. Você pega a história da psicologia aqui nos EUA, praticamente você só tem psicanálise e psicologia experimental, fica faltando muita coisa. Cadê a gestalt, cadê a fenomenologia, cadê a psicologia existencial, cadê a psicologia cristã, cadê mais isso, cadê mais aquilo, cadê mais aquilo outro? Fica faltando. Talvez na lingüística seja exatamente o contrário, talvez existam boas histórias da lingüística que possam complementar um pouco isso. Mas de qualquer modo você tem de ir lendo durante bastante tempo, sem pressa. Tem um ditado alemão que diz: Eile mit Weile, quer dizer corra com calma, corra devagar.
Felipe Lessage, a sua pergunta também é muito cumprida, não sei o que fazer com ela.
Aluno: No momento que me percebo como força criativa, percebo-me como verdadeira causa, quase como uma causa primeira. Já que não posso remontar minha capacidade de ser causa, há uma causa anterior, sob pena de tornar-me (...)
Olavo: Você veja que a relação que existe entre o ato criador do ser humano e o ato criador fundamental não é uma relação causal, é outra coisa que não sei definir. É como se dissesse: Deus não está causando isso, Ele apenas possibilita isso, mas quem torna isso real é você. Quer dizer, Ele não faz acontecer, apenas lhe dá a chance de acontecer.
Aluno: (...) No entanto, também percebo que se sou causa, se sou atualmente potência de efetividade, não é porque me dei a mim mesmo essa potência (...)
Olavo: É o tal negócio, isso foi dado por Deus, mas não foi causado por Ele. Você tem razão, se fosse causado por Deus, você seria apenas um efeito, você entraria então numa estupidez determinista: eu não estou falando, Deus que fez tudo, portanto se eu matei o Zé Mané na esquina, é culpada de Deus e não minha.
Aluno: (...), não é porque me dei a mim mesmo essa potência. A atualidade dessa potência como que está presente em mim, mas não pode estar presente como causa, pode? (...)
Olavo: Não, a causa é você mesmo. Agora, a possibilidade de ser causa é que lhe foi dada. Isto quer dizer que a sua liberdade é uma criação da liberdade divina, mas criar uma liberdade não é causá-la, não é determiná-la, é, ao contrário, deixá-la em aberto. Você pode perceber um análogo disso nas relações entre seres humanos, onde você não está causando, você não está fazendo as pessoas agirem desta ou daquela maneira, você está abrindo uma possibilidade. É o que eu estou fazendo com você aqui agora, eu não estou forçando você a fazer coisa nenhum, não estou determinando coisíssima nenhuma. Eu aqui sou o último que fala e o primeiro que apanha, não mando nada. Estou apenas abrindo uma possibilidade que você não sabia que existia: você pode fazer isso aqui, se você quiser; se não quiser, também não faça.
Isso é exatamente o contrário do que se verifica numa relação de poder, porque poder é o poder de determinar alguma coisa, poder é capacidade de ação, entendendo-se por ação a transformação voluntária ou manutenção voluntária de um estado de coisas. Faz acontecer ou impede de acontecer: isto é ação. E a ação que você exerce sobre o outro, quer dizer, o poder que você exerce sobre o outro subentende o poder que você exerce sobre si mesmo. Por exemplo, o indivíduo que não tem força suficiente para mover o próprio corpo, muito menos ele tem para bater no adversário. Então primeiro o poder sobre si mesmo, depois o poder sobre os outros que você exerce por uma infinidade de meios. Mas todos esses meios se caracterizam pelo seguinte: o sujeito que exerce o poder tem a sua liberdade de ação, tem um leque de escolhas, e o sujeito sobre o qual se exerce o poder tem um leque de escolhas diminuído porque está controlado de fora. Então é assim: você não sabe o que vou fazer, mas eu sei o que você vai fazer, então eu canalizo a sua ação, abro determinados canais e só permito que você fique neles de modo que eu possa prever a sua ação e você não possa prever a minha. Isso que é uma relação de poder. ´
É curioso, porque às vezes eu recebo cartas de pessoas que se queixam da doutrinação esquerdista que seus filhos sofrem na escola. Eu digo: meus filhos, vocês estão cinqüenta anos atrasados. Há mais de cinqüenta anos não existe mais doutrinação, doutrinação só existe no ensino universitário, porque a doutrinação é você inculcar na cabeça do sujeito uma concepção do mundo, portanto uma concepção da sociedade, da política, etc. Para você expor uma concepção, você só pode fazê-la por contraste com outra concepção alternativa, senão é impossível. Uma doutrina só adquire sentido com alternativa a uma doutrina oposta existente ou imaginária, então no mínimo duas alternativas você tem de ter.
E acontece que, de uns tempos para cá as pessoas descobriram o óbvio, que se o pensamento humano sempre funciona por contraste, portanto a doutrinação implicava ter de expor algo da alternativa, algo do pensamento do adversário, mesmo que fosse totalmente deformado ou imaginário, no campo da ação não existe dialética: você não pode fazer e não fazer uma coisa ao mesmo tempo, você pode somente pensar o sim e o não ao mesmo tempo. Aliás, o que é estar em dúvida senão pensar o sim e o não ao mesmo tempo? Então a mente humana funciona dessa maneira bífida, por assim dizer. Mas, no campo da ação, você não pode andar para frente e para trás ao mesmo tempo, não dá para carregar uma coisa e deixá-la no chão ao mesmo tempo, e assim por diante. Então os engenheiros sociais descobriram que, em vez de doutrinar os caras, é mais fácil determinar a conduta dele diretamente, sem passar pelo campo das crenças, idéias, valores, etc. e etc. E para isso existe um arsenal de técnica que é uma grandeza, praticamente todas elas estão descritas lá no livro do Pascal Bernardin, Maquiavel, Pedagogo.
Se você se queixa de que seu filho está sendo doutrinado, você está muito atrasado. Ele não está sendo doutrinado, ele está sendo estuprado. E pior ainda, a aplicação dessas técnicas de controle da conduta, que vão gerar condutas padronizadas que, portanto, possam ser previstas e controladas pela autoridade ou por quem estiver no poder, exige necessariamente a diminuição da inteligência da vítima --- isto é básico. Isto quer dizer que se as pessoas estão ficando burras não é porque o sistema educacional está falhando, é porque ele está funcionando perfeitamente bem. Esta é uma máquina de emburrecimento proposital e, portanto, esta é uma atividade eminentemente criminosa.
Agora, por exemplo, dentro da própria estratégia de previsibilidade da conduta da massa, os engenheiros sociais descobriram que se você nega educação às pessoas, por exemplo, não tem vaga nas escolas, as pessoas ficam revoltadas, mas se você diminui a qualidade da educação, ninguém reclama porque eles levam décadas para perceber isto. E a percepção diminui cada vez mais, porque quanto menos preparadas as pessoas são, menos elas percebem que a educação está ruim. Então é uma bola de neve. É claro que isso tudo é uma atividade eminentemente criminosa. Condenar à morte os caras que inventaram isso seria até uma delicadeza. As pessoas que falam de doutrinação estão longe de perceber a gravidade da coisa. A doutrinação dava ao indivíduo necessariamente uma certa margem de manobra, margem de discussão, mesmo que entregasse a discussão já toda preparada, toda arquitetada --- a chamada controle da problemática, o domínio da problemática: você define a problemática, define as alternativas, mas alguma margem de manobra tem. Por exemplo, você não pode aderir ao socialismo sem algo saber do tal do capitalismo. Mesmo que seja tudo falso, algo você tem de saber.
Agora, a produção da conduta não tem alternativa, não há discussão. Por exemplo, o famoso método de pé na porta: você vai sugerindo pequenas modificações quase imperceptíveis, não pode chocar as pessoas. Por exemplo, você quer espalhar o gayzismo na escola, primeiro você faz os meninos darem as mãozinhas, depois de seis meses você vai um pouco mais, um pouco mais, um pouco mais, daqui a pouco os meninos estão lá transando. Não houve uma discussão de valores, ninguém disse que isso é certo ou errado, ninguém ofereceu uma alternativa para discutir, é simplesmente uma sugestão que vai, vai, vai e, no fim, adquire um peso transformador extraordinário. E pior: isso é fundamental nesse processo, que a vítima não perceba que foi induzida, mas que acredite piamente que ela exerceu a sua liberdade. Portanto, é tudo empulhação, é tudo manipulação calculada para deprimir a inteligência das pessoas. Isso não é uma interpretação que estou fazendo, isso está dito explicitamente nos próprios manuais, nos próprios documentos. Mas aí é como o Foro de São Paulo: "Não sou eu que estou dizendo, está lá no documento". Mas para você encontrar uma pessoa inteligente o suficiente para ler o documento e entendê-lo já um osso.
Então esta relação que se estabelece entre o ato criador primeiro e o ato criador individual não é uma relação de poder, não é uma relação de determinação, mas é de abrir uma possibilidade que só você pode realizar, que o próprio Deus não pode realizar por você. É como dizia o Walter Russell: "Deus fará muita coisa com você, mas não por você. Você tem de fazer."
Aluno: (...) A individualidade da causalidade psíquica não impossibilita a ciência psicológica, já que o estabelecimento de leis gerais para a ação humana nos faz cair fora da individualidade psíquica?
Olavo: Nem toda ciência tem como objetivo criar leis gerais. Aliás, isso é freqüentemente uma expectativa utópica. Não existe uma ciência da história, por exemplo? Existe. Ela não está baseada em leis gerais, está baseada na descoberta das articulações causais específicas ou particulares de certos acontecimentos. Porém, neste caso, quanto mais você penetra nessa coisa da individualidade, mais você percebe uma lei geral que é a da liberdade que está presente em todos os seres humanos. A individualidade não deve ser considerada no sentido restritivo, como exceção. Todos os indivíduos humanos são indivíduos, e nisto eles são iguais, portanto todos eles têm a liberdade criadora, embora nem todos não a tenham percebido, embora alguns deles a rejeitem. Por que a rejeitam? Porque a atração dos mecanismos psíquicos, da imaginação, da emoção, do pensamento, etc. é um negócio hipnótico, a sua mente está tão cheia de idéias lindas, de representações, de imagens atrativas etc.
Agora, eu vou desistir de tudo isso e voltar para aquele centro simples nu e cru, onde só tenho a minha liberdade? Ah, não quero, não, está tão bom aqui! Aí é o tal negócio que diz o latim, propter vitam vivendi perdere causas: porque você gosta da vida, você perde a razão de viver, o apego que você tem às coisas o impede de fazer essa renúncia, a variedade e riqueza da sua vida psíquica, da sua vida imaginária, da sua emocional, etc. E então você fica com os produtos da vida psíquica, mas perde o quê? O centro criador de onde tudo isso veio. É a galinha dos ovos de ouro. Você matou a galinha dos ovos de ouro, por quê? Porque você queria os ovos de ouro. Existem muitas fábulas que refletem isso. O próprio Narciso, o que faz? Ele quer a imagem e não a força real de onde aquilo saiu, que é o quê? Ele mesmo. Tudo isso são formas do que chamaríamos o quê? A alienação, quer dizer, a transferência do seu poder a uma imagem que foi criada por você mesmo.
Até a semana que vem, muito obrigado.
Transcrição: Jussara Reis de Abreu.
Revisão final: Fernando José da Silva.