Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 191
09 de fevereiro de 2013
Boa noite a todos. Sejam Bem-vindos.
Antes de tudo, eu queria avisar o seguinte: este mês houve alguns problemas com o negócio do pagamento do curso e inscrição, senha de acesso etc., porque o nosso gerente, o webmaster Silvio Grimaldo, viajou para França. Ele estava procurando lá apartamento, se adaptando à vida nova etc. Mal ele chegou na França, aconteceu o seguinte: morreu o pai dele no Brasil; ele viaja para o Brasil amanhã, para o enterro, e eu não sei exatamente que dia que ele vai voltar para França. Então, é possível que ainda haja mais alguns problemas como os que vêm ocorrendo. Se acontecer qualquer equívoco desses, vocês, por favor, escrevam para [[email protected]]{.ul}. Não adianta escrever para mim porque eu recebo 700 e-mails por dia, dos quais eu leio, no máximo, 70 ou 80 -- então ali é o buraco negro, mandar e-mail para mim é loteria.
Então, vocês, que puderem, orem pelo Sílvio, que está precisando de um reforço.
Eu também queria dar outro aviso: nós estamos para realizar aqui uma rodada de debates, na verdade, uma conversa informal entre alguns escritores brasileiros e portugueses, que vamos trazer para cá. Ficaremos conversando alguns dias sobre as perspectivas da cultura de língua portuguesa nesses tempos tão confusos e, às vezes, atemorizantes.
E eu acho que essa conversa é mais necessária do que nunca e, creiam, nós tivemos uma dificuldade enorme para conseguir, entre Brasil e Portugal, pelo menos, cinco brasileiros habilitados a discutir o assunto.
Eu não vou dizer os nomes deles ainda porque não temos certeza das presenças -- a lista não foi inteiramente preenchida, não tenho certeza de quem vem e quem não vem: eu gostaria de que todos os convidados viessem, convidados que, na verdade, são doze. Se puderem vir os doze, seria bom, mas se não der, a gente faz com quatro, com cinco, com seis. Também, a coisa foi feita meio a toque-de-caixa: eu quero que essa reunião seja em abril, e, às vezes, as pessoas não podem decidir uma viagem em um tempo tão curto.
Quero agradecer aqui a Miriam, que está me ajudando a montar esse esquema e, também, a um patrocinador anônimo que nos prometeu pagar as passagens dos viajantes.
Muito bem.
Hoje nós temos mais um texto sobre o Louis Lavelle, que vai nos dar a chance de esclarecer um ponto -- um dos poucos pontos que não ficam muito claros em Louis Lavelle --, que é o problema da existência e da essência. Nisso, parece-me, a terminologia que ele usa não é muito segura e pode dar margem a alguma confusão.
E isto aparece bem claro aqui neste texto, que é uma tese, apresentada à Universidade de Friburgo, na Suíça, por Emérita Quito, em 1969.
Existe um número muito grande de teses sobre o Louis Lavelle, das quais estou tentando reunir o máximo possível para apresentá-las aqui. São trabalhos muito interessantes -- escritos sobretudo por autores italianos, espanhóis e hispano-americanos.
Muito bem. Eu vou ler aqui o texto de Emérita Quito e depois comentá-lo.
Louis Lavelle é um filósofo do ser. É necessário, para exprimir seu pensamento, recorrer à sua idéia do ser. Suas outras noções tomam raiz no ser. E essas noções mesmas não devem ser separadas umas das outras, pois cada uma é impensável sem a outra. A liberdade é intimamente ligada à participação.
Daqui a pouco, fora deste texto, voltarei a essa questão da liberdade e da participação.
Não há participação senão por seres livres que reconhecem sua inserção no Ser Total. A liberdade engendra a possibilidade, e esta é uma criação da consciência, a qual é forçosamente um eu que coloca o todo do ser.
O verbo poser. Eu às vezes traduzo como colocar, como se costuma a fazer no Brasil, às vezes eu uso instaurar ou estabelecer ou qualquer outra coisa -- não há um correspondente exato, porque o verbo posar em português não tem esta acepção. Eu ainda não achei a tradução adequada desse termo. Às vezes pode ser até postular -- ou alguma coisa assim. Mas, de qualquer modo, vocês captam o sentido? Quer dizer, o poser é algo mais do que afirmar, o poser tem uma conotação de, vamos dizer, não de uma mera afirmação lógica, mas de um reconhecimento quase factual, quando você posa uma coisa, em francês, quer dizer que você está dando aquilo como uma premissa fundante, um dado de realidade.
Então, quando ele diz que o Eu coloca o todo dos seres, não quer dizer que cada Eu afirma teoricamente a existência do todo do ser, mas quer dizer que a simples existência do Eu exige instantaneamente a sua inserção no todo do ser.
Assim, é nesse sentido que ele está dizendo coloca: o "Eu coloca o todo do ser" é mais do que dizer que o Eu afirma o todo do ser. Afirmar seria apenas uma proposição lógica, e não é isso. O Eu, a presença do Eu coloca o todo do ser muitos anos antes que o sujeito possa pensar nisso, quer dizer, ele afirma em atos o todo do ser, e não quer dizer que esteja pensando nisso e faça uma tese de que exista o todo do ser.
Para Lavelle, não há primeiro o ser e depois a aparição da consciência: o ser está sempre aí. No entanto, não podemos dizer com Merleau-Ponty, quando ele fala do seu mundo, que este "já está sempre aí".
O Merleau-Ponty dá uma acepção temporal. Quer dizer: quando eu chego, o mundo já está aí. Não é isto que o Lavelle quer dizer.
Para Lavelle, o ser está sempre aí simultaneamente, fora do tempo [...]
Ou acima do tempo.
E do espaço. Não tem passado nem futuro. Ele envolve tudo e no entanto está implícito em cada consciência.
O modo do Ser que está implícito em cada consciência é o seguinte: Lavelle parte do cogito cartesiano -- ele aceita em princípio o cogito cartesiano --, mas vai muito mais além, na suas conclusões, do que foi Descartes.
Para Descartes, a colocação que se faz do primado do Eu pensante é algo do qual se não consegue, imediatamente, tirar mais nada. Quer dizer, tão logo o Eu se afirmou como existente ou como o primeiro dado conhecido, não dá para deduzir mais nada daí. Por quê? Porque Descartes entende o Eu apenas como Eu cognoscente, não como Eu existente -- e esta é uma diferença tremenda.
Louis Lavelle coloca o puro Eu pensante, ele não existe e ele não pode ser objeto de narrativa -- como já vimos nas análises que fizemos da filosofia de Descartes. O puro Eu pensante é ele mesmo um conceito e não uma realidade, o que nós temos é um Eu biográfico efetivo, do qual, por abstração, obtemos o puro Eu pensante, que sabemos não poder existir por si mesmo.
Então, o verdadeiro Eu se reconhece pela sua capacidade de agir e de fazer alguma coisa. Inclusive a afirmação filosófica é também uma ação. Quer dizer, se este Eu diz: penso, logo existo. Isto é uma ação que se está praticando.
Então, suponha a existência de uma vontade, de uma capacidade de agir -- agir onde? Se a ação fosse apenas imanente, fosse apenas dentro do Eu, não seria uma ação de maneira alguma. Assim, o Eu, pelo simples fato de que ele fala, na hora em que diz cogito ergo sum, ele usa uma linguagem e está interferindo no mundo; está participando do mundo através de uma linguagem que não foi inventada por ele e que, portanto, ele não poderia inventá-la simultaneamente.
Então, a realidade do cogito consiste não no seu isolamento cognitivo, tal como o viu Descartes, mas na sua presença e capacidade de ação no mundo, incluindo o dado fundamental que é a sua liberdade, ou seja, ele está agindo porque ele decidiu agir, nada o impeliu a agir. Vamos voltar a esse tema daqui a pouco.
É nesse sentido que Emérita Quito afirma que o Ser está implícito em cada consciência, quer dizer, a existência da consciência afirma imediatamente o todo do Ser no qual esse Eu -- essa consciência -- existe como possibilidade de ação num cenário que é precisamente o todo do Ser -- e não uma parte limitada sua.
O ser é um Todo, uma Presença total que está sempre aí. Ele está aí quando temos consciência de nós mesmos (...)
Ou seja, no instante em que alguém toma consciência de si mesmo, automaticamente afirma a existência do ser como um todo. Por que o ser como um todo? Eu digo: para que alguém tivesse a ideia de apenas uma parte do ser, ou duma fração limitada do ser, havia de impor-se a pergunta: quem delimitou essa parte? Foi a pessoa mesmo? Se foi, ela delimitou, recortou de onde?
Supor que a presença da consciência, que a existência da consciência exija apenas uma parte do ser -- digamos, por exemplo, o mundo físico -- exige que essa consciência já tenha feito a distinção entre o mundo físico e outros aspectos do ser. E isso só é possível depois que ela tomou consciência do ser. Portanto, quando toma consciência dele, o ser só toma consciência no ser e considera este ser de maneira ilimitada.
Quer dizer que até mesmo a distinção, entre, vamos dizer, um subjetivo e um objetivo, é posterior. Não se tem como distinguir: essa é a minha parte subjetiva e aquilo é o mundo externo, antes de se ter tomado consciência da sua presença no ser, senão não haveria nenhum ser no qual se pudesse fazer esta distinção.
Vocês se lembram que Descartes, quando chega ao cogito ergo sum, tem uma tremenda dificuldade para sair de dentro desse Eu solipsista, e fica obrigado a apelar a uma premissa fundante que é Deus. E Deus vai ser o elo entre ele e o mundo exterior. Mas por que que ele tem que fazer isto? Porque ele já introduziu aí, de maneira indevida, a noção de mundo exterior. Portanto, uma distinção entre o subjetivo e o objetivo. Para fazer essa distinção, ele já precisa estar colocado no todo do ser, dentro do qual, e depois, ele vai observar ali divisões, subdivisões etc.
Isso quer dizer que Lavelle aceita, ao mesmo tempo, o princípio do cogito, mas nos informa que o cogito não significa aquilo que Descartes pretende, significa, antes, uma outra coisa -- então ele não contesta a afirmação, a tese de Descartes, mas apenas a preenche dum conteúdo que escapou a Descartes. E escapou exatamente por causa daquele motivo que nós assinalamos, das leituras que fizemos das Meditações Metafísicas, onde Descartes começa com uma perspectiva narrativa -- ele vai fazer um depoimento sobre uma experiência -- e, de repente, transforma a narrativa numa dedução a partir de um conceito, que é o conceito do Eu. Quer dizer, houve um equívoco na transposição de um gênero literário para outro.
O ser revela-se em primeiro lugar ao eu, que, ao descobrir-se a si mesmo, deve necessariamente inscrever-se no ser. A consciência é a marca da nossa própria respiração no ser.
Veja os termos que Lavelle usa -- termo que ele tem até de rebuscar um pouco para conseguir exprimir o que está querendo dizer -- que é o inscrever-se no ser, por exemplo. Por que ele não fala em inserir-se? É que o inserir-se já daria essa ideia duma separação entre o Eu e o ser, e por isso ele usa o inscrever, que é talvez um pouco mais brando que o inserir-se.
Quando fala: marca da nossa própria respiração no ser, veja que essa imagem é perfeita, porque o que é a respiração? A respiração é um processo principal que passa dentro de você, porém que coloca, automaticamente, e inseparavelmente, você em contato com a atmosfera. Então, é a sua participação interior num exterior. E, pior: a respiração é o que mantém você vivo.
Então, se nós perguntarmos assim: o que está mantendo você vivo é o ar ou a fato de você respirá-lo? Ou seja, a coisa vem de fora ou de dentro? Você vê que as duas coisas são absolutamente inseparáveis; portanto, um processo que é interior, que é íntimo ao ser humano, é no mesmo ato a sua participação na atmosfera, que é ilimitada em torno. Claro que a atmosfera terrestre não abrange o Universo inteiro, mas serve como uma imagem, como uma metáfora.
Quer dizer, a nossa participação íntima na atmosfera através da respiração é uma imagem analógica da nossa participação, do mais íntimo da nossa consciência, na totalidade do ser.
Pois o eu não pode se colocar senão colocando o todo do ser [...].
Se vocês acharem uma palavra melhor para traduzir este poser, por favor, me informem, porque acho este "colocar" um negócio tão horrível -- foram os tradutores uspianos que adotaram o colocar. A palavra é imprecisa, porque o colocar supõe a referência a dois lugares, quer dizer, um lugar que está ao lado do outro, e não é isso que nós estamos dizendo. O colocar já seria um classificar uma coisa num determinado lugar em contradistinção de outro lugar. É um co-locar -- e não é isso que o verbo poser quer dizer. O verbo poser quer dizer afirmar, mas não no sentido verbal, ou sentido de uma preposição teorética -- trata-se de um afirmar em atos, por assim dizer.
Não me evado jamais do ser; e é contraditório que eu possa negá-lo, já que, ao negá-lo, coloco o meu ser que o nega.
Quer dizer, para que eu negue o ser é necessário que eu seja. Então, automaticamente, ao negar o ser, eu afirmo a minha presença no ser; não dá para fazer isso.
Ele está aí quando a participação começa.
Não no sentido de Merleau-Ponty, de que o ser está aí, e então começa a participação, mas no sentido de serem as duas coisas para mim absolutamente simultâneas. O ser e minha participação nele são coextensíveis. Não se trata disto: eu me conheço a mim, e depois conheço o ser e, depois ainda, estou participando. Não, a participação é o próprio ser, porque é a minha forma de presença no ser.
Para Lavelle, portanto, a questão colocada por Martin Heidegger -- "Por que existe o Ser e não antes o Nada?" -- não existe, pois colocar a questão -- "Por que o Ser?" -- supõe que ele já esteja aí.
Eu, sinceramente, não sei se Lavelle subscreveria inteiramente este breve parágrafo da autora. Porque, em primeiro lugar, a questão Por que existe o ser e não antes o Nada? não é de Martim Heidegger -- embora ele a tenha popularizado no século XX, essa questão veio de muito antes, remonta pelo menos até Leibniz. E neste, ela tem o sentido da justificação do ser!
E, talvez, diria Lavelle, a questão da justificação do ser seja uma questão interna ao ser. Como obviamente o é! Não é que exista o ser e acima dele haja uma justificação, uma teodiceia, qualquer coisa assim. A justificação do ser está dentro do próprio ser -- se ela existe, ela está dentro do próprio ser!
Eu achei esse parágrafo um pouquinho duvidoso -- aliás, tem vários pontos duvidosos aqui, mas que são úteis para nós.
Como Lavelle percebe o ser? Pela experiência de si mesmo. Por uma metodologia de reflexão.
Que era exatamente o que eu estava explicando no comentário do Manual de Metodologia Dialética.
Essa experiência de si mesmo...
...é, em princípio, a mesma de Descartes. Quer dizer: é o Eu que toma consciência de si mesmo. Só que aqui ele toma conta de si mesmo não apenas como ego pensante, mas como ego existente.
Quando, de fato, Descartes diz: penso, logo existo, ele está colocando a prioridade do pensamento, e tomando a existência como a conclusão que ele tira a partir do pensamento. Mas aqui está claro que essa distinção é artificial.
O certo é: para pensar é preciso existir, não o contrário. Não que para existir seja preciso pensar. Eu tomo consciência da minha presença através do pensamento, mas esse Eu não consiste em pensamento. Você se lembra do texto que eu passei dizendo O que é o espírito?. Espírito é o que chega até nós através do pensamento, mas que transcende infinitamente o pensamento.
Se a tomada de consciência do Eu fosse apenas a tomada de consciência de um pensamento, e não de um existente, jamais se poderia sair desse Eu pensante! Estar-se-ia condenado ao solipsismo, à prisão subjetiva eterna! E, de fato, não é isso que acontece.
Quer dizer: Descartes sabe que ele é um existente antes dele ter formulado o penso, logo existo.
Então, o pensar já é uma forma de existir, e isso é importante. Não é que o pensamento seja um dado e daí se conclui a existência. Não, o pensar já é uma ação, portanto ele já é um dado da existência. Pela reflexão que se faz a respeito desse pensar, toma-se consciência de todas as implicações que existem nesse ato de pensamento. Por exemplo: a necessidade do transcurso do tempo; a sua capacidade de ação; e, inclusive, a sua liberdade de ação. Quer dizer, está-se fazendo tudo isso porque se quis!
Mas essa experiência de si mesmo pela reflexão não deve se deter em si mesma. É saindo de nós que nos encontramos, "é quando sou mais interior a mim mesmo que estou mais afastado dessas fronteiras de mim mesmo".
Ou seja, quanto mais profundamente eu penetro em mim mesmo, mais afastado eu estou daquilo que me separa de tudo o mais.
Então, esse pensar já é intensamente a experiência da participação no todo do ser -- instantânea e inseparavelmente.
É uma experiência similar à de Narciso. Ao debruçar-se sobre a fonte na qual "ninguém ainda havia se olhado", Narciso se via e caía apaixonado por si mesmo. Ele se esquecia de olhar para mais fundo do que o seu próprio rosto; ele teria visto o fundo da fonte onde se encontra a razão mesma da nossa existência.
Ou seja, quando Narciso estava olhando a fonte, ela estava olhando-a, mas só enxergava ali a imagem de si mesmo, e não perguntava por onde está esta imagem. Ou seja, ele não olha a fonte, ele faz o quê? Uma abstração.
Quer dizer, o olhar de Narciso não é o olhar existencial concreto -- é o olhar abstrativo, que, do conjunto do que ele está vendo, separa só um pedaço, que é a imagem dele, e ele só olha para isso.
Então, Narciso faz mais ou menos a mesma coisa que Descartes: ele olha o ato de pensar como se fosse somente um pensar e não um existir. E a existência entra aí apenas como uma conclusão lógica a partir do pensamento, e não como um dado que já está, de algum modo, precedendo o próprio pensamento.
Quer dizer, quando Narciso se olha na fonte, ele está olhando uma realidade, mas dessa realidade ele recorta só o pedaço que lhe interessa -- que é ele mesmo -- e toma esse pedaço como se fosse real.
Porém, esta é evidentemente uma realidade que se esquiva, uma realidade inapreensível, ou seja, no instante mesmo em que ele acha que se encontrou -- ali mesmo ele se perde. Esse é o tema do livro O erro de Narciso.
É na intimidade, diz Lavelle, que todos os homens se unificam, e é lá que se encontra uma união espiritual de todas as liberdades.
Esse é um tema que eu vou explicar daqui a pouco.
É justo dizer que Lavelle é um filósofo do ser, mas pode-se também chamá-lo um filósofo da existência, no sentido de que ele coloca a existência, no homem, antes da essência.
Essa idéia de que a existência precede a essência entrou para a história com uma frase de Sartre -- mas, na verdade, é uma frase de Louis Lavelle, só que nele ela não tem o peso definitivo que tem em Sartre. Quando diz que a existência precede a essência, ele não está dizendo isso em sentido ontológico (eu vou explicar isso daqui a pouco).
Para ele, como para todos os filósofos da existência, "a essência não é determinada antes que a liberdade tenha sido exercida"
Ou seja, a pessoa faz as suas decisões e escolhas ao longo da vida, ela determina quem ela é, e essa é a sua essência individual.
Portanto, para que alguém seja algo, para que alguém tenha uma essência, é necessário que esse alguém exista antes -- mas isso tem aí uma sutileza (eu vou explicar daqui a pouco).
"A existência não está aí senão para nos permitir conquistar uma essência." A existência, diz ele, não tem sentido em nós senão para nos permitir realizar, não uma essência colocada de antemão, mas a determinação pela nossa escolha e a coincidência com ela.
Ou seja, pelas nossas escolhas, vamos determinando a nossa essência e tentamos coincidir com ela. Dito de outro modo, tentamos ser, na prática, na vida real, na ação, aquilo que concebemos a respeito de nós mesmos.
Nós concebemos uma essência -- aquilo que queremos ser -- e tentamos ser isso na prática. E isso será a nossa essência individual.
Em lugar de dizer que a essência é a possibilidade da existência, diremos antes que a existência é a possibilidade da essência. É pela escolha da nossa essência que fixamos no ser o nosso lugar eterno.
Muito bem. O que que ele quer dizer com essa essência? Não está querendo significar a essência da espécie humana. Ele não quer dizer que a espécie humana é um nada, e que só tem essência depois que ela existe e de depois de haver feito uma série de escolhas -- isso seria absolutamente autocontraditório. Porque, para que possamos vir a ter alguma existência, neste sentido, é necessário que já tenhamos uma essência como espécie, ou seja, nós pertencemos à espécie humana, e ela, evidentemente, tem uma essência.
A essência da qual fala nesse ponto Lavelle não é a essência da espécie humana. É antes a essência individual, aquilo que John Duns Scotus chamava de esseidade.
Sobre isso já havia surgido uma discussão, na Idade Média: sobre se apenas as espécies tinham essência ou se eram os indivíduos que a possuíam.
São Tomás de Aquino dizia que essência é sempre da espécie, e que os indivíduos só se diferem um dos outros numericamente. E John Duns Scotus asseverava que isso seria contraditório até com o princípio de salvação da alma. Se a diferença fosse apenas numérica, por que iria um para o céu e outro para o inferno?
De certo modo, os dois têm razão, porque as essências, em princípio, são as definições das espécies, e não dos indivíduos. Porém os indivíduos têm de ser alguma coisa, e isso que eles são é aquilo em que eles se tornam no decorrer da vida.
Então, no sentido da esseidade ou da essência individual, podemos dizer, evidentemente, que a existência precede a essência -- ou seja, para que nós venhamos a ser alguma coisa, precisamos já existir antes.
Porém, essa possibilidade é precedida pelo quê? Pela essência da espécie.
Assim, a forma correta para a questão é a seguinte: a essência do homem em geral, a essência da espécie, é precisamente a capacidade que cada um dos seus membros tem de possuir uma essência individual. E, de certo modo, esta idéia está contida na própria definição aristotélica do homem como animal racional. Quer dizer, é um ser capaz de fazer escolhas racionais e tomar decisões racionais. Essas decisões, então, determinam a forma da essência individual, que ele tenta realizar no curso da vida. Porém, a possibilidade de fazer isso -- a possibilidade de ter uma essência individual -- está dada de antemão na definição da espécie, como animal racional.
Desse modo, não é contraditório dizer que a essência precede a existência, ou que a existência precede a essência. Num caso se está falando da essência da espécie, no outro, da essência individual ou esseidade.
Talvez Lavelle tivesse feito melhor se usasse o termo essência individual ou esseidade, em vez de usar a palavra essência, por assim dizer, com sentido ambíguo.
Existe então a essência da espécie, existe a essência genérica dos indivíduos humanos, que é exatamente a sua capacidade de individualizar-se em uma essência única, e existe, por fim, a essência individual, ou esseidade, que é essa capacidade de individualizar-se posta em ação ou já realizada. Então, isso aqui é um pequeno trecho nebuloso em Lavelle, ao passo que Jean Paul Sartre, quando dizia a mesma coisa, acreditava literalmente que a essência não existe antes da existência, o que é autocontraditório. Ora, isso quer dizer que essas afirmações de Lavelle são conciliáveis com toda essa tradição aristotélica, tomística, neste sentido e através da intermediação do sempre providencial John Duns Scot.
Muito bem, mas isso aqui nos coloca o seguinte problema: a pergunta que você faz sobre quem é você. Uma coisa é refletir sobre isso, outra coisa é você se apoiar em uma auto-imagem ou em um conceito prévio que você já tem de si mesmo e que todos nós temos; todos nós pensamos algo a respeito de nós mesmos. Quais são os dados que você usa como referência imediata para se reconhecer? Ora, usa as suas emoções, as suas idéias, os seus ideais e valores, os seus temores, desejos etc. E também usa aquilo que os outros pensam de você ou o que você acha que eles pensam, que depende muito, evidentemente, do que você acha deles. E no meio de tudo isso existe também uma faixa, por assim dizer, secreta: são os seus segredos comprometedores, os pecados que você acha que cometeu etc., e que só você conhece e não conta para ninguém e que, mesmo quando vai confessar, irá fazê-lo de maneira muito genérica e alusiva, dizendo uma ou duas palavras: "Padre, eu fiz isso, fiz aquilo...", sei lá, "pequei contra a castidade, comi a mulher do vizinho", alguma coisa assim. Você resume em duas ou três palavras todo um complexo de sentimentos ruins que guarda consigo. Isso é o que pensamos de nós mesmos, e isso é o que chamamos de "eu" na vida cotidiana.
Agora, imagine esse complexo de coisas a que se chama "eu", ou alma, ou consciência etc. tentando se dirigir a Deus. Bem, a questão é a seguinte: Deus é espírito. E isso quer dizer que só pelo espírito você se conecta com Ele. O que é o espírito? É a parte superior da alma, onde o pensamento -- que é, por assim por dizer, a substância da alma, a substância da consciência -- toca em algo que já não é mais ele -- toca em uma realidade. Note como Xavier Zubiri demonstrou que essa coisa de realidade só existe para o ser humano. Os animais não têm realidade, eles só têm o que ele chama de estimulidade; quer dizer, eles reconhecem um estado presente, mas não têm essa dimensão de realidade como algo que vai para além deles. Esse além, essa coisa que transcende a nossa subjetividade, no sentido da subjetividade fechada, não existe para os animais. Então essa é a dimensão a que chamamos realidade. Quer dizer: o nosso contato com a realidade, o nosso conhecimento da realidade, o nosso conhecimento da verdade é a dimensão espiritual da nossa alma. E essa dimensão espiritual está justamente onde a alma toca algo que vai infinitamente para além dela. Não precisa ser nada sublime, pois qualquer conhecimento efetivo que você tenha, do que quer que seja, transcende o seu pensamento. Eu já demonstrei que isso é verdadeiro dizendo que, mesmo no conhecimento que se tem do seu próprio pensamento, mesmo quando se trata de objetos criados pelo próprio pensamento, o conhecimento que se tem deles transcende o pensamento. Isso é o espírito.
Ora, é fácil perceber que todos os componentes da sua alma -- os seus desejos, os seus ideais, os seus temores etc. -- têm sempre uma causa externa: é a sua hereditariedade, é uma pressão que veio do exterior, é um instinto que está no seu corpo e que age sobre você. Evidentemente, nada disso pode ser o espírito. Só podemos falar em espírito numa dimensão em que as nossas ações, as nossas escolhas e a nossa figura sejam determinadas por nós mesmos, o que equivale a afirmar que o espírito é aquilo que, em nós, faz com que sejamos causa de alguma coisa, e não apenas o elo de uma cadeia de causas sucedidas anteriormente. Então, por exemplo, você desejou a mulher do próximo. Por que você desejou a mulher do próximo? Muito bem, porque ela tem uma figura que corresponde às suas disposições, inclinações hereditárias, e então você tem uma atração por ela. Muito bem. Agora, o que você vai fazer? Ou você vai para a cama com a mulher do próximo ou você não vai -- como se haverá no meio disso?
Todos os fatores que exercem pressão já estão dados, e no meio desse jogo de forças você faz o quê? Toma uma decisão. Se essa decisão fosse determinada por esses fatores externos, ela seria somente mais um entre eles e, de maneira alguma, seria uma decisão. Quer dizer, a decisão tem de ser um ato livre. O que é um ato livre? É um ato que não tem outra causa além de você mesmo, e isso é fundamental. Veja que não só em virtude da concepção de homem vigente na nossa sociedade, mas também devido à nossa auto-imagem cotidiana, costumamos explicar tudo por causas externas ou superiores a nós. Absolutamente tudo, e nunca somos causa de nada. Mesmo quando reconhecemos que somos os autores de uma ação, mesmo quando reconhecemos que somos causa de uma ação, tendemos a explicá-la por algo que nos induziu àquilo. Com isso, nos anulamos a nós mesmos enquanto fatores causantes, fazemos de conta que não somos causa de nada. Mas isso é evidentemente impossível, porque, se tudo o que fazemos fosse causado por outras coisas, por outros fatores que não nós mesmos, segue-se que não existiríamos no plano da ação, o que equivaleria à supressão da nossa existência. Isso quer dizer, portanto, que só existimos como fatores causantes porque temos a liberdade, e a liberdade é o espírito.
A existência da liberdade humana e do espírito é afirmada pelo simples fato de que nós somos causa de alguma coisa, ou seja, existem algumas cadeias causais que não vêm detrás de nós, mas que começam conosco. Se não pudéssemos fazer isso, não nos distinguiríamos dos animais de maneira alguma. Tudo o que os animais fazem é causado por estímulos recebidos, seja do seu organismo -- como a fome, o desejo sexual etc. -- seja do mundo externo, digamos, uma ameaça, uma mudança da temperatura, entre outras coisas. Então nós podemos dizer que os animais nunca são causa de nada. O reconhecimento de que o ser humano é causa de alguma coisa é universal. E é aquilo que no curso de ética que dei na PUC do Paraná eu chamei de princípio de autoria.
Não há um sistema moral ou jurídico no mundo que afirme que o autor das ações de um indivíduo é sempre um outro indivíduo ou alguma outra coisa. Todos reconhecem que existe autoria, ou seja, alguém fez alguma coisa. Portanto, não há uma causa anterior. Mesmo que houvesse causa, essas causas não são suficientes para determinar o ato. Por exemplo, o sujeito esqueceu um dinheiro em cima da mesa, você pode pegar o dinheiro sem que ele o flagre, ou pode deixar o dinheiro lá, ou pode avisar o sujeito. A simples presença do dinheiro lá, ou a sua necessidade de dinheiro, não pode determinar o seu ato, porque ele induz você tanto a uma coisa como a outra.
Então, há a necessidade de uma intervenção criadora do indivíduo, em que ele gera uma situação que então transcende as causas externas e faz com que ele se torne a causa. A isso nós chamamos a liberdade do indivíduo; eu decido livremente quem eu quero ser. E note bem, existe alguma explicação natural para isso? Não. Existe alguma explicação neurobiológica para isso? Não. Pois os conteúdos dessas explicações seriam o quê? Outras causas. Se eu disser que isso vem da conformação do meu cérebro, tal equivale a uma causa externa, é uma causa corporal. Então, o espírito ou a liberdade humana, ou a capacidade de decidir-se por si mesmo, não tem nenhuma explicação. Não pode ser explicado, vamos dizer, por causas biológicas, ou sociológicas, ou culturais, ou por quaisquer outras. Preste atenção: se as nossas ações e decisões pudessem ser todas explicadas por causas externas, isso seria o mesmo que decretar a nossa total inexistência, ou seja, nós seríamos apenas mais um elo de uma cadeia causal que nos transcende.
Então essa liberdade é aquilo que não faz parte da nossa presença na natureza, ou no mundo físico, ou no mundo social, ou no mundo histórico. Essa liberdade e essa criatividade do ser humano, por assim dizer, é que são o espírito humano. E isso não pode ser causado por nada. Por outro lado, percebe-se que essa liberdade e essa criatividade são limitadas, ou seja, que os meios e recursos que se tem para colocar em ação uma decisão são também obstáculos à realização dessa ação. Por exemplo, agora eu quero transmitir uma coisa para vocês e, para isso, tenho de usar os seguintes instrumentos: a minha voz, este microfone, o computador, as ondas eletromagnéticas etc. E tudo isso às vezes falha e não faz o que eu quero. Sem contar que às vezes o meu próprio corpo ou a minha própria alma reagem contra o que eu decidi. Eu decido fazer uma coisa, mas, por exemplo, na hora H esqueço, ou não tenho a força suficiente para a ação. Daí percebe-se que essa liberdade existe, mas é limitada. E percebe-se que nada no mundo exterior, no mundo físico, histórico, social etc., nada a apóia. Tudo o que existe no mundo natural, físico, social, histórico etc., são forças causais que não são eu. Absolutamente tudo! Só a minha liberdade sou eu. E essa liberdade não tem apoio em parte alguma, porque tudo aquilo na qual ela se apóia para se realizar é também obstáculo a sua realização. A própria presença do corpo precisa de um corpo para agir no mundo, mas também acontece que o meu corpo pesa, envelhece, fica doente, recusa-se a me obedecer, ou seja, tudo o que é instrumento da minha ação é também obstáculo e dificuldade que dificulta essa ação.
Portanto, a minha liberdade é o fator puramente espiritual e somente ela pode ser chamada realmente eu, o resto não. É a famosa meditação vedantina em que o sujeito pergunta: "o que sou eu?", e daí passa a perceber: "eu não sou o meu corpo, não sou minhas sensações, não sou as minhas recordações,..."; e no fim chega isto: "eu sou espírito". Esse espírito não tem nada no mundo, absolutamente nada no mundo natural, físico, histórico, sociológico, nada que o apóie unilateralmente, porque tudo aquilo que o apóia também se opõe a ele. Então de onde esse espírito tira força para continuar existindo? Só pode ser do espírito em geral, ou seja, nesse ponto entende-se que, por trás de todo o mundo natural, físico, histórico, social etc., existe aquilo que Lavelle chama de ato. É o ato que sustenta todos os existentes, porque todos os existentes, no instante em que são conhecidos, só o são no estado em que estão no momento atual, e essa não é evidentemente a sua realidade; eles já existiam antes, vão continuar existindo depois e vão sofrer transformações.
Então a realidade não consiste de dados que nós percebemos, nem com os sentidos, nem com a inteligência; a realidade consiste de um ato que sustenta tudo. E esse ato é o espírito. Isso quer dizer que somente o nosso espírito se conecta com o espírito e o espírito é o que está no fundo do mundo, é aquilo que está no fundo da imagem que Narciso percebe na água. Por isso muitas vezes a água foi usada como um símbolo do espírito. Isso quer dizer então que o único apoio, o único suporte da minha liberdade é a existência de liberdade, de uma liberdade que transcende o universo, porque tudo aquilo que está no universo já está determinado de alguma maneira, mas tem de haver ainda uma margem. E como é que eu sei que existe essa margem a mais? Porque eu tenho dentro de mim esta margem a mais, que é o meu espírito. E se ele existe em mim e não sou eu, evidentemente, eu sou a fonte das minhas decisões e ações, e a isso eu chamo espírito. Porém, noto que o meu espírito é limitado, mas noto ao mesmo tempo que a cada momento eu posso optar entre o meu espírito e as forças causais externas, inclusive do meu próprio corpo. E percebo que, na medida em que eu opto pelo meu espírito, ele se fortalece, ele toma posse de outros domínios, ou seja, o espírito é expansivo. E essa possibilidade só existe por quê? Porque existe uma fonte infinita do espírito. Isso significa o seguinte: se você é uma pessoa religiosa, na hora em que você reza, não adianta, meu filho, a sua alma inteira rezar. A sua alma inteira é composta de auto-imagem, de emoções, de preconceitos, de temores etc., ou seja, é um lixo. É o seu espírito que se comunica com o espírito, e é só isso, é só essa parte.
Então o que acontece na hora em que se morre? Enquanto se está nesta vida, tem-se o conjunto da própria alma, da própria psique, das sensações, e tem-se o mundo etc., e dentro disso tem-se um pedacinho a que se chama espírito. Pedacinho que liga, apaga, esquece, depois volta. Bom, e quando sumir este mundo em volta? Sobra somente o espírito. Então é o mundo, o mundo corporal, o mundo histórico etc., que passa a ser um pontinho dentro do espírito. Simplesmente a coisa se inverte. Como na figura do yin-yang, em que a parte preta tem um pontinho branco e a parte branca tem um pontinho preto.
Então, esse é o processo da inversão da perspectiva. E esse processo é vivenciado necessariamente na morte, mas pode ser vivenciado em vida, e é a isso que se chama conversão. Essa é a única conversão que existe. A adesão a uma religião não é conversão de maneira alguma. Por quê? Simplesmente aderiu-se a uma religião, simplesmente entrou-se dentro dela. Então se começa a fazer parte de um outro conjunto. Então se tem as regras, os rituais etc. O que mudou interiormente? Nada. Não mudou a ordem dos fatores, não mudou a hierarquia. A hierarquia só muda na hora em que o centro de referência passa a ser sempre o espírito, e não o resto que está em torno. E o espírito é realmente apenas a sua parte livre, a parte que você decide, independentemente de qualquer outro fator, é a parte que você criou. Claro que você não criou o mundo como Deus o criou, mas criou só um pedacinho, que é você mesmo, que é a sua figura, "o que eu quero ser quando crescer". Não no sentido profissional, como as pessoas usam unicamente a sentença, mas no sentido não do que você quer ser, mas no de quem você quer ser. Nada no mundo pode obrigá-lo a ser isto ou aquilo, isso é você mesmo que escolhe, é você mesmo que inventa. E a partir da hora em que inventou, como diz Lavelle, você tenta coincidir com aquilo que inventou. E não consegue totalmente por quê? Porque você não é só espírito; a sua alma, da qual o espírito é a parte superior, está encarnada em um corpo que tem as suas limitações, tem o seu peso, tem as suas doenças, tem as suas fraquezas etc.
A luta pela auto-realização é o espírito. Veja, você pode conhecer as suas emoções mediante o quê? Mediante as reações físicas que você tem, as suas sensações também, as pressões do ambiente também, tudo isso. Mas onde você reconhece o espírito, onde você "enxerga" o espírito, se você não o enxerga, se você o é? Então o espírito não pode ser apreendido como coisa, ele só pode ser apreendido como um processo espontâneo que você mesmo está criando. É na hora em que você começa a chamar eu a esse processo espontâneo, e somente a esse processo espontâneo da sua autocriação, recusando o nome de eu a tudo o mais, então é quando se deu a conversão. Então você passa a ser a sua liberdade, e tudo o mais não é você, inclusive as suas emoções, as suas memórias, as suas recordações; tudo isso são apenas os materiais com o que o espírito busca se realizar no mundo.
Aqueles de vocês que têm o hábito de orar, a partir da hora em que começam a orar com o espírito, devem ver que tudo começa a mudar. Porque as pessoas falam que vêem a presença de Deus, mas como é que eu vou ver a presença de Deus? Eu não posso captar a presença de Deus, porque Deus é puro espírito, então eu não posso captá-Lo pelos sentidos, nem pelas emoções, nem pelos pensamentos, nem por coisa nenhuma. Eu só posso captar a presença de Deus a partir do momento em que o meu processo de autocriação recebe um reforço que vem do próprio espírito, sem saber de onde ele saiu. É só nesse instante que se torna possível o amor a Deus, porque você está recebendo a coisa e você vê que está recebendo, você vê que vem do espírito -- ou seja, não do mundo, não do universo, mas do puro espírito, quer dizer, do puro ato, da pura criação -- e a sua capacidade de criar aumentada. Então nesse instante é impossível você não amar a Deus. Agora, até ali, o que você chamou de amar a Deus é apenas uma figura retórica.
Muito bem, eu acredito que eu interpretei muito corretamente o pensamento de Lavelle. Se Lavelle pudesse estar aqui, acho que ele tentaria explicar com estas palavras, mas, naturalmente, é impossível explicar o pensamento de um outro sem modificá-lo de alguma maneira, para uma outra circunstância, para um outro lugar e para uma outra platéia. Então, esta é a minha versão deste ponto da filosofia de Louis Lavelle.
Porém, daí nós podemos tirar algumas conclusões. Lavelle diz que a filosofia é iminentemente a ciência do ser tal como apreendido na intimidade da participação. Bem, mas tem um problema. Essa ciência, então, só pode ser praticada a partir do momento em que eu tenho uma intimidade consciente com o meu próprio espírito, com a minha própria criatividade, e em que eu consigo distinguir claramente em mim o que é a parte livre e o que é a parte escrava. Então começo a manipular a parte escrava para que ela sirva de instrumento, de estrada, de caminho mais dócil para o espírito, com maior ou menor sucesso, evidentemente. Todos nós temos as nossas dificuldades. Mas e se eu me recuso a fazer isso? E se eu quero obter uma imagem de mim mesmo e do mundo baseada inteiramente no conhecimento dos objetos e na objetivação de mim mesmo como entidade psicológica, antropológica, biológica etc.? Isso significa o seguinte: que eu estou me recusando à intimidade do espírito.
Neste ponto, vale a observação de Louis Lavelle: Deus não é um objeto, Deus só pode ser conhecido por participação, ou seja, a questão de acreditar ou não acreditar em Deus é absolutamente irrelevante, ou você participa ou não. Não existe a questão da crença; ou você aceita a participação ou você não aceita. Assim, a partir do momento em que você não aceita, aquilo não existe para você, então você diz que não acredita. Isso é a mesma coisa que você não acreditar que existe algo que você mesmo não quis fazer, e, de um certo modo, é um discurso redundante. E é claro que esse tipo de atitude leva a uma radical alienação do indivíduo em relação a si mesmo, ou seja, a uma recusa da condição humana, que é definida pela liberdade do espírito. Então, se o sujeito se recusa a ser aquilo que ele tem a capacidade de ser, que é o espírito livre e criador em profunda intimidade com a profundidade do espírito em geral, é impossível que a cabeça dele continue funcionando direito. Não tem como, porque se está vivendo na irrealidade, se está vivendo em uma situação suposta. Pois você pode conhecer inteiramente o ser humano como objeto? Não; para isso seria necessário um domínio total de todas as ciências existentes e por existir, ou seja, a descrição objetiva e total do universo e do ser humano. Isso não existe e jamais existirá.
Isso quer dizer, portanto, que esse tipo de conhecimento extensivo e totalmente objetivado é utópico. Mas o conhecimento da intimidade e do espírito não é utópico, ele é a minha realidade imediata, este é viável. Isso quer dizer então que entre as filosofias que optam por conhecer o homem desde a experiência da sua liberdade e aquelas que querem conhecer o homem apenas como um objeto existe um abismo. E aqueles que ficaram do outro lado, para os quais o homem, e ele mesmo, é apenas um objeto, que só reconhecem como realidade aquilo que pode ser descrito como objeto, jamais como espírito agente e criador, esse indivíduo está literalmente fora de si. E nunca vai acertar em coisa nenhuma, e por isso mesmo eu tomei duas notas aqui: uma a respeito de Wittgenstein e outra a respeito do doutor Richard Dawkins.
Vou ler aqui essas notinhas como exemplo de alienação levada ao grau mais sublime, onde o indivíduo realmente diz uma coisa mas realmente não entende o que está dizendo, porque está literalmente fora de si. Nesse ponto já não é nem mais a paralaxe cognitiva, aí é alienação mesmo, para vocês verem como essa coisa é grave. Eu não estou falando isso para descer o cacete nos caras, não. Não é caso de descer o cacete. Nós estamos vendo aqui uma tragédia: tragédia cognitiva, psicológica e moral. Então, eu vou ler primeiro o relativa ao Richard Dawkins, que é o mais simplesinho:
Com dois anos de atraso, li o pretexto apresentado pelo Dr. Richard Dawkins para rejeitar a proposta de um debate com o filósofo William Lane Craig1, e não acho que seja tarde demais para assinalar que não vejo ali covardia nenhuma, como tantos disseram na ocasião, e sim alguns de erros de argumentação tão grosseiros que bastariam para desqualificar um aluno de ginásio.
Os erros são de fato portentosos. Como o sujeito não percebeu isso quando dizia aquelas coisas? É quase impossível não perceber. Porém, se você está neste estado de alienação, achando que é apenas um objeto a si mesmo -- seja da antropologia seja da biologia -- e não o espírito agente criador que se reconhece pela sua participação no Espírito universal, então você está realmente fora de si e não poderá acertar em praticamente nada.
Desde logo, o doutor Dawkins alega que consultou alguns professores de filosofia, e como nenhum deles ouviu falar de Craig, julgou razoável concluir que este era um João ninguém empenhado em promover-se às suas custas. Que eu saiba, a qualificação profissional de um filósofo deve ser averiguada pelo seu currículo e pelas suas obras, e não por opiniões de terceiros que nunca ouviram falar dele.
Se você pergunta quem é William Lane Craig, e o sujeito diz que nunca ouviu falar, é evidente que ele não sabe nada a respeito do filósofo. Ele é uma "não fonte" de Craig, portanto. Foi justamente nessas fontes que Dawkins apostou.
Na pletora inabarcável da produção filosófica hoje em dia, é ingenuidade imperdoável presumir que qualquer obra de valor terminará por ser universalmente conhecida no prazo da vida do autor ou mesmo décadas depois.
O número de autores importantíssimos que durante décadas permanecem desconhecidos é enorme. Por que você presume que em certo ambiente universitário específico tudo o que é importante chegou lá? E o que não chegou não é importante? Não há motivos para acreditar nisso.
E que seja possível, portanto, avaliá-la mediante rápida consulta a quaisquer profissionais "da filosofia" escolhidos a esmo, a qualquer momento e num país estrangeiro, sem a mínima consulta ao currículo do personagem mesmo, que no caso do professor Craig é dos mais honrosos.
Se ele tivesse examinado o currículo de Craig, teria visto que não se trata de qualquer um. O currículo de Craig diz respeito a ele, e a opinião de pessoas que não ouviram dizer nada a respeito dele se refere a nada. Como é que um cientista cai num erro desse tamanho? Eu creio que Dawkins é uma mente deformada que chega ao nível do mentecapto.
O apelo do prof. Dawkins ao argumentum ad ignorantiam é pueril, para dizer o mínimo, mas adquire contornos patológicos quando reparamos que, recusando-se a pesquisar de fonte primária a habilitação profissional do desafiante ou a ler as suas obras, o presunçoso biólogo doublé de teorizador universal da cultura teve tempo para ciscar alguns posts colocados pelo prof. Craig em listas de discussão, e julgá-lo por eles. Seria o mesmo que, ignorando tudo do gene egoísta e dos memes, julgar o dr. Dawkins só por esse artigo do Guardian. Em segundo lugar, ele conclui da leitura daqueles posts que o prof. Craig é um apologista do genocídio, alguém que não merece ser cumprimentado na rua, quanto mais honrado com um debate acadêmico. Curiosamente, ele extrai essa conclusão da afirmativa de Craig de que a ordem divina para os judeus exterminarem a tribo dos cananeus não foi de maneira alguma um decreto de genocídio.
Craig deu suas razões explicando o porquê de não ser genocídio. Porém, as razões escolhidas para inocentar Deus da acusação de genocídio me pareceram bem fracas. De qualquer modo, ele disse que não se trata de um genocídio -- donde se conclui que Craig seria um apologista do genocídio. Poderia até ser se houvesse uma intenção de camuflagem, mas Dawkins teria de provar que houve essa intenção.
Do ponto de vista cristão, a vida doada por Deus traz dentro de si a necessidade da morte, sem nenhuma promessa de duração definida ou média nem garantia de que todos morrerão de velhice, na cama, ou de qualquer tipo de "morte natural". Genocídio é assassinato em massa, a extensão numérica do conceito de assassinato, e assassinato, por definição, é a morte de um ser humano imposta por outro da mesma espécie, não pelo Criador de todas as espécies. Para que a extinção de um povo, quando decretada por Deus, fosse genocídio, seria preciso antes provar que toda e qualquer morte de um ser humano constitui assassinato. Não faz sentido acusar de nenhuma morte em particular -- ou de muitas mortes em particular -- Aquele que é a causa primeira de todas as mortes como de todas as vidas. Um assassino, por definição, não é causa primeira de morte nenhuma, mas apenas o agente imediato que a determina no tempo.
Não se pode dizer que um assassino causou a morte do indivíduo porque ela não se constitui daquele trauma provocado pela agressão, mas repousa em toda estrutura biológica do sujeito. Se eu der uma martelada na cabeça de um ser humano, ele morre; se eu der uma martelada na cabeça de um elefante, nada acontece. O ato homicida só se torna homicídio porque se apoia em cima da constituição biológica dada milhões de anos antes. Isso quer dizer que o homicídio pressupõe condições que o próprio homicida não criou. O ser humano tem uma duração limitada, foi o assassino que determinou se dada uma martelada o crânio humano vai rachar? Não, ele apenas deu uma martelada, pois não criou o crânio com essa fragilidade. O assassino nunca é a causa primeira da morte, portanto. A causa primeira da morte é a própria vida determinada por Deus.
Acusar Deus de homicídio ou de genocídio é antropomorfizá-Lo mais do que se permite em histórias da carochinha. Não foi esse o argumento que o prof. Craig usou, mas com toda a certeza ele não ignora esse aspecto da questão. Já do ponto de vista ateístico, que é o do dr. Dawkins, faz menos sentido ainda afirmar que Deus não existe e em seguida acusá-Lo de homicídio, genocídio ou qualquer outro delito. Pela mesma razão não cabe acusar de apologia ao genocídio a defesa de Deus tal como empreendida pelo crente de qualquer religião.
Se Deus não existe, ele não cometeu genocídio. Aquele que defende Deus, portanto, não é um apologista do genocídio, mas de Deus -- que não existe, segundo Dawkins. Se você fala bem de um Deus que não existe, como é que você pode tornar-se apologista do genocídio se aquilo que não existe não pode cometer genocídio? Isso é um erro lógico do nível do mentecapto. Não é um erro comum que se possa aceitar, é burrice mesmo.
Tudo o que Dawkins poderia legitimamente fazer, na sua própria perspectiva, seria acusar de genocídio os judeus, acrescentando a isso o agravante de que justificam mediante o apelo à autoridade de um Deus inexistente o crime que eles próprios cometeram contra os cananeus.
Ele não teria acusado Deus nem o Seu apologista, mas os judeus que mataram todos os cananeus -- e ainda inventaram essa história de que um Deus inexistente dera a ordem. Se a culpa não é do Deus inexistente, muito menos pode ser de um apologista.
Mas, se ele fizesse isso, seria por sua vez acusado de anti-semita. Mais lhe valeu, portanto, forçar a lógica e acusar William Lane Craig de apologista do genocídio. Se nem num assunto tão simples e num artigo tão curto o dr. Dawkins é capaz de alinhar dois argumentos sem cair em dois sofismas tão bobos, que grande performance se deveria temer dele num debate sobre matéria mais ampla e complicada? Não acredito que o dr. Dawkins seja um covarde, pois já se expôs valentemente a tantos vexames e continua aceitando debates sem jamais ter vencido um só deles. Mas já tive muitas provas da sua inépcia intelectual formidável, a qual, se aparece tão nítida num mero artigo de jornal, brilha ainda mais fulgurante nas suas grandes teorias.
Richard Dawkins não é um gênio ou um cientista de respeito, mas um bobo. E erros desse tipo, se estão em artigos de jornal, estão nas teorias dos memes e do gene egoísta. É um raciocínio adornado por uma multidão de dados científicos que impressionam, mas o fundamento lógico é deveras tosco. Não é para ter raiva do doutor Dawkins, mas sim compaixão dele. Não é à toa que em todos os debates ele apanha, pois não é capaz de sustentar uma posição. É simplesmente um incapaz.
Vejamos outro exemplo pior:
Wittgenstein diz que não existe "a" linguagem enquanto tal, mas somente "jogos de linguagem" arraigados numa atividade determinada e numa situação concreta. Como foi possível enxergar uma grande descoberta filosófica numa banalidade que todo estudante de retórica antiga conhece de cor e salteado, é algo que para mim permanece um mistério.
Os retóricos antigos diziam duo si idem dicunt, non est idem, se duas pessoas dizem a mesma coisa, não é a mesma coisa -- porque está tudo ligado a uma situação ou atividade determinadas. É um jogo de linguagem, como diz Wittgenstein.
Mas os retóricos antigos nunca chegaram ao ponto de afirmar que a variedade das situações de discurso e dos usos lingüísticos ligados a cada uma negasse a existência da linguagem em geral.
Eles sabiam que existiam esses jogos de linguagem, o que não quer dizer que existam só eles e não a linguagem em geral.
Se "a" linguagem é um universal abstrato, que obviamente não pode existir em si mesmo, mas só nas linguagens -- ou jogos de linguagem -- que a exemplificam, negar-lhe toda existência seria proclamar que as espécies existem sem o gênero que as unifica.
Nesse caso, todo discurso sobre a linguagem -- inclusive dizer que ela se compõe só de jogos de linguagem -- se tornaria impossível. E esse é o homem do Tractatus Logico-Philosophicus.
Saber se este existe "em si mesmo" ou só in voce, voltando à antiga querela dos universais, é inteiramente desnecessário, pois até aquilo que existe só in voce existe de algum modo, e, ademais, onde mais podem existir os próprios "jogos de linguagem" senão in voce?
Onde existem os jogos de linguagem senão na palavra?
Se existem jogos de linguagem, existe linguagem, no mínimo como conjunto abstrato de todos os jogos de linguagem existentes ou possíveis. Para piorar as coisas, se só existem jogos de linguagem e não linguagem, então não tem sentido falar, como o autor das Investigações Filosóficas, de "limites da linguagem".
Existem limites gerais da linguagem humana? Se a linguagem não existe, existindo apenas jogos de linguagem, não pode haver limites da linguagem, porque haveria somente os jogos de linguagem.
E sim somente limite deste ou daquele jogo de linguagem em particular. Mas, em primeiro lugar, isso seria somente uma redundância, de vez que cada jogo de linguagem não consiste em nada mais do que os limites que o distinguem de outros jogos.
Dizer que um jogo de linguagem é limitado é a mesma coisa que afirmar que o jogo de linguagem é um jogo de linguagem e não outro. O que é uma redundância, evidentemente.
Cada um deles é limitado por definição. Por outro lado, é óbvio que das limitações dos jogos de linguagem não se pode deduzir nenhum limite "da" linguagem em geral, pois o que caracteriza esta é justamente a possibilidade -- que a define -- de criar novos e novos jogos de linguagem para um número ilimitado de situações diferentes.
Se cada jogo de linguagem está ligado a uma situação ou atividade específica, quantas situações ou atividades em particular terão o seu próprio jogo de linguagem? Existem jogos de linguagem em número ilimitado e crescente, portanto.
Isso é o mesmo que dizer que o que caracteriza a linguagem em geral é precisamente não ter limites intrínsecos.
Só há limites extrínsecos e acidentais, que são limites deste ou daquele jogo de linguagem em particular.
A história da literatura documenta o contínuo recuo dos limites do dizível, e ninguém pode decretar, de antemão, onde isso vai parar.
Vocês leiam o livro do Erich Auerbach, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (São Paulo: Perspectiva, 2011), onde há a documentação disso. O que é dizível sobre a realidade continua aumentando porque são criados novos jogos de linguagem para novas situações e atividades. A linguagem é a possibilidade contínua do crescimento dos jogos de linguagem. A linguagem é, por definição, algo que não tem limite intrínseco, apenas extrínseco -- que são os limites dos jogos de linguagem.
Os "limites da linguagem" são apenas temporais e empíricos, são apenas os limites dos jogos de linguagem vigentes num tempo e lugar, o que é o mesmo que dizer: podem ser estudados historicamente, mas não determinados teoricamente.
A expressão "limites da linguagem" é um termo que não quer dizer absolutamente nada. E os jogos de linguagem são a própria linguagem em geral.
É curioso que o interesse de Wittgenstein pelos "limites da linguagem" viesse associado ao seu gosto por algo que ele chamava "misticismo". O conhecimento de Deus não pode ter nada a ver com "transcender a linguagem", pela simples razão de que Deus não chega a nós -- nem nós vamos a Ele -- sem ser através do Logos, da Fala divina. Esta, por sua vez, é origem, fundamento e garantia da fala humana. Mesmo uma possível experiência de mudez extática não imporia limites à nossa linguagem, mas, bem ao contrário, ampliaria o território dela imediatamente após a cessação desse estado momentâneo, como o testemunham os escritos dos místicos, sem exceção.
Quando o místico tem uma visão extática, nunca acontece de ele ficar mudo para o resto da vida. Ao terminar a mudez extática, o místico começa a falar, expressando coisas que antes não conseguia dizer.
O mergulho no Logos revigora e fortalece a fala humana em vez de tolhê-la. Um interesse por "mística" sem o correspondente interesse pela religião só pode mesmo resultar num estereótipo onde a experiência interior do místico é confundida com a sua aparência exterior de mudez extática.
É uma mística da Nova Era e não uma verdadeira mística. É assim que terminam as notas sobre Wittgestein e Richard Dawkins. O sujeito que recusa a intimidade do Espírito, dizendo que não acredita em Deus, está serrando o galho em que está sentado, porque afirma que a experiência não existe. É um discurso que realmente não faz sentido. A expressão crença ou fé é ambígua porque não se trata de crer no Espírito. O sujeito não apreende a si mesmo como pela sua figura externa, suas emoções ou estados, mas pelo ato que está no fundo de tudo isso. Essa é a diferença de você andar pela terra ou sair voando. Se estiver andando sobre a terra, você pode parar e sentar no chão. Quando você está voando, é o seu movimento que garante sua posição. O voo só existe pelo movimento. O nosso espírito só existe pelo seu próprio ato de autocriação.
Até semana que vem. Muito obrigado.
Transcrição: Kênio Barros de Ávila Nascimento, Evandro Santos de Albuquerque e Tamas Coelho de Souza.
Revisão: Fernando José da Silva.
Revisão Final: Alexandre Müller Ribeiro