Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula Nº 190
2 de fevereiro de 2013
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.
Eu queria lembrar a vocês que proferirei aqui o curso "Introdução à filosofia de Louis Lavelle", de 6 a 11 de maio de 2013, onde a perspectiva será complemente diferente da que estamos adotando aqui. Aqui nós estamos examinando certos tópicos que são do nosso interesse e no curso eu tentarei dar uma idéia da estrutura geral da filosofia do Louis Lavelle, coisa que nós não estamos fazendo aqui. [Aqui] só estamos investigando determinados pontos que não são para o conhecimento da filosofia de Louis Lavelle, mas para a filosofia em geral e para a sua formação.
Também queria avisar que a professora Margarita Noyes está dando um curso muitíssimo interessante baseado no livro do George Orwell, Animal Farm. Os interessados se conectam lá: margaritanoyes.com
Nós temos aqui dois textos que nós não examinamos ainda. Lembrando que nós começamos por ler o Manual de Metodologia Dialética, que é o último livro do Louis Lavelle e o mais difícil, e que por isto mesmo nos obriga constantemente a retornar aos textos anteriores. Mas quando se trata de Louis Lavelle é sempre assim: nada está explicado completamente num texto e, no fim das contas, é preciso você ler tudo. Aliás, esta é maneira correta de estudar qualquer autor filosófico: você primeiro colecionar todos os livros dele --- é claro que você não precisa terminar a coleção para começar a ler, você pode ir lendo um aqui e outro ali ---, você ter a obra completa e ter o máximo de estudos a respeito que você possa. No curso que eu proferirei em maio, eu darei uma bibliografia mais completa que eu possa do Louis Lavelle --- a bibliografia dele é imensa. Hoje em dia é muito difícil de encontrar, porque em geral são teses universitárias publicadas nos anos 40-50, então é um osso para publicar. Mas eu consegui as principais.
Vamos começar aqui com a seguinte ponderação. Todas as pessoas que têm algum interesse em assuntos religiosos ouvem dizer que Deus é Espírito e repetem isso o tempo todo. Porém, é o tal negócio: como você vai entender essa frase se você mesmo não é espírito? Ou pelo menos não adianta você saber que você tem um espírito ou é espírito. A coisa fundamental aí é que a sua auto-imagem, a sua compreensão de si mesma seja baseada no seu espírito e não na personalidade aparente, na figura corporal, na identidade social etc. Daí a necessidade do que o Louis Lavelle chama de conversão, mas num contexto muito particular. Não é diferente da conversão religiosa, mas é captada num sentido mais profundo que indica o indivíduo se perceber a si mesmo como espírito livre e criador. Um espírito é eminentemente você ter liberdade e você ser, na medida do possível, o criador da sua própria vida. Ter um espírito, na verdade, não é você ter alguma coisa, mas você ter uma potência de ser. Isso, aliás, ele aplica não só ao espírito, mas a todo o eu humano. Ele diz que o eu humano é menos um ser do que uma potência de ser. É um tema que depois seria explorado por Jean-Paul Sartre, dizendo que a existência precede a essência, quer dizer, primeiro você existe e depois você se torna alguma coisa. Não é uma tese errada, mas, no Louis Lavelle, a coisa tem muito mais mediações e sutilezas do que no Jean-Paul Sartre. Curiosamente, a idéia é atribuída a Jean-Paul Sartre que a pronunciou vinte anos depois.
A liberdade de espírito é uma experiência que você faz quando você nota que você é uma força agente capaz de se criar a si mesmo, ou seja, você quer ser alguma coisa que você ainda não é. Você fez essa escolha livremente, nada o obrigou, e você imprime, então, um senso de direção à sua vida. Na medida em que você faz isso, você topa com vários obstáculos. O primeiro obstáculo evidentemente é o seu próprio corpo e também a sua própria alma na qual se agitam forças que não coincidem com a decisão tomada pelo espírito, que, ou oferecem resistência, ou puxam numa direção diferente. Mas, precisamente na medida destes obstáculos a direção que o seu espírito imprimiu à sua vida começa a tomar uma forma mais definida e começa a sair da potência ao ato: deixa de ser a mera possibilidade que você tem e passa a se tornar alguma coisa na realidade, e esta alguma coisa é que será a verdadeira figura da sua vida. Os obstáculos vêm, em parte, de nós mesmos, em parte, do meio circundante, ou seja, das pessoas em torno, em parte, do universo físico e, em parte, de outros fatores espirituais adversos que nós chamaríamos o demônio. Porém, todas essas forças obrigam a tendência escolhida pelo espírito a tomar uma forma, a tornar-se alguma coisa no espaço e no tempo. Portanto, tudo aquilo que se opõe ao espírito é também aquilo que permite que ele saia da esfera da mera potência interior, da mera possibilidade interior, para se tornar o quê? Uma vida humana. E esta vida humana, esta biografia, isto é realmente você, é a única coisa que você é.
Porém, ressalta o Louis Lavelle, essa sua história tomada em qualquer momento do tempo só existe na memória, ela não está presente. Por isso mesmo ele acha muito errado você considerar que só é real aquilo que está presente fisicamente no momento e achar que tudo o que está no passado ou no futuro são apenas idéias, porque, na verdade, esse seu passado, essa sua história que foi se constituindo ao longo do tempo é a sua identidade, não existe outra. Então, diz ele, que já em vida, antes da morte, nós estamos passando constantemente uma transmutação da matéria em espírito. Isso que nós chamamos a nossa personalidade, o nosso eu, a nossa história, a nossa biografia, aquilo que mais nos caracteriza existe na memória, mas isto é exatamente o que nós somos. A figura presente é apenas uma impressão momentânea, ela passará daqui a pouco. Então curioso que aí existe uma certa inversão do senso de realidade, na medida em que você considera que tudo que está na memória ou que está na conjecturação do futuro são apenas pensamentos e não têm existência alguma e que só a presença física tem existência, você esquece que você só chega a essa presença física através de uma percepção instantânea que está se desfazendo a cada momento, quer dizer, não há percepção que dure.
A descontinuidade é uma condição indispensável de qualquer percepção. Quando você está olhando as coisas, você não pisca? Se você pára de piscar, daqui a pouco você não enxerga mais nada. Da mesma maneira com um som que soa continuamente no seu ouvido, você deixar de ouvir. Para que ele seja ouvido, ele tem de ter a interrupção. Então isto quer dizer que o mundo físico, todo ele, chega a nós através dessas intermitências, dessas percepções picotadas que não têm por si mesmo nenhuma unidade nem continuidade, ao passo que aquilo que em nós é estável e que manifesta e que contém o nosso verdadeiro ser é precisamente o que está na memória. Então neste sentido, a memória é o ser espiritual no qual a nossa existência material foi se transformando ao longo do tempo, ou seja, usando as substâncias fornecidas pelo mundo material, pelos demais obstáculos, o seu eu, a sua pessoa foi adquirindo esta figura que é de fato a sua única realidade. Esta experiência é que é fundamental, e você centrar nela a imagem, o conceito que você tem de si mesmo, em vez de centrar em outras características como a personalidade social, a figura física etc., é isto que ele chama a conversão.
E ele diz que, é claro, não basta você descobrir o espírito, é preciso você permanecer nele. Mas o que é permanecer nele? Não é contemplá-lo estaticamente e também não é desfrutar dele contemplativamente. Permanecer nele é colocá-lo em ação e colocar você inteiro nessa ação. Ou seja, aquilo que você quer ser, que nós podemos chamar de o ideal do eu --- chame como quiser ---, [0:10] é o primeiro produto do seu espírito, quer dizer, essas opções fundamentais que você fez, e, o esforço para tornar-se aquilo que você quer ser é a sua biografia. E o resultado estabilizado na memória é o que você é presentemente. É claro que o tempo todo nós recebemos de fora e de dentro impressões e informações que não têm absolutamente nada a ver com isso e que de certa maneira nos dispersa, faz-nos prestar atenção em outras coisas e perder o fio da meada. Mas este fio da meada é sempre possível ser recuperado: basta você voltar a pensar nas mesmas coisas e instalar novamente o espírito e a ação consciente em você. Ação inconsciente está aí dentro, não pára nunca, mas a consciência não é exatamente a mesma que o espírito. O espírito é liberdade e criatividade por sua própria natureza, ele é isso e nada mais, ao passo que a consciência pode estar centrada nisso e em alguma outra coisa.
Agora, vocês imaginem o seguinte: nós temos aí já dois mil e doze anos de história do Cristianismo. Neste ínterim, o Cristianismo se espalhou pelo mundo e ele criou leis, instituições, Estados, obras de arte, civilizações inteiras etc., e nós recebemos o impacto do Cristianismo por esses elementos que nos vêm totalmente de fora. Por exemplo, os resíduos da moral cristã impregnados na sociedade como valores e critérios de conduta, e que até chegam a nós sem ter a sua fonte religiosa carimbada na testa para que nós a identifiquemos, mas de qualquer modo eles estão aí. Ora, isto quer dizer de cara que um negócio chamado religião não garante de maneira alguma a conversão da qual ele está falando e que, ao contrário, o indivíduo pode passar uma vida inteira "praticando" a sua religião sem jamais ter percebido que é do espírito que nós estamos falando, e do espírito dele.
Por exemplo, quando você fala dos seus pecados, geralmente você fala dos seus pecados materiais. Mas não pode haver nenhum pecado material se não houve um pecado cometido pelo espírito antes, é absolutamente impossível, porque o espírito, diz ele, é a fonte de toda a criação e de toda a ação, ele é a fonte das fontes, ele é a fonte e o foco de tudo, tudo começa ali. Às vezes o que a pessoa está confessando não são exatamente os seus pecados, mas apenas a casca dos seus pecados, a forma exterior que eles assumiram. E ele pode estar totalmente inconsciente de que houve um pecado interior muito mais sério que, na verdade, é a fonte de todos esses. Neste caso, a própria atenção que o indivíduo presta à moral religiosa o desvia do seu espírito e o aliena mais ainda. Nós podemos dizer que isso hoje em dia é a regra geral, porque, você veja, a parte ativa e criadora e interior do ser humano é muito difícil de você apreender, é mais fácil você apreendê-la numa outra pessoa do que em você mesmo. Por quê? No momento em que ela está agindo, você pode estar prestando atenção em outra coisa, e no momento em que o espírito está criando a sua figura, você está pensando na figura e não no espírito, então você não está se percebendo como o verdadeiro agente criador. E este é que o ponto: você se perceber não como uma figura estável, não como um personagem, mas como o centro e agente criador de toda a sua vida.
É difícil nós nos enxergarmos assim, por quê? Porque os obstáculos externos são tão imensos e a presença do mundo social e do mundo físico é uma coisa tão gigantesca em torno de nós que parece que o espírito desaparece no meio disso. Quer dizer, você se enxerga mais como um efeito passivo das suas sensações, dos estímulos recebidos de fora, das pressões do ambiente etc. do que como um sujeito criador. Mas é evidente que isto é uma ilusão porque se você não fosse o agente criador, você nem perceberia nada disso, como um cachorro não percebe nada disso. O simples fato de você ser sensível a esses obstáculos externos mostra que existe alguma coisa por baixo deles. E essa experiência do seu poder criador é uma coisa, na verdade, muito simples. O Louis Lavelle dá o exemplo: quando você mexe o dedo mínimo, você está fazendo alguma coisa. Quer dizer, você não existe como mero observador, como mero sujeito cognoscente ou como personagem pronto em nenhum momento da sua vida, você é sempre o agente criador, você está sempre agindo. E está agindo onde? Dentro de você mesmo, mas numa esfera que transcende o espírito, que o espírito está tentando moldar o resto da pessoa --- então não é uma ação totalmente imanente, é uma ação na qual o espírito já se transcende e toca algo que não é mais ele ---, ou então você está agindo no mundo exterior, no espaço e no tempo. E nós, de fato, estamos agindo neste sentido o tempo todo.
O famoso ergo cartesiano, que só tem certeza de si mesmo enquanto cognoscente, realmente não existe, porque ele não se conheceria se não estivesse fazendo nada. O simples fato de ele pensar isso, como diz o Louis Lavelle no Manual de Metodologia, a reflexão muda a consciência no instante mesmo em que está pensando sobre ela, quer dizer, se você está pensando sobre a consciência, ela já não é mais o que era antes, ela já tem um elemento a mais, ela já tem como se fosse uma metalinguagem que a modifica. Então nós perguntamos assim: o eu cartesiano que conhecia o mundo e que sabia que conhecia, no instante em que ele pronuncia o juízo "eu penso, logo existo", ele já não é o mesmo, porque a sua consciência de saber já está intensificada e adquiriu como que uma segunda superfície, um novo espelho no qual ela se enxerga, e este espelho se incorpora a ela. Então entra aquela famosa seqüência que falava o padre Ladusãns: "Se eu sei, eu sei que eu; e se eu sei que sei, eu sei que sei que sei; e se eu sei que sei que sei, eu sei que sei que sei que sei e que sei" e assim por diante. Quer dizer, existe esta intensificação.
Outra coisa: toda a tradição cristã insiste nessa coisa de que Deus está no interior do homem ao mesmo tempo em que transcende o homem infinitamente. Isto quer dizer que sem esta conversão espiritual, sem você descobrir esse fundamento divino dentro de você mesmo, você não vai captar nada de um Deus que está fora, você vai vê-lo de acordo com a estrutura do mundo físico, como se fosse uma estrutura hierárquica, como se fosse um governo. E existe realmente esta imagem do governo divino do mundo. Mas é uma imagem, é uma metáfora, o governo divino do mundo não é um governo de maneira alguma. Em primeiro lugar, o governo não inventa a nação que ele governa, ele não cria a nação: existe a nação primeiro e um governo depois. E no caso divino é o contrário: Deus preexistia à criação. Então isto quer dizer que de cara Ele tem sobre o mundo criado um poder infinitamente superior a de que qualquer governo que você possa imaginar. Mas pergunto eu: existe alguém que governa o mundo sem tê-lo criado? Existe, chama-se Satanás. Não é o príncipe deste mundo? Ele não cria o mundo, mas ele manda, ele governa. Então quando você se apega muito à imagem do governo divino do mundo, você está correndo sério risco de estar se dirigindo a Satanás quando você pensa que está falando com Deus. O remédio para isso é justamente a conversão de que fala o Lavelle, ou seja, quando você está falando tudo desde o ponto de vista da sua interioridade, tomada como espírito criador.
Ora, se você não se entende como espírito criador, o que você vai saber a respeito dos seus pecados? Os pecados vão adquirir para você uma dimensão que eles jamais tiveram, eles vão ocupar o cenário inteiro porque praticamente só tem pecados. [0:20] Mas para poder ter um pecado, é preciso ser um espírito criador primeiro, porque quem não é um espírito criador não comete pecados. Um cachorro, uma tartaruga não comete pecado por quê? Porque não é um espírito criador, ele não tem a liberdade. Quando as pessoas pensam na liberdade... Nós escutamos muitos doutrinários cristãos católicos e protestantes falando disto: o ser humano é livre e, portanto, ele tem a responsabilidade. Ele está entendendo a coisa no sentido jurídico. Ou seja, você não está coagido a fazer certas coisas, você fez porque quis --- como dizia o Jânio Quadros: "Fi-lo porque qui-lo". Mas será esta a liberdade da qual ele está falando? Se fosse só isto, é uma liberdade que é automaticamente uma responsabilidade e, portanto, uma culpabilidade. É somente assim que se entende a responsabilidade, geralmente. Mas, este conceito não faz o menor sentido enquanto o sujeito não se apreendeu como centro criador. Não só centro que faz as escolhas, mas o centro que cria livremente alguma coisa, ele se cria a si mesmo livremente.
Agora, quantas vezes vocês ouviram algum padre ou pregador explicar isso para vocês? Nunca. Quando eles falam da liberdade, eles estão falando da liberdade espiritual no sentido jurídico apenas, não no sentido ontológico. A liberdade, ou ela é um poder, ou ela não é nada. Isto vale até para a teoria política, eu já expliquei em artigos sobre isso, claro, sem mencionar esse lado ontológico da coisa. A noção da liberdade não pode ser um princípio porque ela deriva de outro princípio mais fundamental que é o poder. O que é a liberdade sem o poder? Não é nada. E o que é o poder? Quando nós falamos a palavra poder, é um substantivo, mas, em português, nós temos essa felicidade de que o substantivo poder também é um verbo, então o poder é poder fazer alguma coisa. Se você não pode fazer nada, você não tem poder nenhum.
O espírito é um poder criador, o espírito que você tem, o espírito que você é. Esse é um poder criador: ele pode fazer suas escolhas livremente, mas não só no sentido da liberdade jurídica de que você é responsável pelos seus atos ou é culpado pelos seus atos, não. O negócio de ser responsável ou culpado vem muito depois. Para chegar a isso, é necessário que antes você tenha o poder e que você sinta este poder. Se você não se sente realmente como o sujeito criador, eu posso dizer: na verdade, você está inconsciente de todos os seus pecados. Você pode saber a figura exterior deles e, até para você se confessar, você vai ter de se basear em analogias com a conduta de outras pessoas: dizem que não é para fazer tal coisa, e eu fiz. Mas eu digo: que compreensão você está tendo da raiz espiritual do que você fez? Você não tem compreensão nenhuma, então você está como um bebê. Neste sentido, o pessoal confessa pecados sobre os quais elas não têm responsabilidade alguma, cometeram o negócio totalmente às cegas, não estão sabendo de coisa nenhuma, então onde vai faltar precisamente o elemento da liberdade. Quer dizer, você não cometeu aqueles pecados num estado de liberdade consciente: você continuava sendo livre, mas você não sabia. A verdadeira questão, o centro não só da filosofia, como principalmente da vida moral e da vida religiosa, é o sujeito se apreender como espírito. E na hora em que ele se apreende como espírito, ele se percebe como sujeito criador da sua própria vida, e só aí é que ele percebe quais são os limites reais dessa autocriação. Por exemplo, existem condições externas que dificultam tremendamente esta auto-realização, dificultam ou a impedem ou a sufocam por completo, como também existem limitações internas de origem hereditária, etc. Quer dizer, tudo isso conspira contra o espírito, mas ao mesmo tempo lhe entrega os materiais com os quais ele vai adquirir uma figura real no mundo do espaço-tempo, uma figura histórica, por assim dizer.
Vamos supor que você vai rezar o Pai-Nosso e você fala "Pai Nosso, que estais no céu". Deus é Pai do que exatamente? Você pode dizer, do ponto de vista da física aristotélica, que Ele é a Causa Primeira da qual emergiu toda a natureza física e, portanto, o seu corpo também. Mas, aí você está entendendo Deus apenas como demiurgo, ou seja, criador e regente do mundo físico. Mas Deus é só isso? Se Deus fosse apenas criador e regente do mundo físico, Ele seria criador e regente de um mundo insubstantivo que consiste apenas de sinais intermitentes, Ele seria o senhor de uma ilusão. Então é completamente errado que você conceba Deus nesse sentido. Deus é o Pai do seu espírito, é aquele fator misterioso, inapreensível, do qual emerge a sua liberdade. A consciência disto modifica imediatamente toda a sua perspectiva moral e religiosa. Então daí, às vezes pela primeira vez, você vê como Eric Voegelin, que às portas da morte disse: "Eu acho que eu compreendi o Cristianismo". Não precisamos chegar aos 80 anos, como Eric Voegelin, para dizer isso, nós podemos tentar algo neste sentido desde já. Isto significa que cada uma das palavras da sua prece mudará de sentido porque começará a ter o sentido espiritual.
O que é, por exemplo, "o pão nosso de cada dia"? É aquilo que garante a continuidade da sua liberdade criadora. Se não é isto que você percebe na hora em que está falando as palavras da prece, então você não está falando nada, está falando de outra coisa. Não estou falando isso do ponto de vista canônico ou religioso para saber se a sua prece vale ou não vale, eu não estou interessado absolutamente nisso, eu não entendo coisa nenhuma de direito canônico, eu não entendo coisa nenhuma de teologia, eu estou explicando apenas as coisas tais como o meu exercício da razão natural permite entendê-las. Mas tem coisas que a razão natural alcança e que, podemos dizer, nem o próprio Deus pode revogar. Santo Tomás de Aquino dizia: "Deus não pode revogar a lógica de Aristóteles porque seria autocontraditório". Quando você percebe uma coisa que é uma necessidade universal absoluta, você pode ter certeza que não há teologia, não há sentença papal que possa modificar isso aí, e realmente não modifica.
Esta conversão de que fala o Louis Lavelle não é a conversão no sentido religioso usual: o sujeito era um pinguço, parou de beber e começou ir à igreja e dizer: "Eu me converti"; o outro vivia nos puteiros, largou isto, casou, agora leva uma vida decente de pai de família e diz: "Eu me converti". Não é disto que nós estamos falando. Essas coisas podem acontecer também, mas elas são apenas a casca, a periferia da vida religiosa. E, quando elas adquirem o primado --- isso quando não ocupam o espaço inteiro ---, elas são uma inversão da vida moral e religiosa, porque passam a ser a negação do espírito e viram aquilo que, o Dalai Lama usava a expressão, o materialismo espiritual. Quer dizer, o neguinho está crente que agora ele é um religioso, que ele se converteu, mas ele está com os pés fincados no materialismo. Nós aqui, neste curso, pouco nos interessamos pela conduta moral de quem quer que seja. Se você é ladrão, proxeneta, cocainômano, bandido etc., para nós não tem a menor importância, eu não quero corrigir a sua conduta. Mas se for possível corrigir a sua inteligência, isso eu farei porque é justamente disto que se trata aqui, ou seja, facilitar para que as pessoas vejam as coisas como elas realmente são. E quando Louis Lavelle explica essas coisas, é impossível você dizer que não é assim, porque o seu testemunho confirma imediatamente que é assim.
[0:30] Porém, no instante em que se opera essa conversão, você descobre muitas outras coisas. Você descobre, primeiro, que esse espírito não é um eu isolado e solipsista de que falava Descartes, porque este eu só existe como potência de auto-realização no espaço e no tempo. Portanto, não existe um eu isolado, pendurado no ar, que pode até colocar em dúvida a existência do mundo, não: a existência do mundo está dada na própria constituição do espírito. Ele não é uma fumacinha, ele não é um negócio imaterial que paira no ar, não: ele é uma potência de realização no espaço e no tempo, portanto no mundo. Isto quer dizer que a existência do mundo está dada nele de modo intrínseco. E isto é uma das grandes descobertas de Louis Lavelle, que está numa linha que foi inaugurada, dezesseis séculos antes, por Santo Agostinho. Ele mais ou mais percebeu que a existência do mundo real está dada na própria constituição do eu consciente; não é o eu consciente que existe independente do mundo, fora do mundo, e que pode até criar uma prova de que o mundo existe, ele mesmo é prova.
E note bem que Descartes faz aquele truque: ele descobre o primado do eu, e daí ele não sabe como sair de dentro do eu, o que ele faz? Ele apela para Deus. Quando eu leio essa coisa do Descartes, eu lembro do pedreiro que trabalhou na minha casa. Tinha um corredor do lado, eu pedi para ele montar um quarto ali, e ele começou a colocar tijolo, tijolo, tijolo. Quando chegou no fim da tarde, ouve-se seu grito: "Socorro!". Ele tinha se murado a si mesmo ali, nós tivemos de tirá-lo com uma corda. É o eu solipsista de Descartes: constrói aquele negócio todo, e "agora, como é que eu saio daqui? Socorro, Deus!" Então é claro que tudo isso é caricatural, é o aspecto cômico de uma filosofia espiritual incipiente que Descartes estava esboçando, mas não conseguiu andar muito longe.
Mas quando Louis Lavelle nos mostra que o espírito é, sobretudo, essa potência de auto-realização no espaço e no tempo, nós entendemos que esta separação do interior e do exterior, na verdade, não existe porque este exterior já está dado como uma das condições da própria existência da interioridade. Essa é a grande novidade da filosofia de Louis Lavelle, que ele trabalha dentro da linha tradicional do subjetivismo francês, que começa com Descartes, Pascal, Montaigne, Fénelon e mais esse e mais aquele e que vai culminar no idealismo do começo do século XX, idealismo ao qual, no entanto, o Louis Lavelle se opõe. Quer dizer, ele usa a mesma via subjetivista para desmantelar o idealismo e instaurar uma espécie de realismo filosófico radical, muito mais radical, na verdade, do que o de Santo Tomás de Aquino. Ele não apenas está afirmando a existência objetiva do mundo real e a nossa possibilidade de conhecê-lo, mas ele está dizendo que isso é, por assim dizer, o próprio eu cartesiano, sem que o eu cartesiano tivesse se dado conta disto.
É por isso que estudar a filosofia de Louis Lavelle, em qualquer dos seus pontos --- mesmo sem você ter, como nós aqui não temos, um intuito de mostrar a estrutura geral da sua filosofia ou a ordem da sua constituição --- sempre requer do estudante algo mais do que o tipo de aplicação que se requer para estudar filosofia analítica ou marxismo ou até o idealismo kantiano. Ele exige realmente uma conversão, quer dizer, um reconhecimento, um testemunho imediato da realidade daquilo que você está lendo.
Essa filosofia nasceu em circunstâncias muito perigosas e deprimentes das quais nasceram muitas filosofias. Trata-se da I Guerra Mundial, que destruiu todo aquele senso de equilíbrio da civilização européia e colocou os indivíduos diante de uma dose de violência e crueldade que antes era absolutamente inimaginável: ali morreram vinte milhões de pessoas, isto nunca tinha acontecido antes. E houve vários filósofos, como Franz Rosenzweig, na Alemanha, ou na própria França, o Gabriel Marcel, Karl Jaspers e tantos outros, que notaram que a filosofia que eles estavam aprendendo nas faculdades não tinha a menor resposta para aquilo e não tinha nem como abordar aquelas coisas, e que era preciso começar desde uma base mais real e mais imediata. E esta base real e imediata é precisamente a experiência do espírito. Até aí, isto é comum a todos esses filósofos, porque depois cada um toma uma direção diferente. O Franz Rosenzweig era um ateu, volta ao judaísmo da sua infância e cria a filosofia do judaísmo que está no livro A Estrela da Redenção, que é uma maravilha. O Gabriel Marcel desenvolve então uma espécie de filosofia autobiográfica, que é assistemática, que é interessante sob muitos aspectos, mas sem esta consistência profunda do Louis Lavelle.
E o Lavelle o que faz? Ele faz tudo de novo, tudo a partir deste fundamento da experiência do espírito que é, segundo ele, já imediatamente a experiência do ser. Isto quer dizer que todo o problema gnosiológico inaugurado por Kant de que antes de conhecer qualquer coisa, você tem de estudar o seu aparato cognitivo, o Louis Lavelle demonstra que não é possível estudar o aparato cognitivo sem ao mesmo tempo já estar ali embutido o conhecimento do ser. Então não há essa separação de momentos entre a gnosiologia e a metafísica, ou ontologia, não: a gnosiologia já é imediatamente metafísica. E por isso mesmo o primeiro livro, no qual ele expõe o sistema, chama-se De L'être (Do Ser). E o segundo chama-se De L'acte (Do Ato) para mostrar que você está conhecendo tudo isso não como coisa, não como objeto, mas como participação num ato. O que é o nosso espírito? É a participação no ato do ser. Quer dizer, o que nós conhecemos do mundo exterior? Nós conhecemos coisas. Mas, nós sabemos que essas coisas não têm em si mesmas o fundamento da sua existência, por baixo delas deve existir um ato permanente, ou seja, há algo que conserva o ser no estado de ser senão teria o nada. A famosa pergunta do Leibniz: "Por que existe o ser e não antes o nada?" Resposta: porque o ser é ato, ele não é coisas, ele não é entes; ele é ato, portanto ele é poder. A experiência do espírito, a conversão do espírito é a tomada de consciência da nossa participação num poder, não é a tomada de consciência de uma coisa.
Nós nos acostumamos a tomar a palavra "ser" no sentido puramente estático: o ser é aquilo que é. Eu digo: mas para ser, é preciso fazer alguma coisa. Aquilo que simplesmente é ou está aí não pode ser o verdadeiro ser do qual nós falamos, porque tudo o que está aí é evidentemente coisas que estão passando e estão adquirindo constantemente novas formas e às vezes estão se desfazendo. Eu digo: mas o que sustenta tudo isso? Você pode imaginar: o que sustenta tudo isso é Deus. Mas como é que você entende Deus? Você entende Deus como um ente que está colocado num outro plano invisível e que está governando essa coisa toda. Totalmente errado: Deus não é um ente, Deus é ato, Deus é um poder, não é uma coisa, não é um objeto, não é um ente. Então a tomada de consciência do espírito é imediatamente a tomada de consciência não de um objeto que nós somos, não de um ser, de um ente que nós somos, mas de um poder do qual participamos, não é de um poder que está nos afetando. Ele nos afeta, é claro, mas nós participamos dele porque nós tomamos consciência de nós mesmos como agentes criadores que fazem as suas escolhas e lutam para moldar o seu destino. Esta nossa luta para ser alguma coisa já é a nossa participação no ser. E é por isso que ele diz que a experiência do ser é a mais imediata e inegável das experiências, [0:40] porque simplesmente tomar consciência de mim mesmo já é imediatamente tomar consciência da minha participação no ser, é tomar consciência, portanto, do ser. Veja que isso resolve dilemas filosóficos que duraram séculos, e resolve com um estalar de dedos.
Aqui um aluno escreve assim: "Aceitei Jesus, agora eu tenho uma casa e três Mercedes zero Km". Não é uma maravilha? Isto quer dizer que a tal teologia da prosperidade é só o último estágio de uma degradação que começa no instante em que o indivíduo ignora o espírito, ignora que ele próprio é espírito e ele fala a Deus como se fosse apenas o criador e legislador do universo físico e social no qual ele está. É claro que a mudança do eixo da atenção desde este mundo físico para o espírito, primeiro lugar, é um alívio tremendo, é uma libertação. Quer dizer que toda a sua perspectiva moral sai dessa relação, por assim dizer, estática entre o pecador e a lei e coloca você instantaneamente no reino da liberdade criadora. Se você procurar no Evangelho, você verá que tudo isso já está anunciado lá, só que está anunciado daquela maneira enormemente compacta, se você pegar as palavras de Jesus no Evangelho não dá dezesseis páginas. Às vezes demora um pouco para entender algumas coisas. No caso, levou vinte séculos, mas acabamos entendendo. Isto não quer dizer que ninguém soubesse isso antes do Lavelle. Eu digo: sabia, mas não disse. Você pode observar que toda essa dialética do espírito do ser está presente, por exemplo, na vida de todos os santos, evidentemente, mas só que está presente como biografia, não como explicação. Sem contar que o uso abundante de metáforas nessa linguagem religiosa às vezes mais confundem as pessoas do que ajuda.
Eu queria ler aqui primeiro este texto "O fato primitivo" --- nós não lemos este texto, ele ficou para hoje ler e comentar brevemente ---, que foi tirado do livro O Eu e seu Destino. Então diz ele:
"Toda a nossa filosofia deve necessariamente depender, parece, da maneira pela qual apreendemos o 'fato primitivo', (...)"
Fato primitivo é aquilo que Aristóteles chamaria "causa primeira de todas as coisas" e que Ortega Y Gasset chama "realidade radical". Cada um dá um nome.
"(...) isto é, da maneira pela qual entramos em contato, ao mesmo tempo, conosco mesmos e com o universo no qual somos chamados a viver. Já para a experiência popular o "fato primitivo" é a descoberta da existência solidária do universo e do eu. (...)"
Note bem: isto que para os filósofos foi um problema enorme, quer dizer, as relações entre a consciência e o universo, ele diz que isso aí já está resolvido na consciência popular, qualquer um sabe disso. Às vezes só os filósofos não sabem, mas qualquer um sabe que é assim.
Ele diz:
"(...) Faz-se muito barulho hoje em dia, na Alemanha, em torno de uma filosofia que nos propõe como objeto essencial da nossa meditação a nossa própria presença no mundo; (...)"
Referência ao Heidegger evidentemente.
"(...) há nisso, sem dúvida, uma reação salutar contra uma certa forma de idealismo que pensava poder afirmar o eu sem o mundo (...)"
Na verdade, todo idealismo consiste nisto. Fitche dizia: "O eu é tudo, o mundo é só uma hipótese". Descartes não chega a dizer isto, mas ele entende que o eu considerado apenas como sujeito do conhecimento tem um primado cognitivo sobre o mundo: nós conhecemos melhor o eu da nossa consciência do que o mundo.
"(...) idealismo que pensava poder afirmar o eu sem o mundo e mostrar como o eu bastava para construí-lo. (...)"
Quando você vai ver, no Kant, por exemplo: todo o universo existente é uma construção tirada do quê? Das formas a priori do nosso entendimento e da nossa percepção. Ou seja, ele dizia que tudo o que nós recebemos do mundo exterior são estímulos soltos, são fragmentos, e a forma de universo é dada por nós, é uma projeção externa das estruturas da nossa cognição, por exemplo, o espaço e o tempo. O espaço e o tempo, diz ele, não existem exteriormente, só existem como formas da minha percepção. Então aqueles elementos anárquicos e caóticos que me chegam do mundo eu estruturo num treco chamado espaço-tempo que, no fundo, é a minha própria maneira de entender as coisas. Isto é a mesma coisa que dizer que o universo inteiro é uma construção do eu. A única diferença, no caso do Kant, é que ele dizia que nós temos a certeza de que estamos no mesmo mundo porque todos os seres humanos constroem o mundo igualzinho. Eu digo: isso aí me parece ser muito mais difícil do que você admitir a hipótese contrária de que o espaço e o tempo realmente existem e de que nós estamos dentro dele.
"(...) Mas há também um retorno a uma visão imediata do senso comum. Só que a reflexão filosófica tem por objeto buscar como se estabelece entre a nossa existência e a do Toda essa ligação tão estreita que nos permite inscrever-nos nele e participar do seu destino. Definir o "fato primitivo" é definir o ponto de inserção da nossa vida pessoal no interior do ser universal."
Então é esta inserção que é o fato primitivo. O fato primitivo não é o eu nem o mundo; e também não é a simples relação entre dois termos que já estão dados de antemão separadamente: de um lado você tem o eu, do outro lado você tem o mundo, e daí você tem uma relação. Não, a inserção é o fato primitivo, a distinção de eu e de mundo é secundária. Então, por assim dizer, estar no mundo é a realidade primitiva. Agora, distinguir o que está "dentro de mim" e o que está no mundo é outra coisa, é uma operação posterior. É isso que ele diz no livro A Presença Total, que aquela experiência fundamental que está dada por baixo e antes de todas as coisas é justamente esta presença. Quer dizer, não é que existe um eu que está presente, não: nós que somos esta presença, não somos outra coisa. E evidentemente todos os problemas colocados pela gnosiologia idealista só podem existir depois que você distinguiu entre eu e mundo, e não antes. Mas para distinguir é necessário que os dois termos tenham lhe sido dados anteriormente na sua interpenetração, ou inserção, como diz o Louis Lavelle.
"Daí que o fato primitivo não possa ser senão aquela iniciativa interior pela qual o ser consciente constitui ele mesmo, a cada instante, a sua própria realidade. (...)"
Esta frase poderia ser entendida no sentido de que o eu se cria a si mesmo livremente e que o mundo não tem nada a ver com isso, por assim dizer --- então pode ser interpretado num sentido realista. Mas obviamente não é este o sentido que ele está dado, por quê? Quando ele diz que o eu constrói a sua própria realidade, o que é construir a sua própria realidade? É construí-la no mundo, é exteriorizar-se como biografia, como existência humana etc. Portanto, não se trata de um eu soberano que se constrói a si mesmo no sentido do Fitche --- só existe o eu ---, mas, ao contrário: o eu é a participação no mundo. E mais profundamente ainda, ele não é só participação no mundo, como o mundo dos objetos ou mundo externo, ele é a participação no ato do ser, quer dizer, é a participação em algo que transcende infinitamente o próprio mundo, que é o fundamento de possibilidade do mundo. É daí que sairá aquela famosa constatação de que Deus me é mais interior do que eu mesmo.
"(...) O espetáculo cambiante do mundo não cessa de trazer diante de nós um fluxo ininterrupto de imagens; minha consciência mesma não me oferece senão uma sucessão movente de estados que se atraem e se expulsam uns aos outros indefinidamente; mas não posso me situar a mim mesmo em parte alguma desse duplo desfile. (...)"
[0: 50] Ou seja, eu não posso me apreender a mim mesmo como uma dessas formas que desfilam diante de mim, as coisas que eu vejo no mundo. Se o indivíduo quer se ver "desde fora", aí é que ele cai no mais profundo engano. E é isso que ele diz "o erro de Narciso". Quando Narciso olha na água, vê a sua imagem e acredita que aquela é a sua realidade, mas na hora em que toca a água, a imagem se desfaz. Então esta figura externa que você imagina poder captar de si mesmo e que elevaria o nível de realismo no conhecimento de si mesmo, ela é a mais profunda ilusão: nós não somos esta imagem, nem aquela que nós projetamos para os outros e nem aquela que nós podemos imaginariamente captar quando nos colocamos numa perspectiva de fora, nos olhamos a nós mesmos de fora. Nós somos o poder criador que está por baixo disso e, portanto, nós não podemos nos captar como objetos e como imagens, nós só podemos nos captar como espírito, como poder criador. Poder criador, evidentemente, limitado pelas condições nas quais ele se exerce; condições, porém, que, em vez de apenas o limitar, lhe dão precisamente os materiais com que ele vai se inserir no mundo. Note bem: estar inserido no ser é uma coisa e estar inserido no mundo é outra. A experiência primitiva, na verdade, não é a da nossa inserção no mundo, mas da nossa inserção no ser. A inserção no mundo é um processo espaço-temporal.
"(...) mas não posso me situar a mim mesmo em parte alguma desse duplo desfile. (...)"
Ou seja, não posso me captar como uma das imagens.
"Pois não existo senão lá onde minha atividade se desperta, lá onde me torno presente por uma atenção e uma adesão viventes a todos os estados e a todos os objetos que podem me ser dados. (...)"
Ou seja, sem a minha atenção nada disso existiria evidentemente para mim, portanto, a própria presença desses estados depende de uma atividade criadora minha.
"(...) Se essa atividade diminui ou morre, então o espetáculo do mundo se aniquila e toda a minha vida interior naufraga no inconsciente. Mas essa atividade não cessa de se exercer e de se renovar; e é por ela que cada instante que nasce é, a meus olhos, o primeiro começo de mim mesmo e do mundo.
Pois, para que um fato desfrute do privilégio de ser o primeiro em relação a todos os outros, e para que ele possa se reencontrar no seio de cada um deles, é preciso que ele exprima, de algum modo, a raiz e a essência do nosso ser mesmo. (...)"
Ou seja, voltando atrás, o fato primitivo, o primeiro fato do qual nós tomamos consciência, é a essência mais profunda de tudo o que existe. Veja a que ponto isso contraria aquela idéia de que a essência das coisas só pode ser conhecida por um longo trabalho da inteligência. Eu falo: não, esta essência mais profunda que é o ser já é conhecida imediatamente, o que vem depois é a auto-realização do ser no mundo e, portanto, o conhecimento não do ser, mas o conhecimento do mundo externo, ou seja, das condições presentes que se opõem à minha auto-realização e ao mesmo tempo lhe servem de materiais. Isto é que requer tempo. Por quê? Porque isso só se realiza no tempo e no espaço, e isso, na verdade, é a realização do ser no tempo e no espaço. Sendo redundante: a nossa realização no tempo e no espaço requer o tempo e o espaço, mas o nosso conhecimento do fato primitivo não requer nada, ele já está dado no começo. E este fato primitivo o que é? É o ato do qual nós participamos; e o ato é aquilo que necessariamente está por baixo de tudo o que existe, de todas as coisas que existem. As coisas são apenas presenças, cristalizações ou às vezes, diz Lavelle, o cadáver do ato, quer dizer, aquilo que já está formado e já está se desfazendo.
"(...) Mas é preciso, sobretudo, que ele possa justificar sua prioridade ante todos os outros, isto é, que não somente ele se mostre capaz de engendrá-los, mas que ele, ainda, não possa ser engendrado por sua vez, e, por consequência, que ele se engendre a si mesmo. (...)"
O poder que está por baixo de todas as coisas, o poder que é a fonte geradora de todas as coisas, e o poder do qual eu participo: não é possível conceber nada que esteja para além dele. É possível conceber, sim, que ele tenha dimensões que você ainda não conhece, mas, que haja um outro algo por baixo dele, eu falo: o que pode estar por baixo do ato? O ato é a existência tomada na sua mais total plenitude, é o super existente, por assim dizer, então ele evidentemente se engendra a si mesmo.
Para você ver a que ponto o debate contemporâneo desceu de nível em relação ao que tinha alcançado isso aqui, em 1936. Você veja que, hoje em dia, você tem toda essa escola ateística --- Sr. Richard Dawkins, Daniel Dennett e outros --- que tentam discutir esta questão divina como se Deus fosse um ente supramundano que criou o mundo, um ente e não ato. Esse Deus do qual eles estão falando, que eles estão dizendo que não existe, este não existe mesmo, evidente. Seria um serzão colocado acima do mundo que está fazendo o mundo. Isso não faz o menor sentido. Pelo simples fato de você dizer que Deus é espírito, então essa discussão já mostrou que está totalmente deslocada: você quer dizer que não existe um ser acima do mundo, que criou o mundo. Eu falo: é claro que não existe. Deus não é um ser neste sentido, Ele é o ser no sentido forte do ato, e não o ser no sentido de um objeto ou de um indivíduo.
"(...) Nesse momento evidencia-se claramente que o fato primitivo não pode ser senão um ato que se cria no curso da sua realização mesma; tal é o ato do pensamento segundo Descartes e o ato do querer segundo Maine de Biran."
Que é outro filósofo da linha subjetivista, no século XIX.
Ou seja, o ponto de partida de tudo é tomar consciência da nossa participação no ato. E participamos no ato sendo, até certo ponto, o ato nós mesmos: o ato da nossa autocriação e da nossa auto-instauração no mundo, por assim dizer.
Porém, esta consciência tem outras características. Ela é auto-realização no mundo, mas, em que mundo? Em que consiste esse mundo? Esse mundo é a figura física do mundo, é no mundo físico que nós nos realizamos? Ele diz: é no espaço-tempo, certamente, mas não é só no mundo físico. O mundo físico é um dos obstáculos e meios de auto-realização. Mas, se nós tivéssemos nascidos sozinhos num deserto, a nossa auto-realização como história humana ou como biografia humana não faria o menor sentido. Ou seja, a auto-realização do espírito só é possível entre outros espíritos que estão fazendo a mesma coisa e só é possível graças à presença desses outros espíritos, para os quais e perante os quais nós nos realizamos. Portanto, o encontro das consciências, o encontro dos espíritos é o campo no qual se realiza o espírito.
Porém, o encontro se dá em dois níveis. Em primeiro lugar, você tem a simples presença física das pessoas. Mas, se elas fossem somente presenças físicas, como você poderia se realizar para elas e perante elas? Seria como você realizar uma bela biografia diante das árvores, das tartarugas, das pedras que não estariam captando nada e não estariam lendo nada no que você faz. Então a mera presença física das pessoas não é suficiente, é necessário que elas tenham uma interioridade espiritual desde a qual elas possam compreender o que você está fazendo. Isto significa que, conforme o meio em que você está, pode haver um número maior ou menor das pessoas capazes de apreender esse seu processo, [1:00] porque tem alguma consciência do processo delas. Se não tiver nenhuma, então é a mesma coisa que você estar entre árvores.
Agora, prestem atenção: isso aqui está num livro que foi publicado em 1936. E eu tenho aqui, eu consegui um exemplar da obra de Louis Lavelle --- não foi publicada, não é numa edição completa, uniforme, os livros estão separados até hoje. E tem alguns textos que não foram inseridos em livro nenhum. Por exemplo, existe um belo texto sobre a existência que foi publicado pela primeira vez, no Brasil, na revista Presença Filosófica, que era dirigida por um ex-aluno do Louis Lavelle, que foi o Tarcísio Padilha. E existem outros textos que estão espalhados. E um deles é a lição inaugural que ele deu no Collège de France, em 1941. E você vê: de repente está este indivíduo --- diz que era um homem grandão, enorme, que ocupava um grande espaço ---, está este homem enorme lá na cátedra do Collège de France falando para aqueles professores, para aquelas pessoas ilustres que são verdadeiras instituições na França, falando sobre a intimidade humana, e todos entendiam. Ou seja, aquilo que há de mais profundo e mais secreto no ser humano de repente era intercomunicado para alguns milhares de pessoas altamente intelectualizadas e capazes, e todos entendiam.
Vocês imaginam a distância que nós temos disso para a situação brasileira que nós vivemos hoje. Não existe uma única universidade no Brasil onde você possa explicar isso e ser compreendido. Se você reunir a congregação da USP, eles não sabem do que você está falando. Por exemplo, quando a É Realizações lançou o livro A Presença Total e o livro do Tarcísio Padilha, ela chamou duas pessoas para fazer a conferência: uma, o próprio Tarcísio Padilha --- nada mais justo desde que ele é, no Brasil, ou era na época, o maior conhecedor do Louis Lavelle (foi durante algum tempo, eu não sei se existe outro, deve haver porque ali no grupinho do Padre Ladusãns tinham pessoas estudando profundamente isso; eram brasileiros, saíram do Brasil, não sei onde estão, mas conhecem esse negócio profundamente, talvez melhor do que eu). E o segundo conferencista era o Alfredo Bosi. Eu digo: eu duvido que o Alfredo Bosi possa entender isso aqui. Por todo o conceito que ele tem, toda aquela influência marxista, aquela coisa toda, não é possível, é um mundo estranho a ele. Eu duvido que haja uma participação das consciências do Tarcísio Padilha e do Alfredo Bosi no nível em que seria requerido para verdadeiros estudiosos do Louis Lavelle.
Você veja: como era possível esse homem falar da coisa mais secreta e íntima para uma platéia tão grande e tão pública e ser compreendido por todos? Isto era possível porque toda a atmosfera cultural francesa permitia isso, era uma atmosfera de pessoas que estavam acostumadas a ler literatura do seu tempo --- não só literatura clássica, mas literatura do seu tempo --- onde está lá a experiência humana real, inclusive as experiências desde as mais sublimes até as mais degradantes, você tem desde a santidade até a putaria e o crime, está tudo na literatura francesa, tudo colocado com uma sinceridade e uma autenticidade enorme, que você vê em George Bernanos, você vê com François Charles Mauriac, você vê no André Gide, você em todos esses. Então era um ambiente cultural onde a realidade da interioridade humana no seio do ser e no seio da própria sociedade humana não era uma coisa estranha e difícil de apreender.
E o que nós temos de gerar no Brasil? Uma intelectualidade capaz de fazer isto, não só de falar da casca das coisas, não de falar também da casca desde uma casca. Porque se o sujeito fala apenas como professor universitário, exercendo a sua função burocrática, ele é uma casca, ele é um papel social que ele está representando, não é uma pessoa de carne e osso, não tem aquilo que dizia o Saul Bellow --- o prêmio Nobel de Literatura: tem os neguinhos que lidam com idéias e opiniões e tem os caras que lidam com as impressões autênticas. Nós precisamos de gente capaz de falar das impressões autênticas. Ou seja, são pessoas que pelo simples fato de estarem procurando a raiz da sua experiência efetiva, elas não podem estar falando desde um discurso padronizado, desde uma ideologia de grupo ou desde uma função social.
Agora, falando em função social, Louis Lavelle exerceu funções sociais importantes não só como professor, mas ele foi inspetor geral da educação, ele foi funcionário público durante algum tempo. E pergunto: o Louis Lavelle que está fazendo isso era diferente desse? Não, era o mesmo. O Louis Lavelle nunca pensou em nada que não fosse isso, e tudo ele pensou desde esse ponto de vista. Você vê que a biografia de Louis Lavelle é notadamente desprovida de fatos espetaculares. O Jean Mesnard que o conheceu bem disse que ele sempre dava a impressão de não estar ligando para nada em torno, ele só estava profundamente centrado naquele negócio do espírito, e tudo ele via desde muito dentro.
Outro camarada --- esqueci quem ---, alguém que o conheceu no campo de prisioneiro disse que ele ficou... Louis Lavelle, na I Guerra, foi dispensado por sorteio, daí se ofereceu para fazer um serviço qualquer lá, mas quando a guerra piorou, ele achou que tinha obrigação de ir para o front, ele abdicou da sua dispensa, foi para o front, tomou parte de várias batalhas, foi preso na Batalha de Verdun pelos alemães e ficou dois anos no campo de prisioneiros --- não era um campo de concentração tão terrível como viria a ser depois na II Guerra, mas era um campo de prisioneiros, não era nada confortável. E no campo de prisioneiros, ele deu vários cursos, sem ter livro para consultar, sem coisa nenhuma, deu um curso sobre Pascal; era uma espécie de animador espiritual. E o cara que o conheceu disse: "Eu vivi com ele lá dois anos, ele nunca deu a menor impressão de ser um prisioneiro, ele estava totalmente livre, ele se sentia livre o tempo todo". Livre por quê? Porque era a liberdade do espírito que determina o curso da sua biografia, usando as piores condições externas como material, e que obteve nisso uma concentração que hoje nós mal somos capazes de imaginar.
Quando eu vejo a minha biografia, eu vejo anos inteiros de dispersão, anos inteiros de entorpecimento do qual depois eu sai, voltei lá, recomecei. Mas, no meio brasileiro é impossível alcançar essa concentração por quê? Porque não há a reciprocidade das consciências. Se você não encontra as pessoas que estão conscientes desse seu processo interior para poder repercutir o seu, diz ele no livro O Erro de Narciso:
"Não devemos nos espantar de que o desejo mais profundo que governa a nossa conduta seja o de encontrar outros homens com os quais amamos viver ou, quando somos mais modestos e menos autoconfiantes, com os quais pelo menos suportamos viver. Pois bem sentimos que não há outro problema para o homem senão saber como ele poderá se entender com os outros homens. (...)"
Veja, este entender-se com outros homens é o curso da sua auto-realização.
"(...) E todos os infortúnios da vida vêm da impossibilidade em que estamos de chegar a isso.
Mesmo o mais discreto testemunho de uma separação entre um outro ser e eu (diria o Rodrigo Constantino que o certo é dizer "e mim", mas eu me recuso, porque é muito feio) basta para suspender todo os meus movimentos interiores, não somente aqueles que me dirigiam a ele, mas aqueles mesmos pelos quais na solidão o meu pensamento se abandonava ao seu próprio jogo. (...)"
Ou seja, se falta reciprocidade das consciências, até o seu jogo interior fica difícil, você o perde de vista. Então quando eu vejo a minha vida, eu vejo que ter sobrevivido espiritualmente no meio brasileiro, para mim foi um milagre, porque essa condição de reciprocidade eu tive às vezes durante [1:10] cinco minutos, e olhe lá. E naturalmente eu fui encontrar muito mais compreensão disso na Romênia, por exemplo, ou na França.
Você veja que no Brasil todas as atividades intelectuais são o exercício de funções profissionais apenas. Ontem mesmo eu estava abrindo na página do Banco Itaú para ver quanto estava a minha conta negativa, quanto era o meu saldo em vermelho, e imediatamente deparei com uma coisa assim: "Itaú Cultural". E do lado a figura de quem? Gilberto Gil. Então eu pensei assim: se o Gilberto Gil é cultura, a Maria da Conceição Tavares é beleza e eu provavelmente sou o Papa. Mas a cultura de fato no Brasil é isto, quer dizer, ou é show business, ou é esse burocratismo acadêmico imbecil no qual ninguém é obrigado e muito menos estimulado a ter qualquer contato com a sua realidade profunda. E se você não tem contato nem com a sua realidade profunda, que realidade externa você pode compreender? A capacidade que os brasileiros têm de errar, tem de passar longe da realidade, é uma coisa que cada vez mais me surpreende, é a oitava maravilha do mundo, porque você não lê nada, não ouve nada e praticamente nada que não esteja errado. Em tudo, tudo, tudo, se o fato está aqui, eles olham para lá.
Nesta mesma semana caiu na minha mão uma crônica do Demétrio Magnoli em que ele dizia: "Neste segundo mandato, o Obama tenderá a ir para uma política mais clintoniana e de centro". Eu disse: aqui qualquer criança de escola sabia que era exatamente o contrário, que ele no segundo mandato, agora ele não tem mais que manter as aparências, que ele radicalizar e botar para quebrar. Tanto que a primeira pessoa que ele tirou do corpo de ministros foi a própria Clinton, botando lá aquele maluco do John Kerry e assim por diante, convidando tudo quanto é comunista ou islamista radical para fazer parte do ministério dele. Quer dizer, aqui todo mundo sabia disso, a coisa se sente no ar. Agora, no Brasil, não, o sujeito não pensa desde as informações --- primeiro, porque ele não tem as informações ---, ele pensa desde o que ele imagina ou do que ele quer.
Existe muito no Brasil essa coisa de você dizer que uma coisa que você quer que aconteça já está acontecendo, porque você acha que se você convencer todo mundo que aquilo está acontecendo, vai acontecer mesmo. Ou seja, é a técnica da profecia auto-realizável, só que elas não se realizam. Só tem isto: profecias auto-realizáveis que jamais de realizam. Então as pessoas escrevem assim, é o mundo que elas gostariam que acontecesse, só que nunca acontece. Por exemplo, naquele tempo que o pessoal falava que o Lula mudou, eles sabiam que não tinha mudado, mas se nós falarmos que o cara mudou, talvez ele mude. Quer dizer, é um processo de pensamento mágico. Então é normal que ninguém acerte nada. E você percebe que essas pessoas realmente são só casca, são como se fossem bonecos de ventríloquo.
Nessas condições então a auto-realização espiritual é quase impossível. E quando hoje eu examino a minha vida, eu digo: o que eu estou sendo hoje é o que eu sempre quis ser, portanto, eu não posso me queixar de que eu fracassei ou de que perdi o caminho etc. Só que o seguinte: é o que eu quis ser, mas é 2% do que eu quis ser. Por quê? Esta intensidade de consciência espiritual só é possível na reciprocidade. Então aí você encontra uma dificuldade externa praticamente invencível. Porém, esta dificuldade fez com que o meu projeto interior tivesse de se modificar para poder usá-la. Então foi isso o que aconteceu na minha vida. Toda esta estupidez, esta brutalidade brasileira, esta baixeza brasileira e esta confusão brasileira, eu falo: eu tenho de usar isso mesmo como o meu material, é ali mesmo que eu tenho de fazer. Porque não adianta eu ficar sonhando que eu vou encontrar aqui companheiros de geração que tenham esse nível de compreensão. Encontrava até pessoas que tinham esse nível de compreensão, mas que tinham quarenta anos a mais do que eu. Então só tinha dois tipos de pessoas: aqueles que tinham quarenta a mais do que eu e tinham aqueles que tinham o potencial para chegar a isso dentro de apenas trinta ou quarenta anos, que eram os jovens trinta anos mais novos do que eu. Então eu falei: eu vou ter de usar essa mesma confusão e tirar daí os materiais, e foi mais ou menos isso o que eu fiz. É um negócio enormemente trabalhoso, porém foi desta operação que nasceu este curso. E é isto que me permite catar as pessoas no fundo desta miséria brasileira e puxá-las para cima da linha da água, de modo que elas enxerguem alguma coisa durante algum minuto. Este curso então nasceu das circunstâncias miseráveis em que se deu a minha própria auto-descoberta lavelliana --- isto há mais de quarenta anos.
Isto quer dizer que a circunstância ser hostil claro que aumenta a dificuldade, mas exige um certo arranjo. O arranjo não ficou bom como eu queria, mas alguma coisa ele existe. E se isto puder então inspirar vocês no sentido de vocês se tornarem aquilo que querem se tornar, remontando aqui ao exercício do necrológio que foi feito para isto. Naquele tempo eu não estava falando nada de Louis Lavelle, nem coisa nenhuma, mas o exercício do necrológio me foi inspirado mais de vinte anos atrás, em 89. Foi a partir de um pequeno trecho do Louis Lavelle que nós trabalhamos naquela época, onde ele falava de certos momentos onde o espírito se apreende na sua realidade efetiva e na sua plenitude e dizia que o negócio era você se manter naquele estado. E daí eu coloquei a questão: mas como se faz isso? É necessário inventar algum instrumento prático para fazer isso. Inventei vários instrumentos práticos, e estes instrumentos práticos são os que eu estou botando para funcionar aqui e, graças a Deus, estão funcionando.
Vamos fazer uma pausa, daqui a pouco nós voltamos.
Temos aqui algumas perguntas. Eu vou começar com a do William Alves Singh. Ele propõe aqui a idéia de um diário perene:
Aluno: (...) onde tem a EPS (emoção e percepção do ser), o ponto de intersecção, cristalização através da emoção, percepção do ser, o famoso solvet et coagula onde o nascer se cristaliza numa fração de segundos. Esse ponto de intersecção se refere àqueles momentos privilegiados de que fala Lavelle?
Olavo: É possível. Eu não sei se entendi direito a sua proposta do diário perene, mas ela parece muitíssimo interessante. Se você puder enviar mais detalhes. Ou talvez isso possa constituir um desses trabalhos que nós vamos propor aos alunos. Me mande mais alguns esclarecimentos mais breves desse empreendimento, e daí voltaremos ao assunto.
Aluno: Se os brasileiros não têm condição de entender o que nós falamos, qual é a utilidade de utilizarmos nosso tempo para propor algo diferente?
Olavo: Esta é uma pergunta inevitável. Mas, em primeiro lugar, na medida em que existe esse aprofundamento no espírito e na consciência de que espírito é participação, participação é participação no ato do ser, você está imediatamente em comunicação com o maior poder que existe e evidentemente as suas ações vão transcender infinitamente a esfera de influência que materialmente você pode ter. Eu mesmo tenho experiência nisso. Quer dizer que se um camarada sozinho, isolado, sem recurso, sem proteção, sem [1:20] conexão política pode fazer isso que eu estou fazendo e ter este feito monstro que eu estou tendo por tudo quanto é lado, o que não poderiam fazer mil ou duas mil pessoas? Conte com isso.
Você não esqueça que uma das especialidades de Deus é fazer da fraqueza a vitória. Ele sempre fez isso, e é por isso que as coisas mudam de rumo. Mas, nós nunca devemos perguntar qual será o resultado das nossas ações, porque o resultado depende de Deus e não de nós. Nós temos de fazer as coisas não porque elas vão dar certo, mas porque elas são certas. O resultado você deixa por conta de Deus. Se for para ter vitória, ótimo; e se for um fracasso, também é ótimo. O que importa é você fazer com que a sua vida tenha uma consistência real, mas a consistência real não é a aceitação social dela, é a realidade do seu arraigamento no ser, é você realmente ser alguma coisa, e não os outros testemunharem isso. Quer dizer, uma coisa é a necessidade da reciprocidade das consciências, outra coisa completamente diferente é a repercussão pública, mesmo porque as ações em profundidade evidentemente necessitam de muito tempo para render os seus frutos --- quanto mais profundo, mais tempo precisa. Então não se preocupe com isso, nada do que você fizer será jogado fora, absolutamente nada.
E quando as pessoas não nos compreendem, não adianta amaldiçoá-las, nem bater nelas, nem chamar todas de idiotas, embora muitas vezes seja merecido, mas faça alguma coisa para que elas se tornem mais inteligentes. Eu só costumo chamar de idiotas pessoas que não muito importantes. Veja, é a diferença de que S. Tomás de Aquino falava entre a ignorância e a nesciência. Nesciência é você não saber alguma coisa, por exemplo, você não sabe quantos cabelos tem na sua cabeça. Ignorância é você não saber algo que você tem obrigação de saber, por exemplo, um motorista de ônibus que não sabe dirigir. Eu vi isso no México, o cara quase nos jogou num precipício, eu quase bati nele: "Você tem a obrigação de saber isso, você que disse que sabia dirigir, não fui eu, não fui eu que nomeei você motorista". Ou todos esses palpiteiros que têm na nossa mídia que são pagos para dar opiniões sobre coisas que eles ignoram por completo. Então esses eu tenho um prazer enorme de chamar de idiota e de imbecil. Mas a pessoa que simplesmente não sabe as coisas, eu não tenho nada que xingá-la, eu tenho de tentar ensiná-la. Se ela quiser aprender, com toda a boa vontade eu vou tentar ensinar. Não devemos desprezar as pessoas que não nos entendem, porque afinal de contas às vezes eu mesmo não me entendo.
Aluno: Até onde eu entendi pela exposição da aula de hoje sobre a filosofia de Louis Lavelle, nossa biografia é o resultado de um jogo dialético, no qual se embatem as forças interiores espirituais que tendem a absorver e espiritualizar os elementos antagônicos que nos chegam de fora e as forças de dispersão, alienação e destruição. (...)
Olavo: Absolutamente perfeito. Só que essas mesmas forças de alienação e destruição podem também ser integradas. Às vezes isso é extraordinariamente difícil. Mas quanto mais difícil é, maior a concentração espiritual e maior a capacidade de absorção deste elemento antagônico.
Aluno: (...) No início da aula o senhor disse, se bem entendi, que para Lavelle o espírito reside ou consiste na memória, entendida como aquilo que conseguimos fazer nós mesmos a partir dos elementos opositivos contraditórios, que tocados pelo espírito são como que subtraídos da sua evanescência e fatalidade.(...)
Olavo: Não é que o espírito consista na memória. A pessoa realizada existe somente na memória, ela é obra do espírito, e o espírito existe anteriormente à memória e ele é uma condição para que exista a memória. A própria idéia de uma continuidade do nosso ser, a idéia de que nós somos alguma coisa, não pode de maneira alguma ser explicada apenas pelas funções cognitivas cerebrais, nada no cérebro nos permite isso. A noção da nossa continuidade e integridade está ligada realmente à existência --- eu já expliquei isso no curso da alma imortal.
Aluno: (...) Mas a memória não seria também caracterizada por uma fragmentariedade contraditória com o espírito?
Olavo: Perfeitamente. A memória como capacidade cognitiva, como faculdade cognitiva, é evidentemente falha, tem todas as falhas. Mas não é disso que ele está falando, ele está falando da memória como conteúdo efetivo dos atos realizados e recordados, como a sua história efetiva: ela só existe na memória. E ela por sua vez independe da exatidão ou confiabilidade da memória, é a sua vida efetiva. A sua recordação pode ser mais falha nesse ponto ou em outro, mas o fato é que você não tem outra identidade senão aquela que foi construída pelos seus atos e escolhas ao longo do tempo. E isto está aonde? Não está no espaço, isto está na memória e no tempo. Então é ali que nós efetivamente existimos. É por isso que ele diz no livro sobre os santos --- que ele escreve um livro sobre os santos --- que a figura dos santos que nós cultuamos consiste da sua biografia essencial, isto é, daquilo que o espírito criou, eliminado todo o resíduo de coisas insignificantes: é só disto que nós nos lembramos, e é isto o que eles realmente são, e é isto que é santo neles, e não o resto.
Aluno: Eu comecei o curso atrasado, estou na aula 52. Talvez esta questão já tenha sido respondida. O senhor disse que Deus é um poder, e não um ente. Qual é a diferença entre ser e ente? Não sendo Deus um ente, seria ainda um ser?
Olavo: Nós podemos usar esta palavra "o ente" para dizer as criaturas, aquilo que foi colocado na existência e ocupa um espaço dentro dela. E você pode dizer como "ser" a força geradora. Quer dizer, o ser é o gerador dos entes, é aquilo que dá o ser aos entes --- pode se usar neste sentido. Agora, em geral as duas palavras são usadas de maneira que se confundem: ser e ente são a mesma coisa. Essa distinção entre ser e ente pode ser adotada, e acho que deve ser adotada até. Mas como toda terminologia você não precisa se ater muito, porque, mesmo que você confunda as palavras, as pessoas sempre vão saber do que você está falando. Se você está falando do ser como o ato permanente, o ato perene, o ato eterno que gera tudo e que dá o ser aos entes, você pode dizer que isto é o ser; e quando você fala dos entes, você também pode chamar de seres. Ninguém vai se confundir por causa disso. É mais um confusão de palavras do que outra coisa.
Aluno: Parece-me interessante recordar o seu texto "Existência e possibilidades" escrito para a aula de 17 de abril de 2010, em que Deus é demonstrado como uma possibilidade de todas as possibilidades possíveis. E partindo deste texto, gostaria que corrigisse e comentasse o meu entendimento do pecado apresentado na aula de hoje. O pecado geral seria não as escolhas de atitudes moralmente erradas, mas a escolha de se tornar na eternidade uma forma deformada da possibilidade que Deus proporciona a cada um, pois a liberdade que Deus dá ao homem é de poder ser um S. Francisco, um S. Tomás de Aquino, um Padre Pio. E o pecado não seria o de cometer uma certa atitude, mas o de destruir definitivamente uma possibilidade inefável para criar algo horrível, como um Stalin: não uma pessoa que matou milhões, mas que criou a si mesmo como um democida para eternidade.
Olavo: Eu acho que você tem razão. Mas apenas a palavra "definitivamente" aqui eu acho um pouco exagerada, porque você nunca sabe aonde a deformação da sua personalidade poderá ser corrigida, poderá ser revogada ou terá se tornado uma espécie de destino consolidado. Nós não sabemos onde termina uma coisa e onde começa a outra. Mas, ele diz: "O pecado não seria cometer este ou aquele ato, mas destruir uma possibilidade inefável". Eu acho que a possibilidade em si nunca é destruída, a possibilidade continua existindo até o último momento.
Eu acho que não está errado o que você disse aqui. Eu não sei se é só isto. Talvez fosse o caso de perguntar, por exemplo, se a coisa não estaria antes numa desistência, numa abdicação do espírito. Outro dia o Leonardo Penitente me enviou uma gravação de 4 minutos do Padre Royo Marin, em que ele explica o que é o pecado contra o Espírito Santo. O pecado contra o Espírito Santo é você recusar a influência benéfica que Ele traz e se apegar a outra coisa. Claro que a pessoa pode fazer isso de maneira totalmente inconsciente, e acho que nesse sentido [1:30] todo mundo deixou de ouvir o Espírito Santo algum dia, mas não porque estivesse contra Ele ou por que não o quisesse. Mas eu acho que há um certo momento em que o indivíduo realmente não quer mais, e este é o pecado contra o Espírito Santo. Aí não tem mais jeito, aí você chegou neste ponto em que você está mencionando: você fechou definitivamente a porta. Mas eu acho que nós, durante a vida, muitas vezes fechamos e abrimos, fechamos e abrimos, fechamos e abrimos não porque desejemos rejeitar, mas porque não entendemos, não conseguimos captar exatamente qual é a mensagem. Ou porque nós confundimos também o influxo do Espírito Santo com o discurso religioso socialmente vigente que tantas vezes nos atrapalha. Isto é importante.
É claro, eu não sou anarquista que seja contra a religião estabelecida, mas você não pode esquecer que a religião estabelecida se consagra no direito civil, no direito penal, nos valores e preconceitos da sociedade, e tudo isso exerce uma pressão monstruosa sobre as pessoas. Mil vezes na vida, fazendo o exame de consciência, eu digo: espera aí, eu estou temendo a Deus o estou temendo a opinião da vizinhança? Para que eu estou rezando afinal de contas? E quando eu ia ver, é a opinião da vizinhança mesmo, eu estou é com medo de que falem tal ou qual coisa de mim. Por quê? Porque eu sei que isso aí Deus vai me perdoar ou já me perdoou, então eu não tenho que me preocupar. Se eu estou preocupado, portanto não é com Deus, é com outra coisa. Essa coisa atemorizante, ameaçadora e muito disciplinar que nós vemos, sobretudo aqui nos EUA, que as pessoas são ensinadas muito a agir certinho --- no Brasil já não tem, é mais esculhambado ---, eu acho que isso leva às vezes a situações trágicas e é uma inversão mesmo da espiritualidade. Pode acontecer não por má intenção: sei lá, os deputados votam uma lei inspirada na moral cristã, eles não estão fazendo isso para sacanear ninguém. Mas como isso passa a ser um elemento do mundo exterior que pressiona o indivíduo de uma maneira muito mais forte e muito mais presente e muito mais atuante do que a voz sutil do Espírito Santo, então há o risco de você acabar cultuando essas coisas, e este risco é externo. Não estou falando dos outros, estou falando isso porque eu vejo que isto aconteceu muitas vezes comigo, eu nunca estou garantido de que não vou cair nessa. Por exemplo, existe o cansaço: se a pessoa está cansada, ela cai mais no automatismo mental e vai pela via do menor esforço, aí pode se apegar mais a essas coisas.
Leibniz, no livro dele da teodiceia, começa já dizendo isso: por toda parte nós começamos a ver mais que o formulário exterior dos cultos predomina sobre a verdadeira piedade. Isso aí já é uma coisa geral e é uma das vias de destruição do ser humano. E por isso mesmo, qual é a cura disso? É a conversão de que fala o Louis Lavelle. Você não pode ir confessar como se você fosse um cidadão que cometeu tais ou quais delitos ou... Como é que fala aquilo que não é crime? Misdemeanor, como é que eles falam em português? Contravenção. (O sujeito não aprende inglês, esquece o português, isso é um problema. Isso me faz lembrar o Roberto Campos: ele foi embaixador aqui, depois que ele voltou, ficou uns dois anos falando com sotaque americano, e ele não percebia absolutamente. Ele falava: "Ó Brazil". Depois foi voltando ao normal aos poucos). Então, você não é um cidadão que está lá com uma lista de contravenções etc., prestando satisfações a uma autoridade, você é um espírito que está falando a outro espírito. E esta é uma relação de participação que é mais intensa do que a relação que nós chamamos amor, mais profunda e mais intensa, você tem mais intimidade com Deus do que com qualquer coisa. Você não é uma pessoa externa, uma autoridade externa que está falando, não: é com você mesmo, é como você fazer alguma coisa contra uma pessoa que você ama muito, por distração você ofendeu aquela pessoa. Não é a mesma coisa que você chegar perante uma autoridade e confessar os seus crimes, a atitude não é definitivamente esta, é outra coisa completamente diferente.
Olha, eu levei trinta anos para entender essa coisa. Eu não me considero o sujeito mais burro que eu conheço, mas a burrice espiritual todo brasileiro tem a sua cota. O temor da autoridade, o temor da condenação moral é uma coisa que materializa você, você cai numa atitude puramente materialista, e está se afastando de Deus justamente na hora em que você está indo lá rezar, confessar etc. Quer dizer, você está dando para as coisas um peso que elas não têm. É claro que você fazer um delito contra Deus é muito pior do que você fazer um delito contra o seu Zé Mané, porém Deus não é realmente ferido pelo o que você fez, El pode ficar triste, mas Ele não vai sair todo arrebentado. Os caras não encheram Jesus de chicotada, de martelada etc., três dias ele não estava aí [firme e forte]? É difícil você machucar Deus, ele pode ficar um pouquinho triste. Mas a relação de Deus com o ser humano é mais do que relação de amor, é uma relação realmente de participação. Então a atitude com que nós encaramos as coisas tem de ser completamente diferente daquela que você tem para com a moral social. A moral social você nunca vai agradar, ela está sempre contra você, ela é constituída só de pressões, ameaças, etc. E a relação com Deus nunca pode ser assim. Se você já adotou essa relação, você está xingando Deus. Aquilo que você está chamando de temor a Deus é um temor que fica misto de ódio: "Esse cara só me persegue, só quer me mandar para o inferno, quer me sacanear". Quantas pessoas religiosas não têm isso, meu Deus do céu? Porque faltou a espiritualidade, faltou a vida interior, faltou a verdadeira conversão que requer o quê? Atenção e concentração.
Lendo essas obras do Louis Lavelle, nós vemos que esse homem era de uma concentração espiritual monstruosa, ele não largava aquilo. É isso mesmo que nós temos de fazer: voltar àqueles instantes, aos momentos de lucidez.
Aluno: Como alguém, no começo da vida, como aconteceu com Padre Pio que quando criancinha já tinha aquela visão da transcendência no sentido que você está querendo indicar? Ou então ela só pode (...)
Olavo: Mas isso é outra questão, porque no artigo que eu escrevi, "Espírito e personalidade", está claro ali que se você não chega no patamar do que eu chamei ali a personalidade intelectual, você não vai ter espiritualidade nenhuma. Daí vão dizer: "Mas como é que acontece o cara que já era santo aos cinco anos de idade?" Esta é uma possibilidade: Deus, o Espírito se adiantou e fez o trabalho para ele. Ele pode fazer isso, Ele nos criou, Ele faz o que quiser. Mas se Ele não fez isso, então Ele quer que você percorra a linha inteira. E não esqueçam que quando eu falei personalidade intelectual, ali eu estava me referindo, sem mencioná-la, a teoria das camadas da personalidade. Aliás, talvez até eu tenha de escrever um artigo para o Diário do Comércio explicando mais ou menos o que eu quis dizer com essa coisa de personalidade intelectual.
A personalidade intelectual aparece quando o indivíduo passou o nível da maturidade moral --- é somente aí. Não existe uma data certa, uma idade certa com que você tenha que chegar a isso, algumas pessoas podem chegar bem cedo. As primeiras camadas têm mais ou menos uma duração imutável. A primeira camada que é quando o bebê vai tomando consciência do seu corpo: o único foco de interesse que ele tem é o seu corpo. Chega um dia em que ele começa a se interessar por outras coisas que não são o corpo dele, ele começa a pegar coisas, a se mover para lá e para cá. Isto significa que ele já alcançou um certo domínio suficiente do próprio corpo, então o corpo já não é mais o assunto, o corpo se torna um instrumento para outra coisa. Então durante um certo tempo o essencial da vida do bebê em crescimento é o quê? É se mexer, pular, agarrar coisas, quebrar, conquistar o mundo em torno, ou seja, colocar os seus instintos, a sua força [1:40] em ação. Mais tarde, o neguinho vai passar para uma terceira camada que é a conquista do meio de comunicação. Ou seja, ele já não está tão interessado na ação física, mas em influenciar os outros seres humanos e contatar-se com ele, o que se supõe que ele tenha superado não só a questão do domínio do corpo, mas que já tenha um arsenal de recursos lingüísticos necessários para fazer isso; e tentar exercer uma força psíquica sobre o meio. Porque afinal de contas o que é você conversar e atuar socialmente? É você influenciar e ser influenciado. Um sujeito não pode chegar a isso aqui com um ano de idade, é impossível. Mas as camadas seguintes vão tendo cada vez menos uma duração definida, e às vezes algumas podem ser transpostas em algumas semanas.
O que define cada camada é o foco de atenção principal e, portanto, o foco de sofrimento. Um bebê recém-nascido só sofre quando o seu corpo é alterado: quando tem fome, frio, dor etc. Já um bebê um pouquinho mais desenvolvido sofre porque não consegue pegar a coisa que ele quer alcançar ou não consegue manobrar, então quando ele fracassa é já numa ação externa, não é só o estado do seu corpo. Um pouquinho mais avançado, o foco de sofrimento está na comunicação: ele ser compreendido ou não ser compreendido, ser atendido ou não ser atendido, ser amado ou não ser etc. Essas camadas não são abandonadas, elas são integradas, e aquilo que era um objetivo numa certa etapa, se torna um meio para outro objetivo na etapa seguinte. Todo ser humano passa por essas camadas, e não tem como saltar. O que pode acontecer é de a duração de uma camada ser mais abreviada --- isto a partir da camada quatro, até a três não tem como abreviar.
Prosseguindo as camadas, você chega a um ponto da maturidade moral. Maturidade moral é quando o indivíduo se sente responsável pela vida que levou. Isto supõe que ele já tenha levado alguma vida, que já tenha uma biografia, tenha tentando alguma coisa, tenha tentado obter um sucesso numas coisas, fracassos em outras, fez coisa certa, fez coisa errada. Então ele tem essa consciência de si como sujeito moral criador dos seus atos. Isto que eu chamo oitava camada, que eu chamo a camada da crise. O sujeito pode chegar a isso aos quarenta anos, como o outro pode chegar aos vinte, nada impede. Então logo a seguir vem a personalidade intelectual: quando a busca da verdade, o fracasso ou sucesso em alcançá-la é que é a raiz do sofrimento; quando o neguinho sofre na inteligência mais do que em outras coisas. Por exemplo, neste caso que nós estamos investigando nesta aula: se o sujeito perde o fio da meada do seu espírito, isto para ele pode ser um sofrimento horrível, muito mais do que levar uma martelada no dedo ou sofrer de hemorróidas ou perder todo o dinheiro. Tem pessoas às vezes que para recuperar o sentido da sua espiritualidade, elas aceitam perder tudo o que tem, porque dizem: "Não dá para conservar tudo, alguma coisa eu vou ter de jogar fora", então joga fora as coisas materiais para recuperar a vida do espírito --- acontece também. Aí o neguinho tem uma personalidade intelectual: o foco da vida dele é de ordem cognitiva, é a busca da verdade sobre ele mesmo, sobre o mundo.
Se você não chegou neste ponto, então é evidente que a sua compreensão do processo do espírito é deficiente. Mesmo a pura maturidade não basta para isso, porque a maturidade é vivida apenas na escala pessoal, empírica, por assim dizer. E, eu digo, não existe a busca da verdade se não existe a busca dos instrumentos culturais e intelectuais necessários para isso. Se o indivíduo apenas quer examinar a sua vida, está interessado apenas na sua biografia pessoal, mas ele não busca estudar, não busca conhecer, não busca se transcender, então ele não tem nenhum interesse pela busca da verdade. É por isso que eu digo: sem a personalidade intelectual não tem mais a ação do espírito, ela acabou. O espírito esteve agindo aí, claro, e esteve agindo o tempo todo, mas uma posse e compreensão consciente desse processo do espírito chegou só na maturidade, não deu o salto para a vida intelectual, acabou. É por isso que você vê tantos homens bons decaírem depois da sua maturidade, em vez de evoluir: quando deveria ir para a velhice, deveria crescer mais. O sujeito se realizou na vida com maior ou menor dose de sucesso ou fracasso, mas ele não tem outro interesses além da sua auto-realização pessoal, então aí acabou, meu filho, então aí você vai para o brejo, vai para o buraco. Chegou na maturidade mas é só, é isso que você vai ser sempre.
Agora, a ação do Espírito Santo pode se antecipar a tudo isso. Mas você tem contrato de exclusividade com o Espírito Santo para obrigá-lo a fazer isso? Então esta apologia brasileira da ignorância, dizer que Deus também inspira os coitadinhos analfabetos etc., não foi isso o que Jesus Cristo quis dizer. Vocês estão inventando coisa para justificar a sua preguiça intelectual.
Aluno: Uma vez você estava explicando [1:46:44**]
Olavo: Também isso não se refere à quantidade de estudos que você tem, mas a intensidade do seu interesse. Mas é claro que essa intensidade quase que necessariamente vai se refletir na quantidade das informações que você busca. Se você não está fazendo esforço nenhum para aprender nada, você não vai aprender nada, é porque você não está interessado em aprender. Também você pode estar interessado em aprender não pela busca da verdade ou para afinar a sua audição do Espírito Santo, mas para você desempenhar uma função pública, para você ser professor universitário, para você ser um "intelequitual" e assim por adiante. Mas essas distinções não são nem necessárias porque eu acho que elas são percebidas intuitivamente e à primeira vista.
Eu acho que já foi longe demais, então eu vou deixar as outras perguntas para a próxima aula. Muito obrigado a todos e até semana que vem.
Transcrição: Jussara Reis de Abreu.
Revisão: Antonia Javiera Cabrera Muñoz.