Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 153
05 de maio de 2012
Boa noite a todos. sejam bem vindos.
Vamos continuar com o comentário aos comentários às perguntas feitas pelo Maurício, que hora foram respondidas de maneira tão compacta que é possível tirar muita coisa lá, explicitando o que está mais ou menos comprimido nessas linhas.
Eu falava por um lado da ideia da ordem e, por outro, da idéia do discurso incoerente. Existem muitas formas de pensamento que acreditam que o discurso coerente é a finalidade última de todo discurso filosófico. No começo do século XX houve um esforço para se criar uma enciclopédia universal do conhecimento e, sabemos perfeitamente, que o sonho dos físicos é chegar a teoria unificada da qual se possa produzir não somente a ciência física, mas todas as ciências existentes e mais algumas.
Suponhamos que tivéssemos chegado a um discurso coerente, que tem a explicação de todas as coisas. O fato de alguém ter composto esse discurso significa que ele o mantém na sua consciência o tempo todo ou ele, colocando um ponto final, esqueceu-se tudo ou fez alguma confusão? A existência de um discurso, a existência objetiva de um discurso uniformemente coerente - se houvesse alguma coisa desse tipo sendo produzida por um ser humano - não garantiria a posse do conteúdo desse discurso por quem quer que fosse. Na verdade, sempre temos uma ilusão quando falamos do avanço do conhecimento. Já comentei em outras aulas que o avanço do conhecimento é, em grande parte, apenas o crescimento do acúmulo de registros. Este acúmulo de informações em bibliotecas, institutos de pesquisa, museus, etc., já se torna inabarcável na escala de um indivíduo, então ele cria a sua própria massa de registros, cria o seu próprio problema; cria em cima do mundo a respeito do qual versavam os conhecimentos uma segunda camada de problemas e enigmas criados pela própria documentação, pelo próprio volume que se tornou inabarcável. Por exemplo, experimente fazer uma ideia da bibliografia filosófica mundial, que é um setor bem modesto. Percebe-se imediatamente que é inabarcável e se não houver pessoas que classifiquem tudo e coloquem índices para facilitar você está lascado.
A organização da documentação também tem seus problemas próprios e assim por diante. Nossa pergunta é: dizer que houve um avanço ou um progresso no conhecimento significa o mesmo, em princípio, que afirmar que houve aumento do número de registros e trabalhando nisso? Claro que não, mas esse é o único significado verdadeiro dessa expressão. Não significa de maneira alguma que uma pessoa nascida hoje saiba mais do que uma nascida, digamos, mil anos antes de Cristo, ou quatrocentos antes, na época de Platão e Aristóteles ou do que alguém do século dezoito. Por que um sujeito que nasceu no século XX e tem à disposição todas essas bibliotecas e museus saberia mais do que Leibniz? Não. A ideia de progresso e conhecimento não é material, não significa que alguém possua mais conhecimento. Trata-se de idéia eminentemente virtual - você tem mais meios de conhecimento colocados a sua disposição. Esses meios de conhecimento, que versavam sobre objetos chamados de "realidade" ou "mundo", constituem uma segunda camada de objetos e eles também, por sua vez, têm de ser decifrados. A aquisição dos vários vocabulários técnicos, dos jargões das novas ciências e uma infinidade de códigos de comunicação que já são de uma complexidade enorme são um bom exemplo.
Se colocarmos o problema do progresso do conhecimento na educação em termos de produção de registros nós vemos a coisa por um lado. Por outro, se nós entendermos a educação no sentido próprio, quer dizer, a educação de um indivíduo -- a formação de um indivíduo concreto que saiba alguma coisa -- o problema se inverte quase que 180 graus. Qual é a possibilidade que temos de transmitir a um indivíduo de uma geração para outra aquele mínimo de conhecimentos e habilidades que lhe permitam lidar com sua tradição herdada e, mais ou menos, situar-se dentro do panorama atual dos registros acumulados? É esse o problema básico da educação e é evidente que nesse sentido o progresso do "conhecimento" vai em sentido contrário ao da educação. Quanto mais conhecimento acumulado maior a dificuldade na esfera da educação.
A simples possibilidade de um indivíduo ter hoje formação nas diversas técnicas requeridas para ter acesso aos diferentes domínios do conhecimento é uma coisa praticamente utópica. O que podemos pensar é a criação de um indivíduo que tenha a capacidade de adquirir, na situação concreta, as habilidades requeridas em breve tempo. Por exemplo, o sujeito, do dia pra noite, tem que saber alguma coisa a respeito de astronáutica ou qualquer coisa semelhante. Acho possível formar uma mente capacitada para, rapidamente, adquirir princípios daquele domínio da ciência e entender, mais ou menos, o que está se passando. Mas não se trata de dar ao indivíduo a formação em cada uma dessas disciplinas, nem mesmo em aspectos mais básicos e elementares, trata-se de criar pessoas capacitadas. Estou convencido que a capacidade de aprendizado, sobretudo rápido, e de adaptação a problemas cognitivos novos está relacionada com a centralidade da personalidade e com a ausência de abismos interiores. Quanto mais transparente você é para você mesmo mais mobilidade tem em todos os campos do conhecimento. Temos então mais um problema psicológico do que um problema de educação propriamente dita; não se trata de transmitir conhecimento, mas manter o equipamento humano em boas condições de funcionamento. Se quiser chamar a isso de "saúde mental", chame, mas a perspectiva não é exatamente essa. Penso mais em termos de centralidade da consciência, ou seja, o indivíduo saber quem é, qual a sua situação na vida, conseguir se medir mais ou menos na escala da eternidade, do juízo final. Ter alguma idéia de que se está indo para o paraíso, para o purgatório ou para o inferno. Isso já seria alguma coisa. A medida de ser capaz de medir-se perante o projeto divino para o homem, como Deus concebeu o ser humano, como ele entende o ser humano o que vocês estão se comportando naquele momento.
Não em termos de perfeições evangélicas, mas em um sentido mais terrestre. Perfeição puramente humana. É o ponto principal para vocês que estão estudando. Não é o aprendizado disso ou daquilo, o problema é quem você é. O nosso aparato mental todo serve para muitas coisas e uma delas e as nos proteger do meio ambiente, nos defender de nossas próprias contradições, nos defender de ameaças e medos, etc. Porém isso sempre ocorre de maneira muito ambígua. O mecanismo que você desenvolveu quando tinha dois ou três anos para se defender de algo que lhe parecia uma ameaça pode continuar em ação durante décadas e pode se tornar ele próprio uma força ameaçadora dentro de você. De modo que a psique humana só se mantém mais ou menos em ordem se há uma espécie de revisão constante. Nesse sentido, você tem que ser como dizia Raul Seixas, "essa metamorfose ambulante"; estar, continuamente, se abrindo para o que você não sabia, sobretudo a respeito de você mesmo. Abrir-se a novas e mais novas revelações a seu respeito. Um dos setores em que você tem essas revelações é a sua própria existência corporal. Acredito que o Dr. Wilhelm Reich, por louco que fosse, tinha razão numa coisa: ele dizia que boa parte da memória acumulada, sobretudo da memória afetiva, é acumulada não no cérebro, mas no corpo na sua estrutura muscular. São poses, gestos repetitivos, circuitos de estímulos neuronais que estão consolidados e que, de certo modo, operam como seletores das informações que recebemos. Como o corpo está habituado a determinadas poses, determinadas posições ele tem um determinado comportamento. Acho que Reich comparava a mente com uma lata amassada: você recebeu diversos "amassamentos" da vida e conserva essas coisas ao longo do tempo sem nem se lembrar de onde saíram. Quando você tenta entrar num estado de relaxamento profundo verá que começam a aparecer informações que você não sabia que tinha, imagens esquisitas etc. Isso pode demonstrar que está havendo uma dificuldade em mover-se em seu espaço interior. Às vezes, uma determinada imagem que vivenciamos no momento como algo repugnante pode ter uma informação de tempo muito remoto por trás dela, informação que você recusou quando tinha três ou quatro anos e que continua não querendo receber.
Esses aspectos todos foram estudados pela psicanálise, pela psicologia profunda. Isso existe e é de um peso extraordinário na educação. Estávamos conversando agora a pouco antes da aula: por que não existe uma literatura brasileira? Será que as pessoas ficaram burras? O que exatamente aconteceu?
Acho que não é tanto um problema de capacidade intelectual, mas um problema de, em parte, paralaxe cognitiva. A mente dos outros está sendo construída com critérios que não se ajustam ao eixo de sua experiência real; elas não conseguem contar a sua vida como realmente foi. Em parte isso vem do impacto da propaganda política muito intensa que lhes obriga a repetir certas frases, certos slogans, e elas só podem ver as coisas dentro daquele contexto, com medo de imaginar a hipótese contrária porque, se enxergarem as coisas de maneira diferente serão rejeitados e o medo da rejeição é um obstáculo terrível ao conhecimento. O medo, de uma forma geral, é um obstáculo. O medo de saber, de enxergar, de ver coisas horríveis. Acho que a dificuldade na educação, na formação superior, vem mais dessa característica do que de obstáculos propriamente intelectuais, falta de Q.I. ou coisas assim. Não adianta nada ter um Q.I elevadíssimo se a pessoa está muito bem protegida para perceber a realidade de sua situação. As pessoas me por que eu fico perdendo tempo com tipos como o economista Rodrigo Constantino. Eu tenho que examinar as opiniões dele porque é o que está acontecendo no Brasil. Não estou brigando com ele, não estou em guerra, não se trata disso, absolutamente. O tom em que escrevo é analítico. Estou tentando entender o que acontece. Quando pessoas totalmente alienadas e deslocadas de si próprias exercem um papel formador da opinião pública na mídia, é claro que esta apologia será passada adiante.
Recebo livros recém-publicados, romances, poemas, peças de teatro, etc e todos são de uma qualidade tão baixa que não dá para comparar. Não há a qualidade da literatura dos anos 50 e 60, não dá para comparar com o jornalismo daquela época. As pessoas não tem mais ouvido, não sabem mais se uma coisa soa bem ou mal. São de um mau gosto extraordinário. Às vezes são pessoas naturalmente talentosas e a dificuldade não é de ordem intelectual, não significa que o indivíduo não estudou a gramática, por exemplo. Muitos estudaram bastante. Quando discutimos com pessoas como Júlio Lemos ou Jorge Pinheiro, vemos que eles estudaram bastante. O que está faltando é um padrão de sanidade. Até os anos 50 e 60, qualquer principiante na arte da literatura sabia "sentir" no escrito literário o tom de falsidade ou de autenticidade, que não coincide, necessariamente, com o sentido de autenticidade concreto humano, mas autenticidade artística. Sabiam-se quando a coisa está forçada, fingida, pernóstica. Todo mundo sabia isto. E não estou falando dos escritores, os leitores sabiam sentir isso e, naturalmente, os próprios escritores, os críticos literários ecoavam isso e davam uma expressão mais formalizada a essas percepções e isso não era nenhum bicho de sete cabeças. No entanto, para o indivíduo acertar esse tom de, por exemplo, falar dele mesmo, com sua própria voz, dentro do seu próprio coração, o que não é uma coisa fácil, é preciso ter os instrumentos para isto. Se essa capacidade desaparece na mais alta esfera da cultura, se as pessoas de maior capacidade que temos, se os melhores escritores perderam isso todos os outros vão perder. Dentro da própria vida pessoal, vida familiar, relações humanas mais diretas vai se introduzindo um elemento de incomunicação, de falha de comunicação efetivamente. Não estão se entendendo mais e daí começam a aparecer sintomas de loucura por todos os lados. Esses sintomas atualmente alcançaram a esfera do legislativo, do judiciário. A idade de consentimento para relações sexuais baixou para quatorze anos e tem gente querendo baixar para doze e depois de doze vai baixar para dez, para oito, etc. Daqui a pouco as pessoas vão achar uma coisa injusta não poder transar com um bebê de seis meses e não é impossível que as reações humanas mais artificiais, as mais histéricas, as mais fingidas, pareçam autênticas para o sujeito que as está vivenciando aqui neste mesmo momento.
A característica do histérico é que ele é sincero no que sente, só que o que ele sente não reflete o que está acontecendo, mas sim uma coisa que ele mesmo imaginou. É praticamente impossível mostrar a uma pessoa como essa que ela está fora da realidade. Ela está sentindo exatamente o que está vendo e expressando o que está sentindo. Há uma tremenda impressão de sinceridade. A gente observa isso no estilo jornalístico, das pessoas que escrevem crônicas, comentários, etc. No entanto os relatos vão ficando cada vez mais artificiosos, mais fingidos e, portanto, mais de mau gosto.
Não vejo como podemos contribuir para melhorar isso se nós mesmos não entendemos que todo nosso desempenho na esfera intelectual, mesmo a mais impessoal que você possa imaginar - como dar uma aula numa universidade -- está relacionado com a centralidade da sua consciência e com o centro do qual emerge sua voz. Desde onde você está falando. Imagine por exemplo um ator que concebe um personagem, faz uma constelação de traços, e de certo modo veste aquilo, entra dentro daqueles elementos e, por uma ou duas horas, revive as emoções de um terceiro que ele pessoalmente não teve ou não teria, mas que naquele momento são vivenciadas como reais, como se tivessem efetivamente acontecido. Depois, ele tem que voltar para o seu centro. A nossa capacidade de encontrar esse ponto central depende da capacidade que temos de sair dele e se identificar com outras pessoas, com essa, com aquela, com aquela outra e depois voltar. Justamente da quantidade dos papéis que você desempenha é que deriva a capacidade de perceber qual é o seu próprio papel. Os seres humanos não nascem completos. O simples fato de haver dois sexos mostra-nos isso. Não podemos reproduzir a nós mesmos. Precisamos de uma ajudinha de fora.
Essa incompletude mostra que é somente no encontro com o outro que eu torno-me eu mesmo, estou descobrindo quem sou e, na medida em que vou descobrindo, vou me inventando. É uma descoberta, uma invenção. Se bem que a palavra "invencion", em latim, também tem o sentido de descoberta. Essa característica muito peculiar do eu humano, da consciência humana, que se inventa, que se constitui, que se descobre ao mesmo tempo foi tão maravilhosamente descrita por Louis Lavelle no livro "La conscience de soi" e em outras obras. Quem não leu, faça o favor de ler. Digamos que a sua capacidade de ser você mesmo de colocar-se no centro de sua pessoa depende, então, da capacidade de abandonar esse centro e se identificar com outra pessoa, ser outra pessoa, sentir como os outros, imaginar como os outros, ter a máxima medida de identificação que você possa ter. Diante dessa realidade, há uma implicação direta com a questão do método filosófico. Expliquei anteriormente que entender uma tese formal que um filósofo está explicando não adianta, é preciso entender a estrutura do sistema dele. Não adianta nada se você não consegue se reportar à raiz experiencial da onde o filósofo tirou aquilo e, nesse caso, não se trata apenas de você pensar como ele, de repetir o filosofema ou a ordem das razões, mas de imaginar e sentir como ele. Acho que só depois disso você entendeu o que ele está dizendo. Fora disso, não. Você entendeu esquemas que são, por assim dizer, transportáveis. Se você está estudando Descartes, nesse caso, você não entendeu Descartes, entendeu o cartesianismo, um conjunto de esquemas mentais que pode ser reproduzido por pessoas diferentes, em contextos diferentes, com significados completamente diferentes, embora você possa acreditar que está sabendo tudo a respeito de Renè Descartes, quando na verdade não está. Você está apenas informado a respeito do produto final tal qual aparece à vista de todos e como tal pode ser copiado por qualquer um.
Quase sempre é isso que se estudo sob o nome de filosofia e não é de espantar que essa atividade não possa produzir filósofos propriamente ditos. Pode produzir pessoas de enorme cultura filosófica, professores de filosofia, comentaristas de filosofia, historiadores da filosofia, etc, mas não pode produzir filosofia em cima da filosofia. É aquilo que Eric Voegelin dizia: "Não estude a filosofia do Voegelin, estude a realidade." Então, a filosofia de Eric Voegelin deve ser um suporte; uma coisa para lhe dar inspiração. É como olhar um mapa para orientar-se no território em que se está andando. Portanto, muito cuidado ao citar aquele famoso adágio neopositivista de que "o mapa não é o território". Eu não conheço quem fale em compreender melhor esse adágio do que os próprios neopositivistas. E, na medida em que eles podem pegar um argumento filosófico e ficar discutindo-o ao longo dos anos e nunca se perguntar de onde ele saiu -- como no caso da polêmica com o argumento de Santo Anselmo --é claro que é um caso de alienação muito grave. Ultrapassa até o limite da paralaxe cognitiva. Na paralaxe, os dois elementos da experiência -- o eixo da experiência e o eixo da construção -- estão no mesmo indivíduo e daqui a pouco não vai haver mais experiência nenhuma, pulou-se fora dela. Só haverá a construção intelectual em si.
Esse drama mostra que a relação entre o exercício da filosofia e a busca por essa centralidade da consciência é muito próxima e nesse sentido é que vemos que o termo "filosofia" como busca da sabedoria, amor pela sabedoria, é muito correto porque a sabedoria, evidentemente, não é só um conhecimento que você tem, mas é também um saber viver, um saber ser alguma coisa. Continuo achando que esse é o problema central, negligenciado em todo o ensino da filosofia no mundo, mesmo nos melhores centros. Você vê, por exemplo, um indivíduo como Eric Voegelin, que tinha consciência muito clara disso, mas nunca soube passá-la exatamente para seus alunos. Vemos esse problema pelo nível do pessoal que escreve no Voegelin View -- alguns têm consciência disso, mas no geral, não têm.
Por isso, coisas fundamentais da vida real que se passam dentro de nós, que têm impactos nas nossas vidas, frequentemente deixam de ser compreendidas por pessoas que têm a melhor formação voegeliniana do mundo. Outro dia, estava lendo uma resenha publicada no Voegelin View sobre este livro de Jonathan Kay -- Among the truthers. É uma jornada ao longo do subterrâneo, do underground das teorias da conspiração na América. Ele faz estudos sobre as teorias da conspiração -- o pessoal que acha que o Onze de Setembro foi tramado nos porões da Casa Branca, pessoas que acham que o Obama nasceu na África e vários outros tipos de teorias da conspiração. Ele dá uma resenha de várias teorias, faz uma tipologia delas, investiga, entrevista vários autores de teorias da conspiração, como Webster Tarpley que é um dos principais envolvidos no caso do Onze de Setembro e investiga raízes históricas, culturais e filosóficas desta coisa. O resenhista do Voegelin View faz uma resenha disto de um ponto de vista voegeliniano dizendo que esse camarada Tarpley está prosseguindo, de certo modo, a obra do Voegelin, pois está mostrando que nessa tendência de criar teorias da conspiração existe uma raiz gnóstica que seria criar um conhecimento universal que explica tudo e, sobretudo, negar a unidade da realidade. O homem da teoria da conspiração pretenderia conhecer outra realidade que é distinta daquela que todos estão enxergando e ele acha que aquela realidade é a verdadeira.
Só tem um pequeno problema: em nenhum momento o sujeito discute o que é teoria da conspiração.
Eu comentei: "Olha, teoria da conspiração não é um conceito científico descritivo. Teoria da conspiração é um estereótipo pejorativo usado, sobretudo, pelas pessoas que são acusadas de conspiradoras. Eles acusam os outros de 'teóricos de conspiração', ou seja, não sou eu (o acusado) quem conspira, é você, que é o teórico da conspiração". O preceito número um na investigação de qualquer coisa é aquele que Aristóteles enunciou assim: "De um sujeito equívoco nada se pode predicar univocamente", quer dizer que se eu não delimitei exatamente o objeto do qual eu estou falando de modo que eu possa distingui-lo de outros objetos circundantes, parecidos ou análogos, então o que quer que eu diga a respeito deles só terá valor analógico. Pode significar qualquer coisa! Não é isto? Então, Jonathan Kay coloca também como um dos traços constantes das teorias da conspiração que ele examinou a tendência a achar que tudo o que acontece foi planejado.
Eu pergunto: "Mas isto é uma tendência dessas pessoas ou isto é um aspecto da realidade que tem a sua validade em si"? Na primeira página de Teoria Geral do Estado, o filósofo alemão Georg Jellinek afirma: "O problema fundamental das ciências sociais é você distinguir quais são os processos que correspondem à execução de um plano e quais são os processos que se formaram por junção espontânea de várias causas, ou como diria Max Weber, o resultado impremeditado das nossas ações". Esse é de fato o problema central. E acredito que a elucidação desse problema nem mesmo começou. Porque eu não vejo como fazê-lo sem a elaboração de uma fenomenologia do poder humano. Começando por aquela verificação tão primária, tão óbvia, quase idiota, que eu mesmo acho que eu fui o primeiro que fiz na história do mundo: como é que eu posso perceber uma coisa que antes ninguém percebeu, mas que está explícita e que tantas pessoas escreveram a respeito, que é o fato de que, em nenhuma espécie animal, existe tanta diferença de poder quanto existe entre os seres humanos? A diferença de poder é uma constante na história humana. E mais ainda, ela não diminui, só aumenta. Nós temos a idéia - digamos iluminista - de que no mundo antigo havia a liberdade antiga, na qual só alguns eram livres, e existe hoje a liberdade moderna, onde todos são livres. São livres do quê? Por acaso, vamos nos perguntar, no tempo de Júlio César ou de Atila, o Huno, o governante tinha um meio de escutar a sua conversa a dez quilômetros de distância? Não. Hoje tem. Ele tinha meios de liquidar uma cidade inteira em poucos segundos? Não tinha.
A diferença de poder entre os seres humanos aumentou barbaramente, e essa é uma das constantes da história. E o abrandamento das instituições, o aprimoramento das liberdades civis etc., não pode nada contra isto. Cada vez que aparecer um novo direito civil, uma nova proteção à liberdade dos cidadãos, os instrumentos materiais de controle de dominação aumentaram muito mais. Então, não é um problema das instituições, mas um problema de equipamentos. Não é isto?
Se o sujeito tem os mesmos direitos que eu, mas ele é monstruosamente mais forte, então é evidente que ele tem mais meios de ação do que eu. Duas pessoas que tenham os mesmos direitos, só que uma está armada e a outra não; já está dada a diferença. O progresso da ciência e da tecnologia criou meios de controle e de dominação cada vez mais aprimorados e incontroláveis pelos cidadãos. Isso é muito importante: na mesma medida em que esses instrumentos se aprimoram, a possibilidade da ação planejada e controlada aumenta. Mas existe uma incrível sutileza.
Aumenta a possibilidade de se criar planos de longo prazo cuja execução é controlada em todos os seus passos, mas isto não garante que as finalidades desejadas de início sejam atingidas. Por que você controla somente aquela área, aquele campo fenomênico que está abrangido no próprio plano inicial e não o universo inteiro. Qualquer ação humana, por mais abrangente e bem controlada que seja, se integra dentro de uma totalidade cósmica que ela não pode controlar de maneira alguma. Nos últimos séculos aumentou muito a possibilidade do que nós podemos chamar de conspiração. Um pequeno grupo de indivíduos pode conceber um plano e se tiver os meios, colocá-los em ação, digamos, por um prazo bastante longo e controlar na medida do possível a sua execução até os resultados finais, só que esses resultados se integrarão necessariamente num quadro que não faz parte do plano.
O plano mais bem executado e controlado do mundo pode, ao mesmo tempo, obter sucesso e ser um fracasso total. Porque ele é um sucesso dentro daquela dimensão, daquela área que está sob o seu controle, mas e no contexto geral? Ninguém pode negar que a implantação do comunismo na Rússia foi um plano de um número reduzidíssimo de pessoas; o partido bolchevique era nada ali no contexto da sociedade russa na época e eles conseguiram controlar todo o aparato estatal e implantar exatamente o que queriam. Só que quando o plano estava realizado, não era o que eles queriam. Não houve erros na execução, a coisa foi executada exatamente como planejada e conseguiu exatamente o que se queria, só que quando estava pronto, "Bom, o que nós fizemos era o que queríamos, mas o que queríamos não era o que queríamos mais". Não se pode dizer que houve uma falha.
Estou estudando agora uma das melhores histórias da União Soviética que existe que é A Tragédia Soviética, o autor é Martin Malia. Você não pode dizer que houve falha ou traição ao projeto original. O que se executou foi o projeto original de Lênin, e se executou brilhantemente, com muita exatidão, e com controle muito bem feito em todas as etapas. Só que o projeto de Lênin pôde abranger somente aquilo que estava dentro do horizonte de consciência de Lênin. E não existe nenhum ser humano cujo horizonte de consciência coincida com a totalidade do existente. Mesmo o plano bem sucedido pode ser um fracasso; não há uma separação exata entre fracasso e sucesso. E por outro lado, este dualismo que o autor Jonathan Kay coloca -- de que a maior parte dos processos não é controlado por ninguém, são processos espontâneos -- ou a ideia do Friedrich Von Hayek, da formação espontânea, do espontaneismo da sociedade.
Tudo isto é eliminar o problema antes de sequer tê-lo colocado quando ele foi muito bem por Georg Jellinek. O problema é que em toda situação existem elementos controláveis e elementos incontroláveis e nós não sabemos dosá-los, não sabemos exatamente onde termina um e o outro. Então, o fato de que operações de longuíssimo prazo tenham falhado em produzir os resultados alegados no início, não implica em que o plano não tenha sido integralmente realizado, e muito bem controlado até o fim. Quer dizer apenas que os planejadores não eram Deus.
Eles não tinham controle da totalidade das informações e quem é que tem? Quando Hitler consegue executar o plano dele do III Reich, que era de durar mil anos, durou somente doze. Ele admitiu no início a possiblidade do fracasso total e o aceitava. Ele disse: "Ou nós vamos dominar o mundo, ou seremos destruídos". Então esse era o plano, havia o plano A e o B. Realizou-se o B, claro. Mas o B realizou-se precisamente nas mesmas condições em que ele o admitia como possibilidade. Ou seja, os alemães não foram capazes de levar até o fim a destruição do resto, então, foram eles mesmos destruídos. Eles não estavam capacitados para levar a sua loucura até as últimas consequências. Então, a loucura se volta contra eles mesmos e eles são destruídos no caminho. Você pode dizer que o plano deu errado? Não, mas isso estava previsto no plano inicial.
Nós podemos perguntar: será que todo este plano não foi inspirado desde o início por um desejo de autodestruição e, nesse sentido, podemos dizer que o plano deu muito mais certo até do que parece, porque foi planejada a destruição e ela foi realmente realizada? Há sempre esse limite de ambiguidade onde o controlável e o incontrolável se tornam até indistintos. Eu não vejo porque o indivíduo que concebeu uma teoria da conspiração desminta a existência de elementos incontroláveis, porque o indivíduo que descreve uma conspiração descreve somente o mecanismo interno daquela conspiração e não o cenário universal inteiro aonde aquilo vai se realizar e onde eventualmente aquilo pode levar a resultados completamente diferentes. Este autor não discute exatamente estas coisas que eu estou colocando, o problema teórico iniciais de qual é o conceito de teoria da conspiração e qual é o peso relativo que tem esses vários elementos. Kay não tem realmente um conceito de teoria da conspiração, tem apenas uma imagem, e é uma imagem confusa.
Se você parte de uma imagem confusa e tenta em seguida explicar as causas históricas daquilo, como você pode explicar as causas históricas de uma coisa que você não sabe o que é? Mas o que mais me espantou não foi isso, porque, aqui nos Estados Unidos, atualmente há uma campanha movida por um assessor do Obama chamado Cass Sunstein; ele quer proibir a divulgação das teorias da conspiração e eu acredito que esse Jonathan Key é meio parceiro dele. Eu até entendo onde eles estão querendo chegar.
O que me espantou foi que um estudante voegeliano não percebesse imediatamente o que estou lhes dizendo. Porque se Eric Voegelin lesse o texto, diria em primeiro lugar: "Isso não é um conceito científico, isto é uma imagem estereotipada e dentro da imagem estereotipada cabe tudo". Então se ignoram certas diferenças elementares que deveriam ser notadas a primeira vista. Por exemplo, quando apareceu a história de que os ataques do 11 de setembro tinham via sido tramado na própria Casa Branca, e de que o edifício não caiu porque os aviões bateram lá, mas foi implodido desde dentro e outras coisas desse tipo, essas objeções e denúncias foram investigadas até seus últimos detalhes e o governo produziu respostas e contestações de milhares e milhares de páginas, com argumentos técnicos ainda mais complicados do que os denunciantes ofereciam. Ou seja, a coisa foi discutida no terreno dos fatos alegados.
Vamos compará-la com outra teoria da conspiração, a história do Barack Obama. Não foi respondida de maneira alguma. É só desconversa. Isto basta para mostrar que não são fenômenos do mesmo tipo. Outra coisa, o autor também reconhece: "Olha, teoria da conspiração às vezes tem um grão de verdade". Pergunto: "um grão de verdade"? A teoria da gravitação universal de Newton era um pedacinho dentro de toda uma cosmovisão metafísico-teológica que ele estava construindo e aquilo era realmente um grão de verdade do conjunto, e só sobrou esse grão. O resto foi tudo para o brejo! Então, que corrente de pensamento, que escola filosófica, que corrente científica conseguiu demonstrar algo mais do que um grão de verdade?
Todos esses problemas que eu estou levantando, esperaria discuti-los imediatamente numa resenha voegeliana do negócio, e, no entanto, o resenhista cujo nome eu me esqueci passa direto em cima disso e acredita que essas teorias da conspiração têm um fundo gnóstico e que este autor, ao investigar o assunto, deu uma grande contribuição aos estudos voegelianos porque mostrou que essas formas de pensamento são baseadas na negação da unidade do real. Eu digo: "Ah, bela interpretação filosófica", só que como diria o Voegelin, foge dos problemas substantivos. E o problema substantivo é este: o que é e o que não é uma teoria da conspiração? Segundo: para você medir um processo qualquer e saber se ele resulta de uma conspiração ou não, você tem de enfrentar o problema proposto pelo Jellinek. Onde termina o plano e onde começa o acaso. Para cada um desses casos, para cada uma das teorias da conspiração estudadas, seria preciso avaliar estes dois pontos.
De volta ao tema inicial, por que o resenhista não percebeu este problema? Por que ele leu tudo fazendo abstração desta dificuldade que todos nós temos no dia-a-dia. Se eu planejo fazer algo, existe uma parte do processo que está sob meu controle e outra parte que depende de elementos fortuitos. Outro dia estávamos aqui instalando uma placa, porque caiu placa da esquina que dava o nome do bairro. Pedi para o Pedro e nosso amigo Maurício para fazer outra placa e comprar maios algumas coisas na loja de material de construção. Passaram-se horas, só faltava aquilo para terminar o negócio. Eles voltaram somente às duas horas da manhã e não acharam o material. Havia acabado a gasolina do carro. Tivemos de sair andando para buscar a gasolina. O que a gasolina tem a ver com o projeto da placa? Nada! É outro processo causal completamente diferente. A placa que nós queríamos fazer nem de longe está relacionada à mecânica de automóveis, ao funcionamento do motor a explosão. Toda essa linha causal totalmente estranha entrou e fez falhar o nosso plano. Essas coisas acontecem, todos nós temos a experiência disso.
O que acontece quando um sujeito vem com um estereótipo e este se expressa através de um termo, de um jogo de palavras - teoria da conspiração -, ou seja, de um nome que já tem para nós automaticamente um valor afetivo independentemente do objeto, independentemente do seu referente? O sujeito circunscreve o nosso horizonte de visão para só enxergar dali para diante, e não reportar aquilo ao mundo da experiência real onde nós estamos. Esta pretensa tentativa de denunciar o elemento gnóstico das teorias da conspiração que supostamente quebra a unidade do real é baseada ela mesma numa quebra da unidade do real.
O indivíduo que estava lendo o Jonathan Kay não era mais um indivíduo real, mas apenas um par de olhos que só enxergava daquele patamar semântico instaurado por Jonathan Key para cima. Nunca voltava à raiz que as coisas têm na realidade. Você deve estar permanentemente atento a isto pois não depende da sua formação intelectual, mas sim do seu desejo de estar permanentemente fincado na realidade e a realidade do mundo no qual você habita depende da sua própria realidade. Quer dizer, um homem de mentira não pode pegar verdade nenhuma, só pode pegar mentiras. Se você estiver lendo um livro existe uma situação real de leitura, quer dizer quem sou eu, porque eu estou lendo esse livro, então eu confesso que eu li o livro porque a resenha me chamou atenção. Como eu tenho acompanhado bem este caso da nacionalidade do Barack Obama, desde o início percebi que havia também nesse processo dos birthers o deslocamento do eixo da construção intelectual, a paralaxe cognitiva.
Desde o início eles começaram a discutir o problema da inelegibilidade do Barack Obama. Mas acontece que a inelegibilidade ou não é um problema que depende da discussão de uma interpretação constitucional. Esta pode ocorrer. Em 2008 houve uma colunista chamada Debbie Russel que ofereceu a prova de que o alistamento militar do Obama era falso, durante a campanha. Ninguém prestou atenção na mulher. Eu li aquilo e pensei: "Isso aqui é o único ponto que interessa". Saber se o candidato é elegível ou não depende de uma interpretação constitucional. Porém saber se ele cometeu ou não uma fraude documental, é uma questão de prova material. Eu me lembro do dizia Napoleão Bonaparte: "Você deve atacar num ponto só e onde o inimigo estiver mais vulnerável". O alistamento do Obama era o ponto que estava mais vulnerável, não interessava se ele era elegível ou não, não era preciso levar a questão para o terreno da esfera política, do direito constitucional; poderia ser resolvido na esfera criminal. Quando os birthers começaram a briga pela inelegibilidade, complicaram o negócio, perderam o combate. Não deveriam nem tê-lo levantado, mas insistido na tese de o candidato cometeu o crime, é um falsário, pronto. Mas por que levaram a coisa para o lado da inelegibilidade? Porque a esfera onde aparecem os fatos e onde aparece a figura do senhor Barack Obama é a esfera da política eleitoral. É a tendência também de só enxergar daquele ponto para cima, da política eleitoral para cima.
É como se fosse uma hipnose, onde o seu olhar é levantado para outra esfera na qual corta as raízes com a situação real, E aquilo que é mais simples, mais material, mais óbvio, pode escapar da sua visão. Claro que todas as pessoas que estão discutindo isso, tanto de um lado quanto de outro, são altamente qualificadas intelectualmente, mas está faltando um elemento: a sua realidade humana.
Todas as pessoas que dão palpite nestes assuntos e em outras discussões públicas o fazem como profissionais. O que você é? "Eu sou analista estratégico". O que você é? "Sou comentarista político". O que você é? "Sou professor de Harvard". É a partir desses papéis que eles estão falando. Ora, o seu horizonte de consciência não pode ser circunscrito àquela parte que combina com seu papel social. A pessoa real, de carne e osso, percebe muito mais coisas que não têm medida comum com o papel social e que não podem ser denunciadas em nome do papel social. Esta dificuldade de você jogar com o papel social, com a realidade concreta da sua pessoa, é um elemento de deslocamento.
Até um tempo atrás, quando existiam escritores no Brasil, um dos privilégios da profissão era justamente não poder separar uma coisa da outra. Se ele separasse, se falasse como um profissional, sua literatura estaria acabada, porque seria possível ouvir aquele barulho indicando que não havia nada dentro, não havia substância humana. A profissão de escritor era uma das poucas em que a carapaça da identidade profissional era inofensiva. Mas este é um dos motivos de não existirem mais escritores no Brasil. A possibilidade de um indivíduo falar desde o seu centro vivente, desapareceu. E isto mostra a total destruição da cultura superior porque ninguém produz cultura superior a partir de papéis sociais.
Somente pessoas de carne e osso fazem isso e marcam o progresso do conhecimento, pois submetem as atividades intelectuais à força de sua personalidade. O que seria a obra de Platão, a filosofia de Platão, sem a pessoa de Platão, sem a personalidade de Platão? Nada! Não é isto? A pessoa de Platão transcende imediatamente tudo o que ele escreveu, e é justamente através dos escritores que você tem um vislumbre da pessoa deles, pois que aquilo lhe inspira. A decadência da inteligência humana precisou avançar muito para que esta ideia da integridade da consciência fosse substituída por um símbolo materializado que é o discurso uniformemente coerente.
O discurso coerente é como uma forma artística acabada. Existe a forma artística acabada perfeita? Não, só Deus pode fazê-lo, mas é uma perfeição até certo ponto, algum defeitinho sempre vai ter.
Se você quiser caprichar em seus textos, como o romance realista do século 19 na verossimilhança, por exemplo, você vai tentar fazer com que as coisas pareçam reais. Para fazer com que algo pareça real depende de uma sensibilidade do real e do irreal e de saber como as pessoas, como os seus leitores, vivenciam o real e você, então, poderá se identificar com eles. Não há como você fingir isto. O escritor deseja afinar a sua sensibilidade entre ele, o personagem, a situação e o leitor. Mas essa afinação tinha de ser real. Então, o discurso coerente, quer dizer, uma belíssima demonstração filosófica que se faz só tem o valor, digamos , de uma espécie de perfeição artística, quando se torna um símbolo por detrás do qual você tem de apreender alguma realidade viva que você não vai conseguir transmitir.
Quando vistas assim até filosofias que você não concorda literalmente têm um poder pedagógico enorme. A visão spinoziana da pura demonstração racional sem apelo à experiência e que, no entanto, vai abarcar e dominar de algum modo o mundo da experiência, por exemplo. Como símbolo é uma coisa de um poder extraordinário, nós só temos de saber o seguinte: isto não acontece, não existe, Spinoza não fez e ninguém vai fazer.
Do mesmo modo, quando explicamos nas outras aulas a analogia entre a estrutura das catedrais e a estrutura das sumas, são sistemas simbólicos de alcance cósmico. Eles coincidem com a realidade em tudo? Não, mas a visão daquela estrutura nos leva para além dela e através dela nós conseguimos enxergar mais do que enxergávamos antes; quer dizer, ela nos revela algo que está para além de si mesma. Isto é tudo a que uma filosofia pode aspirar, assim como é tudo a que uma obra de arte pode aspirar, embora se façam por meios diferentes. Mas não esqueçam: o discurso dialético, o discurso lógico analítico, também são construções simbólicas, também são obras de arte e nada mais do que isso. Uma teoria física também não é mais do que isso. Não existe nenhuma teoria física que possa literalmente nos dizer como as coisas se passam na realidade. Não, elas só oferecem uma imagem analógica porque o mundo se compõe de imagens analógicas, tudo significa outra coisa, tudo indica algo que está para além dele.
Reportemo-nos à teoria do círculo de latências: ele é inabarcável quantitativamente, mesmo o mais simples possível, como o de uma formiga, uma bola, uma lagartixa. Nós o percebemos, mas devemos expressá-lo na sua totalidade. Mas para que expressá-lo na sua totalidade se o seu ouvinte também captou o círculo de latência e sabe exatamente do que você está falando? Toda a possibilidade da comunicação humana se baseia na amplitude da consciência do interlocutor. Quer dizer, eu sei que ele tem as mesmas experiências de base que eu; ele pode não se lembrar no momento, mas se eu disser as palavras certas, vou evocar a mesma experiência e tudo aparecerá dentro dos olhos dele com tanta clareza quanto eu estou vendo. Então, o objetivo de um sistema filosófico é esse apenas; não vai, além disso, nunca ninguém foi além disso e não irá.
Digamos que você chegasse à teoria unificada que a física pretende. Dizem até que já chegaram. Você chega a essa teoria que já descreveu o universo inteiro, mas no limite do universo que você descreve tem um negócio que se chama singularidade. E singularidade é um conceito que escapa da teoria física. E as singularidades são três; o físico Frank Tipler diz que são as três pessoas da Santíssima Trindade. Então, a Física chegou ao seu máximo de desenvolvimento e chegou onde já estávamos dois mil anos atrás. E fazer isso já é fazer uma grande coisa.
O discurso uniforme totalmente coerente do princípio ao fim não é possível e não é necessário, porque ele só seria necessário se houvesse um ouvinte perfeitamente burro, incapaz de apreender qualquer significado implícito e que necessitasse de tudo explicitado nos seus mínimos detalhes. Mas esse nível de burrice ninguém alcança, nem a Dilma Rousseff. Todo ser humano entende alguma coisa, mesmo um bebê. Ao se comunicar com um bebê, você sabe que ele sabe muitas coisas que ele não sabe dizer e é só por isso que você consegue se comunicar com ele. Ou seja, toda comunicação humana e todo o conhecimento humano se dá sobre o fundo, em contraste, por assim dizer, que se chama mundo. A experiência inicial que nós temos é o que se chama mundo, nós estamos dentro do mundo.
A idéia que eu analisei na outra vez - de você encontrar o fundamento do conhecimento nos elementos mínimos que o compõem - é totalmente imbecil, porque estes elementos mínimos não existem em si mesmos; fomos nós que por abstração fomos distinguindo uma coisa da outra e chegamos a esta conclusão. Separamos, por exemplo, sensações e pensamento: "Ah, que maravilha!" Só que eu nunca vi um pensamento sem sensação e uma sensação sem elemento de pensamento, mas eu posso me referir a uma coisa e a outra por abstração. Mas se eu sei que a separação, que a distinção, entre sensação e pensamento é uma distinção precária que eu mesmo inventei! Como é que eu, com base nela, posso explicar o próprio processo cognitivo originário do qual eu tirei tudo isto? Este é o verdadeiro Barão de Münchhaunsen, ele conseguiu se puxar para fora da água pelo cabelo.
Assim, nenhum elemento em particular explica a totalidade. A abertura para a totalidade é a experiência inicial e é nela que tem de ser buscada a explicação de tudo; a própria idéia, por exemplo, de você explicar todo o processo cognitivo mediante o estudo do cérebro humano. Sim, no cérebro humano tem um monte de coisas, neurônios, sinapses etc., mas lá não estão contidos os objetos de percepção. Não há um elefante dentro do cérebro humano, não há uma casa dentro do cérebro humano, não há outras pessoas dentro do cérebro humano; eu posso estudar o cérebro humano, sim, contanto que eu entenda que ele não opera sozinho, mas sim em um campo no qual a maior parte dos processos não depende dele absolutamente. Não que eu seja contra o estudo da neurofisiologia, pelo contrário, sou inteiramente a favor, gosto muito, acho maravilhoso; só que muitas vezes a idéia subentendida é de que a nossa visão do universo está dentro do cérebro. Eu pergunto: mas se fosse assim, não precisava do universo, o cérebro faria tudo sozinho. E o mesmo sujeito, que está escrevendo que "a nossa concepção está toda montada no cérebro", nos diz que para manter o cérebro em funcionamento é preciso comer diversos alimentos. É evidente que também é de novo o próprio Barão de Münchhaunsen.
A neurofisiologia cerebral inteira não pode explicar o processo cognitivo porque o conhecimento é conhecimento de alguma coisa; não é o conhecimento do cérebro por si mesmo. O mesmo desastre cognitivo aconteceu no período do idealismo filosófico, no qual queriam explicar tudo a partir do eu pensante. Eles trocaram o eu pensante e colocaram no lugar um negócio chamado cérebro; o eu pensante pareceu demasiado abstrato e eles apelaram para uma coisa que lhes parecia mais física chamada cérebro. Mas isso resolveu o problema? Não, a questão continua a mesma; se o conhecimento é uma relação entre o sujeito e o objeto, você não pode explicá-lo só com base no sujeito, seja ele abstrativamente considerado como um puro eu cognoscente, seja o sujeito considerado como uma massa de moléculas de carbono.
O que nós temos de explicar é a convivência do sujeito com o objeto, e esta convivência é exatamente o que nós chamamos de existir no mundo, estar no mundo e assim por diante. Seria o contato inicial, a presença do ser, como chama o Louis Lavelle. Tudo tem de ser reportado à presença do ser e a presença do ser é permanente, e ela é a base firme com a qual nós podemos contar para nunca nos perdermos no meio dessas análises filosóficas. Mas acontece que as palavras humanas têm essa capacidade de criar um mundinho cósmico, como diria o Eric Voegelin, e nos induzir a raciocinar só a partir da base, da delimitação que elas fazem do mundo. Essa idéia da delimitação é necessária até para fins de método científico, mas tudo que é delimitável foi delimitado a partir de uma coisa que não tinha limite. Por exemplo, quando você demarca um terreno é porque você supõe que existe um terreno ao lado daquele que você está demarcando; ou quando você demarca, some tudo em volta e fica só o seu terreno? Claro que não! O simples fato de haver uma demarcação pressupõe que existe uma área para além do terreno demarcado, e a demarcação só faz sentido em função disso.
Todas essas construções da mente humana têm de ser construídas e dissolvidas o tempo todo, continuamente. Isto imita de certo modo o próprio ritmo da respiração humana. Existe uma maneira natural de pensar? Existe e Aristóteles e Platão dominavam isso de uma forma maravilhosa. Ou seja, fechavam o esquema explicativo e o dissolviam dialeticamente em seguida, não para negá-lo evidentemente, mas para integrá-lo em outro e outro, sem a ilusão de chegar ao produto final. De que adiantaria Platão ter chegado ao produto final, ao conhecimento total e absoluto? Nada, porque Platão morreu. A morte faz parte da natureza humana; nós passamos por essa terra por um período e depois desaparecemos, partimos para outra. E de tudo que nós soubermos, nós só registramos um pedacinho. Nós não podemos e não precisamos saber tudo, porque depois de nós vêm outras pessoas e, querendo ou não, nós estamos integrados dentro desta fileira, desta série dos esforços cognitivos humanos. E estar na realidade é também saber que você faz parte desta série, que é somente mais um elo da cadeia, e que você não será o elo final, como pretendia Hegel, ao tentar alcançar as últimas conclusões e fechar o esquema.
[INTERVALO]
Então vamos continuar aqui, têm várias perguntas excelentes, como sempre. Tem uma aqui que não tem nada a ver com o assunto da aula de hoje, mas vamos aqui abordá-la porque ela é interessante em si.
Aluno: Na última aula o senhor comentou sobre a educação dos seus filhos e da postura que adotou como pai: pai não parceiro de peladas de futebol. Como tenho filho pequeno, tenho lido sobre o assunto e entre outros livros, tem um, que se não me falha a memória, foi o senhor que recomendou aqui no curso ou no True Outspeak (...)
Olavo: Não, não fui eu.
Aluno: (...) A Parent's Guide to Preventing Homosexuality*, de Joseph Nicolosi e Linda Ames Nicolosi, excelente livro. Na obra os especialistas - que atenderam mais de 800 casos de homens gays que não seriam mais ser gays e buscavam ajuda profissional neste sentido -- realçam a importância de brincadeiras físicas envolvendo pai e filho, como lutinhas, jogos, atividades masculinas, que envolvam desde pequeno o pai e o filho etc. Chegam a elencar quatro providências que em seguida ajudariam muito a prevenir o desenvolvimento de condutas homossexuais em meninos, todas envolvendo o fortalecimento do contato e o relacionamento intenso entre o pai e o filho. O senhor leu o livro, não é?* (...)
Olavo: Não, eu não conheço esse livro.
Aluno: (...) Poderia detalhar um pouco a postura que o senhor adotou como pai e pode comentar um pouco, se for o caso, sobre como aconselhar essa pessoa com as necessidades nos dias de hoje de prevenção contra a campanha do movimento gay, que pretende, óbvio, pegar nossas crianças?
Olavo: Eu jamais pensei em prevenir que um filho meu se tornasse homossexual, nem me passou pela cabeça nada com respeito à futura vida sexual dos meus filhos. Mas é absolutamente zero! Eu só pensei duas coisas, na verdade só pensei uma: eu queria que eles tivessem segurança emocional baseada na confiança em que tinham no amor de pai e mãe. Isso evidentemente implica que enquanto a criança é pequena você a carregue muito no colo, faça muito carinho, fale mil vezes "eu te amo!" e ela sentir isto fisicamente. A partir da hora em que sentiu isso, o resto eu acho que está resolvido. Agora, você não pode determinar a vida futura do seu filho a esse nível de detalhamento. Quer dizer, "eu quero que meu filho não seja homossexual" ou "eu quero que meu filho não seja drogado". Qual seria o correspondente em uma criança pequena da sua futura conduta de drogado ou de homossexual? Eu não tenho a menor idéia! O que você tem é criar uma pessoa que tenha uma base emocional muito firme e que possa tomar suas decisões, fazer suas escolhas com ciência de causa e não se deixar arrastar demais por uma influência negativa do meio. As pessoas têm de ser boas, corajosas e sábias. É isto o que interessa!
Aluno: O exemplo é importante.
Olavo: O exemplo é fundamental: que você seja para eles o que você quer que eles sejam. Agora você não pode chegar neste nível de detalhamento. Eu acho complicado o simples fato de o sujeito colocar este problema: "como impedir que seu filho seja homossexual?" Bom, como impedir que meu filho seja militante do PT, o que para mim é pior do que ser homossexual; ou: "como impedir que meu filho seja sócio do mensalão?" É um nível de detalhamento muito absurdo! Entendo que em uma sociedade como a americana, na qual o sujeito tem de começar a juntar dinheiro para botar o filho na universidade antes do filho nascer; então, gerar um filho é como se fosse um projeto. E eu acho que isto mesmo é uma das causas de distúrbio mental.
A primeira coisa que você tem de reconhecer é a seguinte: seu filho não está ali para ser moldado. Ninguém molda ninguém; educação não molda, o pai não molda. Ele é o que é! Quantos espermatozóides existem nas suas bolas? São milhões! Você sabe qual deles que saiu dali? Você sabe qual é a tendência ancestral que está ali? Você não tem a menor idéia de quem é a pessoa. O que você pode ensinar a ele são coisas muito básicas que tenham valor universal, como se fossem os dez mandamentos. Mas os dez mandamentos entendidos em sua verdadeira amplitude, e não como regrinhas de conduta, como regrinhas de conduta concreta nessa situação ou aquela. Se você entra nisso, você já está pervertendo a pessoa.
É o desejo de moldar a conduta que atrapalha muito as relações, já que torna artificial a relação com o seu filho. Você está agindo com ele em função de um plano que você tem, mas que ele desconhece completamente. Sua relação não está se dando no presente, mas sim em torno de um futuro hipotético, que a criança ignora completamente. Não se trata mais de "educação", mas de manipulação; educação tem de ser para funcionar na hora, não é para desencadear resultados dali a vinte anos. Você não pode controlar os resultados depois de vinte anos. Eu pensei: "quais são os valores mais básicos e aqueles que se transmitem sem palavras?" Seria o amor, a bondade, a coragem; todas estas coisas você ensina a uma criança sem falar nada, sem passar regra nenhuma.
Agora, por exemplo, lutinhas, jogos etc., eu não sei que importância tem isto. Quando chega a idade das lutinhas e jogos a criança já está emocionalmente formada e é isto que é importante. Vai se formar emocionalmente até os três anos. Outra coisa: No caso da lutinha você está se igualando a ela, você está virando amiguinho dela, não é disso que ela precisa. Deus não deu o pai para a criança brincar, mas para protegê-la e ajudá-la até que ela possa andar sozinha. Então, é esse sentido, sobretudo o da proteção emocional, que a criança tem de sentir e a coisa fundamental é ela sentir que você está do lado dela, que você não está ali para ficar corrigindo e isto é muito importante. Para o sujeito começar a entender a correção que você passa, ele precisa ter, no mínimo, uns cinco anos; antes disso, não entende direito. Só entende a comunicação em um nível emocional e quase físico. E se você fez esta parte certa, não vai ter muito o quê corrigir e proibir depois, porque a criança tem um instinto de imitação e de obediência que é uma coisa incrível. Obedecer ao pai, obedecer à mãe é um negócio instintivo; a criança quer isto, desde que você não esteja ocupado em moldá-la. É a preocupação de educar, de moldar a criança que eu acho que atrapalha muito.
Você tem de pensar é na relação presente, não nos efeitos futuros - que você não controla. E a relação presente tem de ser muito real, muito verdadeira e inteiramente baseada no coração humano, como a relação que você tem com qualquer outra pessoa. Isso quer dizer, por exemplo, "eu posso controlar a conduta de vocês no futuro?". Não, o que eu posso é tentar dar um exemplo agora de sinceridade, de abertura, de franqueza; isso eu posso mostrar aqui agora e é por isso que funciona. Se eu for calcular um resultado para depois... Eu não sei se há um educador que diz que a educação é uma arte de resultados imprevisíveis; quanto mais a educação doméstica não será uma arte de resultados imprevisíveis. Vamos fazer o seguinte: deu o que der, não importando o que vai resultar, o núcleo será bom e estará firme, e é só isso que interessa. Preocupar-me com a futura conduta sexual do meu filho, eu acho, sinceramente, que é uma perversão; tem de partir das coisas básicas... Você acha realmente que a conduta sexual de uma pessoa é uma coisa básica na vida dela? Eu acho que não, assim como a sua conduta alimentar.
Eu não acredito de maneira alguma que o sexo seja uma das bases da personalidade, de jeito nenhum. Isso aí é moda freudiana, a qual diz que se você conhece a conduta sexual do sujeito, você sabe tudo. Conhecendo a conduta sexual do sujeito você não sabe nada a respeito dele. Analisemos a conduta sexual de Eric Voegelin: no que ela nos ajudará a entender o pensamento ou da personalidade dele? Quase nada! As condutas sexuais das pessoas às vezes decorrem de circunstâncias passageiras, de influências, de fantasias passageiras. Ademais, eu já falei para vocês, eu não acredito em personalidade homossexual. O livro do Randy Engel, The Rite of Sodomy, é fundamental a este respeito: não existe personalidade homossexual, o homossexualismo não é um tipo humano, o homossexualismo é apenas uma conduta. Você acha que a estrutura de personalidade fica muito diferente porque o sujeito é homossexual? Claro que não, isso aí não é uma coisa tão básica.
Aluno: O homem se comportar como homem ou então o homem se comportar como mulher, isso eu acho que é uma coisa um pouco mais estrutural, não?
Olavo: Inerente a outras coisas, se um homem se comportar como um homem, se se comportar como mulher, isso depende do primeiro modelo que foi passado para ele
Aluno: A mulher se comportar como homem não é tão secundário (...)
Olavo: É absolutamente secundário porque depende do modelo externo, depende do primeiro modelo que foi absorvido. (...)
Aluno: (...) que às vezes influencia as decisões que aquela pessoa vai tomar, não? Por quê?
Olavo: Eu acho que não. Sinceramente, eu acho que sexo é um elemento bastante periférico na personalidade. Neste caso, precisaríamos entrar muito na questão do problema do caráter. Quando nós tiramos no estudo da astrocaracterologia a noção do caráter, ele não tem sexo e a estrutura básica. O simples fato de existirem pessoas que nunca tiveram vida sexual alguma e que isto não fez a mais mínima diferença para elas já mostra isto. Essa cultura moderna tem uma obsessão sexual; é claro que sexo é gostoso e ninguém nega, e que também, é claro, é um negócio que vicia: você fez uma vez, você quer duas, três, quatro... Mas isso não quer dizer que seja uma coisa realmente profunda na pessoa. Eu acho que o que importa é a personalidade de base, e nessa personalidade de base o aporte sexual é mínimo. Mas eu acho que os primeiros modelos interessam muito. Você vê os seus pais se comportando como homens vai querer imitar. É natural a menina se comportar como menina e o menino como menino. Não precisa forçar ninguém precisa ensinar isso. Se acontecer alguma coisa diferente é porque entrou algum outro sinal. Sem contar que pode haver um lado remotamente genético na coisa, e se tiver, aí ninguém segura.
Em suma, acho que a chamada opção sexual - eu não acredito em opção, eu acredito em conduta sexual -- é um mistério, ninguém sabe o que causa isso. E se eu não sei o que causa, por que eu vou tentar mexer numa coisa dessas? Eu sei o seguinte: que nenhum dos meus filhos se tornou homossexual, nenhum se tornou drogado, nenhum se tornou bandido. Por quê? Sorte. E a sorte depende muito da sua boa intenção, da sua intenção reta.
Agora, se você desde que a criança nasce já pensa: "Não, meu filho corre o perigo! Meu filho vai ser homossexual, meu filho vai ser drogado, meu filho vai ser..." É melhor não ter filho! Você tem de confiar um pouco na criaturinha também, não é? Quer dizer, uma coisa baseada no medo e na prevenção já começou errada.
O livro pode ser ótimo, as técnicas podem ser ótimas, mas eu jamais me preocuparia com isso. Eu nunca me preocupei com o que meus filhos iam ser no futuro; preocupava-me com o que eles eram naquele momento, e isto eu acho que passou para eles um senso de autenticidade, de veracidade, de sinceridade nas relações. Pior que funcionou! Eu também não tenho uma técnica para isso, eu dou apenas alguns palpites baseado na experiência pessoal. Bom, lutinhas, jogos podem ser de vez em quando, mas eu não vou ficar pensando: "Ah, meu filho precisa disso porque é pedagógico". Eu acho que não é uma coisa natural, não é espontânea, é muito planejado, é muito premeditado e isso falseia completamente a relação.
O instinto que você tem de transmitir amor para a criança, de fazê-la se sentir feliz, isso é natural e imediato; assim como o instinto que ela tem de lhe obedecer e de imitá-lo. Com o sentimento de honra que a criança tem diante do pai e da mãe, ela se sente importante e isto é natural. Por que se sente importante? Porque eu vi que muitas vezes meus filhos pediam autorização para fazer as coisas mais óbvias: "posso ir ao banheiro?", "posso comer?". E eu respondia que "claro que pode!" Mas se já sabe que pode, por que ele pergunta? Porque ele fazer a coisa com a autorização do pai é algo mais. O pai como fonte de prestígio, como fonte de segurança, é muito mais importante do que ficar brincando de lutinhas e joguinhos. Saber que o pai está por trás dele, do lado dele dá a sensação de autoridade, de que ele está agindo com um mandato. Isto é instintivo, não é planejado e não é para dar um efeito futuro, você sente isso na hora, até cachorro sente isso.
Eu contei a vocês quando a carrocinha pegou meu cachorro: colocaram o bicho lá em uma gaiola, quando eu o vi, fiquei triste para caramba. Na hora que eu o chamei e ele me viu, virou para os outros cachorros e começou a rosnar para quatrocentos cachorros, porque sentiu que agora estava com as costas quentes. Se você pode passar isso para um cachorro, como é que você não pode passar para uma criança? E por ter costas quentes, ele lhe obedece instintivamente. Agora, a cultura moderna já começa a meter nas cabeças das pessoas o seguinte: a idéia de que criança é um bicho rebelde - é uma idéia meio hobbesiana - é um bicho irracional, tendente à rebeldia e que você tem de domar ou modelar desde o início. Se eu pensasse isso, jamais teria um filho; pra que vou arrumar uma encrenca dessas? Eu pensei assim: "Não, eu tenho um filho; de algum modo ele vai ser parecido comigo, ele vai gostar de mim e é uma pessoa muito próxima, não tem o que estranhá-la, não tem do que ter medo, temer pelo o que ela vai ser no futuro..." Eu tenho de ter essa confiança nela! Se você não tem essa confiança de base, não pode ter um filho. Se você disser: "É claro que ele vai cometer erros". Vai! Mas em essência ele vai acertar. Ele vai cometer muitos erros, mas o importante é ter uma linha central, e essa linha central é definida pela segurança afetiva de base, que você deu entre um e dois anos. Então, se você tem um bebê pequeno, carregue ele no colo o quanto puder, faça todo o carinho do mundo, fale bastante com ele e não tente educá-la. Quando chegar o caso de precisar educar é porque alguma coisa deu errada.
Aluno: "Maravilha, acho que entendi a questão. (...)
Olavo: A questão do ser necessariamente possível. Então diz ele:
Aluno: Suponha que eu tome um dado de pôquer e o atire sobre a mesa. Quando ele parar, estará com uma de suas faces correspondendo aos números 1, 2, 3, 4, 5 ou 6 voltados para cima. O dado com o número 4 voltado para cima é algo obviamente possível; isso pode até não acontecer, mas esse fato é necessariamente possível. E esta necessidade só pode ser realizada concretamente porque o dado possui uma das faces com o número 4. (...)
Olavo: Claro!
Aluno: "Dito de outro modo, a necessidade da possibilidade tem de existir de algum modo em ato". (...)
Olavo: Era isto que estava tentando explicar, não sei se eu consegui explicar direito, mas mesmo que eu tenha explicado mal, vocês entenderam, perfeitamente! É exatamente isto, Guilherme.
Aluno: "Então, a sua tese está mais do que correta: a existência da possibilidade da existência de um ser implica a existência de um ser necessário".
Olavo: Sem sombra de dúvida! Então, vamos lá. Athos Barbosa Lima me escreve um negócio longuíssimo, muitíssimo interessante. Ele diz que começou estudando direito (...)
Aluno: ...e pouco a pouco comecei a ter uma visão mais clara das coisas e para resumir terminei finalmente reencontrando a mim mesmo e restabelecendo meu contato com a realidade, comecei então, após o COF a ter confiança em minha consciência individual, a olhar as coisas com máxima sinceridade e buscar sempre confrontar meu juízo pelo crivo do testemunho pessoal da realidade. Percebi a extrema importância de algumas experiências primordiais, senso de injustiça e noção de justiça, distinção elementar entre o relativamente possível e o impossível, descompasso entre o real e o imaginário etc. E como em questões absolutamente existenciais já sabia algo por apreensão imediata, direta e reiterada da realidade que no fim das contas eu precisava apenas me lembrar das coisas tal qual as havia presenciado.
Olavo: Isso é coisa básica. Quer dizer, esta primeira etapa que é a passagem direta da experiência para a verbalização, é aí que todo mundo tropeça. Porque você não sabe contar o que aconteceu, então é mais fácil você pegar um conceito já estereotipado, já pronto e começar a raciocinar a partir dele. Lembre-se de que no começo do curso eu disse o seguinte: a primeira coisa tem de ser formação literária. Você tem de ter o domínio do idioma que lhe permita dizer as coisas como elas se passam. Se você não tem a capacidade da expressão da experiência, da expressão da impressão, como dizia Benedetto Croce, você vai perder muito. Às vezes você não tem a capacidade direta, mas pode ler um monte de poetas etc., você será capaz, mesmo sem conseguir escrever, de ter uma espécie de antevisão daquilo, quase uma premonição de como você vê a expressão verbal. Se você não tem esta elaboração da experiência inicial, vai saltar sobre a experiência e pular direto para algum conceito, e o conceito virá pronto de algum lugar. Então, pronto, complicou tudo! Mas, digamos, são essas experiências de base que devemos descrever para nós mesmos e toda a filosofia do mundo está aí. Por exemplo, qual foi a sua primeira experiência do que você chamaria mais tarde de justiça ou de injustiça? Tente descrever o conteúdo cognitivo dela, o que essa experiência estava afirmando? O que ela disse para você? A experiência não vem com a expressão verbalizada, mas é a extrusão, quer dizer, é o magma saindo por entre as rochas. Você tem uma carapaça dura e de dentro vem a substância viva, ardente, é isso que você tem de tirar, a verdadeira substância da experiência. Se você tiver a capacidade de expressá-la literariamente, quer dizer, contar o que se passou, facilita. Mas às vezes não precisa. Procure puxar de dentro dela o que ela está dizendo. Você não precisa assumir o pressuposto de que há uma mensagem divina e que são os anjos que estão falando com você, às vezes são os anjos mesmos, às vezes é Deus mesmo, mas a realidade está dizendo alguma outra coisa. Não se esqueçam do seguinte: antes mesmo de Deus mandar escrever a Bíblia, ele criou um negócio chamado realidade, então esta é a linguagem primária de Deus. Os fatos dizem alguma coisa. Às vezes é difícil você puxar isto aí, mas fazendo uma forcinha você chega lá.
Aluno: Quando certo dia eu li uma pequena carta de Leibniz com apenas 20 parágrafos apontando uma série de incongruências nas concepções do naturalista Samuel von Pufendorf, tive um estalo. É isso! Pensei: essa é a compreensão de sujeito dentro da carta que o que eu estou procurando. Percebo de alguma forma o direito tem fundamento na própria estrutura da realidade e que eu posso na medida do possível apreender algo a acerca dela. Percebo a unidade do real, por exemplo.
Olavo: Se não existe unidade do real, todo código seria impossível. O código tem uma estrutura hierárquica, quer dizer, uma coisa depende da outra, que depende da outra, que depende da outra e você tem alguns princípios fundamentais. Um código incoerente é impossível de se cumprir, porque ele diz "sim e não", ele torna obrigatório o que é proibido e vice-versa. Mas se isso for apenas coerência lógica, então seria a coerência dos pensamentos do legislador. Mas como é que você faria para ajustar a sua conduta aos pensamentos do legislador se ela não tivesse algum fundamento na realidade, mesmo que esse fundamento na versão verbalizada que ele ofereceu apareça pervertido ou alterado? Algum fundamento tem. Então, por exemplo, medite essa questão do direito divino dos reis. Realmente as pessoas vêm isso aí sob um aspecto materializado, quer dizer, trata-se de um sujeito poderoso que decidiu justificar o seu poder mediante a alegação de um mandato divino. Esse raciocínio, que é o tipo iluminista, esquece o seguinte: o poder já precisaria existir antes. E de onde ele veio? "Ah, o sujeito tomou o poder". Bom, ele tomou porque tem meios. Para ele tomar o poder ele precisa ter o poder de tomar o poder. E você vai recuando, recuando, recuando e percebe: algum fundamento na estrutura da realidade o poder tem. Este é o fundamento divino. Mas e quando se raciocina a partir de conceitos que já foram elaborados tardiamente na história, por exemplo, o conceito que hoje nós temos de poder político? Bom, esse conceito foi depurado, passou por muitas transformações até chegar a isso. Não tem mais a raiz experiencial de onde saiu. Se você começa a raciocinar a partir disso, o que quer que você conclua, na melhor das hipóteses, só vai ter valor doutrinal, hipotético. Você não está falando de realidade.
Aluno: O senhor fez um comentário sobre um assessor do Obama que quer proibir as teorias da conspiração. Ele diz que tem uma associação qualquer com o Jonathan Key.
Olavo: Eu não sei qual é a associação, mas eles pensam da mesma forma. Um está falando em teoria o que o outro está dizendo na prática. As teorias da conspiração são um perigo porque elas quebram a unidade da realidade, são um perigo para a ordem social e, sobretudo, um perigo para o controle que os intelectuais - digamos as pessoas mais iluminadas, como ele mesmo -- exercem sobre a vida cultural. Eu pergunto: para que o controle? Por que todas as hipóteses não podem ser colocadas em circulação e não podem ser investigadas? Existem hipóteses tão imbecis que por si mesmas acabam desaparecendo. Existem outras que também pela sua própria natureza só atraem determinados tipos psicológicos que vão se grudar naquilo e formar um círculo dos crentes naquilo. Que mal se pode fazer para quem não está no círculo? Existe também uma tendência de você raciocinar a partir desses símbolos, como por exemplo, racismo. Racismo não é só um conceito científico, é também uma acusação que você lança sobre os outros. Se você quer elaborar um conceito científico da coisa, então não basta pegar vários fatos, vários fenômenos. Você quer elaborar um conceito. Então você pega vários fenômenos. Mas por que você os selecionou? Porque eles ilustram o seu conceito, então o seu conceito é o critério de seleção com que você juntou os fatos. Então é claro que é um raciocínio circular, não basta para formar um conceito. Você começa a possuir o conceito na hora em que consegue delimitar um fenômeno do que não é ele. O conceito é sempre um negócio dialético. É na distinção que você verá como é que funciona realmente um conceito. Por exemplo, se eu quero fazer um conceito da teoria da conspiração, já estou dando inicialmente a isto um sentido pejorativo. A teoria da conspiração é essencialmente falsa, embora ela possa ter, digamos, um grão de verdade, se eu a defini assim, então vou ter de separar este conceito de coisas que se parecem com teoria da conspiração, mas não o são. Por exemplo, ao falar de teoria da conspiração, a primeira coisa que ocorre ao americano é macarthismo. Mas tem o seguinte: tudo o que o macarthismo disse acabou se provando verdadeiro. Mais até do que ele disse. Então como você pode chamar de teoria de conspiração? Se você chamar por esse nome é porque você não gosta ou porque você não sabe das investigações posteriores. Ou quando analisamos o papel dos birthers. É claro que existe uma imensidão de conjeturas, mas não conheço um único birther que apresente a sua história inteira como se fosse verdadeira, então não chega a perfilar uma teoria da conspiração, são hipóteses conspiratórias apenas, e sem contar que se você mencionar um único fato que está dentro da cadeia argumentativa dos birthers, você já é considerado um deles automaticamente, e já entra no grupo daqueles chamados de teóricos da conspiração. Eu acho, por exemplo, que toda essa teoria da conspiração - nasceu em Mombaça ou nasceu no Polo Norte? -- é perfeitamente inútil, nós temos de rastrear os fatos. E uma boa parte desses fatos aparece não na história do Barack Obama, mas na conduta da mídia. É como a história do Foro de São Paulo, na qual o Rodrigo Constantino afirmou que eu descrevi o Foro de São Paulo como uma conspiração. Na verdade, eu descrevi como um fenômeno de massas, portanto não pode ser conspiração. Houve conspiração? Sim, mas não do Foro de São Paulo. Houve conspiração quando meia dúzia de jornalistas decidiu não contar a história. Se essa conspiração está associada ao Foro de São Paulo ou apenas se superpôs a ela, eu não tenho a menor ideia. Você tem um imenso movimento político para tomar o poder na América Latina e optaram por escondê-lo. Parece uma conspiração, mas o elemento conspiratório não veio do próprio Foro de São Paulo, veio de fora. É muito difícil saber a relação entre as duas coisas. Mas o que eu asseguro é o seguinte: é que dentro do próprio Foro de São Paulo não houve de início nenhum esforço para esconder nada. Eles apostaram naquele negócio de que o segredo se protege a si mesmo, como disse o Lula: "Ninguém vai entender do que nós estamos falando". Então não precisa esconder, não precisa fazer conspiração, a gente publica as atas porque ninguém vai lê-las, como de fato não leram. Então, não tem estrutura clássica de uma conspiração. Mas, a ocultação vinda por outro lado dá um ar conspiratório.
Aluno: Qual a diferença fundamental que existe entre o centralismo governamental antigo e o centralismo burocrático da modernidade?
Olavo: A diferença é essa que eu estava mencionando no começo, os equipamentos, os meios. Você imagina, por exemplo, a dificuldade que você teria para fazer o cálculo da produção do PNB. O faraó falou: "Eu quero saber qual é o PNB do Egito". Ele não tinha nem instrumentos, nem funcionários para isso. Quer dizer, seria um problema horrível. Você não tinha nem unificação dos pesos e medidas. Veja, na França, esta unificação dos pesos e medidas só ocorreu no século XIX. Cada cidade tinha pesos e medidas diferentes, e essa diferença era importantíssima, porque afirmava a autonomia da autoridade local. Questão de soberania. Então, era muito difícil você calcular uma coisa como Produto Nacional Bruto. A partir do século XIX, o livro Trust in Numbers, de Theodore Porter, mostra esse processo: a forma como o aporte das ciências matemáticas, da tecnologia, das ciências sociais foi simplificando o trabalho dos governos e dando na mão deles instrumentos de controle que os antigos nem poderiam imaginar. Imagine o exemplo clássico de quando Luís XIV formou o seu exército, o maior da Europa na época, com 144 mil homens. Hoje é isso é um nada. Ele teve de ir pessoalmente de cidade em cidade pedir para as pessoas se alistarem. Não tinha sequer uma estrutura burocrática suficiente para fazê-lo. O recrutamento militar obrigatório foi uma coisa que só veio com a Revolução Francesa. E ninguém tinha tido esta idéia antes: toda a sociedade está envolvida na guerra. Essa idéia não tinha ocorrido a ninguém na Europa até aquele momento. A guerra era ocupação de certa casta de pessoas e a própria estrutura social impunha isto. Se for uma estrutura de castas, então é claro que a divisão entre elas é importante. A atribuição de funções diferentes está na base da própria estrutura social. O recrutamento militar obrigatório e geral desmente isso e desmantelaria a própria estrutura social, então era impossível. Ás vezes as pessoas leem "Ah, antigamente as pessoas aprovavam a escravidão e achavam normal, ou era comum os muitos ricos dominarem os muito pobres etc." As pessoas acham que é uma questão de opinião. Não havia meios de produção suficiente para você dar um padrão de vida razoável para todo mundo. A diferença, ou a opressão do mais pobre pelo mais rico não é era aprovada, era inevitável. Não tinha outro jeito. Qualquer proposta igualitarista ou democrática fora dos meios econômicos e sustentáveis seria um absurdo, então ninguém sabia por que a idéia não fazia sentido naquele contexto. A exploração do trabalho escravo parecia natural, porque você não tinha capital para pagar milhares e milhares e milhares de empregados. Qual era o seu capital? É o próprio trabalhador, ele é o seu capital. Então você tinha o quê? Dinheiro para pagar empregados? Não, você tinha um empregado, ele era seu escravo. Não era moeda. Ele próprio era a moeda. As pessoas olham o passado, vamos dizer, com conceitos já estereotipados do presente. Não é possível entender nada desse jeito. Eu sugiro sempre a prática de você sempre se colocar, digamos, imaginariamente na posição do outro como um ator mesmo - e por isso que eu recomendo que estudem o Stanislavski - para você retirar qualquer aura de inverossimilhança que tenham na conduta do outro até você se identificar. Você não ficará maluco. Transformar-se-á em outra pessoa e depois voltará. E se você fizer isso com vários personagens, um anula o outro, e não haverá problema algum. Isso é necessário até para entender o passado. Leiam as primeiras páginas do Johan Huizinga, O Outono da Idade Média, onde descreve o ambiente físico, o ambiente auditivo. A noite numa cidade da Idade Média, por exemplo. Silêncio total e absoluto. Então, um grito era ouvido na cidade inteira. Atualmente, ao ouvir um grito você não sabe nem se veio da televisão. Precisamos tentar imitar a situação imaginariamente e a elasticidade da imaginação humana é muito grande para isso. A diferença fundamental entre os centralismos são os meios. Um governo democrático hoje é muito mais centralizador do que o governo dos faraós. Não porque ele queira, mas porque ele tem os meios que o faraó não tinha. Imagine o sistema de educação que vai moldar a cabecinha das crianças desde pequenininhas para ter certas condutas. Você acha que o faraó tinha isto a disposição? Não tinha. O poder que um governante tem hoje sobre o cidadão comum, é assim, é imensamente maior do que o poder que o senhor de escravos tinha sobre o seu escravo trezentos ou quatrocentos anos atrás. Não que o governo queira me escravizar, mas se ele me escraviza querendo ou não, porque a diferença de poder é tão incomensurável é o mesmo que dizer que o governo faz o que quiser com você. Se quiser sumir com você, some. Vocês sabem que a carreira do casal Clinton é marcada por uns vinte assassinatos. E sumiços. Você não tem nem meios para investigar. Pensem na carreira do Barack Obama, nos documentos que sumiram. Os documentos sumiram em Mombaça, em Nova Iorque, em Washington, na Califórnia. Custa muito dinheiro produzir esse sumiço. Que meios de investigação você tem? Quando formaram essa comissão do xerife Arpaio, ele teve de sair passando o chapéu porque a coisa iria custar algum dinheiro.
Aluno: E depois o jornalista Bright Eyes apareceu morto no Texas.
Olavo: Sim, e depois apareceu. Morreu o Bright, mas depois morreu o médico legista que examinou o Bright. Isso aí é o Toninho do PT, é o prefeito de Campinas, o Celso Daniel. O Toninho do PT também não foi assim?
Aluno: No caso do Celso Daniel tem oito mortes.
Olavo: No caso Celso Daniel, já morreram oito; no Clinton, vinte. Estamos numa democracia, você tem a liberdade formal de investigar, mas às vezes não tem os meios materiais. Esse é o processo de controle, o mais eficaz; se o sujeito não tem meios de fazer algo ele não fará. Quando analisamos a legislação e esses panacas todos que acreditam na liberdade crescente, na democracia etc., eles estão fazendo abstração dos meios materiais. Eles estão levando somente em conta o texto da lei. É o estado hipnótico, quando você raciocina não a partir da realidade que está vendo, mas por meio de uma espécie de impostação; só enxerga de certo nível para cima, você não olha para baixo.
Aluno: Você acha que os liberais são assim?
Olavo: São todos assim em toda parte. Hayek é assim. Hayek, quando acredita só nos processos espontâneos, está fazendo abstração do fato que eu considero o fato básico da história humana que é a diferença de poder, e do fato de que essa diferença de poder tem crescido. Imagine, por exemplo, se o faraó da antiguidade poderia liquidar setenta milhões de pessoas como fez Mao Tsé-Tung. Ele não tinha meios para tanto. Antigamente as pessoas tinham que ser mortas, uma por uma. À mão. É fundamental ter o conceito correto de "meios materiais de ação". Quais são os meios que a ação planejada exige? E qual é a possibilidade de saber se você tem os meios de conquistar os meios?
Aluno: É interessante porque os liberais, que não foram investigados, falam tanto em ação humana.
Olavo: Quando pensam em "ação humana" pensam somente na escolha: o consumidor fazendo escolhas no mercado. O que ele vai comprar. Então não é a ação humana real, é apenas um estereótipo, não é um tipo de ação humana. Quanta gente deu palpite sobre o Foro de São Paulo? Tem gente que diz, "Não, o Foro de São Paulo não tem todo esse poder." Qual poder? Eu não sei. Mas eles fazem pressão e dizem que eu aleguei que o Foro de São Paulo domina a situação. Eu posso ter usado esta expressão, mas com "domínio" eu quis dizer que o Foro tem o controle total de todos os processos? Ora, obviamente não! Mas ele tem o controle de processos dos quais sobre os quais os seus eventuais opositores não têm controle algum. Não é que ele tenha força, é que seus opositores são demasiados fracos. E os planos do Foro de São Paulo deram todos certos? É claro que não. Eles ainda estão pensando em quando vão fazer o raio do socialismo. E nem sabem que raio de socialismo querem. Não é que a organização tenha o controle da situação. Ela simplesmente tem muito mais poder do que seus possíveis adversários, quer dizer a diferença é desproporcional de poder. É isso que eu quero dizer. Se o sujeito argumentar: "Não, o Foro de São Paulo não tem tanto poder assim". Mas quanto? Eu não estou falando da quantidade absoluta eu estou falando em relação aos seus opositores. Se ele não tem, quem tem? Serão vocês? Tudo isso é abstracionismo, raciocínio hipnótico, raciocínio histérico. O sujeito histérico não sente aquilo que vê; ele sente aquilo que imagina, ele mesmo produz a situação que sente. Tudo isso é uma forma de histeria. A histeria é a doença do intelectual moderno. Esse livro do Martin Malia, Tragédia Soviética começa com o longo estudo do porque que a sovietologia ocidental, com todos os recursos que tem, com todos seus critérios científicos, com todas as suas revistas acadêmicas, congressos, institutos, arquivos etc. não conseguiu prever o fim da União Soviética, e é o contrário, praticamente todos os sovietólogos acreditaram que o regime soviético era capaz de se reformar e melhorar e de prosperar indefinidamente. Como é que você explica isso? Essa total incapacidade? É o mesmo problema do Foro de São Paulo. Ouçam essa citação: "... que buscar a sua própria alma o princípio unificador a inspiração na filosofia desde o início. A inspiração nos pré-socráticos e em Sócrates e Platão..." Isto não tem relação com a vocação de estudar filosofia numa faculdade, que é o desejo de realizar determinado papel social. A conquista de um papel social para o indivíduo é uma grande vitória. Ele é um João Ninguém, agora ele é alguém, é professor, é sociólogo, cientista político, é uma identidade dele. Isto pode ser tão importante para o indivíduo que o conteúdo do conhecimento se torne secundário. Raramente coincide de um papel social ser propício à investigação. Veja no caso do Eric Voegelin, a seriedade com que ele via a tarefa acadêmica dele facilitava a investigação da verdade. Porque ele se formou num meio onde de fato a vida acadêmica era muito voltada para a investigação da verdade. Foi um dos períodos mais criativos da história das universidades. De certo modo ele trouxe isso para cá. Porém, quando voltou para a Alemanha para lecionar em Munique, as pessoas já não eram assim. Ficavam escandalizadas com o que ele dizia, porque ele não correspondia às categorias da ciência política tal como eles tinham aprendido. Pouco interessa as categorias, ele está falando da realidade do que aconteceu! Se for tão importante para você a conquista do papel social ou a sua integração numa comunidade acadêmica, e então certamente isso vai predominar sobre o desejo de conhecer a realidade. Você vai querer conhecer no máximo a disciplina. E, portanto, vai conhecer a disciplina tal como os outros estão praticando e você vai, mais ou menos, repetir o mesmo discurso. E a qual objeto àquilo se refere? Eu pergunto: qual é a influência que a sovietologia acadêmico-ocidental tinha nas decisões do Kremlin? Nenhuma, zero. Então você está tentando aprender sovietologia, o que você está aprendendo? O que se passa na cabeça dos sovietólogos ocidentais. O que isso tem a ver com a política soviética? Nada. Então é lógico que, por trás do consenso da mídia e dos meios acadêmicos, aconteceu outra coisa completamente diferente e que isso foi planejado, foi pensado de antemão por alguém. Os críticos ficam loucos da vida e dizem que é teoria da conspiração. Ora, não vão confessar que são uns trouxas! O agente Anatoli Golitsyn, com muitos anos de antecedência, o que os soviéticos iriam fazer. E eles fizeram exatamente tudo o que ele disse e ainda tem gente que acha que isso é teoria da conspiração. Por quê? Se o Golitz tinha razão, nós (os críticos) somos umas bestas quadradas, não enxergamos nada. É praticamente a desmoralização de uma profissão inteira. Cria-se um braço de ferro. É o desejo de conhecer a realidade contra a sobrevivência de uma profissão. Em geral, a profissão ganha. E a realidade continua ignorada. Eu não sei realmente se o Golitz tinha razão. Talvez o Golitz tenha exagerado no aspecto do controle, do plano. Mas que o plano existiu, existiu. Se o plano deu certo ou não, nós não sabemos ainda. Isso ainda está se desenrolando. A reconstituição da União Soviética está em processo. Nós não sabemos se isso vai dar certo ou não. O que nós sabemos é que, decorridos dez anos da queda da União Soviética, o movimento comunista soviético nunca esteve tão forte. Se você disser "Ah, foi coincidência". Ou algum erro que nós fizemos. Eu pergunto: como? O erro que você fez não determina a conduta do seu adversário. Você faz o que você quer, e ele faz o que quer, não é o que se passa na sua cabeça que determina o que ele faz. Os seus erros não determinam os acertos da parte adversária. Você botar na cabeça de qualquer americano que existe outra força agente fora dos estados Unidos é muito difícil, porque eles pensam da seguinte forma: os Estados Unidos são o cachorro e o resto do mundo é o rabo. Acontece que os russos pensam a mesma coisa que eles.
Transcrição: Antonia Javiera Cabrera Muñoz e Tamas Ribeiro
Revisão final: Fernando José da Silva