Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 151
21 de abril de 2012
Boa noite a todos, sejam bem vindos.
Eu queria continuar com aquelas explicações da apostila que eu coloquei online.1 Nós paramos na página 12, na versão PDF, no finzinho da citação do Harry Redner, que falava da nova geração de filósofos acadêmicos e terminava assim:
[...] Para esses profissionais acadêmicos, a filosofia melhor adaptada às suas exigências era uma que não dependesse de teorias, de idéias ou de nenhum fundo de conhecimentos de ciência ou das humanidades, e que não se engajasse em questões contenciosas da vida social e política. O que eles queriam era um modo de filosofar que pudesse ser praticado como uma habilidade técnica a ser aprendida pragmaticamente por meio de um treinamento no próprio ambiente profissional por meio da discussão, mais ou menos como o dos advogados.
Termina a citação, e daí o texto da apostila continua assim:
Que é o "treinamento no próprio ambiente profissional" senão o tão desprezível, tão dispensável contato direto entre professor e aluno? Afinal, por que os advogados, entre os quais o sr. Júlio Lemos, não estão habilitados para o exercício profissional tão logo recebem seu diplominha, mas têm de fazer estágios em escritórios de advocacia, ver com seus próprios olhos como funcionam os tribunais, cartórios, registros de imóveis e delegacias de polícia, aprender por experiência viva como se aborda um juiz de direito, como se obtêm os favores de um escrivão, como se persuade um cliente a negociar com a parte contrária? E quem não sabe que, na prática, o profissional investido dessas habilidades levará infinita vantagem sobre o bacharel eruditíssimo sem experiência direta?
Se a "filosofia analítica" pode prescindir do contato direto entre mestre e discípulo, por que teria sido justamente essa a modalidade preferencial de ensino usada para impor o prestígio dessa escola nas universidades americanas?
Tal como a ojeriza ao não-verbal, o desprezo ao ensino direto é uma afetação, uma pose, adotada como reação irracional de momento, não uma opinião maduramente pensada com conhecimento do assunto.
Agora vamos entrar na parte mais interessante do negócio:
É pura fantasia do sr. Pinheiro acreditar que atribuí às escolas catedrais e monacais a posse de uma "filosofia" superior à escolástica do século XIII. Mas ele não erraria tanto se afirmasse que enxergo nas primeiras uma sabedoria cristã superior à da média dos professores e estudantes universitários que vieram depois e que entendo a grande filosofia de Tomás, Alberto, Boaventura e Scot menos como um "produto" do meio universitário e mais como o desenvolvimento natural e, por assim dizer, a exteriorização intelectual da cultura cristã herdada das escolas catedrais e monacais através da formação monástica recebida na juventude por esses quatro grandes mestres, que os imunizou contra a tagarelice pedante, não raro herética, do meio universitário.
A imagem que se tem das universidades, baseada na grandeza das realizações da filosofia escolástica nesse período, é um efeito de superposição; quer dizer: há duas imagens, elas se superpõem uma à outra, e você acha que é uma coisa só. Mas não é de maneira alguma. O fato de os quatro principais representantes da filosofia escolástica serem monges ― e não membros do clero secular que dominava as universidades ― já mostra, primeiro, que não eram produtos típicos da universidade ― quando chegavam à universidade, eles chegavam adultos; já vinham com a formação recebida nas escolas monacais; já vinham com a mentalidade formada. Em segundo lugar, se você vir os antecedentes filosóficos ― o começo da escolástica ― você vê que esses filósofos aqui devem muito pouco a ela. Se você compara: o que tem esses camaradas a ver, por exemplo, com Pedro Abelardo? Quase nada. Eles devem muito, filosoficamente, aos textos de Aristóteles que foram retraduzidos (foram traduzidos para o latim a partir de traduções árabes). Isso sim exerceu uma grande influência neles. Mas tanto esses textos não eram representativos do meio universitário, que as teses aristotélicas adotadas por Santo Alberto foram impugnadas pela universidade, várias delas consideradas heréticas. Então, essas traduções não têm nada a ver com o meio universitário. O aristotelismo que se forma nesse período é um enxerto trazido por Santo Alberto e Santo Tomás e que é rejeitado pelo meio universitário. Como uma coisa que é rejeitada pelo meio pode ser um produto dela? Isso não faz o menor sentido. Segundo: como poderiam ter sido produtos do meio universitário, pessoas que foram formadas em um meio completamente diferente, que é o meio monástico? Então, vamos excluir isso aí: esses quatro grandes nomes não são produtos do meio universitário. Eles estavam lá, mas não vieram de lá. E se não vieram de lá, de onde vieram? Qual é a fonte deles? Bom, eu só posso entender a filosofia deles como um desenvolvimento da formação inicial que receberam como monges, quer dizer, uma espécie de expressão intelectualizada da vivência cristã que eles já tinham anteriormente. É claro que essa expressão é um tremendo upgrade; não há nem como comparar. Por exemplo: se se comparar a estrutura complexa e sofisticada das sumas com o que eles chamavam antigamente livros de sentenças, não tem comparação. É uma coisa tosca que, de repente, adquire uma estrutura catedralesca, por assim dizer (sinfônica ou catedralesca, como queiram chamar). Então, é um tremendo upgrade, mas não é um desenvolvimento natural que vem de dentro da universidade: é outra coisa, um novo produto. Então, vamos lá:
Que o florescimento de uma grande filosofia não surja do nada, mas se produza como desenvolvimento intelectualmente diferenciado de uma visão do mundo já anteriormente cristalizada em formas simbólicas na cultura vigente, é algo que não deveria surpreender ninguém. Quem ignora que a concepção central da filosofia platônica, a das leis eternas que se sobrepõem à ordem aparente de uma "natureza" concebida à imagem e semelhança da ordem social vigente, já estava prefigurada na poesia homérica e no teatro de Ésquilo e de Sófocles?
Aprendi em Paul Friedländer, Julius Stenzel e Eric Voegelin que compreender uma filosofia não é só apreender o sentido explícito das suas "teses", nem discernir a estrutura do seu "sistema", nem muito menos saber compará-la com outros "sistemas" (embora tudo isso seja uma preparação escolar indispensável), mas desencavar, da sua formulação em conceitos e doutrinas, as experiências reais que as inspiraram, a substância humana e histórica que transmutaram em idéias abstratas.
Ora, nas aulas sobre Descartes (quase levamos o comentário das Meditações Metafísicas até o fim, e vamos retomá-lo algum dia), eu mostro o que quero dizer com isso. Que, recuando desde a forma explícita do texto, desde as afirmações explícitas do texto, até a inspiração humana que gerou aquilo, isto é, os acontecimentos reais, a experiência real a que o filósofo esteve submetido e que teve sobre ele o impacto que desencadeia essa seqüência de pensamentos, você às vezes acaba entendendo que a filosofia do cidadão tem um sentido um pouco diverso daquilo que está aparentemente nos textos. Porque o texto não pode, por si, dar o peso humano que a coisa tem e, portanto, não lhe pode dar a noção do grau de credibilidade que aquilo tinha para o próprio filósofo. É claro que tem gente que gosta de um treco chamado "filosofia", pelo que eles entendem uma disciplina acadêmica constituída, com textos fixados, e só tratam disso -- e, evidentemente, tudo isso nada tem a ver com a realidade a respeito da qual a filosofia está falando. Então, é isso que o Eric Voegelin dizia: não estudem filosofia, estudem a realidade.
A estrutura interna de uma disciplina não reflete necessariamente o campo, a zona de realidade [0:10] sobre a qual ela está falando: existe toda uma tensão dialética entre a estrutura, os métodos, o vocabulário de uma ciência e o seu objeto. Se as duas coisas se adequassem perfeitamente, então isso seria um conhecimento quase divino. Como essa adequação não existe, temos de procurar justamente a zona de tensão, partindo do princípio de que estamos interessados, em última análise, em conhecer a realidade e não apenas em alcançar um bom desempenho em uma disciplina acadêmica, em um trabalho escolar. Vocês vêem que, na história de qualquer ciência, a diferença entre os pioneiros e inventores, os criadores da ciência e os meros burocratas, reside justamente nisso aí: os burocratas estão interessados na disciplina enquanto tal e, então, repassam-na como a receberam. Podem até aprimorar um pouquinho aqui e ali, mas não voltam sua atenção novamente para a realidade que aquela disciplina estuda, realidade da qual zonas ou faixas muito amplas podem ter escapado ao horizonte de atenção da ciência. Por outro lado, o que os grandes descobridores em qualquer área de pesquisa filosófica ou científica fazem é reconquistar essas áreas de realidade que tinham ficado fora da disciplina tal como está constituída. Infelizmente, a disciplina é, por si mesma, um símbolo grandemente atrativo, sedutor e hipnótico porque, quando as pessoas entram na universidade, a conquista da disciplina e do seu vocabulário ― tornar-se um sujeito capaz de dialogar com os colegas de profissão ― tudo isso é uma promoção social tremenda, e as pessoas entram na universidade para isso. Quer dizer, elas estão interessadas, em primeiro lugar, em si mesmas, no seu destino profissional; em segundo lugar, na comunidade dos profissionais e na sua integração nessa comunidade; e, só em terceiro lugar, no objeto da tal da ciência. Isso quer dizer que se pode percorrer carreiras científicas inteiras sem jamais sair por um único minuto da zona de atenção já consagrada pela categoria profissional. Então, você vai ser um bom profissional, as pessoas vão reconhecê-lo, e, para a maior parte dos estudantes, isso é tudo o que interessa. Fazer progredir aquela ciência, ou seja, reconquistar para ela os domínios de realidade que tinham ficado fora, é uma questão em que só dois ou três em cada mil estão interessados. E é por causa disso que a substância de realidade das disciplinas vai se diluindo com o tempo, até não sobrar quase nada. Daqui a pouco só se tem o debate interno na linguagem daquela disciplina, e as pessoas que fazem isso sentem que estão se desempenhando muito bem; são aprovadas pelo meio. Só que, vistas as coisas em uma escala objetiva, tudo isso, no fim das contas, é alienação e é até um negócio caricatural. Então:
desencavar, da sua formulação em conceitos e doutrinas, as experiências reais que as
inspiraram, [...]
No caso do Descartes, nós vimos que o tal do gênio mal tinha sido interpretado por ilustres estudiosos, quase a maioria deles, como um artifício retórico usado por Descartes para tornar visíveis as coisas que ele estava querendo dizer, raciocinando de uma maneira hiperbólica: "suponhamos que um gênio mal fizesse isso assim, assim e assim". Então, comparando o texto das Meditações com a experiência real de Descartes, vimos que o gênio mal não é um artifício retórico inventado depois. Não, ele era a inspiração mesma de toda a investigação que Descartes faz nas Meditações. Então, todo o esforço filosófico de Descartes é um confronto com o gênio mal, que não foi inventado como artifício literário, mas que foi vivenciado por ele como um perigo real, uma ameaça para a sua alma e para a alma humana em geral. E então ele cria, contra essa ameaça, uma barreira de argumentos metafísicos. Com isso o gênio mal é recolocado no centro das Meditações, onde deveria ter estado desde o começo. Isso quer dizer que, se nos atemos ao exame do texto e da estrutura do texto como tal, entendemos de um jeito; se recolocamos aquilo dentro da biografia real do cidadão, entendemos de outro. Não é uma diferença de conteúdo substantivo, mas uma diferença de hierarquia de importância: o seu gênio mal está lá nos dois lugares; só que na interpretação acadêmica corrente ele está pequenininho e colocado como um meio, e na nossa interpretação ele é colocado no centro, como a verdadeira inspiração temática das Meditações. Então, você vê até que ponto isso pode ter importância para a interpretação de uma filosofia.
Por exemplo, quando o Paul Friedländer, nos comentários dele aos diálogos de Platão, ressalta a importância que teve para Platão o encontro com a pessoa real de Sócrates, que era um sujeito que não se enquadrava nos modelos de intelectuais até então conhecidos, o que desperta em Platão a idéia de uma vocação humana completamente diferente de tudo o que existia, e inaugura, de fato, para ele, a figura do filósofo, é claro que isso está no centro da filosofia de Platão, e não é, como se diz, "apenas um detalhe biográfico". Por que é que Platão colocou Sócrates como personagem dos seus diálogos -- alguns históricos, onde ele documentava o que Sócrates havia realmente falado, e outros que ele mesmo inventou, mas que atribuía a Sócrates? Para que atribuir a Sócrates idéias que foi o próprio Platão quem desenvolveu depois da morte de Sócrates? Para fixar a imagem; a idéia mesma do filósofo; do que é um filósofo. Como isso poderia ser apenas um detalhe biográfico, se isso dá o próprio segredo da estrutura de todos os diálogos? Então, é claro que nós não vamos entender um "a" da filosofia de Platão, se não tivermos em conta a noção de que seus diálogos são obras dramáticas, obras de teatro. Por que ele escreveu como diálogos, e nesses diálogos ainda dá a descrição da cena onde a coisa se passou, dramatiza o negócio com elementos da sociedade da época? Por que ele faz tudo isso? Porque ele está criando o personagem do filósofo com base em uma pessoa que ele conheceu. Mas, para além da experiência real, concreta e histórica que teve com um indivíduo chamado Sócrates, ele extrai daí uma concepção geral do que deve ser o filósofo e, ao mesmo tempo, ilustra e realiza essa concepção nos seus diálogos. Então, isso passa a ser a linha mestra de interpretação dos diálogos de Platão. Ou seja, você não está interpretando somente com base no texto ou na estrutura interna do texto, mas na referência deles à realidade que os inspirou e da qual eles extraem toda a sua orientação e todo o seu significado, no fim das contas. No caso de Platão, isso é ainda absolutamente mais necessário, porque ele não estava apenas expondo teorias, mas estava formando pessoas reais, ele era um educador -- é o livro do Stenzel, Platão educador. Platão foi eminentemente um educador e, para ele, a filosofia era essencialmente educação. E a educação não esgota as suas finalidades no instante em que se publica um livro. O único sistema de educação cujo efeito terminou na publicação do livro foi a pedagogia do Paulo Freire, a Pedagogia do oprimido: a única obra pedagógica do Paulo Freire é um livro chamado Pedagogia do oprimido, porque ninguém chegou a ser educado pelo Paulo Freire. Jamais! Mas esse é um caso raro na história. Em geral, os educadores pretendem que o resultado da sua obra não seja um livro, mas pessoas educadas por eles.
Então, se Platão era eminentemente um educador e sua obra era eminentemente uma obra pedagógica, então ela era uma ação real exercida por um sujeito real sobre outras pessoas reais ― e, por isso mesmo, tem ainda mais importância você rastrear as experiências reais das quais ele tirou essa idéia e os modos de executá-la. [0:20]
Esta é a pergunta que eu não vejo ninguém que a tenha feito até hoje: de onde esses quatro grandes escolásticos tiraram a inspiração primeira da sua obra filosófica? Então:
Não se trata, evidentemente, de um preceito válido somente para os historiadores e filólogos, mas de uma exigência básica indispensável para quem quer que pretenda "discutir" essas filosofias com base no sentido real que tinham para os seus criadores e não apenas na sua formulação explícita, estabilizada em textos, ainda que apreendida para além da sua superfície verbal e visualizada na unidade profunda da sua ordem interna.
Que é a famosa ordem das razões, de que falava o Martial Guéroult. Entender a ordem das razões que estrutura por dentro uma filosofia (há, por um lado, a estrutura dos textos e, mais embaixo, a ordem interna, a ordem das razões); escavar, para além da ordem dos textos, a ordem profunda do que se chamaria o 'filosofema', e não apenas a obra filosófica escrita, já é um grande negócio. Mas basta isso? É claro que não. Depois de fazer isso, você tem de saber do que o sujeito está falando, e o "do que" ele fala não está dentro da obra. Toda a filosofia se refere ao universo real, a experiências reais, a seres humanos de carne e osso, ou então não teria importância nenhuma e seria apenas um joguinho acadêmico. É o famoso triângulo de Pierce: há o signo, quer dizer, o texto escrito, e o seu significado, que é a sua ordem interna, a ordem das razões, o filosofema. Cadê o referente? Toda palavra tem o signo gráfico ou sonoro e tem o significado. Esse significado se expressa em outras palavras, mas, por sua vez, se reporta a algo que não é palavra: a um ente real, uma situação real. Esse é o referente. Então, é como se dissesse: o método do Martial Guéroult vai do signo ao significado; mas cadê o referente? E justamente isso é o que a gente aprende no Paul Friedländer: enquanto não pegou o referente, isto é, as coisas e situações reais a que a filosofia se refere, você realmente não a compreendeu. Você sabe "o quê" ela está falando, mas não sabe "do quê". Então, vamos lá:
Reporto-me aqui às breves explicações orais que dei sobre o argumento de Sto. Anselmo.
Isso aí está no site do Seminário.2
Esse argumento é apresentado originariamente sob a forma de uma prece. Como ninguém em seu juízo perfeito --- muito menos um monge experiente --- pode orar a um Deus duvidoso, está claro que o argumento não é oferecido como uma resposta à dúvida quanto à existência ou inexistência de Deus, mas como um aprofundamento intelectual da experiência da prece.
Isso não quer dizer que ele não valha também como argumento. Mas a sua condição de argumento é secundária. O que Sto. Anselmo está fazendo é aquilo que, nesse mesmo texto, eu chamarei de extrusão. Extrusão é um termo geológico, pelo qual se designa a extração de uma determinada parte ou substância de uma formação geológica, pela qual se faz aparecer aquilo. Então, o que ele está fazendo é uma extrusão da experiência da prece, do conteúdo intelectual que está implícito no ato da prece. É isso o que ele está fazendo. Isso pode servir também, marginalmente, como prova da existência de Deus. Mas qual seria a importância de uma prova da existência de Deus nesse contexto cristão se, desde o início, o Cristo exige das pessoas a fé, isto é, a confiança n'Ele? Se não tem a confiança, você já está fora da experiência cristã. E, se você precisa realmente de uma prova, é porque não tem a confiança. Por isso o Cristo disse: "bem aventurados aqueles que acreditarem sem ver". Porque esse ato de confiança vai modificar você e vai criar uma conexão real entre a pessoa do crente e a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo -- e é essa conexão real que vai operar o efeito salvador, e não a mera aceitação intelectual de uma doutrina. Se é assim, as provas podem ter lá a sua importância, mas não são fundamentais. Elas são um acréscimo. Também, no texto de Sto. Anselmo, você vê que a coisa tem esses dois andares: por uma lado, ele está esclarecendo, está puxando de dentro da experiência da prece o seu conteúdo intelectual explícito, que nela está implícito e compactado; e, em segunda instância, também está oferecendo uma prova. A prova, para o crente, serve apenas como um reforço intelectual: ele vai ter mais claridade com relação ao objeto e à confiabilidade da sua fé. E, para o não crente, a prova não vai fazê-lo acreditar em Deus, porque toda prova pode ser sujeita a contestações e pode-se continuar discutindo indefinidamente. Isso quer dizer que o que Sto. Anselmo estava escrevendo servia eminentemente para o crente, para esclarecer a experiência da prece. Se tivesse uma utilidade marginal para o não crente, ótimo, mas isso evidentemente não é o fundamental.
O esquema lógico do argumento, no entanto, pode ser abstraído --- separado imaginariamente --- do seu contexto originário e ser discutido "em si mesmo".
Quer dizer: você pega a estrutura do argumento e discute logicamente.
Mas aí ele já não será o argumento de Sto. Anselmo e sim uma cópia esquemática esvaziada de seu conteúdo experiencial, apta a ser reproduzida sob uma infinidade de formulações verbais diferentes e até mesmo codificada em símbolos matemáticos para fins de análise computadorizada.
Quando chega nisso, você vê a que distância se foi parar da experiência da prece que Sto. Anselmo estava explicitando. Quer dizer, você separa o argumento como se fosse um elemento separado, distinto, e o discute em si mesmo.
E então os debates quanto à sua validade ou invalidade lógica poderão prosseguir indefinidamente, animando os serões dos amadores de argumentos, enriquecendo o mercado editorial e alimentando carreiras universitárias, sem que isso aumente em um grama sequer a compreensão do pensamento de Sto. Anselmo ou, mais ainda, da técnica anselmiana da conversão de uma prática devocional em experiência intelectual --- técnica sem a qual nada se pode entender, não apenas da filosofia do próprio Anselmo, mas de toda a tradição escolástica que se lhe seguiu.
Porque, no fundo, no fundo, toda a tradição escolástica é isso: uma extrusão, uma explicitação do sentido intelectual que está embutido na experiência cristã. É aquele processo que o Voegelin chama descompactação dos símbolos: as experiências vêm de maneira compactada, simbólica, e aos poucos a inteligência vai apreendendo dali o sentido intelectual implícito. O que não quer dizer que os que venham depois e tenham uma experiência mais diferenciada e descompactada entendam aquilo melhor do que os primeiros. É impossível comparar uma coisa com a outra. Vamos supor: quando Ésquilo é Sófocles escreviam suas peças, eles as concebiam como histórias, como dramas; passados dois mil anos, há toda uma tradição de estudos eruditos a respeito daquilo. Quer dizer que os estudiosos eruditos entendem mais as peças de Sófocles do que o próprio Sófocles? É claro que não. Sófocles não seria capaz de explicitar todo o conteúdo intelectual que estava querendo transmitir, mas ele está criando esse conteúdo. Ele tinha pleno domínio do seu material, ao passo que o estudioso nunca vai chegar a ter aquele domínio que vem desde a raiz, desde a experiência imaginativa propriamente dita. Ele pode entender melhor um aspecto ou outro -- pode ter, como se diz, uma compreensão mais diferenciada --, mas isso não quer dizer que ele entenda o autor melhor do que o autor mesmo.
Então, a necessidade da compreensão diferenciada vem do fato de estarmos mais distantes da experiência originária e termos, então, de recompô-la por meios intelectuais, já que não temos acesso à experiência direta. Isso é como ler um texto em uma língua antiga: para o leitor da época em que o texto foi escrito ou publicado, a linguagem tem uma translucidez imediata e ele parte direto [0:30] da expressão verbal para o seu significado e seu referente. Não podemos fazer isso, porque o texto para nós não tem essa transparência, ele é opaco; então, temos de operar uma série de procedimentos interpretativos que elucidem seu sentido originário. E, para isso, não basta leitura direta, como bastava para os leitores da ocasião. Nós precisamos da ciência filológica, de conhecimentos históricos, e mais isso e mais aquilo. Isso quer dizer que a nossa experiência será mais intelectualizada do que a dos primeiros leitores, o que não quer dizer que será mais profunda. Talvez até nem seja. Talvez para os primeiros ouvintes ou leitores aquilo tivesse um impacto muito maior e mais evidente do que tem para nós -- porque nós temos, às vezes, de adivinhar o que é que o autor está querendo dizer e, de certo modo, recompor a experiência por meios intelectuais.
Aliás, falando de Santo Anselmo, se você entender qual é o espírito da coisa ― o que é que Santo Anselmo estava realmente fazendo ― então, a força do argumento dele lhe aparece de outra maneira. Ao passo que se você isola o argumento e vai tratar só por meios lógicos, você está tratando de outro objeto. E, neste trajeto, nesta passagem da experiência explicitada de Santo Anselmo para a discussão do próprio argumento na sua estrutura lógica, e na sua validade ou invalidade lógica, algo se perde. Isto significa que a própria profundidade ou eficiência lógica dessas discussões irá se perdendo. A coisa vai se diluindo, diluindo, diluindo até que no fim não sobra nada. Você tem apenas um tecnicismo lógico. Porém, até mesmo do ponto de vista da técnica lógica existe uma perda: eu acho que o argumento de Santo Anselmo lido nos termos que ele propõe ― como explicitação do sentido da prece ― tem muito mais consistência lógica do que parece quando se examina o argumento só em si mesmo.
A lógica surge num determinado momento da história e surge em resposta a certas necessidades. Então, embora a validade das relações lógicas não dependa do contexto histórico em que elas apareceram ― assim como as regras da geometria não dependem da história da geometria ― a perspectiva com que se olha essas disciplinas se modifica muito conforme se olhe apenas aquelas estruturas em si mesmas, ou quando se entende a experiência que inspirou a descoberta daquelas estruturas: o sujeito que gosta de lógica ou de matemática, está só interessado nisso; ele não está interessado na história da lógica ou na história da matemática. Ele está interessado só nas estruturas internas da disciplina. Mas algo pode se perder, da própria técnica, no instante em que se ignora de onde a técnica saiu e se começa a tratar aquele conjunto de esquemas lógicos como se fosse uma coisa que existe em si mesmo, e não como se fosse parte da realidade; parte da nossa experiência da realidade.
O desejo de separar radicalmente o pensamento lógico da experiência ― que se torna cada vez mais patente, cada vez mais pronunciado, desde o século XVIII até agora ― tem a seguinte conseqüência: primeiro você decide que vai olhar uma coisa independentemente da outra ― opera-se uma abstração; num segundo momento, você se esquece da relação que havia entre uma coisa e outra; e, num terceiro momento, você declara que não há essa relação. Ou seja: você se incapacita para perceber algo e em seguida você decreta que esse algo não existe. Isso acontece, por exemplo, com Kant, de uma maneira óbvia.
Um rapaz me escreveu uma carta esta semana reclamando de um vago esboço que eu fiz, anos atrás, sobre uma questão de Santo Anselmo ― que, aliás, era só um fragmento de uma aula que eu dei ― e, discutindo aquilo em termos exclusivamente lógicos, ele alegava, kantianamente, que da existência de um signo não se pode deduzir a existência do seu referente. Quer dizer: não é porque você tem uma palavra, que existe o objeto ao qual ela se refere. Kant não expressou nesses termos, mas ele diz isso. Á primeira vista, isto é uma coisa óbvia: a existência de uma palavra não prova a existência, no mundo real, de um objeto que lhe corresponda. Ou seja: a existência da palavra elefante não prova que exista um elefante. Só que esta regra se aplica a muitas palavras, mas há outras coisas às quais ela não se aplica absolutamente. Por exemplo, a palavra 'linguagem'. A palavra 'linguagem' não poderia existir se não existisse a linguagem. Então, ela postula imediatamente a existência do seu referente. Ela não pode apenas ter um significado. Então, o rapaz diz o seguinte: suponhamos que a palavra 'linguagem' fosse a única palavra que existe. Ela tem um significado, mas não um referente. Eu digo: como isto é possível? Isto é absolutamente impossível porque o significado dela seriam outras palavras que explicitam, então, o seu significado. E essas outras palavras já constituiriam uma linguagem, necessariamente. Então, para existir um significado, tem necessariamente que existir outras palavras além da palavra 'linguagem'. Então, a existência do significado já seria, automaticamente, a prova e a presença do referente.
Outra palavra que não pode existir sem o seu referente: a palavra 'eu'. Não pode haver a palavra 'eu' sem alguém que a utilize para designar-se a si mesmo. Uma terceira palavra: a palavra 'existência'. Se nada existisse, também não existiria a palavra existência. Então, tem uma série de palavras, fundamentais no idioma, cuja mera presença nos mostra a existência do seu referente, não apenas o seu significado. Significado seria a expressão verbal do que ela está querendo dizer. Aí, você vê que a regra do Kant falha miseravelmente. E, quando Kant faz a sua famosa refutação do argumento de Santo Anselmo, ele incorre neste ponto. O argumento de Santo Anselmo diz que um ser necessário existe necessariamente. E Kant diz: isto é apenas hipotético; você está supondo um ser necessário e se, ele fosse necessário, ele existiria necessariamente; mas isto não prova que ele é necessário de fato.
Aparentemente, esta refutação está certinha. Só que existe o seguinte problema: eu vou ler aqui umas notas que eu tomei e depois eu vou colocar no seminário. Vocês não precisam entender tudo isto necessariamente agora, mas nós podemos mais tarde dar uma aula sobre isto.
Se não existe um ser necessário, então, todo ser é necessariamente contingente.
E, não poderia ser apenas contingentemente contingente.
Se fosse apenas contingentemente contingente, não estaria excluída, a priori, a existência de um ser necessário.
Portanto, se não há um ser necessário, todo ser é necessariamente contingente.
Daí decorre que a contingência passa a ser, ela mesma, a única necessidade imposta implacavelmente a todos os seres existentes.
Então, não há um ser necessário e a única coisa absolutamente necessária é que todos sejam contingentes. Quer dizer: da inexistência de um ser necessário decorre que todos os seres são necessariamente contingentes. Então, a contingência é a única necessidade.
Isto vale também para os seres possíveis? Necessariamente sim, [0:40] pois se existe algum ser necessariamente possível, ele exclui, por isso mesmo, a possibilidade da sua inexistência. E, portanto, tem de existir necessariamente. O que contradiz a inexistência do ser necessário. Tanto quanto os seres reais, todos os seres possíveis são, pois, necessariamente contingentes.
Segundo este raciocínio.
Pode haver, não seres, mas relações necessárias entre entes necessariamente contingentes? Não, pois uma relação necessária inexistente seria um mero nada. Toda relação necessária entre seres necessariamente contingentes terá de existir necessariamente e estaria assim submetida, ela própria, à contingência universal da existência.
Então, todas as relações teriam que ser contingentes também. E, não haveria nenhuma relação necessária.
O mesmo se aplica indiferentemente às relações entre os seres existentes como às relações entre os entes meramente possíveis. Se estes são necessariamente contingentes, a existência de relações necessárias entre eles esbarraria na mesma dificuldade que bloqueia a possibilidade de relações necessárias entre seres necessariamente contingentes. Neste caso, todas as relações lógicas que se definem como relações necessárias entre seres possíveis, estariam anuladas automaticamente: ou existe o ser necessário ou toda e qualquer prova lógica de qualquer coisa, mesmo hipotética, é uma impossibilidade pura e simples.
Se não há um ser necessário, não podemos conceber relações necessárias de espécie alguma. Isto, para mim, é de uma autoevidência monstruosa. Claro que o argumento pode ser tergiversado e pode ser perguntado: o que você entende por existência? O que você entende por ser? Etc. Pode-se prolongar a discussão indefinidamente, porém, vale a pena? Não vale a pena porque qualquer pessoa no seu juízo perfeito entende isso. Se não existe um ser necessário, não pode haver relações necessárias entre seres nenhuns. Também não pode havê-las entre seres meramente possíveis ou hipotéticos, a não ser que nós já declarássemos esses seres inexistentes e, portanto, inexistentes as relações entre eles. Então, neste caso, estaria aberto ― cavado e aberto definitivamente ― um abismo entre lógica e experiência. Só que se houvesse um abismo intransponível entre lógica e experiência, todo e qualquer conhecimento científico seria absolutamente impossível, mesmo na base puramente probabilística, porque é uma bobagem você dizer que a ciência não leva em conta juízos de necessidade absoluta, mas apenas juízos de probabilidade e quando ela afirma uma probabilidade, ela afirma absolutamente. Porque, senão, seria a probabilidade, da probabilidade, da probabilidade e qualquer juízo probabilístico não estaria dizendo absolutamente nada. Então, o juízo de probabilidade, ele também, é um juízo de necessidade: é a necessidade daquela probabilidade e não outra. Se você disser: tem uma probabilidade de setenta e um por cento; se é de setenta e um por cento, você quer dizer que não é de dois por cento, de três por cento, nem de cem por cento! E que não é absolutamente.
Esta é uma confusão entre o conteúdo do juízo e a sua forma lógica. Santo Anselmo não diz isso, mas isto está implícito no que ele está dizendo. Como é que eles não percebem? Eles não percebem porque eles estão examinando só o argumento em si. E, na hora que perdem de vista a experiência originária que gerou aquele argumento, eles perdem de vista toda a potencialidade lógica que está contida nessa experiência. Então, passam a lidar só com um material reduzido, que é o próprio argumento. E, daí, a discussão do argumento pode prosseguir indefinidamente: até hoje tem gente tentando provar ou impugnar o argumento de Santo Anselmo! É a prova de que ninguém se convenceu de coisa nenhuma até agora.
Esse exemplo ilustra a diferença entre o que eu e o sr. Lemos ―também o Sr. Pinheiro ― chamamos de "filosofia".
Mais o senhor Lemos do que o senhor Pinheiro.
Ele dá esse nome a algo que, do meu ponto de vista, é apenas uma técnica de argumentação, bela e sofisticada o quanto seja. Prefiro reservar o termo para aquilo que este sempre designou: a elaboração intelectual da experiência com vistas a alcançar, na máxima medida possível num dado momento histórico, a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa.
Se é assim ― se se trata de elaborar intelectualmente a experiência com vistas a alcançar na máxima medida possível, num certo momento, a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa, isso significa o seguinte: a filosofia não pode chegar a conclusões definitivas a respeito de coisa nenhuma porque ela é um esclarecimento da experiência à luz da própria experiência e a experiência vai modificando com o tempo e porque eu não posso antecipadamente esclarecer a experiência que as gerações vindouras virão a ter. Então, ela é necessariamente um processo contínuo. Assim como na vida individual, na vida concreta de cada indivíduo, as nossas concepções, as nossas ideias, vão se modificando de acordo com a experiência, e não tem como você fechar: 'isso aqui é terminal, acabou!' Você não sabe o que vai acontecer no dia seguinte. A filosofia é um reajuste entre as suas concepções intelectuais e a sua experiência e esse reajuste tem que ser um esforço permanente. Ela não visa a chegar a conclusões definitivas sobre coisa nenhuma, mas apenas alcançar o máximo de esclarecimento possível dentro da situação. Como a situação muda, ou seja, acontece o que não acontecia antes, as gerações vindouras necessitarão de um novo esclarecimento. E elas é que vão ter que fazer isto e nenhum filósofo pode fazer antecipadamente. Claro que aquilo que cada filósofo conquistou tem que ser integrado nas visões posteriores porque são parcelas de aspectos da experiência que já estão esclarecidos e que não precisam ser esclarecidos de novo. Só vai precisar fazer os devidos reajustes à luz das novas experiências. Esse reajuste implica também o progresso no processo de descompactação dos símbolos. Ou seja: toda a filosofia anterior é compacta em relação à filosofia seguinte, que tem que ser mais diferenciada. Portanto ― e isto é fundamental ― aquilo que parecia afirmação literal para o filósofo no momento em que ele a emitiu, passa a ser simbólica para as gerações seguintes, porque tem que ser descompactada. E, se você não percebe essas filosofias como esquemas simbólicos, você não as entende de maneira alguma. E você tem que saber que aquilo que você está dizendo naquele momento se tornará simbólico para as gerações seguintes. Elas vão ter que descompactar mais: esse processo de diferenciação, e ao mesmo tempo de integração, ele vai prosseguir indefinidamente. Então, como dizia Santo Tomás de Aquino: a verdade é filha do tempo. Quanto tempo vai durar o tempo? Ninguém sabe. Quando vem o juízo final? Isto quer dizer que a forma final, só Deus tem no juízo final. Até lá nós vamos ter que continuar, cada geração resolvendo o seu problema, e tentando se esclarecer na máxima medida possível e legando às gerações seguintes aquelas partes que foram conquistadas.
Nesse sentido, a unidade interna de uma filosofia, isto é, a sua coerência sistêmica e lógica, vale menos por si mesma do que por sua eficiência em dar conta, ainda que com imperfeições lógicas inevitáveis, da variedade de confusão da experiência humana ― pessoal, cultural e histórica ― que lhe serviu de ponto de partida.
A própria avaliação de uma filosofia depende do estado de confusão que o filósofo herdou e do estado de esclarecimento que ele legou. Portanto, sem compreender a confusão originária, você simplesmente não entende a filosofia e muito menos pode julgá-la.
Por isso, chamamos de grandes filósofos, não aqueles que se esmeraram no esforço vão de chegar à prova lógica mais detalhada, e, sim aqueles que conseguiram abranger, num olhar unificante, o horizonte de problemas mais amplo e complexo, criando assim um senso de orientação que permanece útil para muitas gerações subseqüentes. Nesse sentido, a lista de filósofos verdadeiramente grandes é bem reduzida. Sem querer resolver agora a questão de quais merecem, ou não, entrar nessa classificação, parece-me evidente que ninguém negará um lugar nela aos nomes de Platão, Aristóteles, Santo Tomás e Leibniz. Enquanto filósofos bem posteriores já viram suas contribuições essenciais esgotadas ou impugnadas pelo avanço do conhecimento ― ninguém mais pode ser cartesiano, baconiano ou hobbesiano de carteirinha sem entrar em conflito com o estado atual das ciências ― esses quatro, excluídos erros de detalhe que possam ter cometido num ou noutro ponto, continuam dando inspiração a novas descobertas em todos os setores do conhecimento, e parece que não vão parar de fazê-lo tão cedo. [0:50] Não erraremos, portanto, se os tomarmos como modelos supremamente típicos daquilo que se entende pelo termo 'filósofo'.
Sem exclusão necessária de quaisquer outros.
O critério aí adotado implica que nada se entende de uma filosofia sem uma visão efetiva das experiências de fundo às quais ela responde com um vigoroso esforço de expressão, ordenação, unificação e clarificação (uso clarificação em vez de esclarecimento porque este tem outras conotações que eu desejaria evitar). Se se tratasse de artistas, de poetas, predominaria em suas obras o esforço de expressão direta da experiência. Os filósofos tomam o seu material de base num estado mais elaborado que inclui os aspectos da experiência já trabalhados na cultura artística ― assim como nas leis, instituições, crenças estabelecidas etc. Com frequência, a arte se antecipa aos filósofos, fornecendo-lhes em forma compacta de símbolos concretos, os esquemas estruturadores aos quais eles darão expressão intelectual mais diferenciada, mais clara, mais acessível à discriminação racional.
É muito interessante você fazer a seguinte experiência: leia os romances de Dostoievsky e depois leia o livro do Alberto Camus L'homme revolte: o Camus elabora em conceitos intelectuais algo que já estava compactadamente dado ali no Dostoievsky. Isto nem quer dizer que Dostoievsky entendeu melhor, nem que Albert Camus entendeu melhor. Não, eles tomaram o problema em dois níveis de elaboração diferentes.
É puro estereótipo ginasiano acreditar, como os srs. Lemos e Pinheiro, que a filosofia é "discussão racional".
Isto aqui é o conceito de filosofia à altura de Rodrigo Constantino: "existe a discussão racional e existe uma fé irracional". Isto é estereótipo voltairiano; isto é bom para menino de escola; mas é uma bobagem tão grande que eu não devia nem mencionar isto aqui. É obvio o seguinte:
A possibilidade da discussão racional só aparece depois que o grande empreendimento de organização unificante da experiência chegou ao seu termo.
Se não, não se tem o que discutir.
Esse empreendimento pode incluir também, no caminho, uma parcela de discussão que visa, sobretudo, a retificar ou completar certos aspectos das tentativas anteriores, mas é evidente que ela não constitui o ponto forte de nenhuma filosofia digna do nome.
Mais ainda: pode-se generalizar e dizer: nenhum filosofo deu jamais uma prova cabal de tudo o que ele disse. Por quê? Porque ele estava descobrindo coisas que não sabiam antes. É impossível, ao mesmo tempo, descobrir-se uma coisa e dar a sua prova mais perfeita possível. A prova pode demorar muitos séculos depois, e essa é a discussão racional. Por exemplo: Santo Anselmo descobre a dimensão intelectual que está implícita no ato da prece: a prova do que ele disse ― a prova de que está certo ou errado ― pode continuar por séculos, e de fato contínua. Só que é o seguinte: quem é o grande filosofo? Santo Anselmo ou os professores que estão discutindo a prova lógica? Você pode até dizer: Santo Anselmo até legou um problema, e um problema sem solução, aparentemente. Por quê? Se esse argumento depende de uma experiência anterior, então, ele nada prova por si mesmo. Correto! Mas dizer que nada prova por si mesmo é o mesmo que dizer que ele nada prova? Não, não é. Então, nós temos aí uma tensão entre a experiência originária e a sua expressão em forma de argumento lógico. Se você corta o argumento lógico da experiência, acabou a tensão e sobrou somente um esquema lógico para uso dos amadores de debates ― os amadores da discussão racional que acham que são filósofos por causa disso.
Ora, amadores da discussão racional já eram os inimigos de Sócrates. Eles adoravam discussão e ― notem bem ― o próprio Sócrates ― que debate tão bem o que eles dizem ― o Sócrates nunca prova nada. Ele só desmantela o que eles estão dizendo. Ele destrói as provas. E, em lugar das provas, ele dá o quê? A inspiração e o mito. Nunca provou nada. Do mesmo modo, Aristóteles, que toma o problema já num nível de elaboração muito maior e capricha muito mais na arte da prova, ele nos lega como resultado final da sua filosofia, um dos maiores abacaxis de todos os tempos. É o seguinte: todo o conhecimento é conhecimento genérico, e os entes só existem enquanto indivíduos. Então, você tem uma tensão entre existência e conhecimento. Isto não quer dizer que você não conheça nada, que o conhecimento seja inválido, mas também não quer dizer que você pode conhecer tudo. Então, a mensagem final de Aristóteles é um problema; ele nos lega um problema; só que esse problema esclarece a nossa posição real no mundo da experiência. Quer dizer: às vezes o negócio não é saber a solução, é você saber qual é o problema. É evidente que é anterior à solução, se alguma solução existe. E, há problemas que não têm solução, mas que se você não sabe qual é a exata formulação deles, você não sabe por que você está sofrendo. Você está que nem um bichinho que sofre sem saber de onde veio a bordoada. Então, nem sempre os filósofos estão aí para deixar soluções ou para dar prova do que quer que seja. Às vezes estão aí para esclarecer um problema que eles não sabem resolver e às vezes um problema que não tem solução.
Como observava John Stuart Mill, a crítica, indispensável o quanto seja, é a faculdade mais baixa da inteligência.
Então, você vê que nos diálogos socráticos, a primeira parte é crítica. É a discussão. É onde ele vai demolindo os argumentos dos outros. E, quando chega à parte mais alta, você tem o quê? Um mito. Quer dizer: no momento em que Sócrates está dizendo uma coisa verdadeiramente importante, ele já está a léguas da faculdade crítica. Agora, se a pessoa diz: "Filosofia é discussão racional", então, ela está se referindo à faculdade crítica. E isto é coisa de principiante. Você está botando na sua testa, um rótulo: eu sou um principiante. Eu não sei de porcaria nenhuma e estou chegando agora.
Mesmo quando uma filosofia assuma a aparência externa de uma discussão, como acontece nos diálogos platônicos, o objetivo ali não é "provar" coisa nenhuma, mas trazer à mostra, tornar visível, algo que está para muito além da discussão e da prova. Platão parte do material da experiência real tal como o encontra na cultura da época e, através de sucessivas marchas ascensionais e clarificações parciais, vai se erguendo -- e, quando possível, erguendo seus interlocutores -- à antevisão do mundo das formas, princípios e leis eternas que unificam e estruturam a experiência. É esta escalada, e não a "discussão racional", que dá a forma e o sentido do empreendimento platônico.
Isto quer dizer que ele está substituindo um sistema de símbolos obscuros, turvo, que ele recebeu da cultura da época, por outro sistema de símbolo muito mais claro e que fornece às pessoas um senso de orientação, por assim dizer, mais organizado. Mas ele não vai dar a prova final de coisa nenhuma. Quer dizer: a linguagem humana nunca vai sair da esfera simbólica. A linguagem perfeitamente literal não existe. Nós temos vários níveis de clarificação, de descompactação e de diferenciação dos símbolos e vai continuar assim pelos séculos dos séculos.
É esta escalada, e não a discussão racional, que dá a forma e o sentido do empreendimento platônico. Uma vez alcançado o cume, o conjunto da obra escrita, que documenta a trajetória, assume a forma aparente de um "sistema doutrinal" que, então, pode alimentar "discussões racionais" pelos séculos dos séculos. As discussões podem ser mais úteis ou menos úteis, mas, na maior parte dos casos, nada de substancial acrescentam à filosofia originária. Quando Alfred Whitehead observou que vinte e quatro séculos de filosofia não passavam de uma coleção de notas de rodapé a Platão e Aristóteles, ele quis dizer exatamente isso. Como aquelas discussões são o ganha-pão dos acadêmicos, alguns deles são bobos ― ou vaidosos o bastante ― para achar que elas constituem "a" filosofia, mas isso é como se, num livro, as notas de rodapé tomassem o lugar do texto."
Você apaga o texto e sobram só as notas de rodapé. Eu já fiz notas de rodapé a um livro. Quando organizei os livros do Otto Maria Carpeaux, [1:00] Ensaios Reunidos volume I, eu botei ali setecentas notas de rodapé, mas continuam sendo apenas notas de rodapé; eu jamais pretenderia que as pessoas prestassem mais atenção nas minhas notas de rodapé do que no texto que eu estava anotando. Mas o que esses caras fazem quando eles dizem que a filosofia é discussão racional, é isto. Quer dizer: você tem aqueles edifícios simbólicos que os filósofos do passado nos legaram para facilitar nossa orientação no mundo da experiência e, em seguida, você tem as discussões racionais a respeito. As discussões racionais só servem para ajudar você a entender o que eles disseram. Elas não vão acrescentar nada. Mas se você diz: filosofia é discussão racional, você está dizendo isto. Quer dizer, a filosofia não é a descoberta e organização de imensos continentes da experiência como Platão, Aristóteles, Santo Tomás e Leibniz nos legaram, mas é a discussão disso. Discussão por quem? Por nós. Então, nós ficamos as pessoas mais importantes e Platão, Aristóteles, Santo Tomás e Leibniz ficam apenas como instrumentos da nossa glória profissional.
"A" filosofia não é discussão racional nem sistema doutrinal. É uma estruturação simbólica intelectualmente diferenciada na qual o mundo da experiência deve adquirir uma visibilidade, uma claridade, que não tinha nem no material bruto da experiência nem nas suas elaborações culturais prévias (sociais, políticas, artísticas, religiosas).
Por isso mesmo é que a arte, com tanta freqüência, se antecipa às filosofias. No caso dos escolásticos, isso não poderia ser mais evidente. O exame deste ponto mostrará quanto os srs. Lemos e Pinheiro, juntos ou separados, e todos os que pensam como eles, estão longe de compreender a relação entre as grandes filosofias do século XIII e o ensino prático que as antecedeu nas escolas catedrais e monacais.
Vamos por partes.
Qual foi a realização maior e mais característica dos filósofos escolásticos? Foi a criação das Sumas --- um gênero literário totalmente novo, apropriado às necessidades expositivas do pensamento cristão, o qual, após ter durante doze séculos respondido às dúvidas externas e internas com improvisações apologéticas e polêmicas soltas, esporádicas e assistemáticas, que se acumulavam numa massa confusa e inabarcável, se viu levado, pelas próprias exigências do ensino e por outros fatores que não interessa analisar aqui ― entre os quais o impacto da filosofia árabe ―, a empreender um gigantesco esforço de organização e unificação. A fórmula literária encontrada foram as "sumas".
A primeira grande Summa foi a de Alexandre de Hales, que começou a escrevê-la em 1231, mas a deixou incompleta. Não sei a data certa da segunda, mas não saiu antes de...
Eu pesquisei em tudo quanto é lugar, qual seria a data da publicação da primeira suma, a Suma Teologia de Sto. Alberto, e não achei uma data certa.
... mas não saiu antes de 1245, quando Sto. Alberto começou a ensinar na Universidade de Paris. Em 1260 começam as aulas de S. Boaventura sobre os ensinamentos de Pedro Lombardo, dos quais ele extrairá uma summa sob o título de Comentários ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo. Por fim, o gênero chega à perfeição com a Summa contra Gentiles de Sto. Tomás de Aquino (1264), logo seguida da Suma Teológica, redigida entre 1265 e 1274.
A estrutura das Sumas não tem precedentes na história dos gêneros literários. Elas compõem-se de partes hierarquicamente organizadas que vão desde os princípios mais universais até suas aplicações aos entes particulares, como num longo raciocínio dedutivo.
Que vai dos princípios para as conseqüências.
Mas cada parte subdivide-se em 'questões'. Colocada uma questão, o autor faz uma breve resenha das respostas anteriormente oferecidas por vários filósofos e teólogos, atualizando o status quaestionis. Aí ele acrescenta à lista algumas outras respostas possíveis...
Quer dizer, se aquelas respostas que ele herdou do passado não abarcam o horizonte inteiro das respostas possíveis, então ele mesmo inventa mais algumas.
... e passa a examinar os prós e contras de cada uma, até chegar a uma conclusão...
Depois que ele chega à conclusão, ele concebe e responde algumas objeções reforçando a conclusão, se possível. Se não for possível, se impugnou a conclusão, então tem de começar tudo de novo. Mas no fim tem de chegar a uma conclusão.
... conclusão que, em seguida, servirá de premissa para a solução das questões subseqüentes.
Tecnicamente, essa estrutura constitui-se de um longo discurso lógico-analítico composto, por dentro, de vários discursos dialéticos. Ela articula assim duas modalidades de discurso que Aristóteles havia distinguido cuidadosamente, uma empenhada em montar a demonstração e a prova científica, outra em buscar, entre as incertezas do debate e da experiência, as premissas especiais sobre os diversos pontos em investigação. Num nível mais profundo, essa articulação sintetiza duas atitudes mentais opostas: a dogmática, ou construtiva, ...
Que é uma espécie de empilhamento de afirmações tidas como certas.
... e a zetética, ou investigativa.
Zetética, ou dialética.
Nada de similar encontra-se em toda a literatura filosófica anterior.
Mediante essa combinação original, as Sumas sintetizam e unificam não só o conjunto dos dados científicos, teológicos e históricos disponíveis, que interessavam à doutrina cristã, mas todas as técnicas que compunham o ensino universitário, as quais ficavam assim vacinadas contra a possibilidade de desenvolvimentos independentes anárquicos e se integravam harmoniosamente na ordem total do conhecimento.
Dito de outra maneira: as Sumas sintetizam toda a cultura. Sintetizam, ordenavam e esclareciam toda a cultura disponível. Pelo menos aquelas partes que interessavam à doutrina cristã.
Mais ainda, as Sumas inauguraram a prática da distribuição racional dos textos em partes, seções, capítulos, parágrafos e subparágrafos, totalmente desconhecida na antigüidade, que viria a se universalizar no Ocidente ao ponto de tornar-se uma banalidade.
Hoje todo livro se divide nesses pedaços.
Mas, se hoje essa divisão corresponde mais a convenções editoriais ou a arranjos pedagógicos, nas Sumas ela tinha uma função muito mais ambiciosa e orgânica. A organização do texto correspondia rigidamente à estrutura das realidades ali analisadas, de modo que a obra toda funcionava como símbolo da hierarquia do mundo divino, cósmico e humano.
Este é um ponto que escapa a muitos leitores das Sumas, especialmente da Suma Teológica e Summa contra Gentiles. Depois que você a leu inteira e na sua memória sobraram pelo menos alguns pedaços dela, de repente você vê a estrutura inteira e percebe que essa estrutura é em si mesma um objeto de contemplação, como um objeto artístico ou como um ícone. E esse ícone tem então a mesma função estética de servir de suporte da meditação ou suporte da prece. Então ela tem como se fosse --- não textualmente, mas analogicamente --- um sentido ritual, como as grandes obras da arte sacra têm. E esse aspecto passa totalmente despercebido à maior parte dos comentadores.
Quando eu percebi isso --- isso aí foi há muitos anos atrás, mais de vinte anos atrás ---, eu fui comentar isso com o Antônio Donato. Ele arregalou dois olhos e disse: "Nossa, eu pensei que só eu tinha percebido isso, eu estava achando até que estava maluco". Mas é evidente que é assim. Só que depois que você percebeu essas obras como grandes estruturas simbólicas, aí você está habilitado para fazer outras comparações e fazer a pergunta: "De onde eles tiraram essas estruturas simbólicas?". [1:10]
As análises dialéticas espalhavam-se em muitas direções, indo até os últimos detalhes (...)
O que eles chamavam princípio da manifestatio ― manifestação ― que pode ser traduzido como "exteriorização" ou "clarificação".
(...) e voltavam a unificar-se nas conclusões parciais que, por sua vez, articuladas umas às outras pelo princípio da concordantia [concordância], ou reconciliação hierarquizada das múltiplas possibilidades contraditórias, funcionavam como colunas que sustentavam a estrutura do todo.
A imagem um tanto idealizada que hoje temos da organização hierárquica e dos estudos universitários medievais reflete menos a realidade do ensino diário do que a estrutura das Sumas, em que os vários aspectos desse ensino convergem para um ponto culminante que os transcende.
A prática da disputatio (...)
A disputa medieval. A disputa era um procedimento pedagógico organizado no qual um aluno era encarregado de defender uma tese e outro de impugná-la. A distribuição dos argumentos era um negócio estritamente racional. Por exemplo: se um sujeito dizia uma coisa, o outro tinha de explicar. Primeiro ele tinha de repetir o argumento do outro e argumentar um pouco em favor dele, depois ele tinha de explicar em que pedaço ou aspecto ele ia impugnar aquilo. Ele ia impugnar a fórmula lógica? Ele ia impugnar a premissa? Ele ia impugnar as consequências? O que ele ia fazer, em suma, com o argumento? É a discussão ordenada, a discussão científica. Isto era uma prática nas escolas.
Acontece que nas Sumas essa prática já está embutida, já está ali incluída, não como prática pedagógica isolada, mas como parte da construção do sistema inteiro. É claro que a prática da disputatio, por mais tecnicamente rigorosa e idônea que fosse, pode degenerar em discussões lógicas sem fim ― como se diz: sobre o sexo dos anjos ― e acabar produzindo algum Júlio Lemos. Nas Sumas isso não acontecia porque estava tudo integrado dentro daquela imensa estruturação simbólica da experiência.
Se perguntarmos de onde Alexandre de Hales e seus sucessores obtiveram a inspiração para esse empreendimento tão original e poderoso, não encontramos nenhuma fonte escrita, aliás, nem oral. Platão desenvolvera a técnica dialética de Sócrates, mas não se encontra nele a arte da construção dogmática.
Aliás, Platão nunca nem tentou uma construção dogmática.
Aristóteles sobrepõe à dialética a técnica da prova científica, lógico-analítica, mas não deixa nenhum exemplo escrito de discurso lógico-analítico com começo, meio e fim: tudo o que nos sobrou dele foram rascunhos de aulas, construídos na base de investigações e confrontações dialéticas, num espírito ferozmente zetético.
De busca, e não de construção dogmática.
O que seria uma construção dogmática do aristotelismo, a estrutura formal e hierarquizada da "doutrina aristotélica", é um problema em que até hoje os sucessores e comentaristas se engalfinham sem encontrar nenhuma solução satisfatória. Para fazer uma idéia da dificuldade: ninguém deu uma resposta cabal à questão de saber se a filosofia do Aristóteles maduro é um desenvolvimento coerente do seu platonismo de juventude ou uma negação completa dele e o início de uma filosofia diferente.
Um filósofo a respeito do qual você não sabe se ele tem uma filosofia ou duas é a mesma coisa que dizer que você não está entendendo a coisa. Você pode entender nos aspectos particulares, mas no conjunto você não está entendendo.
"Na bibliografia filosófica que vai daí até Alexandre de Hales, nada se encontra que se pareça nem de longe com a estrutura das Sumas. Só há, portanto, duas alternativas: ou a criação ex nihilo ou a inspiração recebida de alguma fonte não filosófica, nem literária. A primeira hipótese, sendo prerrogativa divina, temos de nos voltar para a experiência vivida ― para o impacto que os filósofos escolásticos receberam da cultura da época ― para averiguar se algo, nela, pode ter-lhes sugerido a idéia de estruturar a cosmovisão cristã numa síntese de todos os conhecimentos e de todas as técnicas intelectuais disponíveis, em que as inumeráveis buscas zetéticas lançadas em direções diversas fossem convergindo pouco a pouco e se unificando numa grande construção dogmática de conjunto. O único precedente que existe não vem da filosofia, nem de qualquer gênero literário: vem das artes e, especialmente, da arquitetura.
Em 1948 o grande historiador da arte, Erwin Panofsky, lançou nas Conferências Wimmer a tese, depois publicada em 1951 sob o título de Gothic Architecture and Scholasticism ― A Arquitetura Gótica e a Escolástica ―, segundo a qual o estilo gótico na construção das grandes catedrais medievais refletia a influência do pensamento escolástico, ilustrando, no verticalismo, no uso da luz e no trançado dos arcos que sustentavam as abóbadas, os mesmos princípios da manifestatio e da concordantia que estruturavam as Sumas.
A tese nunca foi totalmente aceita nem totalmente rejeitada. O primeiro problema com ela é que não havia o menor indício de que os arquitetos anônimos das catedrais houvessem jamais estudado a filosofia escolástica.
Se houvesse algum deles que fosse aluno da universidade nós saberíamos o nome dele, no mínimo, porque tudo o que as universidades publicavam, tudo o que as universidades faziam, vinham com a marca do autor. E a construção das catedrais é totalmente anônima.
O segundo e principal problema é que o essencial do estilo gótico já estava delineado, fazia tempo, na Abadia de Saint Denis, nas catedrais de Laon, Bourges e Chartres, quando Alexandre de Hales começa a redigir o primeiro esboço de uma Summa em 1231. E o novo gênero literário só se aproxima do seu máximo esplendor a partir de 1264, com a Summa contra Gentiles de Sto. Tomás de Aquino, quando já fazia vinte e três anos que uma das obras-primas maiores do estilo gótico, a Sainte Chapelle, estava à vista de todos bem no centro de Paris (só no ano seguinte Tomás começa a redigir a Suma Teológica). É possível que o pensamento escolástico tenha vindo a exercer alguma influência sobre a arquitetura das catedrais posteriores ao século XIII, mas, até o tempo de Sto. Tomás, "influência", se houve, foi no sentido inverso.
Aqui [na nota de rodapé] eu dou uma cronologia. A primeira obra de estilo gótico não foi uma obra originária, foi uma reconstrução: demoliram o negócio e fizeram outro no lugar. Foi a primeira obra em estilo gótico, na Abadia de Saint Denis. O abade de Saint Denis, que se chamava Suger, foi tido, no tempo, como o pai do estilo gótico; o primeiro teorizador do estilo gótico. Hoje não se sabe se é bem assim: houve muita gente que deu palpite ali. Mas, de qualquer modo, essa é a primeira obra documentada. 1140. A obra estava pronta noventa anos antes que Alexandre de Hales, pela primeira vez, tentasse montar uma Suma. Ele tentou e não conseguiu: não completou a Suma. E são cento e vinte quatro anos antes de que Sto. Tomás de Aquino escrevesse a Summa contra Gentiles.
Depois 1160, a Catedral gótica de Laon. [Em] 1195, começa a construção da catedral de Bourges; [em] 1220, fica pronta a estrutura principal da catedral gótica de Chartres. E em 1231, onze anos depois, começa Alexandre de Hales a escrever a sua Summa Universae Theologiae, que fica incompleta. Em 1241, que vem os Planos da Sainte-Chapelle, que começa a ser construída em 1246 e, rapidamente completada, é consagrada em 26 de abril de 1248. 1245, quando essa a Sainte-Chapelle estava em fase terminal, Sto. Alberto chega a Paris. [Em] 1260, Boaventura começa a lecionar sobre o Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, de onde sairá seu Comentário. [Em]1264, vem Summa contra Gentiles e, de 1265 a 1274, Tomás redige a Suma Teológica.
Aqui tem alguns exemplos (está aí na apostila) de construções que já estavam prontas fazia muito tempo quando Alberto e Tomás redigiram as suas Sumas, e mesmo quando Alexandre de Hales tentou redigir a sua primeira. Esta aqui, por exemplo, é a Sainte-Chapelle. A Sainte-Chapelle esteve ali exibida bem no centro de Paris onde morava Sto. Tomás de Aquino, onde morava Sto. Alberto, durante vinte e tantos anos. É impossível que eles nunca tenham ido lá; mesmo porque essas obras eram o maior impacto visual que a população européia tinha tido desde o tempo de Roma. Como que alguém não ia ver isso aqui?
No entanto, se a teoria, como assinalaram seus críticos, falhava em estabelecer qualquer nexo causal entre filosofia escolástica e arquitetura gótica, ela tinha uma parcela de verdade que ninguém jamais negou: havia, com toda a evidência, uma semelhança estrutural entre as catedrais góticas e as Sumas. Tanto estas quanto aquelas apareciam como grandes resumos simbólicos da concepção cristã do mundo e a ordem da sua estruturação interna era praticamente a mesma: o arranjo das partes, as conexões entre os mínimos detalhes e a ordem do conjunto, a busca da luminosidade e da transparência, o movimento de subida e descida entre os vários níveis ou planos de realidade, (...) [1:20]
Que ia desde Deus e os anjos até à lagartixa.
(...) a sustentação mútua entre os arcos opostos como teses dialéticas articuladas na sua contradição --- tudo exibia, em pedra como em palavras, os mesmos princípios da manifestatio e da concordantia. Não é nenhum exagero dizer que as catedrais eram como que um esquema gráfico da estrutura das Sumas.
Pegue a Summa contra Gentiles, que é menor, e tente fazer um esquema dela. Você verá que vai obter um desenho mais ou menos como uma catedral: uma coisa que sustenta a outra, que sustenta a outra; vem um arco de cá, um arco de lá, ajunta aqui; quer dizer: os opostos que contribuem para sustentar a mesma estrutura. Tudo isso está lá.
Ademais, tanto o novo estilo arquitetônico quanto o novo gênero literário eram marcados pelo ineditismo dos seus princípios, moldados, pela primeira vez, segundo necessidades específicas do ensinamento cristão, irredutíveis a qualquer exemplo anterior. As semelhanças eram tantas, e tão fundamentais, que não cabia reduzi-las ao padrão de uma mera "analogia": era preciso falar, isto sim, de homologia, de identidade de estruturas.
Quer dizer, não é que parecia: a estrutura era exatamente a mesma.
A coisa tornou-se mais evidente ainda quando, em 1998, o catedrático de Budismo Tibetano do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade da Califórnia, José Ignácio Cabezón, descobriu que homologia idêntica existia entre os tratados da escolástica budista e os templos religiosos da Idade Média tibetana.
Ou seja, uma coisa com conteúdo completamente diferente, mas... Primeiro você tem aqueles templos, que são verdadeiros tratados de cosmologia, que têm a estrutura inteira do cosmos, e depois aparecem os caras escrevendo uns tratados de exposição da doutrina budista que naturalmente copia essa estrutura.
Nos dois casos, assinalava Cabezón, era tão impossível estabelecer qualquer nexo causal direto quanto negar a existência de uma similaridade estrutural cujo detalhamento ia muito além da possibilidade da mera coincidência.
Sem entrar agora nos detalhes da controvérsia, algumas observações parecem-me evidentes e praticamente inquestionáveis:
1. Se os arquitetos não estudavam filosofia escolástica e as catedrais góticas antecederam as grandes Sumas, não se pode falar de influência destas sobre aquelas, mas precisamente do oposto.
2. A palavra "influência" descreveria adequadamente a transmutação de uma doutrina filosófica em obra de arte, mas não o inverso. Aqui só cabe falar, mais vagamente, de "inspiração".
Por exemplo, se você tem uma doutrina filosófica e o arquiteto quer criar um edifício que ilustre aquilo, então, é evidente, você pode dizer que ele foi influenciado pela doutrina. Mas um edifício por si não fala nada. Quer dizer, se um filósofo olha o edifício e aquilo deixa um impacto imaginativo nele, e daí ele cria uma estrutura verbal-filosófica, você não pode dizer que o edifício o influenciou, mas apenas que o inspirou. A palavra "influência" só funcionaria num sentido, mas não no outro.
3. Os arquitetos anônimos das catedrais não eram alunos das universidades. Aprendiam a técnica da construção nas corporações do ofício (...)
E aonde eles aprendiam a doutrina cristã? Nas escolas monacais e catedrais. Inclusive a maior parte deles na mesma catedral que ele estava reformando.
(...) mais provavelmente nas mesmas catedrais em que trabalhavam ou viriam a trabalhar como construtores. Suas concepções arquitetônicas não refletiam a doutrina escolástica, mas a cultura cristã das escolas monacais e catedrais, de cuja riqueza e força davam testemunho em pedra.
Você veja, na mesma medida em que as personalidades que essas escolas criavam eram admiradas como inveja dos anjos pela beleza da personalidade, pela bondade, pela evidência das suas virtudes, o poder da imaginação cristã (a fé gera formas imaginativas) gerada pela devoção nas práticas das escolas catedrais e monacais aparece em pedra no estilo arquitetônico que elas criaram, que foram as catedrais góticas. Elas são o equivalente estético dos valores éticos e religiosos que estavam encarnados naquelas pessoas.
4. Pela novidade do estilo; pelo contraste entre sua luminosidade e a escuridão dos templos anteriores; (...)
Românicos, por exemplo.
(...) pela beleza deslumbrante dos vitrais e a multidão de detalhes esculturais e pictóricos maravilhosamente integrados no conjunto; por parecerem desafiar o senso comum ao manter-se de pé sobre estruturas aparentemente frágeis, as catedrais atraíam visitantes e peregrinos de toda parte porque constituíam, literalmente, o mais contundente impacto visual a que a população européia tinha sido submetida ao longo de mais de um milênio.
5. É praticamente impossível que alguém em Paris, na época de Alberto e Tomás, não conhecesse a Sainte Chapelle, ou, conhecendo-a, ficasse imune ao impacto do edifício sobre os seus sentimentos, a sua imaginação e a sua devoção religiosa.
6. É inverossímil que pensadores altamente qualificados e devotos, imbuídos da ambição de dar maior visibilidade intelectual aos símbolos da fé, permanecessem imunes ao impacto imaginativo daqueles tratados de cosmologia cristã em pedra e não obtivessem dele alguma inspiração e motivação para tentar empreendimento semelhante no nível mais diferenciado da conceptualização teórica e da exposição doutrinal, passando da linguagem muda dos edifícios à plena explicitação verbal das Sumas.
Costumo usar o termo geológico extrusão, e o verbo correspondente extrudar, para descrever o processo de extração e exposição da substância cognitiva da experiência. Como aprendemos em Aristóteles, e até hoje ninguém desmentiu, que a inteligência abstrata não opera diretamente com os dados dos sentidos, mas com as imagens gravadas e repetidas na memória, é normal que esse processo, no nível da história cultural, se dê em duas etapas: primeiro a experiência é condensada nas formas simbólicas compactas da arte, do mito e do ritual, e só depois verbalizada, quando possível, como conceito e teoria.
Que é uma coisa que aparece também no livro da Susanne Langer, Filosofia em Nova Chave, que é uma filosofia da arte do mito e do ritual. E também no Ernst Cassirer, a Filosofia das Formas Simbólicas.
Dito de outro modo: a criação artística forma e delimita o terreno imaginativo em cima do qual se erguerão as construções teorizantes da ciência e da filosofia. Os exemplos que ilustram essa constante são inumeráveis, desde as tragédias de Ésquilo e Sófocles que deram a Sócrates e Platão o modelo das leis eternas, até a perspectiva de Giotto sem a qual a nova cosmologia de Galileu e Kepler seria inconcebível, a Divina Comédia de Dante que inaugura a possibilidade do intelectual moderno como juiz soberano da sociedade, a Comédia Humana de Balzac de onde Karl Marx obteve sua primeira visão da estrutura do capitalismo, e assim por diante.
Nós podemos perguntar: como teria sido possível a meditação do Eric Voegelin e Albert Camus sobre as ideologias de massa, sem a obra de Dostoiévski? Simplesmente não aconteceria. Note bem que essa meditação ainda foi influenciada pela obra do Henri de Lubac que se chama A Crise do Humanismo Ateu, que parte de um estudo sobre Dostoiévski.
Não há nada, pois, de estranho, em concluir que o impacto visual e humano das catedrais góticas deu aos filósofos escolásticos a inspiração inicial para a extrusão do conteúdo intelectual implícito no imaginário cristão, ao qual elas davam, pela primeira vez, uma visibilidade tão completa e integrada.
Se a imaginação arquitetônica e pictórica dos construtores gravava em pedra e vidro a riqueza da experiência interior obtida nas escolas monacais e catedrais, é preciso ressaltar que isso só aconteceu numa fase em que essas escolas já iam cedendo o passo, como modelos de educação, ao sucesso das universidades nascentes, (...)
Isso aí, já no Século XII. As escolas tinham começado, na verdade, no século IX.
(...) onde a sofisticação das técnicas intelectuais se desenvolvia pari passu com a degradação dos costumes e a perda do fervor religioso.
Decorridos cento e poucos anos da remodelação gótica de Saint Denis, a construção do edifício intelectual das sumas se dá numa etapa ainda mais avançada da dissolução da síntese cultural cristã, prenunciando, já para os dois séculos seguintes, [1:30] a difusão da moda nominalista, o florescimento de mil uma correntes heréticas e a degradação da própria escolástica num formalismo doutrinário sufocante. Nada disso é estranho: enquanto a riqueza da vida interior é uma realidade de todos os dias, o impulso de cristalizá-la em pedras --- ou em palavras --- não é uma realidade premente.
Por exemplo: você pode escrever a história de um grande amor que você teve, mas você não vai escrever enquanto você está vivendo aquela história: você vai escrever 50 anos depois, quando a mulher já morreu; ou você vai escrever na hora: "pára tudo aí que eu preciso escrever?" Isso não acontece.
Enquanto uma coisa está no plano da experiência viva não há a necessidade de registrá-la: você registra depois, para que a memória daquilo não se perca de todo.
As catedrais góticas são, por assim dizer, o canto de cisne de uma modalidade de educação que já tinha os seus dias contados. No século XII, à medida que se erguem edifícios cada vez mais impressionantes, a inveja dos anjos desce dos céus e se torna a admiração das multidões.
Mais compreensível ainda é que a síntese intelectual das Sumas só viesse à luz numa época em que as possibilidades civilizacionais que elas condensavam já iam chegando ao fim. Do mesmo modo que as catedrais fixam em pedra o último apelo da educação monacal e catedral, as sumas são o cume e, por isso mesmo, o capítulo final da grande civilização cristã da Europa, do mesmo modo que a filosofia de Platão e Aristóteles são a expressão máxima e última da polis em agonia. Como observou Hegel, a ave de Minerva só levanta vôo ao entardecer.
Quer dizer, quando os processos estão acabando é que vem a compreensão intelectual perfeitamente diferenciada da coisa.
Nesse sentido, as grandes criações novas que, para as épocas futuras, virão a representar a força espiritual das civilizações extintas documentam --- quase que paradoxalmente --- a depauperação da vida interior e sua substituição pelo testemunho exteriorizado e visível, legado às gerações vindouras na vaga esperança de que um dia a fórmula, gravada em pedra ou em palavras, possa ser novamente descompactada e restaurada como experiência vivida, senão em escala civilizacional ao menos nas almas dos indivíduos interessados e capacitados.
A passagem do implícito ao explícito, do compacto ao diferenciado, marca, ao mesmo tempo, a glória e o fim das civilizações. Apogeu e decadência não são termos excedentes --- não são nomes de substâncias ---, mas pólos dialécticos de uma tensão a que não faltam no seu desenvolvimento interno as ambigüidades e as inversões.
Então você vê: isto tudo é o que estava na minha mente quando eu escrevi aquelas coisas a respeito do Cardeal Newman, mas os Senhores Lemos e Pinheiro, ouvindo o que eu disse ali, nem por um instante lhes surgiu na cabeça a hipótese de que: "Não, se esse sujeito escreveu isso deve ter algo por trás disso, algo que ele pensou, alguma meditação séria, e nós, como estudantes de filosofia, temos a obrigação de sondar isso para compreender o que ele está dizendo." Não, já inventam uma explicação idiota e a atribuem a mim: "Ah, ele está dizendo que havia filosofia mais desenvolvida nas escolas catedrais e monacais do que nas universidades... isso é um absurdo!"
Espera aí: um idiota sempre tende a imaginar que todo o mundo é idiota como ele, e o sujeito inteligente sempre espera que as pessoas sejam inteligentes, pelo menos ao ponto de compreendê-lo; mas o fato é que a primeira expectativa geralmente se cumpre e a segunda não; em geral os idiotas têm razão: a maioria é tão idiota quanto os idiotas, e a perspectiva de encontrar pessoas inteligentes, que pelo menos desconfiem que possa haver algo mais por trás de nossas explicações, muitas vezes falha --- não falha sempre, Graças a Deus!
Vejam: vocês são meus alunos, mas esses camaradas não são alunos de nada; eles são formadores de opinião: são pessoas que estão aí para ensinar aos outros. Isso é para se ver até que ponto o debate intelectual no Brasil se transformou numa farsa, numa comédia, numa pornochanchada.
[Intervalo]
Aluno: Sobre essa experiência compactada da vida cristã, é ela mesma uma experiência mística? Lembro-me que o professor Luiz Gonzaga disse, em uma de suas aulas sobre religião comparada, que não é possível dizer que Sto. Tomás, mesmo construindo toda sua filosofia cristã de proporções catedralescas, tivesse uma maior vivência mística cristã do que Santa Teresa Ávila, que pouco escreveu sobre. Lembro que uma das maiores dificuldades que o místico tinha era de transmutar a experiência num signo apropriado, e por isso mesmo São Francisco dizia que Deus era pobreza, Santo Antônio, uma privação e Ramana Maharshi, o eu.
Olavo: Você sabe que Sto. Tomás de Aquino, pouco antes de morrer, disse que Deus tinha acabado de revelar certas coisas para ele, perto das quais tudo o que ele havia escrito era nada. E isso é evidentemente assim. Então, é natural que os filósofos profissionais, hoje, tenham uma visão afetadamente superior do conhecimento místico, ou não-verbal --- o que é a prova de que não têm conhecimento nenhum; de que a compreensão deles vai apenas do conhecimento verbal recebido para adiante; o que significa que não tem relevância alguma para a vida dos seres humanos --- e justamente isto contribui muito para o descrédito merecido da filosofia.
Eu não sei se seria certo eu dizer que essa experiência a que estou me referindo ― a experiência cristã que está gravada nas catedrais ― é de natureza propriamente mística: a mística começa quando existe uma visão direta; um contato direto. Às vezes nem sempre é disso que se trata: é por experiência imaginativa, mas é tirada efetivamente da carne e do sangue da vida cristã.
A mística seria um aspecto, uma espécie determinada de experiência cristã, e não toda ela; nem toda experiência cristã vivida em profundidade é de natureza mística; ela não precisaria ser para poder criar, nem aquelas virtudes das escolas catedrais e monacais, nem as obras de arte correspondentes.
Aluno: Professor, na aula 148 você ia começar a nos ensinar como absorver o mito cristão, já que ele é diferente dos outros mitos salvíficos, pois o personagem é o próprio Verbo Encarnado. Poderia comentar algo mais sobre o assunto?
Olavo: Eu ainda vou voltar a isso em outras aulas, mas é claro que se você pegar a galeria inteira dos mitos salvíficos você verá que alguns são claramente histórias inventadas, como aquelas que Platão conta --- o Mito da Caverna, o Mito de Er ---, onde, através de uma narrativa, ele está pretendendo ilustrar alguma visão, alguma intuição que ele teve, que as suas capacidades de exposição doutrinal, teorética, não alcança, então ele dá a sua forma compactada de um mito. Mas em outros casos o mito aconteceu realmente: a vida do Buda é assim, um personagem que realmente existiu de tal modo que a biografia dele compõe o mito budista. A vida de Maomé é a mesma coisa: a vida do profeta islãmico também é uma história real. E a história do Cristo também é uma história real. A diferença específica que existe no caso é que a vida do Cristo continua. Sobretudo a história dos milagres e das revelações sucessivas continua a história do Cristo, ao passo que a do Buda terminou e você só tem aquele material ali. Claro que você pode dizer que um ou outro místico budista acrescentou alguma coisa, mas não se incorpora canonicamente na coisa: não é a continuidade formal da mesma história.
Outra coisa: essa história que continua, foi prometida e anunciada pelo próprio Cristo. Ele disse: "Eu estarei convosco até o fim dos tempos" e "Onde dois ou mais se reunirem em meu nome eu estarei lá." [1:40] Quer dizer: é uma ação que continua. E se alguém não gosta disso, então estude um pouco a vida do Padre Pio e você vai ver a ação divina continuando no mundo. Esta é realmente a diferença específica: o mito cristão é aquele no qual nós ainda estamos vivendo, e o fato de que as pessoas interpretem a história contemporânea em termos do apocalipse mostra exatamente isto; o cristianismo ainda é o grande quadro de referência que dá pelo menos um esboço de sentido da história à luz do qual nós tentamos entender o que está acontecendo.
Mais ainda: se você for estudar toda a história do movimento revolucionário você verá que o movimento revolucionário inteiro, desde suas primeiras manifestações, não é senão uma sombra do mito cristão. A mentalidade revolucionária seria impossível sem o cristianismo: é um fenômeno especificamente cristão. Nós podemos dizer que a primeira eclosão do movimento revolucionário aparece no início do século IV com o movimento donatista. Donato era um sujeito africano que achava que aqueles que tinham abandonado a fé sob ameaça --- porque ser cristão era um crime: podia ser punido com a morte; e então muitos abjuravam, mas abjuravam só da boca pra fora e depois voltavam --- não podiam ser aceitas. Era um camarada de um rigorismo extremo e que queria instaurar o reino da perfeição cristã a ferro e fogo e, em nome disso, já sair matando um monte de gente.
Então, é claro que isso foi o primeiro movimento revolucionário, sem uma ideologia elaborada, mas os elementos já estão dados ali: um projeto futuro de uma sociedade perfeita a ser realizada mediante a concentração do poder na mão dele. Eu não tenho ainda idéia da influência do legado desse movimento donatista para os movimentos revolucionários posteriores, mas, esquematicamente, aquilo já era um movimento revolucionário. Ora, isso é absolutamente impensável fora do contexto apocalíptico cristão; fora da expectativa da segunda vinda do Cristo.
Veja que mesmo na perspectiva islâmica, toda a visão que se tem do fim dos tempos é apenas uma elaboração do mito cristão, diferenciada, recauchutada, mas é essencialmente o mesmo mito: não precisa de outros critérios de interpretação.
No caso islãmico o movimento revolucionário não surge como uma entidade diferenciada, porque o próprio islã já incorpora essa possibilidade na medida em que ele próprio é um projeto de poder mundializado a ser realizado pela concentração do poder; então, sob este aspecto, é um movimento revolucionário --- no contexto em que apareceu não era, mas ao longo dos tempos, o seu aspecto revolucionário, o seu aspecto de um projeto de poder mundial a ser instaurado pela força, vai se tornando cada vez mais nítido. É uma possibilidade que já estava dada dentro dele e que não precisa se realizar como heresia, como rebelião contra o islã, porque o islã já o incorpora: ele tem, de certo modo, a vacina contra o movimento revolucionário na medida em que tem a capacidade de incorporá-lo, ao passo que o cristianismo não tem. No caso do movimento cristão isso não acontece: no cristianismo, todos os movimentos revolucionários serão necessariamente heréticos, na medida em que assumem, por si mesmos, uma função que cabe ao Cristo, no Juízo Final.
Aluno: Se Deus é somente um e tudo o que existe provém dele, posso dizer que desde o início da humanidade ele vem se comunicando com a criação através da experiência religiosa? Em um curso de religião que fiz com seu filho, Luiz Gonzaga de Carvalho, ele fala que a experiência transcendente não pode ser expressa com as mesmas palavras e da mesma forma por seres humanos de sociedades distintas. Normalmente as revelações são imbuídas por compreensão, moldadas pela cultura, pelas normas sociais, pelos pensamentos políticos e tudo o mais que constitui o imaginário do indivíduo que tem acesso a tal revelação. Ainda, em um dos seus Trueoutspeaks o senhor fala que todos os seres vivos manifestam Deus, alguns com mais intensidade, outros com menos, indo de um santo a um gato, por exemplo. Dessa forma, todas as principais religiões estariam dizendo exatamente a mesma coisa, porém de maneira diferente?
Olavo: Sim e não. Estão dizendo a mesma coisa do ponto de vista da estrutura da realidade. Ou seja, a estrutura total da realidade tal como as distintas religiões a descrevem é exatamente a mesma, e é isso que Frithjof Schuon chamava de Unidade Transcendente das Religiões. Isso significa que todas as religiões têm a mesma metafísica, mas a metafísica é um esquema da realidade: isso não tem nada a ver com a ação efetiva de Deus no tempo. E o elemento distintivo do cristianismo é esta ação permanente de Deus no tempo: a ação perfeitamente reconhecível através dos milagres.
Outra coisa: ver narrativas de milagres não é suficiente --- porque mais adiante ele dá outro exemplo do Bahaismo. A diferença dos milagres cristãos é a seguinte: para cada dez mil milagres anunciados só sobram dois ou três, porque todos são investigados meticulosamente --- a Igreja faz um esforço danado para desmascará-los --- e só o que resiste a todos os testes de desmascaramento é tido como milagre. Não existe equivalente disto em religião nenhuma; ao contrário, existe apenas a propaganda dos milagres, mas não o teste.
Isso quer dizer que estes milagres, tal como são alegados no budismo e outras religiões, são elementos de persuasão, mas não se incorporam na estrutura da fé: não há uma relação orgânica entre uma coisa e outra. Se houvesse eles teriam de ser depurados exatamente como se faz na religião católica: ou seja, você não pode aceitar qualquer presunção de milagre como se o fosse. No cristianismo também existem milagres não comprovados, ou alguns que são comprovados, mas por meios que não são oficialmente os da Igreja Católica. Por exemplo, o James Rutz, no livro Megashift, narra inúmeros milagres, alguns comprovados cientificamente, mas que não são incorporados na doutrina católica porque foi uma ou outra igreja, isoladamente, que o fez. Estes milagres podem ser autênticos, evidentemente, e alguma relação com o tronco central da religião cristã eles têm, mas isso não está esclarecido, ao passo que nos milagres dos santos católicos isso está meticulosamente depurado e incorporado, então eles são ainda o mito cristão se desenvolvendo diante de nossos olhos.
Eu creio que a diferença específica do cristianismo, especialmente do cristianismo católico, é esta presença constante e documentada da ação divina. Os judeus também têm alguma coisa similar, mas eu tenho pouco conhecimento a respeito, então eu não vou abrir a minha boca. Mas eu sei que o trabalho que os rabinos fazem de constante reinterpretação dos fatos à luz da Torá é um negócio de uma seriedade monumental. Eu dei o exemplo do rabino Jonathan Cahn, que analisou o 11 de setembro à luz da Torá. Eu geralmente não gosto muito dessas coisas...
Esses dias saiu um artigo do Walid Shoebat --- um sujeito que era um ex-radical islãmico que se converteu ao cristianismo e faz umas análises muito boas --- no qual ele disse que quando a Bíblia fala "Todo o mundo" não quer dizer todo o mundo, mas "todo o mundo que circundava Israel", e ele dá vários exemplos disso. Então ele diz: "Olha, o pessoal está interpretando toda essa coisa de maneira muito nacionalista, como se a Bíblia estivesse falando do seu país: se o cara é inglês a bíblia gira em torno da Inglaterra, se é americano gira em torno dos Estados Unidos." Só faltava achar que é o Brasil o grande personagem da bíblia; se bem que tinha gente, nos anos trinta e quarenta, uns camaradas meio teosóficos, que faziam isto.
Mas ele diz que é um absurdo você dizer que o anticristo dominará o mundo todo porque lá está dito que o anticristo entrará em guerra com a nação mais poderosa e será derrotado: se tem uma nação mais poderosa que ele então ele não manda no mundo inteiro. Procurem este artigo do Walid Shoebat3, está no World Net Daily desta semana: este artigo é um calmante para os amadores de interpretações apocalípticas que fazem as previsões mais realmente apocalípticas para a semana que vem, para o mês que vem etc. e muitos deles acham que sabem quando que vai ser o fim do mundo quando o próprio Cristo diz que nem Ele sabe. [1:50]
Quando o Cristo diz que Ele não sabe e só Deus Pai sabe, quer dizer: Deus Pai é o poder divino, é a vontade divina, e Cristo é a inteligência divina, é o Logos, é o conjunto, por assim dizer, das leis eternas; quando ele diz isso, ele está dizendo que o fim do mundo será uma livre decisão da vontade divina e não algo que deva estar pré-determinado e que seja racionalmente deduzível.
Então é claro que todas as religiões dizem a mesma coisa a respeito da estrutura da realidade: a concepção metafísica e cosmológica que têm é realmente idêntica, o que prova que elas têm algum fundo de inspiração divina. Mas o fato de elas concordarem naquilo que estão dizendo não quer dizer que elas sejam a mesma coisa: são só do ponto de vista da doutrina metafísica. Mas, e os meios de salvação? E a ação divina? E a relação direta entre o fiel e Deus? São completamente diferentes.
O Hélio Pereiriano me manda uma pergunta espetacular aqui, mas... Hélio, só vou lhe dizer uma coisa: você tem toda a razão, mas não vai dar nem para eu ler isso tudo aqui e nem para lhe dar uma resposta detalhada. A conclusão dele é a seguinte: que muitas inovações matemáticas possuem as características de soluções literárias, elaboradas para fazer com que o mesmo objeto já descrito, seja descrito de modo mais fácil de ser pensado. Isto é batata! Talvez eu dê uma aula sobre isto mais tarde; eu só posso dizer que você tem razão: é exatamente isto o que acontece.
A Celina pergunta se o positivismo está para o agnosticismo assim como o marxismo está para o gnosticismo: isto está absolutamente perfeito. O positivismo trabalha neutralizando todo o mundo espiritual, colocando-o entre parêntesis, e reduzindo-o a expressão de preferências pessoais --- é o mundo do subjetivo --- ao passo que o marxismo não o neutraliza: o marxismo o substitui, como uma pseudo-religião, uma pseudo-expectativa apocalíptica. É o agnosticismo, a negação de todo o conhecimento de Deus, ou o gnosticismo, a presunção de ter um conhecimento divino.
Aluno: O senhor, numa apostila, diz: "proposição auto-evidente é aquela cuja contraditória não pode ser formulada numa proposição logicamente unívoca; o princípio de identidade ― "A é igual a A" ― é auto-evidente, não porque tal nos pareça ou porque tenhamos um sentimento de certeza de que é auto-evidente, mas porque sua contraditória, "A é diferente de A", tem um duplo-sentido." [...]
Olavo: Aí é melhor vocês lerem na apostila "Identidade e Univocidade".4
Aluno: "Eu não consegui compreender o modo como o senhor descobriu esta propriedade de que toda proposição é auto evidente."
Olavo: Eu também não sei; eu sei que de repente eu percebi isso e tal como Hegel olhando a montanha eu tive de dizer: é, de fato é assim. Mas eu realmente não sei de onde eu tirei isto. Já me aconteceu muitas vezes de eu pedir a Deus a solução de alguma coisa e a solução aparece na minha cabeça: eu não sei como: não sonhei, não tive visão nenhuma, mas, de repente, aquilo aparece com uma evidência inegável. Se bem que, como toda evidência de tipo lógico, ela pode ser discutida indefinidamente.
Mas não é curioso que justamente a técnica concebida para dar provas científicas cabais e finais não ofereça jamais nenhuma, e alimente discussões indefinidamente? Será que isso é coincidência? Por que é que os caras que mais discutem entre si são os lógicos, os matemáticos etc? "Mas não são vocês que têm na mão o instrumento da prova?" A prova cabal de qualquer coisa, a prova absoluta e final, é impossível. O tal do Kurt Gödel passou a vida demostrando isso: não existe um sistema dedutivo perfeito.
Ou seja: nenhum sistema dedutivo, nenhuma elaboração lógica substitui um negócio que se chama "dados da experiência". E, mais ainda, o que acontece é que certos critérios de distinção lógica --- e até epistemológica --- desenvolvidos nos últimos três séculos, confundem a coisa de tal maneira, e criam impedimentos mentais absolutamente fantásticos. Por exemplo, este rapaz com quem eu estava discutindo --- eu nem sei se é aluno do Seminário --- acredita piamente no negócio do Hume de que "a experiência do ser só existe depois que nós conhecemos muitos seres e obtemos a noção do ser por abstração". Isto é absolutamente impossível!
A experiência do ser é a primeira experiência que você tem, antes de qualquer diferenciação: se você não sabe que existe num mundo existente você não sabe nada! É impossível saber qualquer coisa: você não pode conhecer um gato; um bebê não pode conhecer sua chupeta. Qualquer distinção que ele faça: "Olha, aqui tem um negócio chamado chupeta e aqui a mamadeira; um a gente chupa e sai leite e o outro a gente chupa e não sai nada, mas dá pra gente ficar se enganando a si mesmo." Ele não conseguirá fazer esta distinção se ele não tiver a experiência de existir num mundo existente.
Para você obter, da percepção de vários seres individuais, a noção do ser total, você precisaria ter uma experiência infinita, e mesmo assim a noção de ser não teria validade alguma porque seria de natureza puramente indutiva. E se existe uma coisa que é de absoluta certeza é a existência da existência, porque "ser", no fim das contas, não significa nada mais do que existência.
Se não temos a experiência indiferenciada da existência, anterior a qualquer distinção entre os seres, a qualquer distinção entre o que é subjetivo e objetivo, nós não poderemos conhecer absolutamente nada.
De onde ele tirou isso? É o velho negócio de Hume, de que nós só conhecemos os seres individuais, e tudo o mais é construção da nossa mente; é uma coisa que eu digo que não é apenas errada, mas é impossível!
Por exemplo: eu vou construir a noção da espécie gato a partir da soma de vários gatos; mas para isso eu preciso comparar um gato com outro gato. Mas, pergunto eu: o que de um gato eu vou comparar com o outro? Cada gato é de uma determinada cor, de um determinado tamanho, está numa determinada posição, num determinado lugar, fazendo alguma coisa: em suma, ele tem uma multidão de características. O quê de um gato eu vou comparar com o outro? A posição de um com a cor de outro? O tamanho de um com o miado do outro? Não. Fazendo essa comparação eu não terminaria nunca. Então algo do gato eu apreendi que me permite a comparação com o segundo. E esse algo é o quê? É a forma essencial. Mas se eu peguei a forma essencial do primeiro gato, essa forma essencial não é daquele gato individual, mas do gato em geral; tanto que ela pode ser comparada. E quantos gatos eu preciso conhecer para conhecer a espécie gato? Um.
O primeiro gato que você conheceu tinha todas as características de gato ou faltava alguma? Ele tinha todas. Está aqui uma bola: de borracha, de cor amarela. Ela contém todas as características de bola ou não? Falta algo para ela ser uma bola? Não falta nada. Então quantas bolas eu preciso conhecer para conhecer a espécie bola? Uma.
Então a construção da noção das espécies não é indutiva; ela é imediata e intuitiva e dada no primeiro exemplar que se lhe oferece. Isso aí eu escrevi há quarenta anos.
Eu não sou um sujeito burro --- alguma inteligência eu tenho --- e por isso mesmo eu acho que as pessoas são inteligentes e freqüentemente sou decepcionado nisso aí. Quando eu descubro um negócio, e quando eu já descobri há quarenta anos, eu tenho aquela impressão subjetiva de que todo o mundo já sabe aquilo. Quando passam quarenta anos e eu vejo que isso ainda é um ponto de extrema dificuldade e que algumas pessoas ainda estão apegadas àquele negócio do Hume, só porque eu não as avisei de que aquilo estava errado, eu fico muito impressionado. Quer dizer, esses preconceitos paralizantes que, sobretudo Hume e Kant criaram um monte --- o negócio do Kant de que de um signo não se pode deduzir a existência do referente; há uma dificuldade em fazer isso, mas o cara transforma uma dificuldade numa impossibilidade de princípio. [2:00]
Também a dificuldade de saber como você apreendeu a noção das espécies não pode se transformar numa impossibilidade e, sobretudo, isso não pode ser solucionado com uma pseudo-solução, como a de dizer que é um processo indutivo: eu tenho de ver um gato, depois outro gato, depois outro gato e depois de vinte gatos eu digo: "Ah, é gato." Mas que coisa imbecil! É impossível acontecer um treco desses porque se eu não tiver a forma essencial do gato eu não tenho o que comparar com o segundo gato; então o segundo gato é apenas a confirmação de uma coisa que eu já sei. Podem existir seres ambíguos, que a gente não sabe exatamente o que é; como a Leilah que a primeira vez que viu uva passa perguntou se era amendoim de goma; mas note bem, é uma forma realmente ambígua: eu conheço bala de goma, isso aqui é mole, é amendoim de goma. Claro que pode haver erros no processo, mas isso nada prova contra a validade do processo em si.
Aluno: O senhor falou na aula 148 que a Família Real, influenciada pela maçonaria, prejudicou a expansão da Igreja no Brasil. Recentemente assisti em São Paulo a uma palestra sobre a catolicidade da Princesa Isabel, realizada pelo Instituto Plínio Correia de Oliveira com informações discrepantes.
Olavo: Informações discrepantes a respeito dela. E o fato de os caras serem católicos pessoalmente não quer dizer que suas atitudes políticas fossem coerentes com a fé católica alegada em privado, mas com seus compromissos maçônicos, que eram muito sérios. Os dois imperadores eram, ambos, maçons e a Proclamação da República surge de um conflito interno da maçonaria, entre outras causas, evidentemente. A história da Igreja ― a história das dificuldades encontradas pela Igreja no século XIX ― é um negócio que está amplamente documentado: nos livros do João Camilo de Oliveira Torres está bem contado isto aí. Agora, que a Princesa Isabel era muito devota, era muito devota, mas ela foi a última que governou; não tem nada a ver com os dois anteriores. Pedro II, por exemplo, estava muito mais interessado em ciência, em biologia e até em Darwinismo do que em religião cristã, e Pedro I não estava nem aí para essas coisas. No entanto, seus compromissos maçônicos não eram uma questão de fé: eram questão de laços de uma obrigatoriedade grupal que se não cumprissem estavam lascados --- tanto que se lascaram mesmo, no fim das contas.
Por hoje é só. Até a semana que vem, muito obrigado.
Transcrição: Gabriela Marotta, Rimi Oliveira, Jussara Reis e Vicente Oliveira.
Revisão: Eduardo Garcia de Queiroz
Footnotes
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Este texto encontra-se no site do seminário, anexo a esta aula 151. Veja também "Os filodoxos perante a História -- A filosofia e seu inverso III", em A Filosofia e seu Inverso & outros estudos, Olavo de Carvalho, Vide Editorial. ↩
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Veja trecho de uma conversa informal com Olavo de Carvalho, em que ele explica o argumento ontológico de Santo Anselmo e por que seus interpretes e comentadores não o compreenderam, em http://www.seminariodefilosofia.org/argumentodesantoanselmo ↩