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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 146

17 de março de 2012

Boa noite a todos! Sejam bem vindos!

Hoje, continuando o longo descanso do texto de Descartes, gostaria de prosseguir o tema da aula passada e, a propósito, coloquei três citações à disposição de vocês na página do seminário, que irão constituir o tema de nossa aula. Tratam-se de três grandes estudiosos de Platão, entre os maiores que já existiram. Há toda uma tradição de estudos platônicos nos quais estes três nomes se destacam. Porém, podemos encontrar citações exatamente no mesmo sentido em outros grandes livros sobre Platão, de maneira que o que está dito aqui é quase um consenso entre os maiores estudiosos de Platão. O primeiro é de Julius Stenzel, do livro Platão Educador, que diz:

"Ele [Platão] não concebeu jamais o aprender como uma coisa de puro intelecto, e sim como um influxo total de homem a homem, como educação no sentido mais alto, como [a experiência de] ser formado e modelado pela íntima relação e sociedade com um outro ser humano."

Alfred Taylor:

"Uma das mais firmes convicções de Platão era que nada que realmente valha a pena saber pode ser aprendido simplesmente recebendo 'instrução': o único método verdadeiro de 'aprender' a ciência é estar efetivamente envolvido, em companhia de uma mente mais avançada, na descoberta da verdade científica."

E, finalmente, Eric Voegelin, em seu livro Platão e Aristóteles, terceiro volume de Order and History, que é um dos raros livros de filosofia que, quando compreendido, leva às lágrimas. Ele assinala um momento decisivo da história da filosofia, que é o momento em que Sócrates, sendo levado para conhecer o famoso sofista Górgias, é perguntado por seu amigo Cérefon (ou Querefonte, como consta na tradução do Carlos Alberto Nunes) quais perguntas ele deseja fazer a Górgias, pois este havia se proposto a responder qualquer pergunta que lhe fizessem.

Platão então diz "Pergunte quem é ele". Diz aqui Eric Voegelin:

"[No Górgias] o que está em jogo aí é a substância do homem, não um problema filosófico no sentido moderno. Sócrates sugere a Cérefon a primeira pergunta [a Górgias]. Pergunte-lhe 'Quem ele é' [447D]. Esta é, para todos os tempos, a questão decisiva, cortando a rede de opiniões, idéias sociais e ideologias. É a questão que apela à nobreza da alma, e é a única questão que o intelectual ignóbil não pode encarar de frente."

Se perguntarmos o que são problemas filosóficos no sentido moderno, temos aqui um exemplo nas conferências de sir. Michael Dummett, que são As Bases Lógicas da Metafísica, onde ele dá um exemplo de problemas filosóficos típicos: "Temos livre arbítrio?", "Pode a alma ou a mente existir fora do corpo?", "Como podemos distinguir entre o certo e o errado?", "Há um certo e um errado, ou simplesmente os inventamos?", "Podemos conhecer o futuro ou afetar o passado?", "Existe um Deus?". Essas são perguntas caracteristicamente filosóficas. Algumas delas foram impugnadas pela escola analítica e trocadas por perguntas sobre o sentido da linguagem, o sentido das palavras, de modo que a atividade filosófica fica então reduzida à análise da linguagem, onde transparece que alguns desses problemas filosóficos vieram aparecer apenas por equívocos de linguagem, ou seja, houve uma certa suposição de sentidos, sentidos mesclados que, uma vez analisados, revelam que a questão não faz sentido, porque não possui um objeto próprio, e que tudo resultaria duma confusão da mente.

Algumas dessas questões são deixadas de lado e substituídas pelo problema do significado, pela lógica da linguagem, etc. Somando esses problemas aos problemas novos trazidos pela escola analítica, isso seria o repertório de problemas filosóficos. Outras escolas acrescentaram outros problemas, como o do "Existe um sentido da História?", "Quais são as leis do processo Histórico?", e assim por diante. Esses problemas constituem o repertório daquilo que se ensina e se discute nas escolas de filosofia. Porém, neste encontro de Sócrates com Górgias não é nada disso que se está discutindo. A pergunta é a seguinte: Quem é você? Em muitas traduções essa pergunta aparece como O que é ele? A expressão grega ostin pode querer dizer "que" ou pode querer dizer "quem". Eric Voegelin preferiu "quem", e acho que isto é mais adequado à situação, porque a pergunta "que" poderia ser respondida apenas com um nome de profissão, como de fato é: Górgias diz ser um retórico, mas Sócrates não se satifaz com essa resposta, ele quer saber qual é a substância da retórica, em que consiste essa atividade mesmo, ou seja, ele está procurando a identidade verdadeira de Górgias por trás do nome da profissão. Portanto, acho que a tradução "quem" cabe muito bem no caso. Eu não sou especialista em lingua grega, mas me parece que esse termo ostin, admitindo as duas traduções, dá margem a esta tradução que Voegelin escolheu.

Voegelin enfatiza que esse é um problema que diz respeito à substância do ser humano, e não a problemas filosóficos. Em vários desses grandes livros sobre Platão também se enfatiza que não há nenhum sistema platônico: Platão jamais quis criar um sistema, muito menos fazer uma exposição sistemática de sua filosofia, pois se o fizesse, estaria construindo uma filosofia que pudesse ser transportada para outros seres humanos por meio da simples instrução, ou seja, seria a leitura ou uma audição. Na verdade, Alfred Taylor fala em ouvir a instrução, ou seja, ouvir um professor explicar. Ler o texto ou ouvir um professor explicar seria suficiente para a educação filosófica caso Platão tivesse composto um sistema pronto: basta ler o sistema e entender o que Platão quis dizer. Mas é isso justamente o que Platão está nos dizendo que é impossível: ele não quer fazer, não pode fazer e não deve fazer, pois isso trairia a própria natureza íntima do processo filosófico, que é o processo de despertar num ser humano não somente sua inteligência (no sentido de compreensão da realidade), mas o seu amor à verdade, à filosofia, e seu amor à própria busca filosófica e ao objeto dela que é, segundo Platão, o Supremo Bem.

Esse influxo de homem a homem visa produzir um resultado que não afeta somente o aspecto cognitivo do ser humano, [00:10] mas afeta justamente esta pergunta: Quem é você? É evidente que se trata de uma transformação do ser humano, de um melhoramento do ser humano. Isso não poderia jamais ser obtido somente pela instrução, mas tem de ser passado pelo exemplo vivo. E notem bem que uma boa parte da obra de Platão não é senão o registro da experiência que ele teve com Sócrates. Alfred Taylor enfatiza que Sócrates não foi propriamente um mestre para Platão, mas foi alguém que ele conheceu na juventude e que deixou um profundo impacto. Não é um mestre no sentido de alguém que ensinou uma doutrina e que moldou as opiniões de seu discípulo, mas alguém que por sua influência pessoal despertou em Platão a idéia de um tipo de existência humana, a idéia de um tipo humano que não existia antes. O que era o intelectual grego antes de Platão? Era evidentemente um artista, um dramaturgo, alguém que escrevia peças, um poeta, ou então era um dos sofistas. O sofista era o sujeito que dava o suporte intelectual da existência política de Atenas, ensinando aos membros da classe dominante os instrumentos de persuasão necessários ao sucesso na vida política: isso era tudo o que se conhecia até então.

Com Sócrates de repente aparece um sujeito que está fazendo uma coisa completamente diferente. Que coisa é essa que ele está fazendo, e qual é propriamente a natureza dessa diferença? Isso aparece logo em seguida no diálogo quando Sócrates diz que é melhor sofrermos uma injustiça do que cometermo-la e, no caso de cometermo-la, é melhor sermos castigados do que escaparmos ilesos, pois se escaparmos e tivermos sucesso na prática da injustiça, de certo modo o mal se consolidou e isso afetará o nosso destino post mortem. Somos indivíduos que tiveram sucesso no erro, isso se consolida, se cristaliza, e nossa personalidade está comprometida com o mal para sempre.

O interlocutor de Sócrates que naquele momento não é Górgias, mas o discípulo de Górgias chamado Polo, responde que isso é uma hipocrisia da parte de Sócrates, porque ele diz: "É evidente que você, Sócrates, preferiria cometer a injustiça antes do que sofrê-la, como todo mundo! Todo mundo é assim! Qualquer ser humano, entre sofrer uma injustiça e cometê-la, vai preferir cometê-la, pois é mais vantajoso para ele." Ali fica evidente que Polo não consegue conceber que alguém seja melhor do que ele, ele acha que esse instinto de autodefesa, esse instinto de interesse próprio de prevalecer sobre outros é natural no ser humano, é compartilhado por todos os seres humanos, inclusive pelo próprio Sócrates. E por mais que Sócrates argumente com ele, ainda que cedendo em certos momentos, ele não chega a compreender do que Sócrates está falando.

A idéia de que algumas pessoas possam ser melhores do que as outras pode parecer muito chocante a alguns indivíduos, e isso não só no tempo de Sócrates: vemos como isso aparece e reaparece. Hoje mesmo estava vendo um vídeo no You Tube, de nosso conhecido "Doutor" Paulo Ghiraldelli falando sobre Sócrates, ele e uma mocinha que o está entrevistando, e sempre dando aquela idéia de que a filosofia é uma coisa para todo mundo, todos nós podemos participar disso. Bom, em princípio todos nós podemos participar, porém a filosofia é essencialmente um esforço para melhorarmos, para a auto transcendência. Podemos participar da filosofia desde que aceitemos melhorar, e desde que aceitemos olhar com olhos críticos o idiota que temos sido inclusive até aquele momento. Sem essa disposição não existe filosofia alguma. A filosofia não é para uma elite, no sentido de que nós não podemos selecionar antecipadamente quem serve para ela. Não, as pessoas de certo modo se selecionam a si mesmas na medida em que vislumbram algo melhor do que elas e aceitam este esforço de autotransformação. Mas há aquelas que bloqueiam sua entrada na filosofia no instante mesmo em que não concebem que haja nada melhor que elas, e sobretudo no instante em que acham que podem participar da filosofia plenamente e opinar a respeito naquele mesmo estado em que elas já estão neste momento. Essa é uma diferença que ressurgirá ao longo dos tempos de novo e de novo e que hoje em dia aparece talvez com mais clareza do que nunca.

No confronto com Polo, Sócrates percebe evidentemente que não há comunicação, que ele está falando uma coisa e que Polo está falando outra completamente diferente, assim como eu e o Paulo Ghiraldelli também jamais dialogaremos: não há comunicação possível. Ele diz que esse afastamento, esse bloqueio, essa dificuldade de comunicação entre as pessoas acontece na sociedade humana, ou seja, na rede de comunicações que há na sociedade, mas que existe um nível mais profundo onde todos os seres humanos são de certo modo obrigados a reconhecer as mesmas verdades. E ele chama esse outro nível mais profundo de pathos, que é a emoção profunda, a emoção, por exemplo, diante da morte, diante do perigo, diante do sofrimento extraordinário. Nesses momentos não existe sofisma, não existe tecido de palavras sobre o qual você possa se esconder. Nesses momentos todos os seres humanos são iguais e se dessem voz a esse sentimento profundo, todos diriam mais ou menos as mesmas coisas. Nesse sentido é que dizia Ortega Y Gasset que só têm validade as idéias dos náufragos, ou seja, aquela idéia que o sujeito ainda acredita no instante em que o navio afundou e ele está tentando se agarrar a uma tábua para tentar sobreviver. As idéias que não passam pelo teste do naufrágio não merecem atenção.

Nesse momento intervém outro dialogante, Cálicles, que introduz uma distinção, tentando esclarecer o ponto de vista de Polo. Ele diz: "Por um lado existe a natureza, por outro existe a convenção. No nível da natureza Polo está certo, e no nível da convenção você está certo." Notem bem: na cultura contemporânea só se acredita em duas coisas: por um lado existe a natureza material, tal como as ciências físicas a descrevem, e por outro lado existem os produtos culturais: as instituições, os mitos, as leis, os costumes, a linguagem, etc. É a mesma divisão que já estava dada em Cálicles, isso quatrocentos anos antes de Cristo. Se vocês lerem direitinho os diálogos de Platão, verão que não há uma só teoria filosófica que tenha aparecido em dois mil e quatrocentos anos que já não esteja lá antecipadamente exposta e confirmada ou impugnada. Polo defende a teoria de que a natureza prevalece, e que o fundo da natureza é constituído de egoísmo e autodefesa: é a teoria que vai reaparecer em Thomas Hobbes, e depois em Nietzsche: ele usará o argumento caracteristicamente nietzschiano [00:20] de que a tentativa de coibir o impulso natural mediante considerações de ordem moral é um artifício usado pelos fracos para contornar o poder dos fortes, para ludibriar os fortes de alguma maneira. E ele diz que pela natureza o que deve predominar são os fortes, ao que Sócrates mui apropriadamente responde: "Mas como os fracos são maioria, eles dominam facilmente os fortes. Então, na verdade, são eles os fortes." Polo diante disso não tem o que responder, e então entra Cálicles com a distinção de natureza e convenção.

Ora, se nós reduzimos tudo à natureza e convenção -- prestem atenção, isso é uma sutileza, porque praticamente isso é tudo o que a cultura atual oficialmente reconhece - se só o que existe é natureza e, por outro lado, a cultura, onde está o pathos, a emoção profunda? Ela não pode estar nem em um lugar, nem em outro. Se a reduzimos a um efeito natural, então todas as emoções profundas de extrema piedade perante o sofrimento, ou o horror perante a maldade, tudo isso fica reduzido a reações do organismo egoísta que se defende, em última análise, movido pelo medo ou pelo ódio: ou seja, tudo se reduz a desejo, ódio e medo! Não há outras emoções além dessas. E se colocamos o pathos na esfera dos produtos culturais, isso significa que ele é apenas outro nome, um nome mais elegante ou mais elaborado que demos a emoções completamente diferentes, por exemplo, medo, ódio, para enfeitá-las, adorná-las de alguma maneira, e o pathos desaparece. Nesse sentido a comunicação se torna absolutamente impossível. Existem dois níveis de falsificação: o primeiro é aquele que coloca o seu desejo egoísta acima de tudo e faz dele o princípio da moral, o caso de Thomas Hobbes e Nietzsche; o segundo nível é um pouco mais elaborado, onde dividindo o mundo em natureza por um lado, e cultura -- nature and nurture, como dizem as ciências sociais modernas --, não se deixa nenhum lugar para aquela emoção profunda que unifica os seres humanos.

Ora, o que quer dizer unificar os seres humanos? Se nos perguntarmos se existe uma espécie humana vemos que no sentido biológico parece que sim. Só há um problema: não sabemos exatamente qual foi a origem da humanidade: a única teoria que temos para explicar seria a teoria da evolução, que é problemática sobre tantos aspectos. Mesmo assim não vejo como essa teoria poderia explicar a unidade da espécie humana, pois teria de ter havido várias evoluções distintas em lugares distintos, a partir de antepassados distintos pertencentes a várias raças de antropóides completamente diferentes. Nesse caso a unidade da espécie humana seria meramente casual, ou seja, vários antropóides que ao longo de milênios evoluíram, um num sentido, outro em outro, produziram seres que são esquematicamente parecidos.

Nesse caso, a unidade da espécie humana seria meramente casual, ou seja, vários antropóides que, ao longo de milênios evoluíram sucessivamente, produziram seres esquematicamente parecidos. Mas se a humanidade consiste em várias raças diferentes, nascidas de antepassados diferentes e que assumiram uma forma esquematicamente parecida, porque os seus antepassados também o eram, não há nenhuma base para se falar em unidade da espécie humana; é a apenas a unidade de uma aparência externa, por assim dizer.

Por outro lado, se a idéia de uma unidade natural da espécie humana é altamente problemática em si, a unidade cultural é mais problemática ainda, porque vemos que a história da espécie humana se constitui de diferentes evoluções históricas ocorridas em distintos lugares do planeta praticamente sem nenhum contato entre si. Os contatos entre civilizações se intensificaram muito a partir de certa data histórica; mas entendemos que a maior parte das culturas que existiram não tinham notícia umas das outras. Outro dia mesmo eu assistia a um documentário sobre o Oeste americano que mostrava que havia, só para dar um exemplo, mais de duzentas tribos diferentes, das quais a maioria não conhecia as outras --- não conhecia e não tinha a menor possibilidade de contato, pois a língua era diferente, o sistema simbólico era diferente; então, simplesmente não se entendiam e, frequentemente, uma tinha a idéia de que os membros da outra não eram seres humanos. Muitas tribos, não só na América, como também em outros lugares, tinham nomes que significavam simplesmente "seres humanos" --- "Nós somos seres humanos e eles são alguma outra coisa".

É como no romance de Elio Vittorini, Uomini e no: existem os homens e existem os "não", um treco que não se sabe o que é. Isso aconteceu em muitas culturas: a negação do estatuto humano ao outro é quase uma constante da história humana. Se a unidade natural da espécie humana é um problema, a sua unidade como produto histórico e cultural é mais problemática ainda. Perguntamo-nos em que nível, em que sentido pode existir uma unidade da espécie humana, ou, até mais precisamente, qual é a condição para que um ser humano perceba a unidade da espécie humana --- porque, notem bem, não percebê-la foi uma constante em muitas culturas durante muitos milênios. Não é auto evidente a idéia de que um sujeito pertencente a uma raça diferente ou tendo uma aparência completamente diferente fosse tão humano quanto um sujeito de sua própria raça.

Algum dia, então, isso teve de aparecer e ser percebido; até que se perguntou: "Onde está a unidade da espécie humana?" A unidade da espécie humana não é objeto de experiência; não pode ser percebida por meio nenhum, nem natural, nem cultural. Ela só aparece quando conseguimos conceber a totalidade do destino humano perante um fundo de eternidade. É o princípio da divindade transcendente e o princípio do Juízo Final que, por assim dizer, unificam a espécie humana. A idéia da justiça transcendente, à qual todos os homens estão submetidos, é o espelho em face do qual aparece a unidade da espécie humana; retirado esse espelho, a unidade desaparece. Esse espelho, contudo, também não é um objeto de experiência: ele aparece quando o buscamos, ou seja, quando nos abrimos para aquilo que está para além de nossa experiência; e quando admitimos que o círculo inteiro de nossa experiência é um pedacinho infinitesimal e que a verdadeira estrutura da realidade não se constitui daquilo que conhecemos, que é como se fosse uma bolha, uma esfera boiando no oceano do desconhecido, no ápeiron de que falava Anaximandro.

Esse fundo desconhecido é o verdadeiro substrato da realidade, e aquilo que conhecemos é apenas um pequeno círculo. A abertura para a transcendência é o que permite que nos instalemos na realidade tal como efetivamente é, de tal modo que aqueles que enxergam somente o círculo da experiência conhecida se tornam para nós como que bárbaros ou crianças --- pessoas que estão na situação de que fala Heráclito: os homens acordados vivem todos no mesmo mundo; quando dormem, vão cada um para o seu mundo. A pessoa que só concebe o mundo da sua experiência ou da experiência da sua comunidade [00:30] é como se estivesse adormecida; quando desperta, o faz para a imensidão de um desconhecido absolutamente incontrolável, e sabe que está lá o fundamento daquilo que vê. A realidade se divide numa superfície visível colocada em cima de um oceano de desconhecido. Esse desconhecido provoca o espanto, e este provoca o desejo de saber e, ao mesmo tempo, uma espécie de maravilhamento --- o thambos grego não deve ser interpretado só no sentido de "atemorizante"; é um espanto, mas de alguma maneira é também um deslumbrar-se.

Essa abertura é a condição para que se tenha um vislumbre da unidade da espécie humana, unidade que não aparece na experiência da natureza ou na experiência histórica, mas somente em imaginação. Quando conseguimos imaginar o limite da vida humana que chega ao seu término, vemos que a passagem da vida temporal para a eternidade implica um julgamento; aquilo que transcorreu no tempo é agora confrontado com as leis eternas: sem isso não há a possibilidade da unidade humana.

Esse pathos, essa emoção profunda de que fala Sócrates, não tem explicação nem natural nem cultural. Por exemplo, os episódios de sofrimentos extremos partilhados em comum por homens de culturas diferentes, raças diferentes etc., onde a comunidade do sofrimento transfigura as pessoas, como nos relatos de pessoas que passaram por campos de concentração e sofreram torturas etc., ou que passaram por guerras, desgarraram-se de suas famílias e perderam tudo, ou que tiveram doenças gravíssimas. Esses momentos podem despertar no indivíduo o pathos ou uma total insensibilidade.

Quando eu era pequeno, vivia doente e com febre, e passava muitas vezes por momentos em que sentia que todo o meu sistema de percepções e toda a minha identidade haviam desaparecido, sobrando, por assim dizer, apenas um corpo inerte entre outros corpos inertes. Eu tive muitas vezes essa experiência e vi a facilidade com que podemos perder todo o nosso senso de identidade, o qual depende da memória, da continuidade do meio ambiente, da linguagem etc. Contudo, mesmo nesses instantes, eu ainda tinha um senso de identidade --- não de identidade histórica, por assim dizer, mas de continuidade ontológica. O pathos a que se refere Sócrates tem justamente algo a ver com esse fundo que nada pode abolir --- mesmo um sujeito que esteja maluco, esquizofrênico, doido ainda tem isso em seu fundo e é capaz de sofrer; e mesmo num sujeito muito maluco sobrevivem, às vezes, certas emoções básicas de solidariedade, piedade etc.

Mas, se fizermos questão, mediante um artifício conceptual, de catalogar tudo em natureza e cultura, ou natureza e convenção, não deixaremos lugar nem para a experiência imaginativa da unidade da espécie humana, nem para o pathos, a unidade das emoções profundas, que reunifica os homens por trás da rede de desentendimentos e diferenças de linguagem e diferenças semânticas, entre as várias correntes de idéias, grupos de opinião etc. De fato, o que Sócrates coloca aqui em jogo é a identidade profunda do ser humano. Esse é o sentido da pergunta "quem é você". "Quem é você" não no sentido profissional, social, mas quem é você na hora do naufrágio, quem é você no nível do pathos, da emoção profunda, e, sobretudo, quem é você perante o Juízo Final.

Conta a mitologia grega --- isto também aparece no Górgias --- que, no tempo em que reinava Cronos --- Saturno ---, o julgamento dos indivíduos era feito logo antes de morrerem e, por isso, compareciam ao julgamento ainda com seus corpos, roupas etc. A sua alma não aparecia de maneira nua e crua: ainda vinha disfarçada, por trás de uma identidade social longamente construída. Por conta disso, havia muitos erros judiciários. Quando se levou isso ao conhecimento de Zeus, ele mudou e transferiu o julgamento para depois da morte, onde as pessoas não tinham nem corpo nem roupa nem nada, e o verdadeiro estado da sua alma transparecia.

Esse verdadeiro estado da alma é, durante nossa vida, praticamente indizível; sabemos que está ali o tempo todo, mas ele só transparece no momento do pathos, da emoção profunda. Tão logo tentemos expressá-lo em palavras, teremos de usar as palavras do grupo social, da nação etc. --- códigos que até podem expressar essa emoção profunda, mas, ao mesmo tempo que a expressam, a encobrem. Sócrates está dizendo que existe um nível de comunicação profunda que só aparece nos momentos de extrema emoção ou depois da morte; perdido isso, só o que sobra é, de fato, natureza e convenção, e, nesse sentido, Cálicles até pode estar certo.

No nível de experiência a que Cálicles se refere, só existe efetivamente isso, e, para uma cultura em que todas as atividades humanas --- as atividades intelectuais --- se tornaram atividades profissionais, que têm de obedecer a convenções de grupos, regulamentos, exigências burocráticas etc., é evidente que só podem sobrar natureza e cultura. Só que, justamente quando isso acontece, qual é a possibilidade da filosofia? A possibilidade é zero, porque, se a filosofia é este influxo direto de homem a homem, de coração a coração, de modo que o mais velho e mais experiente desperte no mais jovem o sentido dessa experiência profunda, que liga a sua imaginação para uma antecipação do Juízo Final, tudo isso é abolido e se torna absolutamente impossível, e o que sobra da filosofia são os problemas filosóficos no sentido moderno.

É evidente que esses problemas filosóficos estão ao alcance de qualquer um, bastando algum esforço de compreensão de textos; mas, em tudo isso, fica abolida a pergunta principal. Vocês imaginem o que seria acossar um professor, numa faculdade de filosofia, com esta pergunta: "Mas, afinal, quem é você?" Ela ficaria completamente deslocada. [00:40] Notem que essa é a pergunta fundamental que Sócrates fez àquele que era, por assim dizer, o líder intelectual da Grécia naquele momento: Górgias. É essa pergunta que sempre há de retornar para mostrar a diferença entre o que é o filósofo e o que é o sofista, o representante da atividade intelectual social que é e sempre será dominante.

Desde o início de minha "carreira", sempre desconfiei dos problemas filosóficos, porque eu não conseguia achar nem dois filósofos que tivessem tratado exatamente do mesmo problema. Eles modificavam os problemas --- aliás, reformulá-los era uma das suas principais atividades. Então, qual é a lista dos problemas filosóficos? Eu não sei. Michael Dummett, por exemplo, considera que a alma ou a mente poderem ou não existir fora do corpo é um problema filosófico; eu acho que não: acho que é um problema de ciência experimental e que nem sequer há nenhuma maneira filosófica de discuti-lo; e não vejo nenhuma maneira não experimental de resolver isso. Aliás, todos os que têm tratado desse problema fazem-no pelo lado experimental. Como vimos no meu curso sobre a imortalidade da alma, podemos saber que isso existe porque temos depoimentos de pessoas que, em condições de morte clínica, ou seja, sem atividade cardíaca e cerebral, tinham atividade cognitiva --- e não só tinham atividade cognitiva, como atividade cognitiva aumentada, não pelo que nos contavam do outro mundo, mas pelo que contavam desde mundo mesmo, do que tinham visto em volta, no quarto ao lado, e assim por diante.

Eu não vejo nenhuma outra maneira de tratar desse problema seriamente. Esse é um problema de ciência experimental, e não um "problema filosófico" --- se bem que eu considero que muitos problemas de ciência experimental são problemas filosóficos também. Já lhes expliquei que não vejo nenhuma grande barreira entre uma coisa e outra, pois, para mim, há uma perfeita continuidade, um vai e volta constante entre filosofia e ciência experimental.

Por outro lado, se eu não conseguia fazer uma lista dos problemas filosóficos, porque eles mudavam e tinham sentidos diferentes para cada filósofo, eu via com uma evidência enorme que não há na história nenhum caso de filósofo que tivesse tratado de um problema filosófico simplesmente "porque sim", porque era um problema filosófico; sempre havia um motivo, que nunca era um motivo escolar ou filosófico, mas um motivo existencial muito sério, como, por exemplo, o porquê de Santo Tomás de Aquino ter escrito a Suma contra os gentios.

Santo Tomás via que, enquanto ensinava a cristãos, podia apelar à autoridade da Bíblia; de repente, porém, apareceram umas pessoas que não acreditavam na autoridade da Bíblia. Como fazer para conversar com elas? Esse é um problema real que se apresentou a ele na sociedade em que estava. No confronto com mestres judeus, que ainda aceitavam o Antigo Testamento, ou com muçulmanos, que não aceitavam nem o Antigo nem o Novo, o que fazer? Esse era, pois, um problema real. Há também o problema de Santo Agostinho, que percebe a degradação do mundo à sua volta, a desordem do mundo, repetindo a mesma experiência de Platão.

Temos alguma idéia da ordem e sabemos que sem nenhuma ordem não podemos viver; mas onde está a experiência da ordem? Não temos experiência da ordem: a ordem é uma experiência transcendente. Assim como também não temos a experiência da desordem total: a total desordem, o caos, o reino do "homo homini lupus" não pode ser uma experiência permanente; é uma coisa que pode acontecer em certos momentos, mas, mesmo no pior deles, não acreditamos que aquilo impera por toda a parte. Suponhamos que alguém tenha sido preso injustamente e que está sendo torturado: ele não acredita que aquilo esteja acontecendo com todas as pessoas e em toda parte; acredita, sim, que aquilo é uma exceção de desordem que acontece dentro de uma outra coisa que, de alguma maneira, continua sendo ordem.

Nós também não temos a experiência da ordem, pois toda ordem que vemos está maculada por elementos de desordem. Então, a busca de onde está a ordem leva Agostinho a uma experiência similar à de Sócrates. Da mesma maneira que a unidade da espécie humana, a ordem só aparece no espelho da eternidade, e assim por diante. Eu não preciso lhes falar da experiência de René Descartes que acabamos de ler e estudar. Vimos a experiência terrificante que esse homem teve do confronto com uma força demoníaca que abolia completamente o poder da sua capacidade cognitiva, que lhe negava a capacidade de conhecer o que quer que fosse.

Isso não foi uma hipótese que lhe ocorreu na cabeça; a argumentação toda que faz nas Meditações pode ser uma hipótese que ele construiu, mas experiência do sonho foi algo que ele vivenciou. O que chamou de dúvida era, na verdade, o terror da extinção da alma --- uma experiência pela qual eu passei quando criança, em que via o meu corpo reduzido quase que à passividade total e incapaz de perceber qualquer sentido em qualquer estímulo sensível que viesse do mundo externo. Era como se eu dissesse: "Bom, estou morto. E o que posso fazer contra isso? Absolutamente nada." É claro que era uma experiência que durava apenas alguns minutos ou segundos; mas eu a vivenciei. A experiência que Descartes teve no sonho com o gênio mal se parece com uma força que o anulava.

No outro extremo, há a experiência fundamental em torno da qual gira todo o universo platônico, que é a experiência de conhecer a verdade, experiência que todos nós temos e da qual, por exemplo, as matemáticas elementares são um exemplo simples --- quando, por exemplo, entendemos uma equação. Ou quando entendemos o que quer que seja; quando há um situação pessoal enigmática e, de repente, entendemos o que se passou. Platão acreditava que essa experiência não era uma coisa natural, mas que havia nela um elemento sobrenatural, porque, do mesmo modo que a unidade da espécie humana só aparecia no espelho da eternidade, a unidade da própria inteligência humana, o Logos, também só aparecia nessa escala.

O fato de que várias pessoas pudessem inteligir a mesma verdade, da mesmíssima maneira, isso não tinha explicação, nem na esfera cultural, nem na esfera natural. Isso é um aspecto da realidade humana que só aparece na escala transcendente, só se torna visível no espelho da eternidade. Se retirarmos o espelho da eternidade, então o milagre da inteligência se desfaz diante de nós, e ele tem de ser explicado, é desdobrado em milhares de operações absolutamente desconjuntadas, que se reduzem, no fim, a algumas habilidades auxiliares da inteligência, mas que não são a inteligência, conforme eu expliquei na apostila Inteligência, verdade e certeza. Então, por vários lados a filosofia antiga é levada a essa experiência da unidade transcendente da humanidade, que aparece, seja no nível do pathos, seja no nível da inteligência -- do funcionamento do Logos -, ou no nível histórico. Porque podemos falar de uma história da humanidade, se nós sabemos que existem várias culturas que não tiveram contato nenhum entre si? Então teríamos de ver a história humana como uma série de processos pontuais, absolutamente separados, que não formam unidade nenhuma. No entanto, no instante em que você conhece essas culturas, e incorpora algo delas, o legado delas está incorporado à sua cultura, e é claro que existe, nesse sentido, um processo de integração; à medida que os vários conhecimentos, herdados das várias culturas vão sendo colocados à nossa disposição, e nós começamos a vislumbrar a história humana inteira como um processo único. Um processo único, que, de fato, só existe para nós. Mas que a partir do momento em que você o percebeu, se torna real naquele mesmo instante.

Notamos que desde o início a filosofia é esta busca de compartilhar essa experiência, por assim dizer, imaginativa, da transcendência, e é essa experiência que puxa de dentro dos estudantes o melhor que há neles, e faz com que eles reformem a sua vida. Notem bem, não no sentido religioso ainda. O sentido religioso só começa no instante em que conhecemos a lei divina, e a tomamos como um elemento constante e estrutural de nossa pessoa, e isso não é fácil de maneira alguma. Tudo o que a filosofia faz é preencher certas condições sem as quais a própria experiência de lei divina se torne inacessível para nós, porque se não temos sequer a experiência da unidade transcendente da espécie humana, como podemos conceber uma lei eterna que é válida para todos os seres humanos? Isso quer dizer que a noção de lei divina para nós é apenas uma palavra, e que, sobretudo, vamos confundi-la com as leis humanas; não há como não confundi-las.

Eu vejo isso por minha experiência própria. Eu estou com sessenta e quatro anos, portanto já sou um homenzinho, não uma criança ou adolescente. Mas vejo que ao longo da minha vida, quando, por exemplo, me arrependia de algum pecado, eu me perguntava "perante quem eu estou me arrependendo? É perante Deus, ou é perante a comunidade humana? E quando eu falo comunidade humana, eu estou me referindo apenas a pessoas cristãs, bondosas, compreensivas, ou ao universo inteiro dos maledicentes, maliciosos, etc.?". E aí eu vi o seguinte: estava com medo dos maliciosos. Eu olhava para a mim mesmo e falava: "Farsante! Você finge que está se arrependendo, mas está com medo dos maliciosos". Então, como eu faço -- essa é uma pergunta que eu coloquei para mim durante trinta ou quarenta anos -- para me arrepender perante Deus, não perante essa gente? Pensam que isso é fácil? Se querem saber, uma das motivações que me levaram a estudar tanto filosofia foi isso. É aí que vemos o sentido do que dizia Clemente de Alexandria: a filosofia é o pedagogo que leva a Cristo.

Podemos supor, por exemplo, um caso extremo para distinguir as duas coisas. Vamos supor que o arrependimento perante Deus não valesse perante a massa, perante a sociedade humana, perante a massa dos maliciosos, e justamente no momento em que nos arrependêssemos perante Deus, começássemos a levar pedrada de todo mundo. Ainda nos arrependeríamos, ou nos arrependeríamos do arrependimento, e voltaríamos correndo para o querido pecado que abandonamos? Eu vejo, por exemplo, na atitude de muitas pessoas religiosas, um temor, quase um pânico ante a comunidade, e, sobretudo, ante o juízo dos maliciosos, justamente aqueles que a Bíblia diz que devemos desprezar e não prestar atenção. E veja que livrar-nos da autoridade dos maliciosos é um trabalho interior que leva décadas. Muitas vezes os nossos pecados de cobiça, luxúria, etc., são menos graves do que isso, porque isso viola o mandamento número um: estamos cultuando uma autoridade que não é de Deus, e que às vezes é o que existe de mais baixo, e é perante essa que estamos nos arrependendo. Então eu digo: é melhor você ser ladrão, maconheiro, adúltero, veado, etc., do que você fazer isso, e, no entanto, isso é praticamente a regra geral. Eu não estou acusando as pessoas; eu não estou fazendo um discurso contra a hipocrisia. Eu sei que a hipocrisia é um elemento estrutural do ser humano; ninguém pode viver sem uma boa dose de hipocrisia. Eu estou apenas constatando uma situação de fato e mostrando para vocês como o estudo, a meditação da filosofia deve concorrer para ajudá-los a distinguir essas duas coisas, e eu não vejo outra maneira de fazê-lo. Só que é uma filosofia que visa fundamentalmente responder esta pergunta: quem é você? E essa pergunta, evidentemente, como diz o Eric Voegelin, não faz parte dos problemas filosóficos, no sentido moderno. Problemas filosóficos no sentido moderno são com o Dr. Paulo Ghiraldelli e similares.

Temos aqui algumas perguntas, mas antes de começar as perguntas eu queria lembrar uma coisa: a partir dos próximos meses eu gostaria que vocês começassem a pensar em trabalhos de pesquisa e redação a que possam se dedicar durante pelo menos um ano, um ano e meio. Ainda pretendo continuar com as aulas expositivas por bastante tempo, mas acho que as duas coisas podem ser feitas ao mesmo tempo. Quando terminarmos a fase das aulas expositivas, passarei a uma outra etapa, que é de orientação pessoal a cada aluno que esteja envolvido nesses trabalhos, porém essa orientação será dada do mesmo modo em aulas que serão transmitidas aos sábados, e a orientação que eu der a um, deve servir também para todo mundo, de modo que todos saibam quais as áreas em que todos estão trabalhando. Existem alguns critérios que vocês devem absolutamente seguir para a escolha dos temas. Primeiro: é necessário que o tema tenha uma importância pessoal extraordinária para você, para a sua orientação na vida, ou seja, algo que vocês precisam conhecer para saber onde estão e o que fazer. Segundo: é preciso que tenha uma importância, por assim dizer, médica para a cultura brasileira, algo cujo esclarecimento seja de extrema importância para o futuro do Brasil, se algum futuro houver. E em terceiro lugar: evitem temas genéricos, evitem os grandes temas; procurem coisas pequenas, da vida social real -- pode ser do passado ou do presente, mas que tenha algum peso atual. Não venham com problemas filosóficos gerais. Quanto mais concreto o assunto, melhor. Formulem a coisa não como um tema, mas como um problema. Tentem equacionar uma dúvida, e, em seguida, veremos como encaminhar a resposta dessa dúvida.

Aluno: Suponha que alguém tome alguma afirmação sistêmica da sua obra filosófica e consiga compreender que a verdade é que esta vida está além do modo como a afirmação está formulada (...).

Olavo: Isso acontece com uma frequência extraordinária.

Aluno: (...) e perceba também como a tal formulação se desvia do que é visado, ou seja, há uma idéia aqui, mas a formulação não é adequada para ela, ou não é suficiente. Uma formulação mais eficaz para visar a mesma verdade não seria uma idéia original? E se a nova formulação levar a implicações inéditas, não será essa implicação também outra idéia original?

Olavo: É evidente que todo o trabalho sério que façamos em cima da filosofia do outro é um trabalho original, e prosseguir a investigação filosófica que outro começou é sempre um trabalho original; é continuação e é trabalho original. Na verdade o problema da originalidade não tem a mais mínima importância. O próprio Platão, que começa documentando a atividade de Sócrates, e leva nisso quase metade da sua vida, no fim acaba atribuindo a Sócrates idéias que ele mesmo teve depois, porque já não sabe onde termina uma coisa e onde começa outra. E na verdade nem interessa. O que interessa é prosseguir na investigação da verdade. Agora, o que é muito feio é o sujeito se apressar em declarar uma independência que é totalmente desnecessária. Por exemplo, Platão jamais se declarou independente de Sócrates, nem Aristóteles de Platão. Aristóteles, que divergiu de Platão numa série de coisas, continuou se afirmando um platônico até o fim da vida. Essa coisa de querer afirmar "ah, eu penso com a minha própria cabeça", vem de pessoas que não tem a menor idéia de como é difícil pensar com a própria cabeça. Só pensamos com a própria cabeça quando não temos outro remédio. Quando procuramos a solução por toda parte e não achamos, aí temos de inventar alguma; mas isso raríssimamente acontece. E qual a importância de pensar com a própria cabeça? Isso é uma mania brasileira. Brasileiro tem medo de dever alguma coisa, tem medo de reconhecer que o outro é melhor que ele, ou que o outro fez algo primeiro -- tudo isso é complexo de inferioridade. Por exemplo, eu tenho com os filósofos que estudei -- Platão, Mário Ferreira, Leibniz -- uma dívida eterna, não tenho como pagar isso. Muitas vezes quando eu penso em alguma coisa que eu descobri, vou a Platão, e já estava lá. Hoje mesmo eu estava falando isso: praticamente não há doutrina ou corrente filosófica que já não esteja prefigurada, discutida, exposta, e confirmada ou impugnada em Platão; é muito difícil que isso ocorra. Então, quando falar em filosofia, lembre-se da expressão de Aristóteles: "nós, os platônicos". Nós todos somos platônicos e seremos sempre, orbitando perenemente dentro do mundo platônico.

Aluno: Pode, por favor, passar alguma referência da direita francesa atual, que possamos acompanhar pela internet?

Olavo: Pela internet eu acho meio difícil, mas vou lhe dar alguns nomes, e talvez você encontre algumas coisas pela internet. Um livro muito interessante é esse aqui: Alan Sorail, Abecedário da estupidez ambiente. Outros: Renaud Camus, La Grande Déculturation, e Alain Renaut, O Fim da Autoridade; esses aqui são três autores que eu sugiro a você. Há outro autor muitíssimo interessante, chama-se Ivan Rioufol. Eu não sei o que você pode encontrar deles na internet, mas isso aqui é só para você ter uma idéia do que está acontecendo na França. Existe uma espécie de tomada de consciência geral de que o colonialismo francês não foi tão ruim assim, de que esse movimento antirracista não faz mais sentido; quer dizer, como não existe mais um movimento racista que ocupe um lugar culturalmente aceitável, não faz sentido mais esse combate antirracista há muito tempo, isso virou uma picaretagem, virou uma exploração política. E daí começa-se a apelar àquele negócio de racismo sutil, racismo inconsciente, etc., e isso não termina mais evidentemente. Não se pode esquecer que nos anos 30, 40, o racismo era considerado uma atitude intelectual perfeitamente respeitável, e em muitos lugares. Por isso mesmo tinha de ser combatido; é porque ocupava um lugar, tinha uma presença. Hoje em dia você só tem movimentos racistas -- nos EUA, por exemplo -- que são uma coisa marginal absolutamente insignificante, só doente mental os seguem; quer dizer, não ocupam espaço algum.

O Hélio Angotti Neto pede autorização para distribuir o meu texto Conselhos aos estudantes de filosofia, no curso de extensão universitária Ciência, Filosofia e Saúde, no Centro Universitário do Espírito Santo. Tem toda autorização, por favor. Se precisar por escrito eu passo para você.

Aluno: Filosofia, nesse sentido mais preciso de formação do homem maduro é o que está colocado no conceito de paidéia, tal como mostrado por Werner Jaeger?

Olavo: De modo geral, sim. Mas é claro que o ensino da filosofia ocupa um lugar específico dentro da paidéia. Quer dizer, não se identifica com a educação grega de modo geral. Ela acrescenta uma nuance específica.

Aluno: Parece que o que você disse nessa aula relaciona-se intimamente com o que Aristóteles afirma sobre a tragédia: através da catarse, sob o efeito dos sentimentos de terror e piedade, o público é colocado imaginativamente numa condição que permite a experiência desse pathos*, resultando numa espécie de contemplação do eterno, do bem e da verdade.*

Olavo: Perfeito, é exatamente isso. A tragédia grega tinha por função exatamente isso. Na tragédia muitas vezes acontecia de o herói ser um estrangeiro, ou um cidadão de um país inimigo. Nela se chegava àquele nível de emoção profunda onde as diferenças sociais, políticas, etc., eram abolidas, e a verdade do ser humano transparecia. Acertou na mosca. Na verdade, a própria obra de Platão é a continuação natural no teatro grego. Aquilo que no teatro está compactado como espetáculo, começa a se descompactar nos diálogos de Platão, e continua esse processo analítico em Aristóteles.

Aluno: O que é o espelho da eternidade?

Olavo: Bom, se fosse possível defini-lo, não seria necessária uma experiência imaginativa para alcançá-lo. Eternidade... Vou lhe dar uma pista; não é uma definição, é uma dica para você meditar e deixar a sua imaginação trabalhar em cima. Tudo o que sucede no tempo é alguma coisa, quer dizer, faz parte do ser; existe realmente. E aquilo que existe não pode voltar para o nada, porque do nada nunca saiu nada, e nada volta para o nada. Então, se considerarmos todos os momentos do tempo juntos, todos os momentos que já foram, e mais os que serão, lá está tudo conservado, e nada nunca passou. Comece a meditar isso, e lembre-se: a existência da eternidade é absolutamente necessária. Não há como escapar dela. Se imaginarmos que a dimensão do tempo abarca tudo, então o próprio tempo será identificado com a eternidade, mas isso é impossível, porque o tempo é a sucessão de momentos que são incompatíveis entre si, eles não podem se encavalar. E eternidade é, como definia Boécio, a posse plena e simultânea de todos os momentos. Quer dizer, tudo aquilo que é, foi e será, está eternamente presente. Se não estivesse eternamente presente na eternidade, também não poderia se suceder no tempo. Você pode fazer uma imagem assim: você tem o sol, e tem vários raios do sol. Cada um desses raios segue uma linha reta. É como se esta fosse uma linha de tempo, mas, no sol, todas aquelas linhas estão presentes simultaneamente. Isso é um símbolo que talvez possa ajudá-lo a meditar. A eternidade é aquele plano onde nada se perde; onde nada foi; tudo é eternamente, tudo continua sendo. Esse momento que nós estamos vivendo aqui e agora está registrado na eternidade, e no plano da eternidade, não passará jamais. De tudo o que aconteceu, no plano da eternidade, nada se perde, é absolutamente impossível. O perder-se é justamente a característica da linha de tempo na qual nós estamos. Na qual o passado foi e não volta. Outra linha de meditação é aquela que eu dei no curso sobre a imortalidade: é tentarmos ver esse aspecto de eternidade e permanência, não na dimensão cósmica como eu estou falando (ou supracósmica), mas na nossa própria alma, na nossa própria identidade. Sempre fomos nós mesmos, sempre soubemos que somos nós mesmos; no entanto, tudo mudou em nós. Nosso corpo mudou, nossos pensamentos mudaram, nossas emoções mudaram, nossas células corpóreas foram trocadas. Onde, então, está essa identidade? Também não é possível dizer que essa identidade seja um pensamento, pois os pensamentos vão e vêm. Existe algo dentro de nós que é nossa dimensão profunda, nossa identidade permanente. Ela está lá e se não a tivéssemos, nossos pensamentos se desfariam em pó, iriam para todas as direções, se perderiam sem termos um centro. E é a referência a este centro permanente, que não está em nosso corpo, nem no pensamento, não está nas nossas emoções, é ela que pode nos dar uma noção do que seja eternidade.

Aluno: Ao se chegar ao desfecho da operação articulada pelas três correntes globalistas que rivalizam com os Estados Unidos e entre si para a obtenção do controle mundial, com a quebra do domínio americano não se estaria arriscando matar a galinha dos ovos de ouro?

Olavo: Não, porque a idéia deles me parece ser a de criar outros fundamentos econômicos para o seu poder. Não esqueça que é essa gente que está construindo a riqueza da China. Quando eles falam de um mundo mais equitativo, trata-se da distribuição do poder econômico entre várias regiões do globo, de modo que nenhuma delas prevaleça. Se nenhuma delas prevalece, quem prevalece é o governo mundial. A idéia de um governo mundial é inteiramente oposta à idéia de potências dominantes. É preciso dividir o poder econômico entre várias regiões e criar uma interdependência global. O termo "interdependência" foi muito usado por essa gente há vinte ou trinta anos atrás.

Aluno: A maneira clara como o senhor expõe a situação política da estratégia revolucionária de demolição da hegemonia americana e da civilização ocidental é brilhante, lembra aquele joguinho infantil de ligar números para achar a imagem. O senhor conhece o significado de cada número da charada e suas devidas repercussões na montagem dessa estrutura, logo, consegue fazer surgir a imagem real da verdade por trás dos fatos.

Olavo: A idéia é justamente esta: juntar os pontos. Mas isso é uma coisa que deve ser feita com muito cuidado ao longo de muito tempo, e a grande dificuldade é separar quais são as fontes que são dignas de crédito das que não são. Isso não é uma coisa fácil. Em história se estuda a crítica das fontes. É preciso passar alguns anos estudando essa disciplina auxiliar da história, que é a crítica das fontes. No jornalismo, esse estudo deveria ser obrigatório. Vejo que pessoas que se metem a analisar essas questões, confiam ou desconfiam das fontes de maneira muito anárquica, conforme a sua impressão do momento. Não pode ser assim. Pelo menos durante uns cinco anos, me dediquei a separar as fontes, as que podiam das que não podia confiar. E há ainda vários níveis de fidedignidade. Quando encontramos uma fonte que sabemos honesta, ainda temos de contar com as limitações ideológicas do indivíduo, com sua dificuldade de expressão. É o trabalho de uma vida.

A pergunta "quem manda no mundo?" apareceu para mim pela primeira vez quando eu tinha vinte anos e cheguei na segunda parte de A Revolução das Massas, de Ortega Y Gasset. E Ortega foi um dos criadores da idéia de comunidade européia. Se ele visse hoje o que aconteceu, estaria muito arrependido, mas a idéia lhe pareceu boa naquele momento. Como dizia, na segunda parte de A Revolução das Massas, ele coloca esta pergunta: "quem manda no mundo?", e não a responde. Fiquei com a pergunta na cabeça por muito tempo. Para atacá-la, é preciso primeiro ter uma fenomenologia da ação humana, uma fenomenologia do poder, um estudo teórico apriorístico, de meras possibilidades. E eu desenvolvi esse estudo. Expliquei a teoria do poder, em parte, no curso de Teoria do Estado que dei na Universidade Católica do Paraná. Sem a teoria do poder e sem aqueles princípios metodológicos que coloquei na apostila Problemas de Método nas Ciências Sociais, não seria possível fazer essas análises. E essa é a diferença específica que separa o trabalho que estou fazendo dos trabalhos jornalísticos, por um lado, e da maior parte dos trabalhos acadêmicos, por outro. Os trabalhos acadêmicos por vezes têm um fundamento maior, mas não têm a metodologia específica para este problema. São metodologias desenvolvidas pelas ciências sociais para outra finalidade, e os estudiosos foram treinados nessa base e aplicam, por exemplo, o que eles aprenderam de economia ou sociologia à análise do problema do poder mundial, quando a metodologia que desenvolvi o fiz especificamente para esse estudo. E acho que ninguém mais no mundo fez esse estudo, ao menos desconheço que mais alguém o tenha feito. Mesmo o pessoal da Eric Voegelin Society tem dificuldades para lidar com os problemas que dizem respeito ao poder mundial. Mesmo eles se atrapalham um pouco em meio à situação política atual, pois os métodos de Voegelin não servem para isso. Eles podem ser usados [apenas] em parte para entender esse problema.

Mas como investigar os esquemas de poder no mundo, qual é o método para responder a pergunta de quem manda no mundo? Essa questão não é rara, está diante de todo mundo, mas o tratamento sistemático dela é raro. E eu, com todas minhas dificuldades e incapacidades, tenho a vantagem de ter me dedicado a isso, enquanto outros se dedicaram a outros problemas pensando estar tratando deste.

Acho muito engraçado quando vemos as análises de, por exemplo, Paul Kennedy [1:20], em Ascensão e Queda das Grandes Potências, segundo as quais análises ele achava que podia descobrir para onde estava indo o esquema de poder no mundo mediante a simples confrontação entre o crescimento dos orçamentos militares e o estado da economia nacional. Baseado nisso ele disse na década de oitenta que os Estados Unidos iriam cair e que a União Soviética iria subir. Após pouco tempo, acabou a União Soviética. E o sujeito continua dando palpite por aí. Aquele é um livro de oitocentas páginas com uma tese cem por cento errada, porque o seu método era muito simplório: comparar o estado da economia nacional com o orçamento militar; se o orçamento militar crescesse além de "x" por cento em relação ao crescimento da economia do país, este iria "cair".

Outra coisa que, em geral, quase todos os estudiosos da área esquecem: já temos quase duzentos anos de desenvolvimento das ciências sociais e, se olharmos como elas nasceram, com Émile Durkheim, constataremos que da própria definição de "fato social" faz parte o fato de que os fatos sociais não correspondem às intenções de ninguém. Eles são estruturas que se formam independentemente da vontade das pessoas. Isso existe também, porém existem outros fatores. O da diferença de poder entre os seres humanos e o da diferença de horizonte de consciência entre eles são dois desses fatores. Até onde um indivíduo é capaz de enxergar a situação que está vivendo? A diferença de horizontes de consciência entre os sujeitos pode ir desde a consciência de um Platão, que já conhecia todos os problemas filosóficos que seriam discutidos por dois mil anos, até a do doutor Paulo Ghiraldelli, que não sabe nem o que vai fazer dali a dois minutos. A diferença de horizonte de consciência e a diferença de escala de poder são elementos estruturais da condição humana, e são elementos que as ciências sociais, quase como um todo, desprezaram, partindo do princípio de que os fatores quantitativos, os fatores que predominam coletivamente, são os fatores decisivos. Às vezes são. Mas a ação do indivíduo se assenta nestes dois fatores estruturais: diferença do horizonte de consciência e diferença de poder. Existem indivíduos que, com uma canetada, podem determinar o destino de milhões de pessoas, e estas, por vezes, não podem reagir ou nem sabem o que está acontecendo, e este é um fator estrutural, permanente na história humana. Não existe nenhuma espécie animal em que haja tanta diferença de poder entre os seus membros quanto o há entre os membros da espécie humana. Claro que temos de levar em conta os fatores sociais anônimos, porém a diferença de poder também deve ser levada em conta, bem como a capacidade de previsão [dos indivíduos].

Qual a diferença, por exemplo, entre uma estratégia bem feita e o poder profético? Qual a diferença entre a profecia onde há uma manifestação divina, quando Deus envia uma profecia, como aconteceu em Fátima, e a profecia já dada no texto bíblico e desencavada de lá. Nesses dias assisti a um DVD absolutamente brilhante, de um rabino chamado Jonathan Cahn, chamado Isaías 9:10, O Julgamento. Nunca aceitei a teoria de que os Estados Unidos fossem a versão moderna de Israel e que, portanto, a história americana pudesse ser interpretada exatamente em termos bíblicos, mas, depois de ver esse DVD, vejo que eu não estava totalmente certo. A idéia de que os Estados Unidos personificam o personagem da Bíblia é válida para certo grupo de americanos, porque houve uma consagração inicial do país. Para as pessoas que participam do espírito dessa consagração, vale o papel de Israel que eles estão desempenhando perante Deus. Para elas, a história adquire outro sentido, para os outros invisível, embora os afete também, mas não da mesma maneira. E o rabino Jonathan Cahn diz que Deus enviou a Israel nove sinais, anunciando um julgamento, o qual não significa destruição, mas algum mal. Deus não enviou os sinais para dizer que um mal iria acontecer, mas no sentido de dar uma chance [de salvação aos indivíduos]. Mesmo depois dos noves sinais, haverá outra chance, e outra, e outra... Ou seja, esses não são sinais para condenação mas para salvação. E o rabino identifica-os nos acontecimentos dos últimos anos com uma clareza e uma precisão que só um jumento não enxerga. Ele diz, por exemplo, que um dos sinais é a queda de uma árvore que é um plátano, diz que, depois de caído o plátano, em vez de as pessoas verem este acontecimento como um sinal de Deus e se arrependerem, elas reafirmarão o seu poder, todos os representantes de Israel reafirmaram o seu poder plantando outra árvore no lugar daquela, a qual será um cedro. O rabino mostra como isso aconteceu, exatamente [como profetizado], no 11 de Setembro. Quando caíram as duas torres, houve uma viga que saiu voando e derrubou um plátano, o qual estava exatamente no lugar onde foi feita a consagração inicial dos Estados Unidos a Deus. Pior, o plátano foi substituído por um cedro. Pior ainda, o rabino dizia que devia haver pelo menos dois testemunhos que confirmassem a queda e a substituição, e houve os testemunhos. Ele mostra o senador John Edwards, que era candidato a vice-presidente da república fazendo um discurso depois do 11 de Setembro e citando exatamente aquele trecho da Bíblia: "os plátanos caíram, mas nós os trocamos por cedros". E depois aparece Tom Daschle dizendo a mesma coisa: "os plátanos caíram, mas nós os trocamos por cedros", para mostrar que os americanos sobreviveram e que iam ficar ainda mais fortes. No entanto, os dois citaram esse trecho sem saber que ele tinha um sentido agourento. Eles o estavam lendo na maior inocência, achando que aquilo era um sinal de que os Estados Unidos se levantariam de novo. Algum assessor cretino passou o trecho para eles, dizendo que cairia bem para a situação, e os idiotas o leram como bonecos de ventríloquo, sem saber que o que davam como sinal de esperança era na verdade um sinal de Deus de que "vem encrenca". E assim por diante. O rabino vai dando o significado dos sinais com uma exatidão literal absolutamente inegável. E ouvindo isso, vemos que existe uma ciência enormemente superior a tudo o que entendemos como ciência, que existe uma linguagem divina muito clara. Mas pergunto eu: Quantos anos o rabino teve de estudar para entender essa coisa? É uma vida inteira, e muitos erram mesmo assim. Vi muita gente fazendo interpretações bíblicas do que estava acontecendo, mas completamente erradas. Muitos erram, sobretudo porque tiram conclusões moralísticas a respeito. Se a pessoa fala isso, já está errada, pois ela não sabe o que está fazendo. Não é ela quem decide tal coisa. E o rabino não fala de castigo, mas diz que os sinais são um anúncio de um julgamento possível. Ele mostra como os noves sinais literalmente aconteceram, não só com exatidão em cada caso, mas nas relações entre eles, como, por exemplo, na relação entre a queda da árvore e o testemunho que tinha de ser dado por líderes nacionais importantes, como de fato foi. Tom Daschle era presidente da câmara e Edwards candidato a vice-presidente. Depois, Cahn cita um discurso de Obama em que este praticamente repete a frase da Bíblia a respeito da reconstrução. [1:30] Isto é, em vez de a nação entender aqueles sinais como um chamado de Deus, entende como um desafio que ela tem de vencer no plano material, sobretudo centrado na idéia de reconstrução, de reerguer o destruído e fazê-lo maior do que antes etc. O rabino, então, diz que tudo isso aconteceu a Israel em tempos Bíblicos e está acontecendo aqui de novo milimetricamente.

Aluno: Como seria entender esse acontecimento como um chamado de Deus? Como saber que esse é um chamado de Deus?

Olavo: Deus diz isto: "Vou mandar nove sinais". E depois vemos os nove sinais acontecendo sucessivamente exatamente como Ele disse. E esses sinais estão interligados entre si. A queda do plátano está ligada à árvore que o substitui, que é um cedro. A substituição está ligada a dois testemunhos de líderes, que vêm depois, e assim por diante.

Aluno: Qual seria a forma adequada de agir perante esses sinais?

Olavo: A primeira coisa é saber que são sinais. Agora, é muito "fácil" ver sinais de Deus aqui e ali. Não é qualquer um que sabe fazer isso. A ciência do simbolismo é uma coisa enormemente difícil. Porém, basta "arranharmos" um pouquinho esta ciência para percebermos que ela é realmente uma ciência divina, superior ao conhecimento humano e de uma exatidão mortal. Não é uma questão de figura de linguagem, não é um fenômeno cultural. Tão logo percebemos isso, vemos que a única atitude possível é a de abertura para descobrir o que é a vontade de Deus. Não devemos prejulgar pelo que pensamos ser a coisa, mas perguntar mais e mais e mais. Pois, assim como Deus mostrou os nove sinais com tamanha evidência para o rabino Jonathan Cahn, Ele pode mostrá-los a outras pessoas também, desde que se entenda, primeiro, que esta é uma ciência divina, segundo, que existe uma tradição milenar de estudo dela, e gente muito mais inteligente, muito mais séria e muito melhor do que nós dedicou sua vida a isso. Podemos, no máximo, aprender com eles. Não é o mesmo que aparecerem pastores de todo e qualquer lado interpretando sinais Bíblicos em tudo. Não há mal algum em recusarmos esses sinais tais como brotam da boca dessa gente, pois são sinais demais vindos de zonas muito diferentes e acompanhados de conclusões morais às vezes condenatórias, as quais ninguém tem o direito de fazer. Agora, não é o caso desse rabino. Ele faz um serviço muito sério, ele é um homem de muito estudo e que busca a exatidão. Esses símbolos só funcionam quando são exatos. Por que dou tanta importância à profecia de Fátima? Porque ela é exata, não é aproximativa, não é alegórica, não é simbólica. Claro que tudo tem significado simbólico também. Mas, para uma coisa ser símbolo de outra, é preciso primeiro que a primeira coisa exista. Por exemplo, podemos dizer que o elefante simboliza tal ou qual coisa porque ele existe. E o que simboliza a mula-sem-cabeça? Nada, pois a mula-sem-cabeça não existe. O mesmo se dá com fatos históricos. Para sabermos o que um fato histórico pode simbolizar no plano da história divina, primeiro ele tem de ser conhecido na sua materialidade com todos os seus detalhes. Quando Nossa Senhora avisa que, se não houver uma mudança imediata, vai haver uma guerra dentro de "x" tempo, que será anunciada por sinais no céu assim e assado, e a guerra acontece nessas mesmas condições, [temos um caso de previsão exata]. O fato de que possa estourar uma guerra uma semana depois de o céu de Paris se iluminar repentinamente às dez horas da noite, sem explicação, [se não o entendermos como comprovação do anúncio de Fátima,] entraremos na esfera da pura coincidência.

O universo inteiro é o logos divino materializado, todo ele é linguagem. Tudo, absolutamente tudo fala. Nós, porém, não conseguimos entender sequer uns aos outros, quanto mais a linguagem divina. Assim, junto com a linguagem divina, que sem dúvida existe, existe um acúmulo imenso de falsas interpretações, interpretações supersticiosas, delirantes, malucas, mal-intencionadas. Existe o aproveitamento desses sinais por planos estratégicos às vezes malignos. Dei o exemplo da Rússia uns dias atrás. E as profecias de Nostradamus, existe alguma ditadura que não as tenha usado em proveito próprio?

Portanto, primeiro temos de entender que, ao entrarmos nesse domínio, entramos no domínio mais difícil que existe, e que é preciso entrar ali de forma muito humilde: "não vou entender quase nada, se eu entender alguma coisinha já é uma delícia". Vejam René Guénon, o maior estudioso de simbolismo que existiu no ocidente: quando ele tenta interpretar a história chinesa do século XX, erra fragorosamente, embora em outros casos tenha feito análises brilhantes. O que ele fala, por exemplo, da economia, da desaparição do dinheiro e sua substituição por meios mais abstratos de pagamento. Isso aconteceu! Ninguém mais usa dinheiro. Nos Estados Unidos, se você paga um hotel em dinheiro, começam a desconfiar que você é um terrorista. E daqui a pouco não haverá sequer cartões, mas chips no seu dedo ou coisa assim. Então, Guénon fez algumas previsões precisas com base no simbolismo e fez outras completamente erradas. Todos temos nossas limitações pessoais, ideológicas, educacionais, genéticas etc., e precisamos todos ajudar uns aos outros. E quando vem o rabino Cahn e diz uma coisa dessas com tamanha evidência, temos de ficar gratíssimos a ele.

Transcrição: Filipe Zomkowski, Guilherme Zomkowski, Fernando Opis e Emanuel Franchetti Silva -- Instituto Olavo de Carvalho.

Revisão: Murilo Resende Ferreira -- Instituto Olavo de Carvalho.