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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 145

10 de março de 2012

Boa noite a todos, sejam bem-vindos.

Hoje eu gostaria continuar com os comentários sobre o positivismo, baseando-me, grosso modo, no texto de Leszek Kołakowski. Porém queria dar uma extensão a esse comentário --- tomando um ponto específico do positivismo tal como Kołakowski o resume --- e, mediante uma aplicação ao estudo de uma situação política determinada, dar uma extensão à análise que estou fazendo do assunto. Acho que isso será tão esclarecedor como oportuno.

Entre as regras que definem o positivismo, Kołakowski destaca as seguintes:

III - A regra que se recusa chamar de conhecimento juízos de valor e declarações de cunho normativo

O positivismo argumenta que as qualidades que se dizem dos homens, acontecimentos e coisas --- qualidades tais como nobre, ignóbil, bom, mau, bonito, feio etc. --- não estão contidas na experiência. Igualmente, nenhuma experiência pode obrigar-nos, através de quaisquer operações lógicas que seja, a aceitar declarações que contenham mandamentos ou proibições.

É possível fornecer fundamentos lógicos para julgamentos feitos com base em objetivo declarado sobre a eficácia dos meios empregados, mas não quanto à justiça ou injustiça, bondade ou maldade dos fins em si mesmos.

Ou seja:

Não devemos supor que nenhum julgamento de valores que aceitemos possam ser justificados pela experiência. Por exemplo, o princípio de que a vida humana é um bem insubstituível não pode ser justificado. Podemos aceitá-lo ou rejeitá-lo, mas devemos estar conscientes da arbitrariedade da nossa opção.

Valores não podem ser descobertos da mesma maneira que o único tipo de conhecimento digno do nome é descoberto [o conhecimento referente a fatos de experiência].

A única razão para criá-los são as nossas próprias escolhas arbitrárias.

Nesta aula, vamos nos ater exclusivamente a esse ponto. Convém lembrar que esses preceitos que dizem que os juízos de valor não podem ser deduzidos da experiência nem justificados pela experiência --- que eles são, por assim dizer, projetados sobre a experiência pelas nossas próprias escolhas arbitrárias --- são uma coisa que já vem de Kant, o qual já havia explicado que não existe passagem lógica do fato ao valor, nem do valor ao fato. Daí decorre, evidentemente, toda uma série de preceitos metodológicos que enfatizam a necessidade da abstinência de juízo de valor em todas as atividades cientificas, em todos os campos do conhecimento, inclusive o das ciências humanas. Ou seja, o sociólogo, ou o antropólogo, deve observar os fatos da experiência sem se pronunciar sobre serem bons ou maus, e sem considerar se existem condutas que deveriam ser preferidas ou preteridas.

Por exemplo, a abstinência do juízo de valor colocou um problema muito sério para um dos grandes pioneiros da sociologia, Max Webber, o qual afirmou que, na própria escolha do assunto que pretendemos estudar, existe implícito um juízo de valor. O que teríamos de fazer em tal circunstância seria colocar esse juízo de valor, deduzir daí as escolhas que nós fizemos e depois neutralizá-las no curso da pesquisa, de modo que o valor pelo qual nos orientamos se restrinja à determinação do assunto e não influencie as conclusões da pesquisa. Enfim, é toda uma operação intelectual para impedir que o estudo dos fatos da experiência seja contaminado por juízos de valor.

Acontece que o hábito da abstinência de juízo de valor se propagou pelas ciências sociais de tal maneira que, aos poucos, os valores foram objetivamente relegados ao domínio do puramente subjetivo.

É preciso deixar claro que uma coisa é uma abstinência metodológica de juízo de valor, e outra é a crença de que os valores ou não existem ou são irrelevantes ou são sempre subjetivos, sem qualquer fundamento na experiência.

Muitas vezes os cientistas sociais, no seu empenho de abster-se de juízos de valor, exigem do distinto público alguns sacrifícios intelectuais consideráveis Por exemplo, o de alguém, em nome da objetividade científica, considerar que o hábito chinês de matar as meninas recém-nascidas, ou de dá-las para os porcos comerem, é um hábito cultural como qualquer outro, e que deve ser observado com toda a isenção moral possível. É como se dissessem: "não devemos considerar que cuidar de uma criança com todo o carinho seja algo moralmente superior ao ato de dá-la como repasto aos porcos". Evidentemente, são posições muito desconfortáveis, mas que são impostas em nome de um preceito cientifico herdado do positivismo: a abstinência de juízo de valor.

Colocar as pessoas numa posição intelectual desconfortável é uma atitude que contrasta com toda uma tradição da ontologia ocidental: Platão identificava o Ser com o Supremo Bem; o que era o maximamente existente, o supremamente real, era também o supremamente Bom, e esse preceito permaneceu dominante durante muito tempo. Até a Idade Média, Duns Scott dizia: "Ens et bonum convertuntur", ou seja: o ente e o bem são conceitos que se convertem mutuamente um no outro. Ainda na Renascença se encontra a idéia do bem supremo como o motor de todas as coisas, a idéia de um plano divino por trás do conjunto da realidade, conduzindo tudo, necessariamente, ao Bem.

Mas, a partir do século XIX, a ruptura entre a idéia do Ser, considerada como realidade, e a idéia do Bem se aprofunda tremendamente, na medida em que toda a noção do bem e do mal é jogada para o domínio da pura subjetividade e, como diz Kołakowski, da "escolha arbitrária": a realidade, em si, é neutra; o mundo do ser é neutro; o bem e o mal são projeções da mente humana sobre uma realidade que, em si, não pode ser dita nem boa nem má, nem nobre nem ignóbil, nem coisíssima nenhuma. Evidentemente, o mundo dos fatos aí é visto, também, como o mundo da neutralidade. Já não se trata apenas do preceito que obriga a ciência a abster-se de juízos de valor, mas sim do fato de que a realidade, em si mesma, é neutra, e que a esfera dos valores seria puramente subjetiva ou, em certos casos, cultural --- uma criação cultural humana que não tem qualquer ligação com a estrutura objetiva da realidade.

Esses preceitos são hoje aceitos como se fossem a coisa mais óbvia do mundo e, por isso, qualquer tentativa de reintroduzir os juízos de valor no domínio da ciência (mesmo no das ciências humanas, para não falar no das ciências físicas) é considerada quase como um sintoma de doença mental. Entretanto, convém examinar se essa abstinência de juízo de valor é realmente possível na prática.

Vejamos. Podemos examinar isso desde o ponto de vista de um episódio analisado pelo filósofo André Marc, num livro admirável, que se chama Psicologia reflexiva. Eu já dei várias aulas com base nesse exemplo, mas aqui nós vamos examiná-lo sobre um outro ângulo. Marc lembra o caso de uma moça francesa chamada Marie Heurtin, que nasceu cega, surda e muda, um caso semelhante ao de Helen Keller. Até perto dos dezoito anos, [0:10] não se comunicava absolutamente com o mundo exterior. Tinha de ser alimentada, lavada, cuidada, como se fosse um bichinho totalmente inconsciente. Havia uma freira que tomava conta dela no hospital. Um dia a mulher viu, aterrorizada, que a menina, gesticulando anarquicamente, tinha na mão uma faca, que pegara de cima da mesa que havia junto ao leito. A freira tomou a faca de Marie, que começou a se debater, emitir sons estranhos, grunhidos. A mulher teve então a idéia de dar a Marie um signo que representasse aquela faca: segurou a mão da menina e, usando a lateral de sua própria mão, friccionou-a, como se fosse uma lâmina. Assim que Marie conseguiu imitar esse gesto, a freira lhe deu a faca novamente. Depois tomou-a outra vez para si, e, nessa ocasião, em vez de se debater, Marie pegou a mão da freira e reproduziu o signo. Esse foi o primeiro signo, o primeiro elemento de linguagem, de comunicação, que esteve à disposição daquela menina.

Dali pra diante, os seus progressos na comunicação foram algo de excepcional: em poucas semanas, ela já conseguia designar praticamente todos os objetos que alcançava tocar, conseguia indicar pessoas; em suma, tinha todo um vocabulário de sinais manuais que abrangia, praticamente, o vocabulário normal de um ser humano. Todos esses progressos ocorreram muito rapidamente.

André Marc analisa isso da seguinte maneira: ele vê que o signo, aquele primeiro que a freira ensinou para a menina, não designava somente um objeto, mas, além disso, o objeto e o desejo que Marie tinha de segurá-lo. Isso quer dizer que o signo fazia uma ponte entre um ente do mundo exterior e o mundo subjetivo daquela menina cega, surda e muda; ou seja, o signo nem era subjetivo nem era objetivo, mas a ponte entre as duas coisas. Isso quer dizer que todo o universo da nossa comunicação depende desses elementos chamados signos, que sintetizam um ente inexistente, o qual é uma fusão entre o objeto do mundo exterior, um dado objetivo, e a nossa atitude subjetiva perante ele.

Se analisarmos a coisa com um pouco mais de cuidado, veremos que esse elemento subjetivo, esse elemento do desejo ou do sentimento que o ser humano tem para com algum objeto que ele deseja ou repele, está presente na própria percepção sensível. Ou seja, a percepção sensível já tem em si um elemento de signo, porque você não olha para nada se você não tem interesse naquilo. Ora, você não pode dizer que o interesse está dado no próprio objeto --- o interesse é uma atitude subjetiva em relação ao objeto, e não um traço do próprio objeto. Porém, sem esse interesse subjetivo, não há conexão nenhuma com o objeto. O que quer dizer que o universo da nossa linguagem não é constituído de pura subjetividade, mas de uma relação ativa com os entes do mundo exterior, e mais: que já na própria percepção sensível vemos um elemento, por assim dizer, linguístico, no qual se fundem, num único ato, a percepção que temos do objeto e a nossa atitude subjetiva em relação a ele. Quer dizer, existe ali, no mínimo, uma seleção da atenção, e essa seleção da atenção é, evidentemente, a nossa atribuição de um valor ao objeto.

Quando, por exemplo, entre os vários elementos que há nesta sala, eu olho para um e não para outro, posso dizer que é uma escolha de valor totalmente subjetiva. Mas acontece que, sem essa escolha de valor, eu não teria acesso a esse ente do mundo exterior. Ou seja, se o mundo exterior me fosse totalmente exterior, eu não conheceria absolutamente nada dele: eu estaria fechado em mim, num universo solipsístico, exatamente como Marie Heurtin estava antes de aprender esse primeiro signo e os vários signos que foram, depois, compondo a sua linguagem.

Assim, o universo concebido como pura objetividade separada da subjetividade humana é o mundo de Marie Heurtin: é o mundo totalmente desconhecido.

Isso quer dizer que não há, em todo o universo concebível, nenhum objeto que seja, nesse sentido, puramente objetivo, já que a pura objetividade corresponderia à total separação entre o objeto exterior e a minha subjetividade, sendo que essa total separação haveria de equivaler, precisamente, à total ignorância, ao total desconhecimento. Dito de outro modo, a minha subjetividade totalmente separada de um objeto que eu não conheço, do qual eu nada sei, e que nunca esteve na minha presença -- isso seria a objetividade pura. Onde quer que haja algum conhecimento, existe o signo, e o signo é o elo entre objetivo e subjetivo.

Levando um pouco mais adiante o raciocínio, dá para notar o seguinte: posso ter a idéia de um universo constituído objetivamente, de um universo que não depende das minhas escolhas subjetivas, de um universo que existe independentemente de mim, por assim dizer. Mas independente não é o mesmo que separado. Eu sei que eu não fiz o mundo e que o mundo já existia antes de eu chegar aqui, mas isso não quer dizer que este mundo esteja separado da minha pessoa, porque, se estivesse, eu não poderia estar neste mundo. Isso, evidentemente, sugere a pergunta: esse mundo subjetivo, que na visão positivista está separado do mundo objetivo, onde ele existe, onde ele está?

Por exemplo, se pensamos alguma coisa, onde estamos quando a pensamos? Temos de estar num lugar do espaço e num momento preciso do tempo, ou seja, estamos dentro da mesma estrutura espaço-temporal que definimos como uma característica do mundo exterior, do mundo físico. E, por outro lado, onde está esse famoso mundo físico que afirmamos conhecer? Se conhecemos algo dele, é porque ele faz parte da nossa vida subjetiva: se ele não estivesse presente à nossa subjetividade, nada saberíamos dele.

Portanto, nós entendemos que o que devemos chamar de realidade, no sentido supremamente objetivo da coisa, é algo que abranja o subjetivo e o objetivo nas suas inter-relações e que é constituído, precisamente, pela relação entre o subjetivo e o objetivo, que só podem ser distintos intelectualmente --- distintos conceptualmente ---, mas jamais separados, nem por um segundo.

O totalmente subjetivo teria de ser algo que acontece dentro de um eu "inespacial" e atemporal; portanto, algo que não está em lugar algum, algo que não está no mundo objetivo. Existe algo assim? Claro não!

Alguém poderá dizer: [0:20] "Mas e o Eu pensante de Deus? Ele não está totalmente separado do mundo?". De jeito nenhum: ele transcende o mundo e, portanto, o mundo está contido nele. Não se pode dizer que Deus está separado do mundo, pois aquilo que transcende, necessariamente, abrange, e não é estranho àquilo que abrange. Como diz São Paulo Apóstolo: "Nele vivemos, nos movemos e somos". Estamos dentro do circuito de possibilidades de Deus; portanto, não estamos separados dele.

Isso quer dizer que a noção de um mundo puramente objetivo, totalmente independente da subjetividade, é uma noção utópica e, na verdade, auto-contraditória. Se as ciências físicas, por exemplo, se ocupam de certos objetos, é porque têm um interesse por eles, e esse interesse é um valor. Por que certos objetos devem ser mais importantes do que outros? Por que certos assuntos devem ser investigados e outros podem ser preteridos? Max Webber tinha muita razão ao dizer que toda investigação científica supõe uma escolha.

E pode-se dizer que essa escolha é puramente subjetiva? Nunca; porque essa escolha é determinada por um interesse que se tenha por certo objeto, o qual é transcendente a quem possui esse interesse. Se alguém decide estudar a fisiologia dos coelhos, outro poderá perguntar: "Por que os coelhos e não os elefantes?", e talvez ouvir em resposta: "Trata-se de uma escolha puramente arbitrária, subjetiva". Ocorre que, se fosse puramente subjetiva, a escolha não teria nada a ver nem com coelhos nem com elefantes, os quais não existem subjetivamente, mas sim objetivamente. O que se dá em todos os casos é essa relação muito sutil de objetivo e subjetivo, que é o universo do signo, o universo da linguagem e, em última análise, o universo da razão. Isso quer dizer que subjetivo e objetivo são noções posicionais, relacionais: designam duas posições, e não dois mundos separados e distintos.

Todo e qualquer elemento presente na realidade pode estar, perante outro elemento, ou numa posição subjetiva ou numa posição objetiva: pode ser, relacionalmente, um sujeito ou um objeto. Dito de maneira mais simples: ele é um sujeito na medida em que recebe informação de um objeto, e é um objeto na medida em que emite informação para o sujeito. Por exemplo, no instante em que alguém olha para uma mesa, a mesa está emitindo informação ao seu observador. E o observador não estará emitindo informação a ela? Impossível dizer que não, pois, no momento em que a observa, ele a integra em seu universo subjetivo --- ela não sabe que foi integrada nesse universo subjetivo, mas isso certamente já afetou a sua existência, porque o observador, no instante em que toma conhecimento dela, pode fazer algo com ela, o que lhe era impossível antes de saber da existência da mesa. Com isso, a possibilidade de ser afetada pelo observador entra na existência da mesa naquele mesmo momento. Nesse sentido, ela é um sujeito porque está recebendo uma informação do observador, ainda que, evidentemente, essa informação seja meramente potencial.

Por exemplo, alguém vê uma mesa numa loja e decide comprá-la. Bem, a pessoa não poderia ter a idéia de comprá-la antes de tê-la visto. Ser removida da vitrine da loja para ser levada para a casa do comprador é uma possibilidade objetiva existente para a mesa; possibilidade, porém, que depende, em cera medida, da minha subjetividade. Nesse sentido, tal possibilidade é uma informação que chega a ela, que a recebe não como um sujeito consciente, mas como um depósito de informações do mundo exterior.

Por exemplo, se uma mesa é transportada de um lugar para outro, isso constitui uma informação objetiva que está registrada nela: ela está efetivamente num lugar e não noutro. Não precisa, é claro, ser um registro consciente. Com "registro" designo simplesmente a sua afetação por algo, a sua modificação por um outro agente, e isso é precisamente o que nós chamamos informação.

Podemos nos perguntar o seguinte: existirá talvez o sujeito puro e o objeto puro? O sujeito puro seria aquele que somente recebesse informações e jamais as emitisse, e o objeto puro, aquele que apenas emitisse informações e jamais as recebesse. Ou seja, o objeto puro não seria afetado por nada: nada modificaria a sua constituição, as suas qualidades, a sua posição; não haveria uma única informação que do mundo exterior chegasse até ele. Evidentemente, não existe um objeto assim. Do mesmo modo, o sujeito puro, aquele que só recebesse informação, sem emiti-la, sem afetar em absolutamente nada o mundo exterior, não poderia existir, pois, para apresentar um tal comportamento, seria preciso que ele não estivesse em parte alguma e em momento algum, uma vez que, pela sua simples presença, ele já está emitindo informações.

O sujeito puro, para existir, precisaria não estar em parte alguma e em momento algum, ou seja, ele só pode existir se for inexistente; e o objeto puro, que só emite informações e jamais as recebe, precisaria não ser jamais afetado pelo que quer que fosse, e para isso ele também precisaria estar em parte alguma e em momento algum. Então entendemos que sujeito e objeto não são nomes de coisas, ou de dimensões da realidade, mas apenas de posições ou relações.

Ora, se são nomes de posições ou relações, como seria possível separar a visão objetiva da realidade de todo e qualquer julgamento de valor? Isso não é possível, pois o simples fato de prestarmos atenção a alguma coisa e não a outra já implica um julgamento de valor. Com isso entendemos que essa regra positivista contém em si algum equívoco.

Por um lado, é óbvio que não se pode permitir que as conclusões de uma investigação científica sejam afetadas por uma escolha subjetiva puramente arbitrária, por outro lado, entende-se que a abstinência total do juízo de valor é impossível, porque os juízos de valor estão implícitos não só na linguagem e na razão, mas já na própria percepção sensível.

Então, como poderia a ciência ter entre as suas condições necessárias uma exigência impossível de atender? Parece que temos aí algum erro: aquilo que, para os positivistas, pareceu uma regra tão óbvia e inquestionável, de repente se nos apresenta como um bicho de sete cabeças: em vez de ser uma solução, ela é parte do problema e talvez seja, ela mesma, o problema.

É que, quando falamos de "abstinência de juízo de valor", essa expressão tem no mínimo dois sentidos, e na regra positivista os dois sentidos estão encavalados, mesclados e indistintos. O primeiro consiste em abster-se de um juízo de valor quando há um conflito de valores, caso que obriga a abster-se desses juízos até que se esteja suficientemente informado da situação, exatamente como deve proceder um juiz, que não pode julgar a causa antes de ter o conhecimento de todos os fatos que envolvem as duas partes. O juiz não emite uma decisão valorativa antes de conhecer todo o processo. Mas isso significaria que os juízos de valor são indiferentes ao processo? Não, porque o juiz tem de ouvir no mínimo dois juízos de valor em mútua oposição. O que ocorre aí, portanto, é uma dialética, um conflito de valores, valores que, não é preciso dizer, estão sim presentes. Assim, não existe abstinência do juízo de valor, existe apenas a abstinência de uma conclusão final. Não se trata de uma abstinência de juízo de valor, trata-se de abstinência de juízo de valor precipitado: [0:30] é a prudência de nos abstermos de julgar o que não conhecemos. Nesse sentido a abstinência de juízo de valor é algo, não apenas justo e necessário, mas indispensável, e não só na atividade científica, mas ainda no julgamento de qualquer situação humana. Se fosse possível o juízo de valor anteriormente ao conhecimento dos fatos, todos os processos judiciais do mundo já estariam resolvidos e todas as sentenças judiciais já teriam sido lavradas antecipadamente. Não havendo uma real abstinência de um juízo de valor, mas sim a abstinência de um juízo precipitado, e considerando que o juízo de valor está presente, todo o processo é, na verdade, uma busca do juízo de valor.

Por outro lado, ainda que ela se nos tenha revelado impossível, vigora no positivismo a idéia de um universo objetivo totalmente independente da subjetividade humana e totalmente independente dos nossos juízos de valor. É então o caso de se perguntar se não haveria também aí um juízo de valor. Decidiu-se que só valem aqueles conhecimentos que se referem a um objeto neutro, a um objeto axiologicamente neutro (a axiologia estuda os valores; axys quer dizer eixo; os valores são como eixos que orientam o nosso julgamento). Ora, fica evidente que a neutralidade axiológica, em ciência, é ela própria um juízo de valor, o qual proclama que o mundo inteiramente objetivo, separado da subjetividade humana, é superior e mais real do que o mundo que inclui essa subjetividade. Mas já ficou claro que um mundo assim é impossível: seria um mundo totalmente inumano, e um mundo totalmente inumano não pode ser conhecido por seres humanos; sobretudo, não contém seres humanos.

Então seria o mundo antes da criação do homem? Mas nós conhecemos o mundo antes da criação do homem? Tudo o que podemos saber dele é posterior à nossa criação. Mais ainda: o mundo antes da criação do homem era um mundo onde os homens estavam totalmente ausentes? Eles estavam ausentes como figuras atuais, mas esse mundo porventura não continha já em si todos os elementos e forças necessárias para produzir o ser humano? Por exemplo, nós somos compostos, eminentemente, de moléculas de carbono -- as moléculas de carbono já não estavam lá? Quando a Bíblia diz que o homem foi feito de barro, o barro já não estava lá? E o sopro divino também já não estava lá? Então a ausência do ser humano era uma ausência apenas temporária, e não absoluta. Isso quer dizer que o mundo objetivo, independente dos juízos de valor humano, além de não existir, é uma espécie de fantasia macabra que tem, sobre aqueles que atentam a ela, o efeito hipnótico de colocá-los de joelhos perante um mundo enormemente misterioso, porque incognoscível.

Vemos então que essa regra positivista é, na verdade, uma operação mágica: a regra da objetividade científica tomada nesse sentido radical positivista é uma operação mágica. Essa operação mágica traduz-se assim: "Tudo o que você pensa e imagina é subjetivo, e só existe de objetivo aquilo que nós, os cientistas positivistas, contamos, pesamos e medimos, e dizemos para você que é real e existente". Evidentemente, isso é uma operação mágica destinada à dominação da consciência humana.

É um equívoco metodológico monstruoso baseado na confusão entre a abstenção relativa e temporária do juízo de valor e a abstinência total, ou a proibição total, do juízo de valor. Essas duas coisas não podem ser confundidas, mas a regra positivista baseia-se nessa confusão.

Como a "abstinência do juízo de valor" tem esses dois sentidos, um que expressa uma necessidade óbvia e legítima da investigação da verdade, e outro que expressa uma absurdidade total e uma operação mágica destinada a colocar os seres humanos de joelhos perante uma realidade incognoscível, cujos únicos porta-vozes são os cientistas positivistas, e como todo o positivismo baseia-se nesta confusão, vemos que, por um lado, o positivismo nos fornece alguns belos conhecimentos científicos, eficazes, verdadeiros etc., e, por outro, quer nos infundir uma fantasia hipnótica, absolutamente doida e muito perigosa. As duas coisas vêm misturadas.

Trata-se de uma mistura de sabedoria e de ignorância. Mas o que existe de sabedoria no positivismo se perde porque lhe falta uma visão clara dos limites entre a sua sabedoria e a sua ignorância: o positivismo é baseado na confusão entre essas duas coisas. Isso significa que tudo o que uma ciência de inspiração positivista pode nos ensinar há de ter sempre alguma veracidade relativa e limitada, mas cuja validade é muito difícil de delimitar: é um conhecimento de validade limitada com abrangência incontrolável, e nunca se consegue saber qual é exatamente o âmbito em que tal conhecimento é válido e a partir de que ponto ele se torna inviável.

Desse modo, onde quer que a mentalidade positivista alcance uma hegemonia, um controle relativo da vida intelectual para um certo domínio da sociedade, haverá uma mistura muito estranha de clareza em determinados pontos e de obscuridade no conjunto.

É nessa confusão, entre o que seria a neutralidade metodológica e a negação ontológica dos valores, que reside a tragédia do positivismo. Ademais, é precisamente isso o que o caracteriza como uma ideologia, ou seja, como um instrumento de poder: um meio de conseguir poder para um determinado grupo social frente a outros grupos sociais, como muito bem assinalou Eric Voegelin.

Vemos que o positivismo, na sua fórmula neo-positivista, também chamada de filosofia analítica, tornou-se amplamente dominante no mundo anglo-saxônico. É influente também na Alemanha, mas foi no mundo de fala inglesa que ele alcançou sucesso máximo, de modo que esses preceitos que Leszec Kołakowski resume aqui são praticamente aceitos por todo o mundo acadêmico anglo-saxônico como se fossem regras elementares da aritmética, ou os dez mandamentos, quando não, se isso for possível, algo ainda mais fundamental do que os dez mandamentos: coisa que não se discute. [0:40] Eles são o fundo permanente de todos os debates científicos e acadêmicos. É claro que há exceções, porque existem grupos que estão fora disso, que ou não concordam ou não se interessam por isso e seguem outras orientações, mas a esfera pública é dominada pela herança positivista.

Tal orientação, por estar viciada por uma cegueira estrutural, que consiste em não compreender que a realidade objetiva do mundo reside exatamente na fronteira entre o objetivo e o subjetivo --- porque toda a atividade cognitiva humana se desenrola precisamente entre esses dois limites inatingíveis: o total subjetivo e o total objetivo ---, e por acreditar na objetividade pura, deve enfim levar a erros catastróficos na apreciação de alguns domínios da realidade, especificamente naqueles em que a dialética subjetivo/objetivo constitui precisamente o assunto a ser estudado. Ora, qual é esse domínio? Esse domínio é o da sociedade, da história e da cultura. É ali que se está lidando com escolhas humanas, com decisões humanas, com preferências humanas etc. --- mas, como diz Max Webber, é preciso lidar com tudo isso objetivamente, ou seja, evitando tomar partido entre essas escolhas, decisões e preferências.

Mas, uma vez que se evitou tomar partido entre as várias posições, obteve-se com isso a desejada neutralidade? Não; porque tomou-se aí o partido da ciência. E a ciência é, ela própria, um valor cultural. Assim, o que se fez foi tão-somente sobrepor o valor chamado "ciência" a todos os demais valores. Se é verdade que todos valores são subjetivos, é igualmente verdade que não há como provar que a ciência seja tão superior a outros domínios do conhecimento. Daí que tenha surgido, dentro do desenvolvimento histórico da herança positivista, sobretudo a partir dos anos sessenta e setenta, uma série de reações internas como as que vemos no livro de Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções científicas, ou na obra de Michel Foucault, ou no livro de Paul Feyerabend, Contra o Método, onde porta-vozes da classe científica acabarão por dizer que o conhecimento científico, afinal de contas, não é superior ao conhecimento mitológico, ou mágico, ou a simples hábitos culturais. E a pretensão da objetividade termina na proclamação da subjetividade geral, numa reação, claro está, tão doentia quanto a posição que a suscitou, que já era doentia ela mesma.

A ocasião em que a cegueira estrutural do positivismo se revela da maneira mais patente é justamente, como eu disse acima, no estudo daqueles domínios onde a separação do subjetivo e do objetivo é impossível, especificamente o domínio da ação humana e da história. Há outros domínios onde essa separação, embora jamais possa ser aceita em sentido absoluto, talvez tenha uma utilidade funcional, como por exemplo na ciência física. A idéia de que existe um universo físico objetivo, que independe totalmente da subjetividade humana, universo que está submetido, digamos, a "leis matemáticas eternas", essa idéia teve algum rendimento em Física até o século XX, quando o elemento subjetivo voltou a ingressar nesse campo através da Física Quântica, mediante a qual se vê que a posição do observador afeta a própria conduta das partículas subatômicas, que parecem estar lá quando são observadas, mas que aparentam desaparecer quando delas desviamos a atenção.

Mesmo no domínio das ciências físicas essa separação, esse preceito da total separação "asséptica" entre o subjetivo e o objetivo, não funcionou por muito tempo, mas no domínio da história e da sociedade humana ela fracassou logo e de maneira retumbante. Isso teve efeitos no campo da própria ação histórica, notadamente na política, quando, a partir de 1917, com a Revolução Russa e com a constituição de uma imensa intelectualidade marxista (em parte sustentada pela própria União Soviética, mas também autóctone em vários países), cria-se uma espécie de concorrência com o positivismo anglo-saxônico. Vê-se que nessa concorrência o lado positivista leva vantagem no aspecto técnico e econômico --- não é preciso dizer que a grande maioria das invenções técnicas surgem nos Estados Unidos, expressão de uma superioridade monstruosa em relação ao resto do mundo, para não falar em relação ao bloco marxista. Por outro lado, na economia, o sucesso do capitalismo é uma coisa que hoje em dia ninguém pode negar, e a idéia de supressão do capitalismo foi abandonada até pelos próprios comunistas: já não querem mais acabar com o capitalismo, querem apenas controlá-lo e burocratizá-lo, o que é exatamente o que eu chamo de economia fascista.

Mas o outro lado sempre levou uma vantagem enorme no que se refere ao controle da ação histórica de longo prazo. Ora, a ação histórica é, necessariamente, o campo onde o subjetivo e o objetivo estão numa constante intermutação. Por exemplo, não se pode descrever uma situação política somente pelos dados objetivos que a compõem, porque entre esses dados objetivos encontram-se os personagens e grupos que estão agindo, que estão fazendo escolhas naquele mesmo momento. Isso quer dizer que o perfil objetivo da situação se compõe de forças subjetivas em disputa, com o que voltamos ao preceito metodológico de Platão e Aristóteles: o da diferença entre o discurso dos agentes e o discurso da ciência que procura descrever a interação dos agentes. Essa distinção nunca é absoluta, porque o próprio cientista é um agente: pelo simples fato de estar fazendo ciência, ele já está agindo dentro do campo que está estudando, quer dizer, ele é um membro do campo, e não uma pessoa externa. Ilustra-o o fato de que os resultados de um estudo científico podem modificar por completo a situação estudada, como quando as pesquisas em genética acabaram mostrando que era praticamente impossível distinguir-se entre as raças humanas, que todas as raças tinham elementos genéticos das várias outras raças e que o sujeito que parecia negro, na verdade, "era branco", e vice-versa. A partir da hora que saem os resultados desse estudo, as ideologias políticas racistas ficam tremendamente enfraquecidas. O próprio estudo científico é uma intervenção na situação que ele estuda: não há como escapar disso.

Ora, se o positivismo busca, precisamente, isolar o subjetivo do objetivo na máxima medida possível, a tradição marxista, por sua vez, procura sempre jogar com a interação das duas coisas, e é isso, precisamente, o que os marxistas chamam de práxis. De acordo com o marxismo, nenhuma situação pode ser estudada em si mesma, [0:50] pois é a ação que se está desempenhando dentro dela, naquele mesmo momento, que a esclarece.

Ao formular a teoria do socialismo, pretendendo-a tanto um conhecimento científico como uma estratégia da ação revolucionária, Karl Marx está afirmando precisamente isto: não há uma compreensão puramente contemplativa da situação, porque isso exigiria um completo afastamento em relação a ela, e isso é impossível pelo fato de que se está dentro da situação. Ora, o simples fato de a estar estudando equivale a estar agindo nela.

Então deve haver um tipo de ação que emerge de dentro da própria situação e que, à medida que a leva aos resultados que já estão potencialmente dentro dela, a esclarece. Essa ação vem a ser justamente a práxis, fusão indissolúvel de teoria e prática. Então, se se acompanha a história do marxismo, as discussões internas do marxismo, nota-se que nunca existe uma discussão puramente teórica e nunca uma discussão puramente prática. Isso foi a especialidade que os marxistas desenvolveram.

É claro que, às vezes, essa fusão, essa articulação de teoria e prática, se transforma em confusão de teoria e prática e adquire um sentido alucinatório (eu falei disso no meu livro O Jardim das Aflições), mas nem sempre ocorre tal coisa: às vezes a articulação é muitíssimo bem feita, terminando por criar uma orientação das ações num sentido que realmente ajuda a esclarecer a situação à medida que a desenvolve.

Ora, podemos observar esse tipo de raciocínio dialético até na nossa vida pessoal. O exercício do necrológio, dado no começo deste curso, exemplifica o caso. Nesse necrológio, o que se faz é descrever um ideal ou um sonho que se tem. Contudo, à medida que alguém descreve esse sonho, já está tomando uma atitude com relação a ele: está fazendo uma escolha, está privilegiando determinados pontos e, certamente, o esclarecimento do objetivo de uma vida fortalece esse objetivo. Assim, não se trata apenas de uma descrição: é antes uma ação e uma decisão. Por outro lado, não é uma decisão pura, nem é uma pura ação: há ali o elemento contemplativo e o elemento ativo em tensão interna; difícil saber onde termina um e onde começa o outro, mas sabe-se que os dois estão presentes. Essa é uma experiência que tiveram todos os que fizeram o exercício, e por isso deve ter ficado claro que em tudo o que diz respeito à ação humana, à história, à psicologia, o enfoque dialético é melhor que o enfoque positivista.

O enfoque positivista procura traçar um limite nítido: "Até aqui estamos na descrição objetiva da realidade, e, a partir daqui, inicia-se o domínio das nossas decisões". Quer dizer, a descrição da situação é independente das escolhas, que serão posteriores. Mas a tradição marxista sempre soube que as duas coisas vêm juntas, e é por essa razão que, no planejamento de ações de longo prazo, na condução do processo histórico, os marxistas tenham sempre se revelado incomparavelmente superiores aos seus concorrentes positivistas.

Observando as transformações por que passou a cultura superior americana nos últimos cinquenta ou sessenta anos, percebe-se que a influência marxista, e mais especificamente comunista, no curso dos acontecimentos foi enorme, monstruosa. Vê-se que toda a cultura superior foi sendo modificada precisamente no sentido que os marxistas haviam planejado, ao ponto de, hoje em dia, parece-me, toda a circulação de idéias no mundo acadêmico e político americano é apenas um epifenômeno, um reflexo, da história do comunismo. Ou seja, os americanos tiveram tanta iniciativa própria no campo técnico, científico e econômico quanto se mantiveram passivos na esfera da ação histórica de longo prazo. São conduzidos, portanto, pela estratégia comunista sem ter a menor idéia de que isso esteja acontecendo. A sua incapacidade de encarar essa tensão interna de teoria e prática os torna incapazes de raciocinar dialeticamente.

E o que é raciocinar dialeticamente? É descrever a situação não de uma, mas de duas maneiras contraditórias, porque os elementos contraditórios estão presentes dentro da própria situação, e a ação humana --- a ação do partido, da militância, da elite comunista --- não consistirá em conduzir as coisas nem para um lado nem para o outro, mas em jogar com as contradições a fim de produzir um terceiro resultado. Ou seja, a ação comunista não pode ser entendida nos termos que Webber chamava de "ação racional segundo fins".

A ação racional segundo fins é uma ação consequente, continuada logicamente, para, mediante um jogo de causa e efeito, produzir determinados resultados cientificamente previsíveis. Um bom exemplo disso é uma situação de investimento. O investidor entende que uma dada companhia está explorando uma área passível de progredir, que pode vir a ser rentável, e então investe nela com o fim de obter um lucro. Isso é uma ação racional segundo fins.

A ação marxista não é exatamente assim. Ela não prejulga os fins, ela nunca tem um fim determinado. Basta lembrar das minhas explicações sobre a mentalidade revolucionária, para entender que a revolução não tem finalidades definitivas nem claras, e é por isso que se chama "movimento revolucionário". A revolução não foi feita para atingir metas, mas para prosseguir. De certo modo, o movimento tem um sentido quantitativo: vai aumentar, aumentar, aumentar. E vai chegar aonde? Não o sabemos. Ora, se a revolução tivesse metas definitivas, em cada momento da história poder-se-ia avaliar se ela alcançou as metas ou não, ou seja, a revolução seria julgada. Mas para ela ser julgada é preciso que haja um tribunal superior à autoridade da própria revolução, e isso é incompatível com a existência da revolução. Assim, como o condutor do processo é, ele próprio, o único juiz do processo, não há quem o julgue fora dele; e como essa autoridade máxima, que é simultaneamente o condutor e o juiz do processo, não pode se condenar a si própria, então só lhe resta absolver-se sempre. Com isso, mesmo o reconhecimento de seus crimes será incorporado à dialética para fortalecer o movimento revolucionário. O famoso processo da autocrítica, que foi usado no movimento comunista durante anos a fio, nada mais é do que isto: fazer o sujeito uma autocrítica, a qual poderia ser usada ou para condená-lo ou para promovê-lo, ou, ainda, para realizar as duas coisas ao mesmo tempo.

Ora, a ação comunista não atende aos requisitos positivistas da ação racional segundo fins, conforme a descrevia Max Webber, [1:00] porque ela não tem uma meta determinada e não pode ser submetida a um cálculo de custo-benefício. Isso quer dizer que o progresso da ação revolucionária nunca é medido em termos de metas concretas, mas sim de acordo com o aumento total da força do movimento. É por isso mesmo que essa ação pode jogar com elementos contraditórios, uma vez que é do jogo das contradições que há de surgir o resultado total: o fortalecimento do próprio movimento. Dadas duas hipóteses contrárias, portanto, o movimento comunista apostará nas duas, ao mesmo tempo, de modo a fazer que, se predominar a primeira, ótimo, se predominar a segunda, ótimo, se as duas se fundirem para produzir um terceiro resultado, ótimo também. E esse tipo de raciocínio não entra numa cabeça de cientista social positivista, de analista político positivista, de diplomada positivista, de analista estratégico positivista, de jeito nenhum!

Quando vemos o sucesso absoluto do movimento comunista em conduzir a história americana ao longo dos últimos sessenta anos, podemos entender por que razão isso aconteceu. É simples: em cada momento do processo, a opinião pública norteamericana, trabalhada pelos seus luminares, pelos seus gurus positivistas, enxergará algumas coisas e deixará de enxergar outras, mas a seleção do que deve ser enxergado ou do que deve permanecer invisível está inteiramente na mão dos comunistas. Um exemplo característico foi a atitude dos Estados Unidos durante a segunda guerra mundial. Sabe-se que havia uma colaboração secreta entre União Soviética e Alemanha nazista, muito antes do pacto Ribbentrop-Molotov, no sentido de fomentar o crescimento do exército alemão -- o que fora proibido pelo Tratado de Versalhes --, a fim de utilizá-lo como ponta-de-lança para a ocupação soviética da Europa. O raciocínio de Stálin era simples: "Esses nazistas são uns loucos. São revolucionários mas não têm uma teoria científica da revolução. São anárquicos. Com isso, eles ganham mas não levam: destruirão tudo na Europa Ocidental, na Europa inteira, ganharão a guerra, e nós, que iremos no rasto deles, ficaremos com o butim. Por isso fomentaremos o crescimento do exército alemão até transformá-lo num perigo mundial". E foi bem o que aconteceu. Enquanto estava em curso esse processo, a União Soviética, fazendo propaganda antinazista da boca-pra-fora, colaborava com os nazistas.

Porque a URSS fazia essas duas coisas? Porque havia duas hipóteses: ou os nazistas invadiam efetivamente e controlavam a Europa, mas sem conseguir tomar conta dela, e, nesse caso, viriam as tropas soviéticas atrás e tomariam conta de tudo, ou o nazismo fracassaria. Então eles apostaram, ao mesmo tempo, no sucesso e no fracasso do nazismo --- isso é a típica dialética marxista.

Vejam que o único ponto em que a estratégia de Stálin falhou foi quando Hitler o traiu e invadiu a União Soviética. Evidentemente, Stálin, que não estava preparado para isso, ficou surpreso, mas num instante entendeu que havia uma vantagem no acontecido, porque, sendo o momento de usar todas as potências ocidentais em favor da União Soviética, ganhou desse modo o pretexto. E assim foi feito. Se calcularmos a quantidade de ajuda americana destinada à União Soviética durante e depois da guerra, vemos que é uma coisa monstruosa --- supera a ajuda que os Estados Unidos deram para todos os outros países. Os norteamericanos praticamente construíram a indústria pesada soviética.

O procedimento, a estratégia marxista, tem sempre essa ambigüidade proposital: de apostar nos dois cavalos ao mesmo tempo --- porque ou um ganha e o outro perde, ou o segundo ganha, ou os dois ganham, ou os dois perdem. Ao pensar na lógica deles, eu me lembro da minha filha Maria Inês, que, quando tinha uns três ou quatro anos, começou a raciocinar e fazer algumas distinções, e dizia: "Olha, tem quatro possibilidades: uma coisa ou parece mas não é, ou parece e é, ou não parece nem é ou não parece nem não é". Isso esgota o total das possibilidades. A estratégia marxista segue a lógica da Inês e aposta em todas essas possibilidades ao mesmo tempo, porque o que interessa não é a vitória de uma possibilidade, mas a hegemonia, o controle do processo total, de maneira que não importa se a coisa vai por aqui ou vai por ali, quem vai estar fazendo a coisa ir por aqui ou por ali "somos nós": se trata de estar na frente do processo.

Enquanto interessou à União Soviética manter os Estados Unidos fora da guerra, havia uma imensa propaganda pacifista por aqui. Sob o comando do Partido Comunista, até os portuários norte-americanos faziam greve para impedir que os Estados Unidos enviassem ajuda à Inglaterra, que estava sob ataque nazista naquele momento. Os Estados Unidos queriam embarcar armas, alimentos etc., e os portuários comunistas não deixavam! Tão logo Hitler atacou a União Soviética, a propaganda imediatamente mudou, até conseguir que os Estados Unidos entrassem na guerra.

Quando a guerra terminou, Winston Churchill --- que, notem bem, não era um intelectual positivista, nunca foi um homem com pretensões científicas, mas era, eminentemente, um literato e um historiador, um homem, portanto, com outro tipo de sensibilidade ---, Winston Churchill fez aquele famoso discurso, dizendo que uma "cortina de ferro" havia baixado sobre metade da Europa, ou seja, o plano de Stálin de ocupar a Europa tinha dado certo. Mas o sucesso dera-se pela metade, pois ele ocupou somente a Europa Oriental. Então começa a chamada Guerra Fria, e, nesse período, uma das maiores vitórias obtidas pelo movimento comunista foi a de conseguir praticamente destruir o anticomunismo americano: note-se que, até os anos cinquenta, o anticomunismo era uma coisa tão normal nos Estados Unidos, que até metade da esquerda era anticomunista. Os grandes intelectuais da época --- Lionel Trilling, Sydney Hook, que mais tarde se tornou famoso como líder do Congresso sobre a Liberdade de Cultura, um grande movimento anticomunista --- eram todos esquerdistas anticomunistas, alguns de inspiração trotskista e outros vagamente socialistas, liberals, como são chamados aqui. Porém, a partir do episódio do senador Joe McCarthy, o anticomunismo torna-se indecente. Então havia o comunismo, havia o anticomunismo e, agora, havia um terceiro movimento que era o "antianticomunismo", que se tornou a tendência predominante nas altas esferas intelectuais e políticas. E como é que se conseguiu isso? Bastou convencer os americanos de que o fato de as comissões do Congresso --- Câmara dos Deputados e Senado --- [1:10] convocarem algumas pessoas para depor equivalia a uma perseguição política como a que então existia na União Soviética. Mas para conseguir legitimar essa ideia, era necessário alterar o senso das proporções, porque, se considerarmos bem as coisas, surge a pergunta: quantas pessoas afinal chegaram a ser presas? Somente algumas dezenas --- e não por suas atividades políticas, mas sim por seu desacato à corte, quando eram interrogadas. Ficavam presas dois ou três meses e logo iam embora. E isso foi o máximo que chegou a acontecer.

No mesmo período em que se desenrolavam as investigações, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, morreram pelo menos três milhões de pessoas nas prisões políticas da União Soviética --- só naquele período! Simplesmente não se pode comparar uma coisa com a outra; fazê-lo já é absolutamente psicótico. Entretanto, conseguiram dar credibilidade a essa história, e até hoje, quando as pessoas contam a história daquele período, referem-se ao macarthismo como uma noite negra que se abateu sobre os Estados Unidos. Hoje em dia sabe-se que as famosas informações que o senador Joe McCarthy passou para a nação eram muito reduzidas e eufemísticas. Há duas versões: numa ele disse que havia cinquenta e poucos agentes comunistas infiltrados no governo e, noutra, afirmava que tinha oitenta. Mas hoje se sabe que eram alguns milhares. Ou seja, ele não exagerou nem um pouco, mas, ao contrário, não tinha medida do tamanho do problema, e foi por isso mesmo que ele se ferrou: achou que fazendo um pouco de barulho ia conseguir alguma coisa, mas não tinha idéia das forças imensas que estavam voltadas contra ele, já bem infiltradas no governo e no que viria a ser a CIA (Central Intelligence Agency), que nasceu num negócio chamado OSS [Office of Strategic Services], uma organização do Serviço Secreto, formada no tempo da guerra, na época em que a União Soviética era aliada dos Estados Unidos, e estava repleta de comunistas. Note-se que, até hoje, tem-se a imagem da CIA como a organização mais anticomunista do universo, quando, na verdade, já nasceu enormemente infiltrada de comunistas.

Nesse sentido as elites comunistas conseguiram controlar, conseguiram dosar as informações que o público receberia como verosímeis e separá-las das inverossímeis; mas o critério de verossimilhança e de inverosimilhança não correspondia à realidade de maneira alguma: é como se os comunistas estivessem controlando os pedais do acelerador e do freio com uma habilidade absolutamente magistral. E conseguiram assim levar um país inteiro a acreditar que aquelas denúncias do senador Joe McCarthy eram falsas, quando eram todas verdadeiras e até muito modestas em comparação com a realidade. E esse engano ainda prevalece: mesmo pessoas que se dizem conservadoras, direitistas, usam o termo macarthismo para designar o máximo de perseguição política que são capazes de imaginar. Quer dizer que, enquanto gente a granel estava sendo torturada e morta na União Soviética, aqui, o simples fato de alguém ter de comparecer a uma audiência do Congresso, alegar a Quinta Emenda e não precisar dizer nada era apresentado como se se tratasse de perseguição política igualmente grave e perigosa. É claro que foi um engano.

Outros enganos ocorreram em seguida. Por exemplo, quando houve a famosa Ofensiva do Tet, na guerra do Vietnã: o que foi uma ofensiva vietnamita cem por cento fracassada apresentou-se aqui como se fosse uma vitória. Ocorreu o famoso ataque à Embaixada norteamericana em Saigon; mas quantos vietcongues entraram na Embaixada? Nenhum, morreram todos na porta. Ou seja, a invasão não se deu, foi um fracasso total. Na televisão norteamericana, porém, exibiam-se aquelas cenas com os funcionários da Embaixada sendo retirados em helicópteros, pelo teto, buscando-se assim dar a ideia de que aquilo foi um desastre total para os americanos. O exército vietcongue chegou devastado ao final da ofensiva do Tet; àquela altura, o exército não existia mais; a invasão à Embaixada simplesmente não houve, mas simpatizantes e agentes comunistas bem colocados na mídia conseguiram passar a impressão exatamente contrária, transformando em sucesso vietcongue o que fora um fracasso total. Hoje nós conhecemos a história real, porém levou cinquenta anos para que ela viesse à luz.

Isso quer dizer que esse controle da imagem pública da situação sempre esteve na mão dos comunistas. Por que eles conseguem fazer isso? Porque raciocinam numa faixa de complexidade que a mente positivista não alcança. Por exemplo, empreender o que hoje se chama a "guerra assimétrica", que é definida também como "a vitória do perdedor". Assim, num esforço bélico, tanto faz vencer ou perder: se vencer, venceu; se perder, tudo então é transformar a derrota militar numa vitória político-publicitária. Essa flexibilidade é inerente ao pensamento marxista, que é dialético até a medula --- não é lógico-científico como o pensamento positivista. Os positivistas acreditam, naturalmente, que o marxismo é uma pseudociência, e se consideram infinitamente superiores a essa corrente. Mas é o caso de dizer: "Bem, o marxismo é uma pseudociência no sentido em que vocês definem ciência --- como uma descrição objetiva da realidade, separada dos elementos subjetivos. Porém, como a história é um domínio onde o subjetivo e o objetivo estão interpenetrados e em constante tensão, aquele que os confundir melhor terá a visão mais clara, mais acertada, mais realista e, portanto, a possibilidade de ação mais eficaz".

Outro engano terrível que aconteceu aqui nos Estados Unidos: quando houve a revolução chinesa, pessoas de muita autoridade na época, como o General Marshall e o próprio Presidente Roosevelt, acreditaram que Mao Tsé-Tung não era de maneira alguma comunista, que era apenas um reformador agrário cristão. Acreditaram nisso e ajudaram Mao Tsé-Tung a assumir o poder, boicotando os nacionalistas chineses --- que aliás não eram flor que se cheire, mas ao menos estavam aliados aos Estados Unidos. Então derrubaram Chiang Kai-Shek e permitiram que Mao Tsé-Tung tomasse o poder e instaurasse na China a ditadura mais sangrenta de toda a história humana.

Do mesmo modo, o caso da revolução cubana: quem tirou Fulgêncio Batista do poder foi o governo norte-americano. Literalmente, o governo mandou o Batista sair, expulsou-o, e deixou o terreno livre: "agora vocês podem ocupar!". Fidel Castro então tomou o poder, e logo foi recebido aqui nos Estados Unidos como um herói. Toda a imprensa norte-americana alardeou que ele era um democrata, que não se tratava de maneira alguma de um comunista. Mais tarde, quando o regime comunista, pela sua inviabilidade econômica intrínseca1, [1:20] começa a ficar mal das pernas, o que acontece é que a debacle do comunismo é reaproveitada para fortalecer o movimento revolucionário no mundo inteiro. Quando caiu a União Soviética, no começo dos anos noventa, ninguém poderia prever que dez anos depois o movimento esquerdista no mundo estaria mais forte do que nunca, todos pensaram que era o fim da esquerda.

Espero que se tenha conseguido acompanhar até aqui o meu raciocínio, e que eu não tenha ido parar muito longe do ponto inicial. O que estou tentando mostrar é como um pequeno erro filosófico, um erro conceitual filosófico, pode, ao longo de um processo, provocar tragédias históricas de porte imensurável.

Não precisamos, necessariamente, endossar a tese de Anatoliy Golitsyn de que tudo isso foi uma farsa, de que a queda da União Soviética foi uma aparência criada pela KGB para ludibriar o Ocidente, até porque, mesmo que não tenha sido tudo planejado, foi tudo reaproveitado, em seguida, neste sentido. A China é um bom exemplo: "Caiu o comunismo! Agora a China será capitalista. Então vamos investir pesadamente na China!". No começo dos anos noventa, esse país era um nada, era um país em desespero. Passados vinte anos, a China se transformou numa potência econômico-militar que ameaça os Estados Unidos, e tudo isso foi feito com dinheiro norte-americano. Ou seja, todos os investidores foram levados a acreditar que a liberdade econômica traria a liberdade política, e só puderam acreditar nisso porque raciocinam de modo positivista, segundo uma lógica linear. Acontece que a liberalização econômica pode trabalhar para o fortalecimento de uma ditadura comunista, se os principais investidores forem os próprios comunistas, como de fato aconteceu: o grande investidor na China é o Exército Chinês e, evidentemente, o Partido Comunista Chinês. Então a injeção de capitalismo fortaleceu a mesma classe dominante do regime anterior.

Os comunistas sabem raciocinar dialeticamente: eles sabem que toda situação pode ser aproveitada em sentido inverso, porque não há situação unívoca.

A economia, a política, a cultura, a religião, a moral etc. são camadas entre as quais se tem todo o tipo de relação possível; é impossível essa linearidade expressa na crença de que, se a economia é liberal, então a política será liberal. Não existe isso, e eles sabem que não é assim: eles sabem que existem contradições e que jogar com as contradições é o caminho do sucesso --- não do sucesso econômico, mas eles não precisam do sucesso econômico.

Uma crise econômica pode ser fatal para um governo democrático, porque um governo democrático depende do voto popular, de modo que, se o país ficar na miséria, o povo revolta-se contra o governo e vota na oposição; mas para uma ditadura não é assim: a ditadura pode tirar proveito do sucesso econômico, como Stálin tirou do sucesso econômico durante e depois da guerra, como pode tirar proveito de uma crise econômica e de uma situação de miséria, usando essa mesma miséria como pretexto para fortalecer o controle policial da sociedade e a guerra contra os supostos inimigos infiltrados, os supostos agentes estrangeiros etc. As duas coisas servem.

Essa flexibilidade e rapidez com que a estratégia comunista muda de um lado para o outro é algo que desnorteia o sujeito formado na base positivista, que pensa que todo mundo vai agir de maneira consequente em vista de determinados fins. O positivista pensa assim: "Os comunistas só são comunistas da boca para fora; são loucos mas não rasgam dinheiro". Acontece que rasgam dinheiro sim. Se isso lhes convier, eles o farão, sem nenhum problema. Eles podem desgraçar a economia de suas nações, se isso for conveniente para o conjunto do movimento revolucionário.

E nessa série de engodos acontece o quê? Ocorre o caso Obama.

Eu escrevi um artigo para o Diário do Comércio, a respeito. Teremos, na verdade, dois artigos, um deles eu já escrevi e vou ler aqui. Depois, o segundo artigo, que é uma conclusão do primeiro, esse eu vou resumir oralmente, porque não o escrevi ainda. O artigo chama-se "Teoria da Pura Coincidência".

Quando surgiu um zunzum de que a avó de Barack Hussein Obama dizia ter assistido ao parto dele em Mombasa, o governo queniano mandou investigar e descobriu que, no arquivo do hospital, faltavam justamente os registros da semana de agosto de 1961 em que teria ocorrido o nascimento da criatura.

Agora, a comissão nomeada pelo xerife Joe Arpaio constatou que, nos arquivos da Imigração, onde são guardadas em microfilme aquelas fichas que os passageiros de viagens aéreas preenchem antes do desembarque, faltam as fichas das pessoas que chegaram do Quênia naquela mesma semana.

No Arquivo Nacional de Washington, a mesmíssima coisa.

E, por incrível que pareça, os registros daquele período estão ausentes, também, dos arquivos das companhias aéreas que em 1961 tinham vôos entre o Quênia e os EUA.

Ver nisso tudo algum indício de ocultação proposital é, na opinião bem-pensante, pura "teoria da conspiração", mas tentar atribuir essa quádrupla convergência de sumiços a um acúmulo fortuito de coincidências é forçar a pobre lei das probabilidades até o último grau da inverossimilhança concebível.

Mesmo esse grau, porém, é manifestamente ultrapassado quando alguém pretende que foi também por pura coincidência que essas coincidências aconteceram não a um cidadão qualquer, nem mesmo a um presidente qualquer, mas logo àquele que recusa mostrar seus passaportes, seus registros escolares, seus trabalhos acadêmicos e outros documentos que seus antecessores sempre abriram à inspeção pública. Entre a Teoria da Conspiração e a Teoria da Pura Coincidência, a primeira, a esta altura, já se tornou muito mais razoável.

Por fim, se esse presidente exibe um certificado de alistamento militar com carimbo grosseiramente falsificado e, mandando publicar uma cópia eletrônica de sua certidão de nascimento, gasta um milhão de dólares com advogados para impedir o acesso ao original do documento, o teórico da pura coincidência, que se pretende a encarnação máxima da sanidade, já começa a parecer aquilo que sempre foi: um louco, um idiota completo ou parte interessada na ocultação do óbvio.

A experiência me ensinou que, quando a maioria bem-pensante aposta que dois mais dois são cinco, é mais prudente nadar contra a maré e ser apontado nas ruas como louco. A opinião respeitável pode ser muito respeitável, mas a matemática é mais.

Afinal, essa gente toda apostou que o Foro de São Paulo não existia, que o PT não tinha nada a ver com as Farc nem estas com o tráfico de drogas, que a ascensão do petismo acabaria com a era da corrupção na política e que a China se tornaria democrática tão logo adotasse a economia de mercado. Em todos esses casos me chamaram de louco porque eu dizia que não. E em todas essas ocasiões preferi antes ganhar a aposta sozinho do que perdê-la mal acompanhado.

Que Obama seja o "Presidente da Manchúria", que por trás da súbita e misteriosa ascensão de um ilustre desconhecido ao comando da nação americana haja um vasto esquema de ocultação e manipulação, a maior fraude política de todos os tempos, é coisa que, no meu modestíssimo e louquíssimo entender, já nem se discute. Quem quer que ainda tenha dúvidas a respeito sofre de Síndrome do Piu-Piu em estado terminal.

Só o que resta é sondar melhor as finalidades da operação. Não posso crer, razoavelmente, que o objetivo de tão complexo, trabalhoso e arriscado empreendimento fosse apenas a conquista da presidência, nem que os planejadores da coisa imaginassem poder manter os fatos encobertos e invisíveis para sempre.

Ao contrário: a operação deve ter como objetivo último o efeito psicossocial traumático, devastador, que a revelação da fraude, mais dia menos dia, virá a ter sobre todo o eleitorado que se rendeu ao engodo com paixão e entusiasmo, cedendo à chantagem racial ostensiva, confiando cegamente nos inimigos e expondo à perseguição e à zombaria os mais sinceros patriotas. Induzir toda uma população a apostar contra si mesma, a ajoelhar-se ante o altar de um ídolo postiço com identidade falsa, é sem dúvida a vitória mais admirável que alguém já obteve no campo da guerra psicológica.

Nesse sentido, a própria revelação da verdade contribuirá para a derrocada dos EUA, criando uma crise constitucional e social num momento em que o país, em estado de estupor, estará atolado num desastre econômico sem precedentes e metido ou em vias de meter-se em mais uma guerra.

É impossível que essas linhas de conseqüência não tenham, desde o início, entrado nos cálculos dos planejadores. Quem são eles possivelmente, é o que tentarei sondar num artigo vindouro.

P. S. -- Mal havia eu acabado de escrever essas palavras, quando chegou pelo http://www.wnd.com/2012/03/pravda-asks-what-happened-to-american-media/ a notícia de que o jornal oficial russo Pravda estava denunciando alto e bom som a conspiração geral da mídia americana para ocultar a fraude documental de Obama. Pode parecer uma ironia que as funções tradicionais respectivas do jornalismo americano e russo tenham se invertido, mas também aí, se me permitem, não há nenhuma coincidência. A mega-operação simplesmente passou à segunda fase: do ludíbrio geral está saltando para a revelação brutal de uma obviedade tanto mais desmoralizante quanto mais longamente, obstinadamente rejeitada. Os americanos, uma vez demonstrado ante a Schadenfreude da humanidade inteira o quanto é fácil ludibriá-los, fazê-los de palhaços e jogá-los contra si próprios, precisarão de muita ajuda divina para, depois de tamanha humilhação, poder conservar ainda algum espírito patriótico.

A pergunta que surge em seguida é: "mas quem são os autores da operação? De quem estamos falando?". Então remeto vocês à minha apostila sobre os problemas de método nas ciências sociais e a teoria da ação que está ali subentendida, com algumas óbvias constatações metodológicas como, por exemplo, a de que toda ação subentende um poder capacitado para realizá-la e que tenha motivos para realizá-la.

Podemos nos perguntar ainda: "quem, no momento, tem interesse em quebrar a soberania dos Estados Unidos?". No debate com o professor Duguin, mostrei que existem três grandes esquemas globalistas e que os três têm esse interesse: existe o dos globalistas ocidentais, o Grupo Bilderberg, cujo interesse máximo é transferir a soberania americana para organismos internacionais, que estão sob o comando deles mesmos; existe o esquema russo-chinês, que é inimigo tradicional e que considera que uma guerra com os EUA é inevitável mais dia menos dia (os generais chineses dizem isso claramente); e existe o esquema islâmico, cujo o interesse antiamericano não é preciso explicar. Esses três grupos teriam razões para fazer uma operação deste tipo.

Já que os três têm razões, podemos perguntar: "qual deles está interferindo realmente nesse caso?". Resposta: "os três".

Vemos a ação dos globalistas ocidentais no fato de que Obama, que tem o discurso anti-Wall Street, é o candidato mais financiado por Wall Street de todos os tempos, e é um candidato que foi um pai para todos os grandes bancos, tomando dinheiro de impostos da população para cobrir as despesas dessas instituições.

O elemento islâmico está presente nas duas pontas do processo: a carreira de Barack Obama começou misteriosamente financiada por um príncipe saudita. Os sauditas, em geral, são inimigos da revolução islâmica, do radicalismo islâmico, mas esse príncipe em particular é conhecido por ser um adepto dela, é um radical islâmico. Seria o caso de se perguntar: como esse príncipe saudita bilionário descobriu que, numa faculdade norte-americana, tinha um rapaz chamado Barack Obama, e decidiu mandar procurá-lo, oferecendo-se para financiar os seus estudos? Passados vários anos, aparece Barack Obama, já na presidência, como o grande patrono da chamada Primavera Árabe, que nada mais é que a ascensão da Revolução Islâmica ao poder (sem contar toda a proteção que ele está dando ao avanço islâmico dentro do país, do mesmo modo como acontece da Inglaterra).

Enfim, o esquema russo-chinês. Por um lado, vê-se que o favorecimento do governo Obama à Rússia é tão ostensivo, que, numa época em que o país inteiro está clamando por petróleo, o governo continua vetando a abertura de qualquer buraquinho --- não pode explorar petróleo ---, e, ao mesmo tempo, cede imensos territórios petrolíferos do Alasca para a Rússia. Além disso, durante todos esses anos --- conforme uma política que já vinha do tempo de George Bush ---, continua tratando a Rússia como um aliado, embora saiba que as armas dos terroristas do mundo inteiro são distribuídas pela Rússia. E, com relação ao chineses, não é preciso dizer que o favorecimento chega ao ponto de serem entregues aos seus generais segredos militares norte-americanos, na medida em que se levam os chineses para visitar usinas nucleares, fábricas de armamentos etc., abrindo para eles tudo de uma vez. O que, aliás, é bastante compreensível, já que o Secretário da Defesa, Leon Panetta, é advogado do governo chinês. Dá-se o mesmo que no tempo de Franklin Roosevelt, quando o governo favoreceu a União Soviética até o fim, e o Secretário de Estado, Dean Acheson (que seria ainda Secretário de Estado de Harry Truman entre 1949 e 1953), tinha como principal cliente do seu escritório de advocacia o governo da União Soviética. Enfim, repetiu-se a situação.

Coloca-se o advogado da nação concorrente ou inimiga nos mais altos postos. Então, o que esse advogado vai fazer lá? Vai defender os interesses de seu cliente, é claro. Os três esquemas estão presentes na fabricação da figura de Obama e os três têm interesse em quebrar a hegemonia americana, ou mesmo em arrasar-lhe a soberania, reduzindo o país a nada.

Raciocinando dialeticamente: num primeiro instante, engana-se o país inteiro, vendendo como candidato salvador um sujeito que não tem sequer documentos, que ninguém sabe de onde veio nem quem é, e explora-se a credulidade norteamericana com uma espécie de alegria sádica: "Eu vou fazer você de trouxa até o fim!".

Colocado o sujeito no poder, passa-se à segunda fase da operação, que consiste em fazer exatamente o contrário de tudo aquilo que Obama prometeu: ele prometeu fazer um governo transparente, e faz o governo mais obscurantista de todos os tempos, onde tudo é proibido saber; prometeu fazer um governo que vai restaurar a economia popular, e restaura as fortunas dos grandes bancos, inclusive as dos bancos mais ladrões que há. O indivíduo começa a instaurar todos os elementos de um estado policial, como este Defense Authorization Act, que permite às Forças Armadas prenderem qualquer cidadão norte-americano a qualquer momento, sem processo, sem nada, e mantê-lo preso por tempo indeterminado; permite tirar a sua cidadania norte-americana e, ainda, matá-lo, se isso for preciso. A partir da hora em que foi assinado esse decreto (em 31 de dezembro), [1:40] no meio da confusão das festas de fim de ano, para ninguém perceber, a partir desse momento, a democracia, evidentemente, acabou.

Muito bem, enquanto o homem está na presidência, realiza-se nos Estados Unidos a política que esse esquema globalista determinou para todas as nações do mundo: enfraquecer os governos nacionais no exterior e fortalecê-los no interior. Ou seja, a soberania nacional decresce, o poder nacional decresce, mas o controle do governo sobre a sua própria população aumenta --- é esse, exatamente, o esquema que está sendo aplicado aqui com Obama. Porém, não será possível manter essa lenda, não se poderá fazer o povo acreditar nisso indefinidamente.

Então vem uma terceira fase: a revelação da verdade, a qual fará com que o povo americano perca totalmente a confiança no sistema --- no sistema de governo, no sistema judicial, na mídia --- e em si mesmo, porque, afinal de contas, quem votou em Obama foi o povo. Então teremos um estado de desmoralização nacional no preciso momento em que o país terá de enfrentar uma crise econômica e quando, provavelmente, estará se metendo em uma guerra. E o fato de que essa notícia tenha saído no Pravda é mais um sinal de que estamos realmente entrando em nova fase: a mentira tão laboriosamente construída será demolida por aqueles mesmos que a construíram, tão logo essa demolição se revele útil ao propósito geral do plano.

Acho que dá para entender a continuidade dessa exposição, que se inicia com a questão do positivismo e chega até estas conclusões. Vê-se que tudo isso é uma imensa tragédia: começa com uma tragédia intelectual mas se prolonga em uma tragédia política, e pode terminar em uma tragédia econômica e militar, com a morte de milhões de pessoas.

Acredito que defender teorias certas pode ser muito bonito, mas o verdadeiro conhecimento (e aqui nós temos que aceitar uma regra positivista) tem algo a ver com a experiência, com o conhecimento da realidade concreta, com a compreensão e com a transparência obtidas no estudo da realidade concreta, seja a realidade da sua vida pessoal, seja a realidade da vida histórico-política: é nisso que está a sabedoria, e não em generalidades.

Se uma filosofia não é boa para ajudar alguém a entender o que acontece, então ela não é boa para absolutamente nada.

* * *

[queda da transmissão]

Então, vamos lá. Antes de tudo, eu queria ler uma mensagem do Silvio Grimaldo, que não é uma pergunta, mas uma informação útil para todos vocês. Ele diz:

"Há algum tempo você avisou aos seus alunos que o Colégio do Mosteiro de São Bento havia se reestruturado em torno de uma verdadeira educação católica, num projeto orientado pelo professor Felipe Nery e por outros alunos do Antônio Donato. Mas no final do ano o professor Felipe Nery e toda a sua equipe de professores foram demitidos do São Bento, sem maiores explicações. Ainda há pais que procuram o Colégio, pois eu vejo no True Outspeak a sua recomendação para matricular seus filhos, mas eles não são informados sobre o fato de o projeto não mais existir e de que a educação oferecida ali é católica apenas no nome. O Professor Felipe pede para avisar que ele e sua equipe, que é formada por alunos seus e do Donato, estão montando uma escola nova, baseada na pedagogia de Hugo de São Vitor, e que precisam de famílias católicas interessadas. Quem quiser saber mais sobre a escola deve escrever para o professor Felipe Nery através e-mail [email protected]".

Aluno: Para se ter uma sólida cultura filosófica é indispensável saber o francês?

Olavo: Eu acho que sim, porque eu fiz praticamente toda minha educação em francês, como tantas e tantas gerações de brasileiros, e também porque alguns livros absolutamente essenciais só existem em francês. O pessoal anglo-saxônico acompanha o movimento de ideias francesas muito de longe. Por exemplo, há pouquíssimos livros de Louis Lavelle traduzidos para o inglês. Os livros de André Marc, que eu considero fundamentais, não há nenhum. Quer dizer, eles só pegam da França aquilo que se tornou mais notório. Acontece que esta é uma característica da cultura francesa no século XX: o que se torna mais famoso na França é o que menos presta. Ademais, se existe um vasto material católico, você só o encontra na França. A direita católica francesa é tremendamente bem informada e publica milhares de livros. Só que esse movimento editorial monstruoso não aparece na mídia, mas no "subterrâneo", que é quase tão grande quanto o movimento do establishment, e não se encontra essa produção a não ser em francês. Além disso, a língua francesa tem muita importância na formação do português literário. Se você estudar francês e se acostumar a ler os autores franceses, isso vai aumentar muito a sua compreensão das nuances da língua literária brasileira e portuguesa. O inglês é importante como fonte de informações e para se ter acesso a muitas traduções; mas fazer alguém a sua formação principalmente em inglês, isso lhe estraga a redação portuguesa para o resto da vida. Eu estive tentando imitar a escritura de americanos, trejeitos americanos, e concluí: o espírito da língua inglesa é muito diferente do espírito do português, há muita coisa ali que é intraduzível e que só terá eficácia no inglês mesmo. Não será possível copiar isso em português.

Alexandre Araújo Campainha pergunta:

Aluno: O senhor fala da proeminência do movimento comunista e dá a entender que o seu epicentro está na Moscou de 1917. No entanto, não lhe parece que esse epicentro esteve sempre no eixo Londres-Nova Iorque, não é lá que se opera a famosa "tesoura" (aquela da "estratégia das tesouras"), não é de lá que se instauraram os bolcheviques em Petrogrado, Woodrow Wilson em Washington, em 1913? Como explicar tamanha quantidade de agentes comunistas dentro das instituições e órgãos de Estado nos Estados Unidos, senão pelo fato de que seus neighbours são os mesmos que financiaram o transporte de Trotski e seus 200 e tantos revolucionários profissionais de Nova Iorque para Petrogrado em março de 1917, segundo Antony Sutton? Não é justamente isso o que nos conta Bella Dodd no seu clássico School of Darkness*?*

Olavo: Eu vou responder aqui sumariamente. Acho que ainda está em Moscou pelo seguinte motivo: é lá que está a KGB. A KGB é a maior organização, de qualquer tipo, que já existiu no mundo. Só para se ter uma ideia, nos anos 60 os arquivos da KGB tinham oito bilhões de dossiês. Ou seja, havia informação sobre o mundo inteiro. Ora, se não se tem um lugar onde concentrar as informações, não se tem como comandar o processo. Então eu acho que a KGB ainda é o fator decisivo em tudo isso. O pessoal tem muita dificuldade de medir o alcance das ações da KGB porque não tem sequer a mínima noção do tamanho da coisa. A KGB tinha, até os anos 70, 80, 500.000 funcionários, sem contar os agentes informais espalhados pelo mundo nas várias militâncias. A qualquer momento um militante comunista poderia ser chamado para trabalhar para a KGB: então, havia, digamos, mais de 5 milhões de agentes potenciais. É uma coisa descomunal, não há nada comparável a isso. Outra coisa: em matéria de dinheiro, os recursos da KGB eram e são ilimitados e incontroláveis. Ninguém sabe onde termina o orçamento da KGB; já não se sabia no tempo do comunismo e agora a coisa continua desconhecida. A KGB ampliou seus serviços dentro da Rússia depois da "queda do comunismo". E também ampliou a sua atuação aqui. Hoje a gente sabe que existem mais agentes russos aqui do que durante todo o período da Guerra Fria. Assim, é preciso começar a medir as coisas. O que são os Rockfeller, por exemplo, comparados com a KGB? São nada. Os Rockfeller, afinal de contas, têm de pagar impostos, estão sob fiscalização. Quem fiscaliza a KGB? Ninguém. Do grupo Bilderberg, ficamos sabendo o que o pessoal discutiu nessa ou naquela ocasião. E o que o pessoal da KGB discutiu? De vez em quando escapa um sujeito de lá e conta alguma coisa, mas ninguém é obrigado a acreditar nele. Ninguém acreditou no Anatoly Golitsyn, quando ele explicou todos os planos no caso da Perestroika, revelou que eles a haviam planejado, e que iria acontecer isso, mais isso, mais isso... Hoje se sabe que 94% das previsões estão certas, mas na época ninguém acreditou. Por quê? [1:50] Falta de fontes. Alguém usar a falta mesma de fontes como um indício é uma coisa difícil. O caso do Obama, que eu citei aqui, é fácil porque é descarado demais: por que órgãos que estão do outro lado do continente e outros, que estão aqui, têm de sumir exatamente com os documentos daquela semana? Ainda: no caso da KGB, foram abertos na União Soviética somente os arquivos do Partido Comunista --- os arquivos do Partido, mas não os da KGB. A KGB nunca abriu nada. Assim, ela continua sendo o mesmo mistério de sempre, e continua sendo a maior organização do mundo.

Aluno: Existe outro material, além da apostila "O que é o direito?", sobre o seu estudo do direito?

Olavo: Existe, mas não sei onde está. Vou ver se encontro. Eu quero colocar isso online. Eu dei muitas aulas a partir daquele estudo sobre o que é o direito, além de sobre outros assuntos. Eu pretendia fazer uma série de pequenos estudos fenomenológicos: o que é isso, o que é aquilo, o que é aquilo outro. O estudo sobre o que é o dinheiro é a continuação direta do estudo do que é o direito. Esse eu acho que até está em algum lugar, está online, talvez. Se não estiver, nós logo vamos providenciar isso.

Aluno: A sua análise do confronto da ciência positivista anglo-saxã com o movimento revolucionário tem enorme alcance explicativo para a compreensão do paradoxo das sucessivas derrotas dos Estados Unidos no campo cultural, mesmo com as vitórias no campo militar, econômico e tecnológico. Diante disso, como diria Lênin, o que fazer? É fácil ceder à tentação de buscar uma alternativa igualmente revolucionária que dialeticamente só fortaleceria o movimento comunista. O que se pode fazer além de procurar entender a situação? O senhor não vê chances para o sentimento do movimento efetivamente anti-revolucionário nos EUA ou mesmo na Europa socialista?

Olavo: Eu vejo, sim, acho que existem todos os elementos para se formar isso. Eu acho que um grande obstáculo, por exemplo, é a ausência de comunicação entre os conservadores americanos e os conservadores franceses. Quer dizer, a direita francesa tem algumas tradições que são profundamente hostis ao pensamento americano, incluindo mesmo uma tradição antiamericana. E tem uma certa ala anti-semita bastante forte, o que soa tremendamente antipático aos americanos. Mas vai ser preciso afastar esses problemas um por um, porque os franceses sabem o que está acontecendo, os americanos, não. Os conservadores franceses são gente muito séria, muito estudiosa e que têm uma retaguarda de conhecimento de filosofia escolástica que os americanos não têm. Eles têm um treino filosófico melhor que os americanos. Eles não caem nessa patacoada de positivismo. Veja, para quem tem uma boa formação clássica e escolástica, esses programas da dialética marxista não são difíceis. Quer dizer, quem estudou a dialética antiga de Aristóteles absorverá a nova e a transcenderá sem muita dificuldade. Mas não é assim com quem tem formação positivista; aí a dialética marxista é um bicho de sete cabeças, é uma caixa preta. A diferença de mentalidade é tanta, nesse caso, que raia a incomunicabilidade. Quer dizer, o sujeito que tem a formação positivista precisaria recuar, fortalecer a sua formação clássica platônico-aristotélica-escolástica, para depois chegar ao marxismo. Eu acho, por exemplo, que essa barreira tem de ser vencida. Isso é que nem eletricidade, para funcionar precisa ter os dois pólos. No Brasil, há 20 anos atrás, eu fiz um diagnóstico de que tudo dependia de você conseguir aproximar os liberais que são, sobretudo, o pessoal intelectual e o empresariado, e mais uns quantos intelectuais acadêmicos. Aproximar também os liberais e os militares. Tudo depende disso. Eu fiz das tripas coração para criar uma ponte, um diálogo entre eles. Até que estava tudo indo muito bem quando o então presidente do Instituto Liberal, o professor Og Leme, subiu ao palanque do Fórum da Liberdade e disse que precisava fechar as Forças Armadas. Quer dizer, em cinco minutos ele destruiu um trabalho de muitos anos. Daí eu desisti, pensei: "Não vai dar, eles querem morrer". Eu me lembro do seguinte: uma vez eu vi uma senhora que teve um tipo de ataque epilético, estava caída no chão, na Avenida Santo Amaro, e fui socorrê-la. Ela entreabriu os olhos, viu a minha cara e começou a gritar: "Eu detesto homem!", e começou a me bater. Eu a larguei e lhe disse: "Então que se dane! Não dá para ajudar a senhora: eu tento e a senhora me xinga!". Com esses caras liberais é a mesma coisa: eles querem é morrer. Espero que, no caso da direita americana e da francesa, ainda seja possível o diálogo, porque há uma fonte religiosa comum, e o entendimento de protestantes e católicos aqui nos Estados Unidos está indo cada vez melhor. Isso é possível. E acho que, se houver alguma resistência, alguma possibilidade de um movimento sério, vai ser de fonte religiosa, sem sombra de dúvida.

Aluno: Numa eventual guerra entre os Estados Unidos, de um lado, e a China e a Rússia, de outro, o movimento islâmico, em caso de vitória da Rússia e da China, deverá fazer o que Lênin pretendia, após a vitória dos nazistas na Europa, ou seja, há de ocupar, em termos civilizacionais, todo o espaço deixado após a destruição da hegemonia americana no Ocidente? Se sim, a melhor forma de o movimento islâmico atingir esse objetivo seria permanecendo neutro em tal conflito bélico ou aliando-se ao bloco russo e à China? E qual seria o papel da América Latina num conflito assim, considerando-se a hegemonia do Foro de São Paulo por aqui?

Olavo: Os islâmicos já disseram o que vão fazer nesse caso. Eles vão apostar na vitória do socialismo e em seguida entrar com a teoria de que o socialismo venceu, mas que ele não tem alma, e que é preciso infundir-lhe uma alma e que essa alma é o Islã. Quer dizer, o Islã seria a religião providencial do socialismo. Eles já estão prontos para isso. Então, num caso assim, o raciocínio é esse. Isso aliás já foi enfatizado por vários autores, e eu referi essa ideia na conferência que fiz no Clube Israelita do Rio de Janeiro anos atrás, em 2003. Nessa conferência sobre o radicalismo islâmico como herdeiro do comunismo e do nazismo, citei várias fontes que mostravam que, a partir do pensamento do Said Cotton, havia se desenvolvido essa ideia de o Islã viria a funcionar como a alma do mundo socialista. E se eles seguirem de fato essa orientação --- e não creio que exista outra --- , não devem ficar neutros nessa guerra, não lhes conviria a neutralidade; se eles já consideram que o socialismo vai vencer, irão se aliar ao lado que acreditam vencedor. Essa aliança na verdade já existe. Em todo lugar que você vê, o movimento comunista está de mãozinha dada com os radicais islâmicos. No Fórum Social Mundial já se observa isso funcionando. Quanto ao papel da América Latina, eu prefiro deixar isso para depois. Isso aí é outro bicho de sete cabeças, e eu precisaria de mais tempo para falar a respeito.

Aluno: Sobre o pensamento dialético, pensando também na aplicação que a teoria crítica marxista faz dele, o que distingue esse pensamento artificioso das práticas políticas que surgem no século XIX e que são aproveitadas pelos revolucionários russos, tomando, por exemplo, a Okhrana, a polícia czarista secreta, e seus métodos? O que distingue isso da simples artimanha política?

Olavo: É uma boa pergunta. Principalmente o intelectual de formação positivista costuma ver essas manobras, essa ambiguidade da estratégia dialética como sendo mera desonestidade, sacanagem, e pensa: "os caras são mentirosos, eles dizem uma coisa e fazem outra"... Como desonestidade ou como loucura, quer dizer: "eles não têm coerência nas suas ações" etc. Mas tudo isso é evidentemente um preconceito. Não se pode esquecer que o marxismo vem de uma origem intelectual muito nobre, que é a filosofia de Hegel, que não era nenhum cretino, embora fosse, no meu entender, um vigarista. Mas um vigarista de altíssimo nível, muito maior do que o Maquiavel. Ora, eles estavam realmente procurando uma ciência do movimento, uma ciência da transformação político-social. Mas não chegam [2:00] a alcançá-la. Sobretudo Karl Marx, porque parte de uma premissa materialista que é tão insustentável como o próprio marxismo. Entretanto, que existe esse movimento dialético, esse jogo das tensões e contradições na história, isso é a coisa mais óbvia do mundo. Na verdade, se você pensar a dialética, verá que já no tempo de Aristóteles ela não era bem uma lógica. Eu já escrevi sobre isso há muito tempo. Ela é a espécie de território intermediário entre a lógica e a psicologia. Aristóteles define a dialética como a lógica da descoberta. Ora, a descoberta não é um processo lógico, é um processo real que acontece na mente dos seres humanos. Então, se se pretende acompanhar a lógica da descoberta, será preciso acompanhar todas as sinuosidades, os imprevistos da mente humana. Felizmente, todo esse processo pode sempre ser reduzido a um mecanismo simples, que é o mecanismo de confronto de hipóteses, e Aristóteles desenvolve então a técnica para trabalhar-se o confronto de hipóteses. Ele procedia da seguinte maneira: pegava todas as opiniões que os antecessores tinham enunciado sobre algum tópico, e depois tratava de ver onde essas opiniões versavam sobre a mesma coisa, quer dizer, procedia de acordo com uma teoria dos conjuntos: um conjunto tem intercessão com o outro, tem união com o outro, e no fim aparecia um objeto mais ou menos na intercessão das várias perspectivas. Então, esse objeto adquiria como que um relevo, uma terceira dimensão, que transcendia as várias perspectivas tomadas isoladamente. Essa era uma boa maneira de trabalhar a coisa. A diferença entre a dialética de Aristóteles e a de Hegel é que em Hegel a dialética será vista não apenas como a arte da descoberta, mas como o próprio processo histórico. A dialética é a natureza íntima do próprio processo. Ora, até certo ponto isso está certo, desde que não se tome a dialética também em sentido mecânico: tese, antítese e síntese --- sempre. Às vezes não há síntese nenhuma, quando se entra na famosa dialética trágica, em que há uma oposição permanente. (Eu não sei se o termo "dialética trágica" é de Nietzsche ou se foi utilizado por alguém para descrever a dialética de Nietzsche.) A dialética é o estudo das oposições e tensões, um conhecimento absolutamente indispensável. Mas quando nos deparamos com a inteligência gigantesca de um escolástico como Santo Tomás de Aquino, vemos que isso era para ele brincadeira de criança. Quando se tem uma boa formação escolástica e não se é um típico escolástico brasileiro, que é um dogmático, quando não se é o Carlos Nougué, ou o Silveirinha, que pega lá o que Santo Tomás de Aquino disse e deduz logicamente daquilo, quando não se é um idiota que acha que tudo pode ser resolvido por dedução a partir dos textos de Santo Tomás de Aquino, mas, em vez disso, se é capaz de pegar o espírito verdadeiramente dialético e o espírito de busca da verdade que há em Santo Tomás, daí a dialética marxista não vai oferecer grandes dificuldades. Mas ela não é, com certeza, pura sacanagem. Ela é, por assim dizer, sacanagem, mas uma sacanagem que se aproxima muito da realidade do processo histórico, o qual também é sacanagem, se pensarmos bem, porque é a história do reino deste mundo, é a história do reino de Satanás.

Aluno: Na análise que o senhor vem fazendo nas duas últimas aulas ficaram bem assentados alguns dados: 1. o marxismo é infinitamente superior às demais linhas de investigação das ciências humanas hegemônicas, como o positivismo (...)

Olavo: Sim, mas não é superior a tudo, é superior ao positivismo.

Aluno: (...) 2. O positivismo e seus sucessores, como a filosofia analítica, são formas de pensar por assim dizer institucionalizáveis. 3. No critério de compreensão da realidade social, político-histórica, os marxistas são muito mais realistas e integram a práxis à teoria, o discurso do agente ao discurso científico, atendendo de certa forma àquela distinção básica aristotélico-platônica...

Olavo: O marxista conhece a distinção entre o discurso do agente e o discurso científico. Só que ele não toma essa distinção em termos estáticos. O discurso científico é também um discurso de agente num outro plano e o discurso do agente incorpora elementos científicos. Quer dizer, o agente tem de saber alguma coisa, e, geralmente, essa coisa ele recebeu do discurso científico. Então a passagem do discurso do agente para o discurso científico, e vice-versa, é um jogo dialético. Quer dizer, em que medida a teoria é uma obra da prática?, em que medida a prática é uma forma de teoria?, isso é uma coisa em que o marxista tem muita prática. Só que para pegar... por assim dizer, a beleza da coisa, você precisaria ter lido muito marxismo. Você tem de acompanhar a discussão interna. Comece com o livro do Kolakowski, Main currents of marxism. É um grande livro, e acho que tem tradução no Brasil. E o Kolakowski entende esse jogo dialético de uma maneira absolutamente maravilhosa. Ele não é um autor marxista, embora tenha sido no começo. É um sujeito altamente confiável, um autor anticomunista, que, em escala menor, fez com o positivismo o mesmo que fez com o marxismo, no grande tratado das suas correntes principais.

Aluno: (...) 4. O marxismo vale-se, de certa forma, dessa hegemonia do positivismo, que fornece, de um lado, uma falta de oposição estratégica...

Olavo: Mas é claro que eles usam! Eles sabem como um positivista pensa. Falar mal do positivismo é uma das ocupações principais do marxista, pelo menos desde o tempo em que Lênin escreveu Marxismo e empírio-criticismo. Empírio-criticismo é outro nome do positivismo. Não que seja um grande livro, ou que Lênin faça uma boa análise. Dentro da corrente marxista existe gente filosoficamente muito mais qualificada do que Lênin, como George Lukács, como Max Horkheimer, do livro sobre A razão e... Agora me esqueci do nome do livro. Mas é algo parecido com o título do livro de Lukács, Destruição da razão, e nele há um estudo sobre a razão e senso de autopreservação. É uma crítica profundíssima ao pensamento positivista. Então, o problema de todo esse confronto de guerra cultural é muito simples: "quem come quem". Quer dizer, o maior engole o menor. Aquele que tem a perspectiva mais abrangente, aquele que tem o controle do espaço aéreo mental engole o outro. É ainda o negócio do Sun-Tzu: você tem que compreender o adversário melhor do que ele se compreende a si mesmo. E nisso os marxistas têm dado um show.

Aluno: (...) E diante disso, como fazer prevalecer e retornar aos pressupostos da análise clássica, de tal forma que esta adquira maior credibilidade social e possa de alguma forma oferecer alguma resistência ao estado de coisas?

Olavo: Não é preciso fazer esforço nenhum. Se atentarmos à filosofia escolástica entendendo-a, não como um sistema filosófico, mas sim na sua inspiração, como um esforço de busca, veremos que ela já contém em si tudo isso. Agora, o que atrapalha é serem os textos escolásticos tão bem arrumadinhos, que a tentação de tomá-los como guiamento doutrinal é quase irresistível. Note-se o caso do magistério infalível. Vejamos, o papa é infalível. O papa é infalível em matéria de doutrina, ou seja, de teologia, e em matéria de moral fundamental, nem mesmo de moral especial. Quer dizer, em casos específicos, o papa não é infalível. Os doutores da Igreja também não são infalíveis em matérias específicas. Se você toma aquilo, digamos, como um guiamento doutrinal final --- pronto, você está lascado! Agora, se você... Veja o quanto de maravilhoso há em Santo Tomás de Aquino, na própria Suma Teológica, quanto desse jogo constante [2:10] das hipóteses contrárias e opostas. Ele está lidando com isso o tempo todo; só que o faz num plano de discussão lógica, mas, com um pouco de cabeça, você consegue aplicar isso ao processo histórico.

Aluno: Claro que no Curso Online de Filosofia, há muitas respostas para isso, porém a preocupação básica da filosofia clássica e a sua atitude fundamental, é aquela da percepção da realidade e da verdade. Parece-me que isso faz toda a diferença. Isso porque os marxistas trabalham muito bem a dialética dentro de uma postura relativista e não sobem ou nem concebem uma subida maior no nível de obtenção da verdade que confere à visão clássica a superioridade neste quesito. Como tirar proveito disto?

Olavo: Bem, você não pode esquecer que essa superioridade não é só no nível teórico-doutrinal, como se os marxistas estivessem nadando numa mistura confusa de teoria e prática e a filosofia clássica subisse a uma visão teórica mais abrangente e mais perfeita. Isso não é bem assim, porque a filosofia clássica não é pura teoria, ela é práxis também, é práxis da busca da sabedoria. Eu já expliquei isso anteriormente. Se você ouvir a minha gravação sobre o caso de Santo Anselmo, verá. Qual é a diferença de discussão do argumento Santo Anselmo? Bem, ou você discute o argumento e parte para a pura teoria, ou você tenta fazer o que Santo Anselmo recomendou, que é compreender o conceito, como era a compreensão do conceito de Deus. Não é uma compreensão teórica, é uma compreensão prática, porque é a busca de imaginar e conceber o que seriam as qualidades infinitas de Deus, como a bondade, a justiça, a onipotência etc. E isto é uma prática que você tem de fazer, se não você não entende. E esta prática vai modificá-lo. Na medida em que ela o modifica, você começa a entender o conceito num outro plano. Quer uma coisa... A própria noção de práxis. O que é o cristianismo? É uma doutrina, ou é uma prática? Ou é as duas coisas indissoluvelmente unidas? Então, quando você vai ver, todo o marxismo não é senão uma longínqua caricatura do que é a mensagem de Nosso Senhor Jesus Cristo. Note aquela máxima de Santo Agostinho: crede ut intelligas intellige ut credas (crê para entenderes, e entende para creres). O crer o que é? É uma atitude da vontade, é uma práxis, uma prática. Isso quer dizer, a intelecção e a fé estão unidas. E também esse é o sentido da práxis, ou seja, a verdade não chegará ao ser humano sob a forma doutrinal, nunca. Por quê? É a coisa mais simples do mundo! O que Jesus Cristo disse: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida". "Eu" é uma pessoa, a verdade é a pessoa, não uma doutrina. Então se conhece a verdade como se conhece uma pessoa, não como se conhece uma teoria. E o que é isto? Conhecer pessoa o que é? O que é práxis? É a fusão indissolúvel entre o conhecimento teorético e o da ação.

Transcrição: Vicente Pessôa e Antonia Javiera Cabrera Muñoz

Revisão: Alexandre Muller Ribeiro

Footnotes

  1. Ludwig von Mises, na década de vinte, já havia demonstrado essa inviabilidade. E, de fato, a dialética pode conduzir o processo histórico, mas não há dialética que ponha dinheiro no seu bolso; no âmbito da economia, tudo funciona de acordo com a matemática. No setor da economia, a racionalidade positivista funciona muito bem. Porém, é preciso dizer que é assim pelo menos no setor da indústria, pois na área de investimento já entra um elemento subjetivo que funciona dialeticamente, e está aí o George Soros que não me deixa mentir, ele que às vezes investe precisamente nas empresas e ações que pretende desgraçar, mostrando que sabe mesmo dialética.