Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula Nº 143
25 de fevereiro de 2013
Boa noite a todos, sejam bem-vindos.
Eu queria hoje continuar um pouco com o tema que foi tocado na aula passada, que é o da extensão das ciências a todos os campos da vida social. Esta idéia aparece como um vago projeto logo no início da modernidade, mas assume o seu perfil definitivo no século XVIII, durante o chamado Iluminismo, e também na fundação dos estados democráticos constitucionais modernos. Uma das bases da formação desse estado é a idéia de que ele permaneceria neutro, acima das discussões ideológicas e das questões de valores, ao passo que a livre discussão dentro da sociedade ― alimentada pela pesquisa científica e pela atividade universitária, pela mídia etc. ―, faria com que a disputa das idéias no campo social imitasse, mais ou menos, o processo da investigação científica, ou seja, a confrontação de hipóteses que no fim leva, teoricamente, às conclusões mais razoáveis.
O processo da investigação científica é essencialmente uma confrontação de hipóteses com os dados da experiência e com a lógica interna das proposições de modo que, aos poucos, as proposições mais inviáveis vão sendo rejeitadas e o que sobra no fim é, teoricamente, se não o mais verdadeiro, pelo menos o dito mais válido ou mais apropriado. Com o tempo, as pretensões do conhecimento científico foram se tornando cada vez mais modestas até que se chega a propostas como as de Karl Popper, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend ― o mais radical de todos ―, para os quais propriamente não existe uma verdade científica; existem apenas essas propostas que são adequadas ao nível atual das investigações, podendo ser impugnadas no dia seguinte.
Curiosamente, essa progressiva redução das presunções do conhecimento científico é acompanhada por uma extensão do poder da ciência sobre a sociedade: quanto mais modesta a ciência se torna internamente, maior a sua autoridade sobre todo o campo social. Isso também acontece em função do progresso extraordinário dos meios de investigação científica, da criação de novas instituições, do encaminhamento de verbas cada vez mais gigantescas para as instituições universitárias de pesquisa e a formação de uma rede profissional que hoje cobre praticamente o mundo inteiro. Eu acho que não existe nenhum país do mundo, por mais atrasado que seja, que não tenha o seu establishment científico em permanente contato com os seus equivalentes das nações mais prósperas e avançadas.
Hoje, a rede de informações científicas também é mundial. Nós podemos dizer que isso já tinha sido alcançado mais ou menos por volta dos anos 50, mas depois, com o progresso dos meios de comunicação e, sobretudo, com a internet, nós podemos dizer que a informação científica se tornou praticamente simultânea: tão logo um trabalho é publicado, em qualquer revista acadêmica ― sei lá, da Zâmbia ― imediatamente ele é indexado. No mínimo, no mínimo, se ele não for reproduzido, é indexado em vários sites científicos da internet, sites de bibliografia científica, e colocado à disposição dos pesquisadores de todo o mundo através, se não do download direto, pelo menos através da rede mundial de bibliotecas. Você entra em qualquer biblioteca do mundo e, através dela, solicita qualquer publicação de qualquer outro país.
Até certo ponto, a própria barreira das línguas é transposta aí desde que exista uma obrigação regulamentar de que todo trabalho científico publique pelo menos um resumo no inglês, que é o que o grego foi na Antiguidade ou o latim foi na Idade Média: o idioma internacional. Então, a informação realmente se tornou simultânea. Na mesma medida em que se torna simultânea, se torna inabarcável de algum modo, tanto que, quando você procura dados sobre alguma questão importante e que imagina que deva ter chamado a atenção de muita gente, às vezes a dificuldade é extraordinária. Mesmo nessas condições quase ideais da pesquisa científica hoje em dia, você tem lapsos.
Mas eu estou descrevendo essa situação apenas para dar idéia de que a proposta Iluminista, de fazer do debate social, do debate público, uma espécie de imitação macroscópica do processo da investigação científica e da confrontação das hipóteses, ela por si desenvolveu um conjunto de meios materiais para tornar isso viável. Esses meios materiais estão sendo a rede das instituições universitárias de pesquisa, a bibliografia internacional, sem contar o sistema de permanente funcionamento de congressos e discussões científicas. Não se passa um dia sem que centenas ou milhares de profissionais acadêmicos se desloquem de um lugar para outro para participar de congressos, conferências etc. Então, você tem uma proximidade física também, facilitada pelo progresso dos meios de transporte. Além da facilidade física, você tem a facilidade da bibliografia e a facilidade do acesso à informação científica em todos os lugares. Este mesmo processo que eu estou descrevendo se aplica ipsis litteris ao campo da filosofia. Por volta dos anos 40 ou 50, você já tinha bibliografias filosóficas internacionais enormemente completas. Eram publicações monstruosas em que qualquer trabalho científico publicado ― não só na Zâmbia, como até na USP ― estava indexado, por mais insignificante e idiota que fosse, estava no índice.
[interrupção da aula]
Tudo isto só foi possível na medida em que as sociedades mais avançadas, mais ricas do ocidente apostaram na hipótese iluminista [0:10] e essa hipótese tem dois andares: por um lado você tem a discussão científica propriamente dita e, em cima dela, a discussão pública, que, teoricamente, se pauta pelos mesmos critérios de veracidade e adequação da discussão científica e que a imita na esperança de que do livre confronto das opiniões acabará por prevalecer, no fim das contas, a razão. A esperança que aí está depositada implicava a expectativa de que o poder dos mitos, das crendices e do irracional sobre a sociedade seria, ao longo do tempo, atenuado, diminuído até desaparecer por completo e, de certo modo, a vitória da verdade estaria, mais dia menos dia, assegurada pelo próprio desenrolar do debate democrático.
O modelo da sociedade é a própria natureza íntima do pensamento iluminista, o qual modela e inspira a formação de tantos estados modernos. O advento da República Francesa, da República Americana depois foi imitado em outros lugares; na América Latina toda foi imitado e acabou por prevalecer e, nas últimas décadas, por se impor ao mundo todo como o único modelo viável. Até as propostas de regime ditatorial ou totalitário, que hoje nos parecem tão monstruosas e inaceitáveis ao ponto de que, quem quer que se apresente em público defendendo-as, será imediatamente considerado um maluco, um criminoso.
Você não pode se esquecer de que, estas propostas, durante os anos 20 e 30 do século XX, eram discutidas publicamente como coisas perfeitamente razoáveis e viáveis em função, sobretudo, da crise econômica das democracias. Quando o capitalismo democrático mostrou certa fragilidade, sobretudo com a queda da bolsa em 1929, de repente, a idéia de que uma centralização brutal do poder poderia resolver os problemas, pareceu uma coisa bastante razoável naquele momento. O número de intelectuais de primeiro plano que então apareceram defendendo as propostas da Itália, da Alemanha ― do fascismo, do nazismo ―, outros defendendo o socialismo, era um negócio imenso.
O socialismo ainda tem defensores hoje e, nos últimos anos, aconteceu este fenômeno extraordinário que é o retorno da proposta autoritária explícita na Rússia, através do Alexandre Duguin e do Vladimir Putin. Eles não fazem a menor questão de fingir que a proposta deles é democrática ― é uma proposta autoritária mesmo, centralizadora mesmo! E eles defendem isso com a mesma tranqüilidade com que, na década de 20 e 30, tantos intelectuais europeus defendiam o fascismo ou o nazismo. Note bem que, nessa altura, no começo, ninguém tinha idéia da imensidão do estrago que o nazismo iria fazer, e o estrago feito pelo socialismo só se tornou público ainda muito mais tarde. Foi depois da guerra que os crimes do socialismo como regime genocida se tornaram conhecidos, sobretudo a partir de 56, com o famoso discurso de Nikita Khrushchov sobre os crimes de Stalin que, possivelmente, naquele momento, até para aquela população intelectual esquerdista, soou como uma coisa inverossímil.
Eu tenho até um depoimento pessoal do Paulo Mercadante que, na época, era militante comunista e estava em Paris, onde havia um encontro na casa do Louis Aragon, que era o poeta oficial do Partido Comunista francês, uma das grandes lideranças do comunismo francês.
Estavam lá reunidos um monte de intelectuais comunistas quando chegou a notícia do discurso do Khrushchov e a reação geral foi não acreditar, achar que aquilo era um golpe de propaganda da "mídia imperialista internacional": "Ah, esses imperialistas não têm mais o que inventar! Imagina se o Khrushchov ia dizer uma coisa dessas!". Eles estavam conversando e o Aragon não estava, mas chegou logo depois com informações frescas do Comitê Central e disse: "Companheiros, lamento informar, mas é verdade: o homem realmente disse estas coisas". Daí se seguiu uma série de crises no movimento comunista. O impacto da decepção foi tão forte que muitas pessoas tiveram crises nervosas. No Brasil, o Carlos Marighela foi internado, segundo um depoimento também do Paulo Mercadante, que é uma espécie de testemunha ocular da História e que era o melhor amigo do Carlos Marighela ― ele sabia tudo a respeito. Um bocado de gente saiu do Partido nessa ocasião; inclusive no Brasil, o próprio Paulo Mercadante e o Antônio Paim que depois foram formar o grupo liberal.
Todas estas defecções do Partido Comunista mostram como a divulgação dos crimes do comunismo pareceu num primeiro momento inverossímil, e num segundo momento, verossímil, verdadeiro, porém inaceitável. E quanto aos crimes do nazismo, estava claro que, durante a guerra, se falou muito disso. Você tinha a propaganda dos regimes inimigos contando tudo o que os nazistas faziam e até inventando alguma coisa a mais, como no caso do famoso massacre de Katyn, que foram os russos que fizeram e aquilo acabou no Tribunal de Nuremberg, lançado à conta dos nazistas; como se faltasse, como se tivesse escassez de crimes nazistas, os comunistas ainda inventaram mais alguns.
Mas, na década de 20 e 30, não havia acontecido absolutamente nada. O regime fascista na Itália, por exemplo, não parecia substancialmente pior do que qualquer outro regime no mundo e mesmo o de Hitler, nos seus primeiros anos, impressionou tanta gente boa. Na França, até mesmo Albert Rivaud, que era um nacionalista francês hidrofobicamente anti-alemão, reconheceu que a Alemanha estava progredindo e que o regime de Hitler tinha os seus méritos. Este era o teor da conversa nos anos 30. Nós não podemos imaginar a História retroativamente pelo que ficamos sabendo depois.
Você também não pode se esquecer de que o verdadeiro impacto dos crimes nazistas no mundo só veio, na verdade, no fim da guerra, quando os americanos entraram em alguns campos de concentração e filmaram as imagens dos prisioneiros, cada um pesando 22 Kg. Eram cadáveres ambulantes e, além disso, havia os sobreviventes e, ao lado deles, pilhas e pilhas e pilhas de cadáveres. Aquele negócio horroroso só apareceu em 1945 e, dentro da própria Alemanha, os oficiais americanos obrigavam os cidadãos alemães a ir até os campos de concentração para eles verem o que tinha acontecido e a maioria permanecia incrédula. O sujeito estava vendo a coisa e ficava louco, não acreditava no que estava vendo.
Por isto mesmo, para nós pode ser difícil imaginar que coisas como as propostas fascista e nazista ou comunista parecessem tão razoáveis nos anos 20 e 30, mas isto foi antes de que os seus crimes fossem divulgados e a maioria até antes de que fossem praticados. Naquela época, parecia uma coisa razoável e, veja, a flexibilidade do debate democrático era tanta que até as propostas antidemocráticas eram livremente discutidas e se esperava que elas se integrassem normalmente no confronto racional das hipóteses até que as propostas mais razoáveis acabassem por prevalecer.
Muitos dos julgamentos que nós fazemos dos acontecimentos hoje em dia ainda se baseiam nessa expectativa. Quando, por exemplo, vemos alguma operação de políticos empenhados em esconder uma verdade do público, nós nos sentimos chocados. Por quê? Porque esperamos que a [0:20] democracia funcione como se fosse uma investigação científica. A hipótese da sociedade científica, a sociedade organizada com base na ciência, já está arraigada na própria expectativa e no julgamento que nós fazemos dos fatos. Quando aparece algum sujeito com alguma proposta, alguma ideologia que nos parece irracional, por que nos parece irracional? Porque nós a confrontamos com a expectativa da sociedade fundada na ciência.
Mas aí você tem vários problemas. O primeiro problema é que, se a sociedade, o debate público deve imitar a investigação científica, isto não é a mesma coisa e, sobretudo, não trabalha no mesmo sentido coerente com a idéia da administração científica da sociedade. Então, o sucesso da ciência na modernidade traz consigo estas duas idéias: de um lado, o debate público deve imitar o debate científico, ou seja, deve haver total liberdade de opinião e as idéias devem se confrontar diante do tribunal da razão -- essa é uma idéia; a outra idéia: a administração deve se tornar científica, ou seja, as medidas, decisões legislativas e administrativas não podem se basear no arbítrio dos legisladores ou do governante no momento, mas devem ter uma inspiração científica e deve ter fundamentos científicos. Isso é tão banal hoje em dia que você não vê um discurso de candidato que não exiba diante de você um monte de estatísticas, um monte de dados científicos para mostrar que a política dele tem um fundamento na realidade e que é aprovada por um critério científico.
Na medida em que a administração se torna científica, isso significa o seguinte: ela tem de possuir um controle maior dos dados da situação. Ela não pode tomar decisões a esmo, tem de ter as informações corretas, as quais são colhidas por meio científico e são unificadas e centralizadas, tabuladas e comparadas para poder ser entregues ao administrador de modo que ele possa decidir com base numa visão real das coisas. Mas, se a informação científica é centralizada no governo, as decisões dele, sendo baseadas em conhecimentos científicos, adquirem, por sua vez, uma autoridade que não tinham antes.
Por exemplo, quando o governo decreta que a população tem de tomar uma vacina contra determinada doença. Ele tem dados ― ou diz que tem, pelo menos ― que sustentam a crença de que existe uma epidemia disto ou daquilo. Diz que aquilo representa um risco de saúde pública x ou y e de que se não vacinar a população, haverá um grande risco para todos. Então, imediatamente ele decreta que a vacina é obrigatória. No momento em que aquele dado científico, aquela informação científica fundamenta uma lei, acabou a discussão. Claro que a lei pode ser reposta em discussão no Parlamento, mas enquanto ela não for revogada, é obrigatória e imposta com todo o poder da administração pública, da polícia e dos tribunais.
Você tem aí um duplo movimento: por um lado a discussão pública, que se torna cada vez mais aberta, democrática, de modo que as idéias concorram umas com as outras como se fosse uma discussão científica. Por outro lado, a centralização do poder nas mãos de uma administração estatal que traz agora a chancela da autoridade científica e que, por isso mesmo, pode cada vez menos ser contestada. Esses dois processos contradizem-se um ao outro, evidentemente! Ambos saem da idéia iluminista de basear a sociedade como se ela fosse uma imitação da classe científica.
Você não pode se esquecer de que, de dentro do próprio processo da Revolução Francesa saem as propostas mais radicalmente democráticas, como sai também a proposta nitidamente, explicitamente autoritária de Augusto Comte ― do positivismo ― que dizia praticamente que a política tinha de ser abolida e trocada por uma tecnocracia, ou seja, o governo se cercaria dos melhores conhecedores de todos os ramos da atividade social e o que eles decidissem estava decidido. Daí para diante, a sociedade seria administrada como se fosse uma empresa.
Essas duas tendências opostas, democracia e tecnocracia, ambas são inspiradas na mesma mentalidade científica do Iluminismo. Este é o primeiro problema que surge. O segundo problema, que só veio a se manifestar com mais clareza nos últimos quarenta anos, é que o debate público não parece realmente baseado numa livre circulação de informações, mas em tentativas cada vez mais ousadas e cada vez mais bem-sucedidas de controlar o fluxo das informações. Porque, se existe uma lei histórica comprovada é que a difusão dos fatos provoca novos fatos.
Quando um determinado acontecimento chega ao conhecimento de determinadas pessoas, essas pessoas reagem, ou seja, você tem um fato, tem a difusão de um fato e tem um terceiro fato que é provocado pela difusão. Então, em que medida a difusão, o efeito da difusão dos fatos pode ser calculado de antemão? Este é um problema que já foi colocado pelo menos desde a década de 30, o problema do controle das informações. E se você pode prever com antecedência as reações que serão suscitadas ante a divulgação de determinados fatos, você pode, evidentemente, modelar a sua divulgação de modo a provocar determinadas reações que são desejadas. Do problema da divulgação, passa-se para o problema do planejamento e da chamada engenharia social, ou engenharia comportamental. Estudos profundíssimos de engenharia comportamental já existem, pelo menos -- no mínimo -- desde a década de 40, na Inglaterra, no famoso Instituto Tavistock, presidido por Kurt Lewin, que era um psicólogo formado na mentalidade da escola analítica.
Portanto, já não temos duas linhas causais -- de um lado, a evolução da democracia com base no debate científico e, do outro, a evolução da tecnocracia com base nas conclusões científicas ― e sim três. Nós já temos uma espécie de tentativa de misturar ou de fundir esses dois processos, criando um terceiro, que é o controle do debate, isso já por meios cientificamente avançadíssimos e que se tornaram ainda mais eficientes [0:30] durante a Segunda Guerra Mundial, quando a necessidade de preparar, adestrar e disciplinar as populações para a guerra fez com que a ciência da propaganda avançasse muito naquele período. Isso quer dizer que certas investigações que já vinham antes se processando de maneira mais ou menos discreta aqui ou ali em institutos de pesquisa psicológica na Europa e nos Estados Unidos de repente foram aproveitados, foram retirados da pura bibliografia científica e postos a trabalhar na administração pública. Por exemplo, a famosa técnica da estimulação subliminar, sobre a qual até hoje não se tem um controle preciso de quanto isto é usado por governos, por grandes grupos econômicos ou por partidos políticos. Não há nenhum órgão encarregado de fiscalizar e de controlar o uso desses instrumentos.
No meu livro O Jardim das Aflições, dediquei todo um capítulo a algumas das técnicas que se disseminaram a partir da Segunda Guerra, como por exemplo, a programação neurolingüística, cujo uso hoje está disseminado por toda a sociedade e nós não temos a menor idéia de em que medida isso tem influenciado o comportamento das multidões e o rumo geral das coisas na política.
Em terceiro lugar, você ainda tem outro fator, que é a organização cada vez mais intensa e mais científica dos grupos de pressão. Por exemplo, à medida que determinadas profissões se desenvolvem e certos interesses econômicos também se intensificam, se formam naturalmente grupos de pressão incumbidos de influenciar o Poder Legislativo e as administrações federais e estaduais nas várias nações para promover a adoção de legislações que sejam favoráveis a esses grupos. Isso, aqui nos Estados Unidos, se chama lobby. O lobby nos Estados Unidos é uma atividade perfeitamente legal. Aqui você tem uma rua inteira em Washington, que é a rua K ― K Street ―, que é a rua dos lobistas. Você tem só escritório de lobista para tudo quanto é lado, ou seja, gente que vive de defender os interesses de determinados grupos perante o Parlamento. O lobismo se tornou por sua vez uma profissão e uma profissão também altamente científica. O lobista hoje não vai apostar na sua simples influência pessoal, na sua simples simpatia ou no poder das propinas. Tudo isso está calculado: todos os políticos já estão fichados, você já sabe onde eles podem ser pressionados, onde eles podem ser vulneráveis a isto ou àquilo.
Então, essa influência, o tráfico de influência se tornou uma atividade também científica e, alguns dos grupos interessados nisso estão ainda mais interessados pelo fato de que não são grupos economicamente produtivos e dependem, por sua vez, de verbas estatais ou privadas, de doações estatais ou privadas. E dentre as classes que se incluem nisso, a classe dos pesquisadores científicos é certamente a primeira. Claro, uma pesquisa científica pode, a longo prazo, render muito dinheiro, mas isso leva muito tempo. Um sujeito pode ficar quarenta anos pesquisando uma coisa que depois se transforma num produto e dá um dinheirão. Mas do que ele vai viver durante os quarenta anos? Então, a profissão científica depende eminentemente de doações de verbas ou de grandes grupos econômicos ou de grandes fundações ou, ainda, de verbas estatais.
E como vai ser a distribuição dessas verbas? Nós vamos deixar que tudo aconteça, assim, a esmo, que os políticos e os empresários distribuam a verba conforme a cabeça deles? Não! Isso também tem de ser organizado cientificamente. Isso quer dizer que os grupos de pressão organizados para direcionar as verbas de pesquisa também operam cientificamente, buscando obter um controle cada vez mais aprimorado das decisões governamentais e das decisões dos grandes grupos econômicos que direcionam as verbas para cá ou para lá.
Aos poucos, nós estamos indo cada vez mais longe daquele esquema simplório do Iluminismo, onde a luta das idéias e a luta das correntes políticas simulava uma confrontação dialética entre cientistas -- todos empenhados honestamente na busca da verdade e medindo as várias propostas e hipóteses com total objetividade e isenção --, de modo que o esquema todo poderia ser facilmente representado por um esquema do paralelogramo de forças: um vetor aqui, outro vetor ali, no fim você tem uma resultante. Esta era a imagem simplória! Mesmo dentro desse esquema a coisa não é tão simplória, porque quantas correntes de opinião existem? São muitas. Então, diagramar isto sob a forma de um paralelogramo de forças daria algum trabalho, mas, no fim das contas, é um esquema simples.
Este paralelogramo de forças é baseado na idéia de você tomar as várias propostas, as várias idéias políticas como se fossem vetores e, do confronto dos vários vetores vai sair uma resultante. Qualquer aluno de ginásio sabe fazer um paralelogramo de forças, cuja imagem ainda está no fundo da mente de muitas pessoas quando examinam o debate público. Por exemplo, o que é uma soma de votos no Parlamento? Das várias propostas em concorrência, se perfilam algumas mais poderosas e do confronto delas sai uma votação e tem uma resultante. Só que isto só descreve a superfície, a casca do processo social. Por baixo desse paralelogramo de forças, você tem inúmeras outras forças que não podem ser representadas num plano, porque são forças de outra natureza.
Por exemplo, você tem aqui uma confrontação entre várias propostas e, por baixo disto, das propostas, você tem uma confrontação entre diversas forças de influência política, de pressão ou até de ameaça. Se você diagrama cada corrente de opinião como se fosse um vetor, uma ameaça física, por exemplo, não é um vetor. Ela não pode entrar nesse mesmo diagrama, seria preciso fazer um diagrama já não no plano, porém no espaço, um diagrama tridimensional. Claro que você pode complicar esses diagramas formidavelmente usando, por exemplo, os recursos de um setor avançadíssimo das matemáticas que é a topologia, que representa esses processos complexos por uma espécie de diagrama espacial, mas, à medida que essas diferentes forças vão entrando em ação, vamos nos afastando cada vez mais daquele modelo simplório da concorrência democrática, modelo que ainda está presente no julgamento moral que as pessoas fazem, ou seja, elas julgam como se o processo político e o debate público hoje fosse, de fato, aquilo que os iluministas esperavam que fosse, embora sabendo que não é isso na realidade. Então, você tem um critério de descrição da realidade e outro critério completamente diferente para o julgamento moral das várias condutas e dos resultados. Você sabe que esta moral está desligada da situação de fato, mas você não tem outra, então, você continua usando a mesma.
Isso é uma coisa que acontece inúmeras vezes na História. Você tem um sistema moral, relativamente simples, fácil de aprender, que todo mundo mete aquilo na cabeça e continua julgando por aquele processo ainda quando a situação objetiva tenha introduzido tantas variáveis novas que não cabem naquele sistema. Quando isto acontece, você tem, então, outro processo, que é o da alienação entre o debate público e o estado real de coisas. Ou seja, na verdade, você tem um problema assim, assim, assim, assado, mas aquilo que se discute publicamente é outra coisa completamente diferente, porque você não tem às vezes os conceitos descritivos que lhe permitam passar da compreensão do estado de coisas real para o seu julgamento moral, você não tem a mediação entre uma coisa e outra. Isso acontece, hoje em dia, praticamente o tempo todo.
Estamos em uma situação cada vez mais complexa, onde se tem: (a) o problema da tecnocracia e da administração centralizada em concorrência com a concepção democrática do debate público; (b) os vários grupos de pressão; (c) o controle [0:40] da informação; (d) a complexa rede de relações entre a atividade científica e os seus financiadores; e, por fim, (e) o próprio poder da classe científica considerada não como produtora de conhecimento, mas como uma das forças sociais em jogo. Tudo isso vai complicando a coisa de tal maneira, sem contar um outro processo ainda, que é o da disseminação da mídia, no começo do século XIX, quando começam a aparecer jornais para tudo quanto é lado, e depois aparecem mais meios ainda, quando vem o rádio, a televisão, o cinema etc.
A este processo de expansão, segue-se um processo de concentração, sobretudo nos últimos cinquenta anos. Aqui nos Estados Unidos, por exemplo, existem seis grupos que dominam a mídia inteira. Isto quer dizer que, para você chegar a um consenso do que vai ser publicado e do que vai ser escondido, basta reunir seis pessoas e essas seis pessoas decidem: "É para dizer isto, mais isto, mais isto, mais isto, tais e quais e quais notícias estão excluídas". A coisa se tornou enormemente fácil.
Quando se tem um processo de expansão, tem automaticamente, como reação, um de centralização; e quando tem um de centralização, você tem automaticamente também, como reação, um de dissolução do esquema centralizado. A última dessas mais importantes dissoluções foi o advento da internet, que fura o processo de controle da mídia, mas que, por sua vez, é seguido de uma série de empreendimentos para o controle da própria internet, sem contar um processo espontâneo, que é o de que a proliferação de informações acima de certo nível as anula completamente. Vamos supor se, num debate, existem três ou quatro correntes. Você pode acompanhar o debate, mas se você tem mil e duzentas, não acompanha mais.
Na medida em que a internet coloca à disposição de qualquer cidadão, por mais burro que seja, os meios de opinar e de intervir num debate, então é claro que a confrontação de opiniões se torna inabarcável e, na medida em que se torna inabarcável, a multidão de opiniões é facilmente neutralizada e posta a serviço de duas ou três correntes majoritárias capazes de tirar proveito desse próprio caos, ou seja, o controle oficial da internet como hoje está se tentando, sobretudo por iniciativa da Rússia e da China, até certo ponto, ele não é sequer necessário, porque não é difícil você fazer uma engenharia do caos e tirar proveito, um proveito centralizador da própria multiplicidade de opiniões.
Não se trata só de opiniões, trata-se de multiplicidade de fontes de informação. Por exemplo, quais são as fontes que são confiáveis? O cidadão comum hoje não tem a menor condição de controlar isso aí. Por via das dúvidas, ele tem duas alternativas principais: ele acredita na grande mídia, que é, por assim dizer, o espaço público. Você não pode se esquecer de que a mídia se chama "mídia" porque ela está justamente no meio, ela é o ponto onde as informações convergem. Ou seja, onde todas as pessoas têm acesso ao mesmo bloco de informações e não só têm acesso ao mesmo bloco, como estão conscientes de que as outras também têm acesso ao mesmo bloco, possibilitando, então, a criação de um diálogo, de um intercâmbio. Aquilo que está fora da grande mídia não entra nesse espaço público e, portanto, mesmo o sujeito que tenha acesso às informações, não sabe se os outros têm acesso às mesmas informações, então isso não permite fundamentar um debate público. Portanto, o debate se fragmenta em milhões de pequenos debates entre círculos de quase iniciados, alguns que estão lidando com informações reais e de primeira mão, e outros que estão lidando com mitos e lendas absolutamente fantásticos.
A imagem da democracia como um debate público racional já foi para as cucuias há muito tempo. O tal debate público se tornou uma coisa absolutamente caótica e só controlável desde muito de cima e para fins que não têm nada a ver com a busca da verdade, são fins que têm a ver com a criação e manutenção de certos poderes ainda que na base de uma mentira organizada em escala de massas.
Esta é a situação real na qual nós nos encontramos todos os dias. Sempre que você abre um jornal, ou liga o seu computador para ver a internet, você já está no meio desta confusão. Isso coloca para nós concretamente -- eu e os alunos desse curso --, o problema da informação correta. Primeiro, quais são as fontes confiáveis? Existem certos critérios que esses, sim, são científicos e que são, por assim dizer, inescapáveis. Um deles é o de você dar uma confiabilidade maior à informação direta do que à informação indireta. Então, você precisa lidar, na medida do possível, com documentos de fonte primária. Se existiu, por exemplo, uma decisão governamental sobre isto ou aquilo, e surge na mídia e nos meios políticos um debate a respeito, a fonte primária o que é? É o texto mesmo do decreto, porque o decreto pode estar dizendo uma coisa e as pessoas estão discutindo outra, porque às vezes as partes fundamentais do decreto não são aquelas sobre as quais é mais interessante puxar a discussão.
O apelo aos documentos primários já cria para cada um de nós também certos problemas inabarcáveis. Por exemplo, se nós tomamos o Defense Authorization Act, passado pelo presidente Obama outro dia: o original tem mil e não sei quantas páginas. Então, eu quero um documento de fontes primárias e vou ler as mil e duzentas páginas. Para isso vou levar vários dias e, provavelmente, quando eu chegar à conclusão e emiti-la, as pessoas não vão acreditar mais em mim do que acreditam em qualquer palpiteiro que tenha inventado alguma coisa a respeito.
A situação real na qual nós nos encontramos é de um caos de informações que só adquire uma forma graças à intervenção de poderes interessados e no qual a possibilidade da busca da verdade é mínima e requer, por assim dizer, se nós realmente a quisermos, o melhor dos nossos esforços, sem contar as nossas próprias limitações pessoais nesse sentido. O que vem acontecendo nos últimos vinte ou trinta anos é que a negação sistemática das verdades mais provadas e bem provadas do universo se tornou norma.
No Brasil, vocês viveram a negação do Foro de São Paulo -- negação unânime por toda a grande mídia durante dezesseis anos. Ora, hoje nós sabemos que não existiu nenhum fato político nesses dezesseis anos mais importante e mais decisivo do que a formação do Foro de São Paulo, que hoje governa uma dúzia de nações no continente e que não tem nenhuma força que se oponha a ele. Mas se o noticiário político não trata do fato político mais importante, ele trata do quê? Ele trata de camuflagens e desconversas que, no fim das contas, são somente interessantes ao quê? Ao próprio poder político fundamental que, a essa altura, é o mais secreto de todos.
De certo modo, para nós, que nascemos no Brasil, que vivemos [0:50] no Brasil, essa experiência é uma coisa enormemente pedagógica, porque nos mostra em escala menor um processo que está acontecendo no mundo inteiro. Os jornais brasileiros e canais de televisão brasileiros não são nada no contexto do mundo. O que é a Folha de São Paulo comparada àqueles jornais japoneses que tiram dez milhões de exemplares ou comparada aqui à CNN? Não é nada. Mas nós tivemos em escala microscópica, em escala regional, uma escala quase municipal, um modelo de controle do fluxo de informações, um modelo relativamente fácil de você acompanhar e reconstituir a história dele. Na verdade, se você quiser, é só ler os meus artigos a respeito. Você vê a evolução desse controle, que vai desde a negação ostensiva até a admissão tardia e já inútil. A informação é liberada quando ela já não pode mais fazer mal aos interessados na manutenção do segredo, só restando, então -- depois que você confessa que aconteceu aquilo que você dizia que não estava acontecendo --, dizer: "Ah, aconteceu, mas não é tão importante assim ou não é tão ruim assim" e assim por diante.
Nós temos este modelo. Baseados nesse modelo, você pode, por exemplo, tentar estudar outro caso, que é esse dos documentos do Barack Obama, que é uma operação de ocultação imensamente mais vasta do que o que aconteceu no Brasil. No Brasil, são três ou quatro jornais que vendem um número irrisório de exemplares em comparação com o tamanho da população, mas aqui não, aqui você tem gigantes de mídia. Você tem um modelito pelo qual pode estudar um caso mais complexo, mas tem outros casos, que são ainda mais complexos do que esse.
Por exemplo, nos Estados Unidos, que é o país que se gaba de ter a maior informação científica do universo, se você procurar informações sobre mortes por iatrogenia, isto é, mortes por erros médicos, você não tem estatísticas confiáveis em parte alguma. E, note bem, isso não é uma operação que meia dúzia de políticos resolveu fazer para esconder o passado de um político, isto é uma ocultação geral que persiste ao longo de muitas décadas. Quem começou essa ocultação? Da onde ela veio? Ela resulta de uma decisão explícita, de uma política consciente de controle da opinião ou resulta de fatores sociológicos anônimos, ou seja, preconceitos, medos, interesses grupais etc., que no fim se ajuntam e produzem este resultado? Esta é a pergunta fundamental da história: as coisas aconteceram porque alguém quis que acontecesse ou aconteceram, como diria o Max Weber, por um resultado impremeditado da confluência de várias ações humanas inconexas? É a mesma coisa que perguntar: existem causas políticas ou causas sociológicas? Às vezes você pode passar dez, quinze ou vinte anos investigando um negócio desse e você não chega à conclusão. Você não sabe se houve uma ação premeditada ou uma confluência mais ou menos acidental e incontrolável de fatores anônimos.
Todos esses são os problemas que se colocam para nós na vida de todos os dias para simplesmente entendermos o que está acontecendo. Eu não acho que seja exagero nenhum eu dizer que o famoso debate democrático, ou seja, o controle do fluxo de acontecimentos por uma opinião pública madura e informada chegou a um estado de absoluta calamidade e esta calamidade significa automaticamente o estado calamitoso da própria democracia.
Mais ainda: trazendo esse mesmo conjunto de observações, tomando este panorama geral ― na escala macro, nós vimos, a coisa chega a ser assustadora ―, você vê essa multidão de informações circulando e, não tendo acesso às fontes, as fontes estão encobertas sob mil camadas de camuflagem. Às vezes, a camuflagem não é nem sequer premeditada, mas é resultado apenas de omissões e ações acidentais. Em suma, você vê que não dá para entender o que está acontecendo; e usando-o, por sua vez, como um modelo para o estudo de um setor mais limitado, já que ficamos assustados com o tamanho do caos incontrolável, vamos ver se nós reduzimos o campo de investigação para obter algum controle.
Suponha que você queira apenas saber o que está se passando no mundo em termos do debate filosófico. Você esquece os políticos, os grandes grupos econômicos e até o problema do financiamento das universidades e diz: "Bom, vamos ver só o que os filósofos estão discutindo e se nós conseguimos, com relação a um problema determinado, saber qual é o status quaestionis hoje". Você, com freqüência, verifica que até isto é impossível. Primeiro, pelo número excessivo de opiniões em circulação e, portanto, pelo caráter inabarcável da bibliografia. Claro que essa bibliografia, sempre que eu resolvi tirar a limpo um problema desses: "Não, peraí, aqui eu vou tomar um probleminha e vou me informar de tudo que os caras estão escrevendo a respeito". Eu fiz isso, por exemplo, no tempo em que eu estava preparando o meu livro sobre Aristóteles. A quantidade de trabalhos sobre Aristóteles que eu li, fichei ou pelo menos consultei é um negócio monstruoso e mesmo assim eu digo: "Olha, não cheguei a 1%". E ali, você já vê que a quantidade de pressupostos filosóficos, morais, sociais, políticos etc. que estão embutidos na discussão já torna a coisa quase inabarcável.
Vamos supor que eu quero ler um trabalho sobre o conceito aristotélico da alma, tomo a bibliografia, vejo uns duzentos trabalhos sobre isso e começo a lê-los. Você vê que cada um dos participantes do debate traz consigo uma multidão de pressupostos culturais, religiosos, morais etc. que não estão dentro do trabalho, que você tem de adivinhar por trás do texto. Quais são as crenças fundamentais deste indivíduo que dão base à análise específica que ele faz de Aristóteles e, em especial, deste probleminha dentro da filosofia de Aristóteles? Ora, se você não chega a captar estes pressupostos gerais por trás da análise que o sujeito está fazendo, simplesmente não a entende. Você entende apenas a letra do que ele está dizendo, mas não o intuito verdadeiro daquele trabalho e qual é o tipo de influência que ele está querendo exercer sobre os seus pares e, em última análise, a que tende esta coisa.
Se nós tomarmos, por exemplo, o famoso livro do Werner Jaeger sobre a evolução do pensamento aristotélico. O livro saiu na década de 20 e a tese dele era a seguinte: Aristóteles começou como um platônico de estrita observância, então era um filósofo quase místico, mas com o tempo ele se desiludiu de tudo isso e virou uma espécie de cientista experimental moderno. Foi assim ou não foi assim? Leia a bibliografia do livro, você toma o livro, tem uma tradução mexicana, facilmente acessível no Brasil, publicada [1:00] pelo Fondo de Cultura Económica. Dá uma olhada na bibliografia. Para eu testar se esse sujeito está falando a verdade ou não, precisaria, no mínimo, ler os textos de Aristóteles, de preferência no original, e mais esses trabalhos todos de pesquisa em que ele se baseou. Eu levaria uns dois anos só para tirar este ponto a limpo: Aristóteles mudou de idéia ou não mudou de idéia? Existe um sistema aristotélico ou dois? Se você quer saber, até hoje ninguém sabe quem morreu: eu garanto que foi ele, e ele garante que fui eu.
Eu prefiro acreditar na hipótese do Éric Weil, que não escreveu um livro inteiro sobre Aristóteles, mas escreveu um ensaio de vinte páginas que para mim vale mais até do que o livro do Jaeger. Ele diz o seguinte: "Qualquer que seja o caso, nós temos que partir da premissa de que Aristóteles foi um filósofo e de que um filósofo busca dar algum senso de integridade e de unidade às suas idéias. Em cada etapa da vida, se ele mudou de idéia, ele vai ter de reintegrar de alguma maneira as anteriores. Como você não vê Aristóteles em parte alguma negando explicitamente as suas crenças de início, o simples fato de que ele passou a investigar outras coisas não quer dizer que ele tenha mudado de idéia. Se quiser saber, essa hipótese não tem a mais mínima importância. Nós vamos continuar tratando a filosofia de Aristóteles como se ela fosse a filosofia de Aristóteles". Eu acho essa ainda a solução mais razoável, mas eu posso jurar por ela? Não, não posso. Nem eu posso, nem Éric Weil podia.
Mesmo dentro do campo estrito dos nossos interesses mais imediatos, nós estamos, como se diz, como cego em tiroteio e, para isso, nós temos de desenvolver um certo senso, um certo faro, que não é uma capacidade racional, por assim dizer, mas também não é irracional, que nos garanta, não a descoberta da verdade objetiva, certa e provada, mas garanta a integridade e honestidade da nossa própria busca. Quando não dá para você saber o que está se passando, pode, pelo menos, adquirir a certeza de que está fazendo o melhor possível e de que, se você se enganar, não vai se enganar em coisas que sejam básicas para a sua conduta na vida e para a integridade das suas atividades públicas. E eu acho que, para a formação do filósofo, é este o ponto que interessa.
As mesmas precauções metódicas que supostamente garantem a integridade da ciência, como por exemplo, a amplitude da informação, a idoneidade das fontes etc., se tornaram um pouco utópicas e o que continua sendo viável é a integridade e o senso de orientação pessoal do indivíduo. É a isto que nós devemos tender e hoje isto é mais necessário do que nunca, de modo que se você se enganar em algum ponto objetivo, possa ter pelo menos uma certeza razoável de que este engano objetivo não falsifica a sua atitude pessoal e subjetiva, mas, até a valoriza por um erro acidental que não compromete a integridade essencial da sua atitude.
E, neste sentido, tudo o que eu disse na outra aula sobre a formação do filósofo se revela ainda mais importante hoje em dia do que foi no tempo do próprio Sócrates. Porque, o que acontecia entre Sócrates e os seus interlocutores? Cada um deles era, de certo modo, o conhecedor de alguma coisa, diríamos hoje, um especialista. Isto é um artista, especialista em arte, você tem um comerciante, especializado no comércio, tem um político especializado na política, mas Sócrates não era especialista em coisa nenhuma. E cada um deles era então portador de uma determinada ciência.
O que Sócrates opunha a esta ciência? Uma outra ciência? Não! Ele opunha apenas a integridade da sua busca pessoal, de modo que, mesmo que ele estivesse errado num ponto ou no outro da verdade objetiva, a diferença entre ele e os outros ainda continuava imensamente a favor dele, porque eles às vezes tinham algumas verdades objetivas, mas fundadas na falsidade essencial da sua postura subjetiva, porque eles estavam representando papéis sociais e repetindo discursos grupais ou discursos coletivos. Na maior parte dos casos, eles não sabiam do que estavam falando e Sócrates sempre sabia. Quando ele diz aquele negócio: "Eu só sei que nada sei", o que ele está fazendo? Os outros sabem algo a respeito das coisas, sabem algo a respeito da ciência, sabem algo a respeito da arte, sabem algo a respeito da religião, sabem algo a respeito da política, mas Sócrates sabe a respeito dele mesmo, e aí ele está num terreno onde a sua segurança é máxima. Ou seja: "Eu sei o estado presente dos meus conhecimentos e a medida presente da minha ignorância, eu sei o que me falta saber para concluir sobre isso, sobre aquilo, sobre aquilo, sobre aquilo. De certo modo, eu tenho controle da minha ignorância". É o que eu chamei numa aula já muito antiga ― Inteligência, verdade, certeza ― o mapa da ignorância. Sócrates tinha o mapa da sua ignorância e, portanto, ele tinha o controle do que estava dizendo, ao passo que os outros não tinham.
Então, é a busca desta técnica interior que é, no meu modesto entender -- ou desentender --, a função central do ensino da filosofia hoje, se ele pretende ter alguma utilidade além do mero exercício de uma profissão que você pode exercer, na verdade, sem entender coisa nenhuma de filosofia. Porque o doutor Emir Sader não é diretor de um Departamento de Filosofia? O seu Quartim de Moraes também não é? O Safatle também não é professor? A ignorância total do assunto não é obstáculo algum ao exercício da filosofia no sentido profissional, mas se nós quisermos exercê-la como uma busca de orientação efetiva, é na técnica subjetiva que nós devemos nos esforçar mais.
Quando você está atento a esta necessidade, pode às vezes olhar certos debates profissionais entre filósofos com um senso de estranheza verdadeiramente socrático e ter, pelo menos por instantes, o sentimento de que você está no meio de um debate de loucos, porque, às vezes, os instrumentos filológicos, lingüísticos, históricos e lógicos que as pessoas usam nesses debates são de um tal requinte que, para a aquisição desses instrumentos técnicos, você empenha nisso toda a sua atenção, toda a sua energia e esquece às vezes de perguntar: "Mas do que nós estamos falando?".
Por exemplo, quando surgiu na página do Júlio Lemos aquele debate sobre os futuros contingentes. Começou como um debate sobre os futuros contingentes, depois mudou completamente de assunto, mas eu acabei nem dizendo o que eu achava do problema dos futuros contingentes. Como ele lançou um insulto a mim lá no meio, eu comecei a discutir o insulto e no fim os futuros contingentes viraram mais contingentes do que nunca, desapareceram. Mas o assunto não deixa de ser interessante. Supondo-se que eu fosse dar alguma opinião a respeito em vez de apenas defender a minha duvidosa honra no meio do debate. Porque eu defendo a minha honra, eu sempre o faço com um certo sentido de humor porque eu não me considero uma pessoa tão importante nem tão inatacável, mas às vezes é gostoso [1:10] você fazer de conta que está ofendido só para mostrar que o outro é mais palhaço ainda do que você.
Mas se fosse para falar alguma coisa sobre o problema dos futuros contingentes, eu diria o seguinte: faz 2.400 anos que os lógicos estão discutindo as proposições sobre o futuro contingente e chegaram a um desespero tal nisto que, para tentar resolver o problema, eles tiveram que inventar outra lógica. Łukasiewicz inventou uma outra lógica, que ele chamava de lógica polivalente e, mesmo assim, não resolveu o problema.
Quem sabe -- essa é uma hipótese muito modesta -- que as proposições, isto é, as sentenças que você faz sobre os futuros contingentes, tenham pouco a ver com a realidade do tempo passado, presente, futuro? Por exemplo, uma coisa é você estudar o desenvolvimento real de um processo temporal qualquer, outra coisa é estudar a estrutura das relações entre proposições que você faz a respeito. O problema do futuro é um, o problema das proposições sobre o futuro é outro completamente diferente. Quando um futuro é contingente? Quando ele é imprevisível. Contingente quer dizer: pode ser de um jeito, pode ser do outro. Quando o futuro é contingente? Você quer saber? Na prática, é num número mínimo de casos. Em geral, o futuro já está determinado, porque, quando você fala "futuro", você quer dizer: "Quão futuro? Daqui a quanto tempo?". Ora, o que vai acontecer daqui a dois segundos é tão futuro quanto o que vai acontecer daqui a dois milênios ou dois trilhões de anos; logicamente falando, não há diferença nenhuma entre um e outro.
Isso quer dizer que, se você quiser estudar o problema do futuro, tem de começar, não por discutir a estrutura e a lógica das proposições a respeito do futuro, mas processos temporais reais que aconteçam dentro de uma medida controlável. Por exemplo, um sujeito, um bandido mirou na cabeça da vítima e disparou um tiro. No momento em que ele disparou um tiro, o projétil ainda não acertou a cabeça da pobre vítima. Mas vai acertar. Quando? No futuro. Vamos supor: a vítima está deitada e dormindo e o sujeito usou um fuzil com mira telescópica de uma distância, digamos, de vinte metros. Qual é a possibilidade de que isso não acerte? É mínima, tão mínima, que entraria naquilo que Leibniz chamaria infinitesimal: não precisa ser calculado. Se na hora em que o sujeito aperta o gatilho você diz: "Ih! O coitado está morto!", essa é uma proposição sobre o futuro contingente? Esta é uma proposição futura que já é verdadeira no instante em que você a emite.
Na prática, na vida real, nós descobrimos o seguinte: qualquer sentença que você diga, qualquer uma, por mais insignificante que seja, supõe uma infinidade de conhecimentos reais, substantivos que não fazem parte nem do conteúdo da proposição e nem das suas relações com outras proposições. Vamos supor o seguinte: eu entro num supermercado, o Wall Mart, pego meio quilo de salsicha, levo ao caixa, ponho na balança e faço para o caixa a seguinte expressão: "Hum?". Ele olha na caixa registradora, não fala nada e me aponta e de lá eu vejo -- suponha -- U$ 12,00. Também não digo nada, puxo U$ 12,00 da minha carteira, dou para ele, ele faz o pacote e eu vou embora. Não houve proposição alguma, ninguém disse absolutamente nada e, no entanto, está tudo absolutamente claro. Por quê? Porque esses gestos todos se baseiam no conhecimento de um contexto: eu sei o que é uma salsicha e ele também sabe. Se pedir para nós: "Olha, defina uma salsicha", eu digo: "Posso não saber definir, mas eu sei reconhecer uma quando a vejo. Se eu estou vendo uma galinha, eu sei que não é uma salsicha e vice-versa. Se eu vejo um pé de alface, eu sei que não é uma salsicha". Então, este é um conhecimento não-verbal que não tem como entrar na proposição lógica, mas que é o fundamento dela.
Eu não posso provar isso agora para vocês, talvez num outro dia eu tente provar, mas o essencial não é provar, o essencial é aludir à experiência que vocês podem reconhecer que toda, toda, toda a comunicação verbal humana, incluindo todas as proposições da lógica, se baseiam numa quantidade de conhecimento não-verbal inabarcável, que diz respeito ao ambiente real onde nós vivemos, que está pressuposto na mais mínima comunicação verbal ou na mais mínima proposição lógica.
O problema dos futuros contingentes é um dos inúmeros aspectos, como se diz, deste mundo que nos rodeia, e só se torna um problema de lógica porque nós desejamos encará-lo assim, mas não porque ele se apresente a nós como um problema de lógica. Nós o transformamos num problema de lógica, ou seja, transmutamos as várias situações esquemáticas e até imaginárias em proposições e daí as articulamos em proposições umas com as outras e tentamos fazer a lógica da coisa. Mas o problema do futuro contingente é um, e o problema das proposições sobre o futuro contingente é outro completamente diferente. O estudo do primeiro pode esclarecer a segunda, mas o da segunda não pode esclarecer o primeiro. Ou seja, se eu estudar toda a lógica das proposições sobre o futuro contingente, eu nada saberei sobre o futuro na realidade. Mas o que eu souber sobre o futuro na realidade tem uma influência tremenda no estudo da lógica, pelo seguinte: qualquer fato que eu observe na realidade, na experiência real, já constitui em princípio um exemplum in contrarium de qualquer proposição que o negue. Então, basta eu saber um fato que eu já conheço em princípio uma multidão de proposições que estão impugnadas e que eu não preciso estudar.
Eu estava vendo o livro do William Lane Craig sobre o debate dos futuros contingentes desde Aristóteles até Suárez. É um livro magistral do ponto-de-vista da erudição, porém, ao longo de toda essa discussão -- só vai até Suárez, filósofo, mais ou menos da Renascença, se prosseguisse daria mais dez livros --, você não vai encontrar um único estudo sobre a realidade dos processos temporais. Nada! Zero, zero, zero! Por exemplo, o problema da profecia. Na hora em que um profeta enuncia a profecia, supondo-se que ele seja um profeta realmente, ele está fazendo o quê? Ele está usando de uma informação privilegiada [1:20], ou não? Quem foi que disse aquilo para ele? Foi Deus. Então, é a fonte mais fidedigna e, pior, só contou para ele, não contou para nós. Em que medida o cumprimento da profecia pode ser dito contingente? Qualquer proposição futura enunciada com esse conhecimento de causas que já estão em ação não é contingente de maneira alguma. Quando, no momento em que o bandido puxa o gatilho, eu olho para a vítima e digo: "Coitado, está morto!", eu estou enunciando uma coisa tão certa quanto um profeta que, baseado na inside information recebida de Deus, diz que vai acontecer tal ou qual coisa.
As pessoas podem achar bonito discutir: "Ah, mas aqui você está pressupondo o determinismo e o determinismo entra em conflito com o livre-arbítrio". Eu falei: "Não! Quem disse para você que o problema de determinismo e livre-arbítrio pode ser logicamente levantado em sentido geral e universal?" Se você é um ser humano, você pode resolver o problema do determinismo e do livre-arbítrio? Você não pode em hipótese alguma! Isto é contraditório com a condição humana! Para eu saber se tudo está determinado ou indeterminado, precisaria ser eu o determinante ou o indeterminante, ou seja, a solução do problema do determinismo e livre-arbítrio pressuporia o conhecimento divino, portanto, essa não é uma questão razoável para você colocar. E, no entanto, quanta água não rolou, quanto papel não foi impresso para discutir esta questão?
Eu vou confessar uma coisa para vocês: a primeira vez que eu ouvi falar deste problema, eu falei: "Isto não faz sentido". Este problema só pode ser resolvido com relação a casos concretos limitados. Por exemplo, se o sujeito usando um fuzil de mira telescópica, mirando um coitado que está dormindo, parado a vinte metros, dispara o projétil, então está determinado que o fulano está morto. Agora, se um sujeito puxa de um revólver e dá um tiro em qualquer direção, está indeterminado se alguém vai morrer ou não e, no caso de morrer, quem morrerá. Vale mais a pena você tomar casos como este e fazer a descrição meticulosa do processo, a fenomenologia inteira do processo, para saber como funcionam os futuros determinados ou contingentes do que estudar toda a lógica das proposições futuras, porque, afinal de contas, a lógica das proposições não é o futuro, é apenas o que você diz a respeito. É lógico que, no que eu estou dizendo, eu também estou usando raciocínios lógicos, e, portanto, alguma lógica das proposições eu também estou usando, mas o foco da atenção não é ela, e sim o processo real.
Eu até hoje acho que as pessoas não prestaram muita atenção ao apelo do Edmund Husserl: "Pare de discutir proposições e comece a discutir coisas". Mas o que ele disse foi a coisa mais grave que se falou na filosofia do século XX. Qualquer processo real -- por mais simples que seja -- é mais rico, mais complexo e mais substantivo do que a lógica inteira.
Vamos tratar o problema do determinismo e livre-arbítrio: determinismo do quê? Determinismo em geral? Você quer dizer o seguinte: a realidade em geral pode estar toda determinada de antemão ou pode ser toda arbitrária de antemão? É isso que você quer dizer? Esta pergunta é de uma imbecilidade total, pelo simples fato de que a realidade se apresenta a você de maneira empírica e não como um código onde esteja determinado se vai haver determinação ou indeterminação. Isso quer dizer que, em qualquer evento da vida, do mais complexo ao simples, você vê uma complexa mescla de determinismo e indeterminismo. Você conhece algum caso onde esses dois elementos foram perfeitamente descritos com relação a um exemplo simples? Não, eu não conheço nenhum. Ou pode-se dizer como Ortega y Gasset: "Nunca se escreveu um livro que explicasse perfeitamente bem por que alguém fez alguma coisa". Esta, assim como a frase do Husserl ― "às coisas mesmas" ―, teve na minha cabeça um impacto tremendo quando eu a li pela primeira vez. Esta frase do Ortega y Gasset me causou arrepios, porque ela dá uma medida da nossa ignorância da realidade concreta e da nossa presunção de tudo resolver mediante análises lógicas hipotéticas.
Eu suporia, por exemplo, "Ah, nós queremos estudar o problema do futuro, então vamos estudar um caso de profecia" -- profecia que você sabia que foi realizada da maneira mais explícita, mais patente, mais acachapante do universo, como por exemplo, quando Nossa Senhora anuncia: "Olha, esta guerra vai acabar, mas vai vir outra e ela, poucos dias antes, será anunciada por um fenômeno estranho no céu". E batata! O céu de Paris ficou claro de noite e poucos dias depois a França foi invadida. Qual é a relação que tem? Qual é o mediador entre o anúncio da profecia e o seu cumprimento? Esse mediador é Deus. Só que aí você diz: "Não vale, ela está lidando com inside information". "Sim, mas a profecia, por natureza, é inside...". Só existem dois tipos de previsões: ou é inside information ou é chute, e se for chute, eu não preciso estudar porque o chute não deu certo, mas se é inside information, então, qual é o fator decisivo que determinou que aqueles acontecimentos sucedessem como profetizados?
Por exemplo, você chega ao hospital, tem uma curva da febre do cidadão. Ela subiu e agora está descendo. Você supõe que ela não vai subir no instante seguinte, a não ser que aconteça algo. Se não houver nada que a modifique, o quadro deve continuar assim, ou seja, tem algum conhecimento a respeito da força causante que está por baixo daquilo. Existe uma inside information assim como Nossa Senhora tinha uma inside information que o próprio Deus deu para ela.
O problema do determinismo e livre-arbítrio só pode ser resolvido com relação a casos concretos. Colocá-lo com relação a totalidades supõe que você tem o conhecimento da totalidade, o que é absurdo. Este problema tem de ser rejeitado com todas as nossas forças. Isto é uma pegadinha demoníaca e, no entanto, você pode preencher páginas e páginas de trabalhos acadêmicos a respeito da lógica do futuro contingente. E ainda tem gente, como o Júlio Lemos, que vai achar que isso é o suprassumo da seriedade. Diante disso, o que a gente pode fazer? Pode ficar consternado e entender por que, no fim das contas, ninguém fora do mundo acadêmico liga para esses estudos. Porque é o tal negócio, é a experiência do Franz Rosenzweig, o filósofo judeu, na Primeira Guerra Mundial.
Ele lá numa trincheira, levando bala de tudo quanto é lado, era um estudante de filosofia e diz: "Bom, e agora? Para que me serve toda aquela filosofia que eu estudei? O que ela me responde a respeito da morte [1:30], da verdadeira responsabilidade humana? Nada! Aquilo tudo é uma brincadeira".
O confronto da filosofia com a realidade sempre termina em favor da realidade e contra a filosofia. É o negócio do Shakespeare: "Há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia". Mas se a filosofia é vã, para que você vai se dedicar a ela? Só por uma questão de profissão, por uma questão de prestígio entre seus pares ou por uma questão de vaidade, e era exatamente contra esse tipo de filosofia que Sócrates andava de um lado para outro fazendo perguntas e mostrando que os caras não sabiam absolutamente nada.
Então, existe uma metodologia da filosofia? Existe: está todinha em Sócrates. Entre Sócrates e Platão já estava tudo resolvido. A filosofia é o adestramento do indivíduo para a busca da verdade, sabendo que ele não vai se tornar dominador da verdade no sentido objetivo da coisa, ele pode se tornar o dominador da autenticidade, da genuinidade da sua busca. A verdade da filosofia é a verdade da própria busca filosófica e, não necessariamente, a verdade das suas conclusões. Vamos fazer uma pausa, daqui a pouco nós voltamos.
[interrupção da aula]
Vamos lá! Aqui tem uma pergunta muito interessante de um aluno sobre o fenômeno do déjà-vu, mas eu não vou responder a pergunta dele por dois motivos: primeiro, eu conheço muito pouco a respeito, a única coisa que eu li, faz muitos anos, foi o trabalho do Henri Bergson a respeito, que eu sugiro que você leia; e, em segundo lugar, porque é um fenômeno que nunca aconteceu comigo. Eu não tenho a menor idéia do que seja, então, eu prefiro deixar entre parênteses. Déjà-vu é aquela coisa que você entra num lugar e teve a impressão de que já esteve lá, quando, na verdade, nunca esteve. Isso nunca me aconteceu. Vou deixar a sua pergunta entre parênteses até melhor ocasião.
Tem aqui outra pergunta muitíssimo interessante também.
Aluno: Ainda dentro do tema desenvolvido na aula 142, mais especificamente sobre a formação do spoudaios*, eu gostaria de saber como o indivíduo ainda em formação poderá conseguir fazer para si mesmo as perguntas certas para despertar o seu núcleo insubornável, de modo que, a partir daí, ele pudesse tomar um rumo na busca da verdade. Parece-me que, não havendo nenhum filósofo participando diretamente dos questionamentos do indivíduo -- o interrogatório socrático --, ele pode ir parar muito longe ou também ficar soterrado com milhões de perguntas impertinentes.*
Olavo: Isto, de fato, acontece, porém, nós não podemos nos esquecer de que a própria circunstância concreta em que vivemos nos coloca as perguntas. Não existe uma técnica para isso, mas quando um problema filosófico se apresenta a você, não deve aceitá-lo na primeira. Você deve primeiro esperar que ele prove que é um problema, que é importante e que merece a sua atenção. O melhor é esperar que a própria vida concreta coloque para você os problemas que de fato tem de resolver. As decisões morais que você tem de tomar na vida, as atitudes efetivas que tem de tomar perante isto ou aquilo. Você saber, às vezes, o que realmente pensa a respeito de tal situação, ou de tal pessoa, ou seja, impedir a invasão do cérebro por perguntas idiotas. É mais uma questão de você rejeitar perguntas do que de buscá-las. Eu acho que o artificialismo, a gratuidade, o desejo de brilhar academicamente, o desejo de parecer inteligente, tudo isso atrapalha demais e, às vezes, reflete uma espécie de falta de problemas reais ou uma falta de atenção para os problemas reais.
Isso aí eu aprendi logo no começo, graças ao Julián Marías e ao Ortega y Gasset. Depois confirmei de mil e uma outras fontes: qualquer problema que você tome, esse problema vem pela cultura filosófica, vem pela tradição filosófica ou pela tradição científica, ou pela História etc., mas entre este problema e você, existe uma certa distância. Por exemplo, vamos supor que está estudando, sei lá, o problema dos futuros contingentes. Comece pela seguinte coisa: de onde este problema apareceu? Ele apareceu na realidade para você? Ou foi uma formulação erudita, escolar que chegou até você e alguém está te interessando neste problema sem que ele tenha surgido da sua vida real. Se for assim, meu filho, já começou errado! Toma lá os interrogatórios de Sócrates, você vê que é sempre a situação concreta: ele sabe para quem está falando, conhece a vida das pessoas com quem ele está falando, ele sabe qual é a relação que ele tem com aquelas pessoas e está sempre falando de coisas que são da vida real daquele lugar, daquela cidade, daquela situação política. Nunca é um treco puramente abstrato; nunca é um interesse acadêmico ou um interesse "científico".
Este arraigamento na situação real é o que eu estava contando do impacto do Husserl. Eu comecei a estudar as Investigações Lógicas de Edmund Husserl desde muito cedo e, mais tarde, dei um curso sobre isso. Acho que esse curso está gravado, tem aí na internet. Na época, Husserl não havia formulado ainda a fenomenologia no seu formato final e estava apenas investigando a questão da natureza da lógica. Havia várias hipóteses em circulação e ele começa a investigar uma delas, que é o psicologismo, segundo o qual as leis da lógica são leis do pensamento, leis, por assim dizer, do cérebro humano e ele investiga isso a partir de todas as possibilidades que existem, ou seja, aquele problema para ele adquiriu uma tal realidade, e daí eu pensei: "Como é que ele fazia isto?" Simples: ele era um matemático de formação. A partir da matemática ele tinha começado o estudo de lógica e de repente perguntou: "O que é isto que eu estou fazendo?" Você vê que a profundidade e intensidade da investigação que ele faz são porque aquilo não era um problema teórico, era um problema real, ele queria entender o que estava fazendo enquanto professor de matemática e lógica. Não era um problema abstrato, era um problema de desorientação real, portanto, a busca real de uma orientação que é a própria natureza da filosofia.
Você vai ver que as grandes investigações filosóficas -- todas -- apareceram assim. Você lê Aristóteles; de onde Aristóteles tira os seus problemas? Você vê que quase 80% dos escritos de Aristóteles são escritos de ciências naturais e era dali que surgiam os problemas. Ele acumulava certos conhecimentos e via que não estava entendendo aquilo que ele mesmo estava fazendo. Você ter os dados, ter as informações é uma coisa, e você entender a verdadeira localização intelectual daquilo no conjunto, é outro problema completamente diverso.
Você não encontra um problema artificial em Aristóteles, todos são urgências da própria investigação científica e é por isso que funciona. A experiência de Platão é diferente. Platão não era um cientista natural, ele começa a carreira como um político. Você vê na Carta 7ª a descrição que ele faz da miséria, da corrupção política de Atenas e ele vendo que os melhores homens são sacrificados e que só carreiristas e vigaristas sobem na vida. Como ele era um homem de família rica, família nobre, então naturalmente destinado a uma carreira política, ele recebe esse problema na mão como um problema real que ele tinha de resolver: "O que fazer com o raio da pólis? Como fazer para tentar melhorar esta coisa?" Na hora em que ele fala "melhorar", sim, mas surge o problema: "Mas o que é o melhor? Eu por acaso conheço o Bem para ter uma receita pronta para dar para os outros? Não, também não conheço, então tem de resolver o problema do bem". E assim vai.
[1:40] Sem dúvida as três maiores inteligências do Ocidente foram Platão, Aristóteles e Leibniz. Os outros todos, os "sábios" da modernidade, comparados com Leibniz, são todos crianças, são amadores --, qual era a motivação dele? Era a crise da religião. Ele, desde jovem, sente a dor de ver a Igreja dividida pela Reforma Protestante. Ele é um cara de formação protestante, mas com uma influência católica tremenda e decide dedicar sua vida à união das Igrejas. E é em função da idéia da união das Igrejas que vai surgindo a idéia da harmonia universal, a idéia das mônadas ― toda a filosofia dele surge de uma urgência humana, não de uma mera curiosidade científica, era um problema real. Ele era um homem cristão e de bom coração que queria aliviar o sofrimento humano e é daí que surgem os problemas.
Pode investigar em todos os casos de uma filosofia que deu certo, que se realizou e que deu alguma coisa de grande para as gerações futuras, você vai observar que ela tem uma raiz na situação existencial imediata e uma pressão moral. Tudo que não nasce disso é futilidade. Então, está aí o critério das perguntas: não se trata de você encontrar novas perguntas, mas de você se livrar de um montão de perguntas artificiosas.
Tomemos esta questão de "problemas filosóficos". Eu também, desde muito cedo, entendi: não há problemas filosóficos, qualquer problema pode ser filosófico, desde que você o encare pelo ângulo filosófico. Digamos, uma questão de biologia pode ser uma questão filosófica, uma questão de religião pode ser uma questão filosófica, uma questão pessoal, como o famoso noivado fracassado de Soren Kierkegaard, vira um problema filosófico. Se existe uma coisa que eu odeio, que toda vez que eu escuto falar, eu viro o incrível Hulk, é o cara vir com uma lista de "questões filosóficas", "problemas filosóficos". Não há isso, isso é apenas um hábito. São problemas que algumas pessoas acharam importante e decidiram tratar deles. Por que eu tenho de tratar desses mesmos problemas? Só porque eles disseram que são problemas filosóficos?
Por exemplo, você vem aí com essa questão de determinismo e livre-arbítrio: esta questão para mim nunca chegou a entrar. Eu tenho uma rejeição orgânica por esta questão, porque se Deus não é capaz de harmonizar perfeitamente a total pré-cognição do que vai acontecer com a doação de uma total liberdade aos agentes, Ele não é Deus. Ele é Deus porque Ele é capaz de fazer agentes livres que vão fazer exatamente o que Ele sabe que eles vão fazer e isto é uma prerrogativa divina que nenhum ser humano pode ter. Portanto, o problema de determinismo e livre-arbítrio só existe para nós, e na medida em que ele existe para nós, não pode ser resolvido. Ele não é para ser resolvido. Eu acho que, se alguém resolver esta questão de determinismo e livre-arbítrio, acabaria o mundo na mesma hora, porque é como você pegar uma blusa de malha e começar a puxar o fio: puxa, puxa daqui a pouco a blusa não existe mais. O cara que resolvesse este problema, ele teria na mão a chave da onipotência divina. Então, por que você vai aceitar este problema? Só porque os outros discutiram e porque existe uma imensa bibliografia a respeito? Ora, existe uma bibliografia imensa a respeito da criação de galinhas: eu tenho de me interessar pela criação de galinhas só porque existe um monte de livros a respeito? Não faz o menor sentido.
Uma das vantagens que eu obtive do fato de fazer toda a minha carreira de estudos à margem da instituição universitária, e obtendo o meu sustento de outra profissão completamente diferente (eu me tornei jornalista aos dezessete anos e adorava esta profissão, não por causa do conteúdo dela, mas porque só trabalhava cinco horas por dia: "Está resolvido meu problema profissional, nunca mais vou sair daqui!" Eu tinha trabalhado como office-boy antes do primeiro emprego que obtive como jornalista. Fui fazer o teste para o jornal, passei e lembro-me até que, de repente, estava lá um jornalista. Eu perguntei: "Quanto é o salário?". A hora que me disseram o salário, eu caí de costas, falei: "Fiquei milionário!". Era dez vezes o que eu ganhava! Nunca esperava uma coisa dessa, então eu estava felicíssimo e nunca pensei em fazer uma carreira universitária, porque se você perguntasse para um professor universitário quanto eles ganhavam, ganhavam muito menos que eu, o que eu vou fazer lá? Uma das vantagens de ter feito essa carreira à margem de uma instituição universitária é que eu não tenho nada para provar para ninguém. Eu não tenho de ser aprovado por um comitê, por um chefe de departamento, não devo satisfação a essas pessoas.
Eu estou assim, vamos dizer, como um escritor livre, um pesquisador autônomo e escritor livre, eu escrevo o que eu quiser e digo o que eu quiser. Se você gostou, assiste às minhas aulas, lê meus textos, se você não gostou, o que eu posso fazer? Se o sujeito não gosta de mim, vou falar: "Olha, está tudo certo, porque eu também não gosto de você, por que você vai ter de gostar de mim?" Esse é um privilégio. Eu sei que não é todo mundo que pode ter esse privilégio, tem gente que já está metido na profissão de professor de filosofia. Cada um carrega a sua cruz, meu filho. Eu tenho os meus problemas, você tem os seus. Mas não deixe a sua formação íntima de filósofo ser afetada por isto. A conquista da sobrevivência profissional é uma coisa, a sua formação verdadeira, se ela tiver de acontecer um dia, vai ser pelo meio socrático e não tem outro. Porque, por baixo do esquema profissional, os grandes filósofos que participavam disso não seguiam a formação pelas vias profissionais, mas pela via socrática. Se você vê a vida de Schelling, por exemplo, que vida heróica de um homem que sacrificou a sua carreira em busca da verdade! Porque ele começou como professor de grande sucesso, depois foi mudando. Schelling tem quatro filosofias, ele criou quatro filosofias diferentes, quer dizer que toda hora mudava. Isso começou a afastar os alunos, mas ele continuou impávido colosso, buscando a verdade: "Se eu tenho alunos, muito bem; se eu não tenho, que se dane!" Então, ele estava seguindo a via de Sócrates e não a dos seus colegas de ofício.
Outro dia, eu estava lendo esse livro maravilhoso de Frank Tipler, The Physics of Christianity. Ele demonstra que o estado mais avançado da física hoje, repete tudo que estava escrito no Gênesis. E ele disse: "Olha, por causa de eu fazer isso, os caras diminuíram o meu salário na universidade em 40%! Mas quer saber? Que se dane! Eu estou aqui felicíssimo, porque eu descobri as coisas que eu queria, e se eu não estou dizendo o que eles querem, problema é deles." A liberdade, a autonomia, enquanto a gente ainda pode desfrutar disso na sociedade, isto é um bem preciosíssimo. Vale a pena você perder todos os empregos do mundo, vale a pena você ser mendigo para conservar a sua liberdade e a sua fidelidade a uma tradição filosófica que a profissão filosófica traiu e vendeu a preço vil.
O que nos interessa o que essas pessoas vão dizer? Eu vou perder meu sono por causa do que a Marilena Chauí disse, ou o Giannotti disse, ou o Paulo Arantes disse? Desculpe! Mesmo dentro da profissão filosófica, as pessoas sérias que têm lá, como o Alexandre Costa Leite ou Miguel Reale, sempre tiveram o maior apreço pelo meu trabalho e os outros não têm: mas o problema é deles! Quando eu morrer, são eles que vão me julgar? Eles que vão me mandar para o céu ou para o inferno? Não! O meu público é Deus. Eu estou fazendo as coisas para que Deus aprove. Se Ele aprovar, os outros que se danem! A questão das perguntas certas é essa.
Rapidamente respondendo aqui só para dar uma dica.
Aluno: Estive [1:50] lendo sua apostila sobre problemas de método nas ciências humanas e me ocorreu uma dúvida sobre a análise do discurso das mídias: o que o senhor acha da análise do discurso francesa, representada por Pêcheux, Foucault e Charaudeau?
Olavo: Eu acho tudo isso muito bom, mas muitíssimo incompleto. Falta muita coisa. Eu não posso te esclarecer agora qual é o ponto, prometo te dar uma aula sobre isso mais tarde, mas eu acho que, se você procurar direitinho nas minhas próprias apostilas, nas minhas próprias aulas, vai encontrar não um sistema, mas uma infinidade de dicas sobre a análise do discurso da mídia. Um ponto fundamental que esse pessoal às vezes esquece, é o seguinte: não existe análise do discurso fora da análise dos processos reais de ação que estão por trás disso. O discurso, afinal de contas, é só um pedaço da história. Quem são os agentes reais? Quem tem efetivamente o poder sobre os órgãos de mídia e quais são os seus objetivos?
Neste sentido, por exemplo, eu recomendaria muito mais um método como o do Wright Mills, o sociólogo esquerdista americano que escreveu A Elite do Poder e vários outros livros importantes, onde ele toma a expressão "poder" no seu sentido substantivo e não no sentido oficial, ou seja, poder para ele não é quem está no governo ou quem tem cargo. Ele toma o poder no sentido de possibilidade concreta de ação e, no sentido mais específico, de possibilidade real de determinar a ação dos outros e daí ele começa a ver quem tem efetivamente esse poder.
Às vezes, por exemplo, uma comunidade religiosa tem mais poder do que um partido político; um clube, às vezes tem mais poder do que o presidente da República. E ele começa a investigar essas várias agências do poder. Um estudo desse tipo com relação à mídia nunca foi feito, especialmente com relação à mídia brasileira. Quem manda realmente na mídia? Você usa expressões como "a família Marinho", ou "os Mesquita" ou "o Frias", mas isso são símbolos do poder e não descrições efetivas dos canais por onde se faz o poder. Para você saber quem manda de fato num jornal e quem determina o que vai sair ou não, é um estudo muito complicado. Mas, por exemplo, uma coisa eu asseguro para você, com quarenta anos de experiência no jornalismo brasileiro: qualquer redação tem poder infinitamente maior que o dono nominal do jornal. A redação é onipotente. Então, você tem de saber quem está na redação, quem representa o quê, e o que eles querem. A análise do discurso valerá se for articulada com isso, se não, não adianta absolutamente nada.
O Foucault faz às vezes umas análises boas, mas eu acredito que ele tem uma visão ainda oficialista do que é efetivamente o poder. Ele toma certas instituições que nominalmente representam o poder, logo, vê o discurso oficial como a expressão daquilo. Como análise do discurso está boa, mas não reflete a natureza real do poder, a substância real do poder. A pista é você lembrar a simples definição do poder: não é ocupar um cargo, não é ser importante, o poder é a capacidade concreta que você tem de determinar a ação de outras pessoas. Pode começar com a análise do poder em simples relações pessoais para depois ir ampliando. A coisa básica é articular a análise de discurso com a análise da estrutura e funcionamento real do poder. É uma dica.
Por hoje vamos parar por aqui. Até a semana que vem. Muito obrigado!
Transcrição: Igor Lins Viera
Revisão: Antonia Javiera Cabrera Muñoz