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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 140

04 de fevereiro de 2012

Boa noite a todos. Sejam bem vindos.

Eu queria aqui prosseguir, em primeiro lugar, com a leitura da segunda parte da apostila que nós lemos na semana passada.

Aliás, a partir deste escrito aqui e tendo como motivo alguns assuntos correlatos - surgiram esta semana várias discussões no Seminário de Filosofia, no Facebook, na Dicta&Contradicta que mereceriam algumas explicações em seguida.

A aula de hoje, talvez, seja um pouco mais longa do que as outras. Peço que vocês tenham paciência, porque têm alguns assuntos, realmente, importantes.

Eu vou voltar um pouco ao parágrafo anterior.

"(...) Desde então as perguntas filosóficas mais dramáticas e incontornáveis foram excluídas do campo da atenção científica "séria" e deixadas à curiosidade de pensadores excêntricos. Que muitos destes, como Leibniz, Pascal e o próprio Newton, estivessem também entre os mais destacados praticantes do novo método, foi explicado retroativamente como detalhe biográfico sem maior importância no quadro geral dos progressos do conhecimento.

Foi a partir desse momento, e só dele, que se produziu a separação formal entre "ciência" e "filosofia", a primeira imperando soberana sobre o mundo dos "fenômenos", a segunda insistindo em perguntas sobre a natureza da realidade que já não interessavam a ninguém. Uma conseqüência obvia dessa separação foi que, a "ciência" já não podendo ou não querendo alegar em seu favor uma ontologia explícita, as divisões entre os campos das várias ciências, a delimitação e portanto a definição de seus objetos, de seus métodos e de seus processos de validação já não tinham como fundamentar-se em distinções objetivas -- "ontologias regionais" -- recortadas no corpo vivo da experiência. A solução encontrada para essa dificuldade foi um arranjo brilhante, mas fundamente irresponsável e desastroso, uma verdadeira negociata intelectual que hoje diríamos a gambiarra suprema, a mãe de todas as gambiarras. Quem melhor a formulou em palavras foi Immanuel Kant, mas ela já estava espalhada nas obras de Hobbes, Berkeley e Hume e implícita na prática científica pelo menos desde Galileu. Vou chamá-la, para os fins deste estudo, de metodocracia. Pode-se resumi-la na seguinte regra: não é o objeto que determina o método, mas o método determina o objeto. Dito de outro modo, o campo de uma ciência não corresponde a um conjunto de seres, coisas ou fatos objetivamente distintos, separados uns dos outros por fronteiras reais, mas simplesmente ao conjunto dos temas que se revelem mais dóceis aos métodos dessa ciência, quaisquer que sejam estes e pouco importando de onde tenham surgido (...)"

Eric Voegelin escreveu páginas importantes sobre isto.

"(...) Assim, por exemplo, a psicologia moderna pode prosseguir imperturbavelmente seu trabalho sem ter a menor idéia do que seja a "psique" e sem saber ao menos se ela existe. A diversidade de opiniões nesse tópico abre-se num leque que vai de Carl Jung, para o qual tudo no mundo é psique, até B. F. Skinner, segundo o qual não existe psique nenhuma e tudo o que chamamos por esse nome são aparências enganosas de certos mecanismos neurológicos. Qual é então o objeto da psicologia? Não há outra maneira de defini-lo senão como "qualquer coisa que os psicólogos estudem". Não é preciso dizer que esse estado de coisas é praticamente um convite à arbitrariedade e ao charlatanismo.

Bifurcação cartesiana, fenomenismo e metodocracia são três inconsistências crônicas da ciência moderna, e não afetam somente as ciências mais toscas e imprecisas. Ao contrário. A psicologia, a antropologia ou a sociologia -- para não falar da ciência política -- parecem conviver muito bem com essas dificuldades sem sentir grande necessidade de resolvê-las ou mesmo de discuti-las. É justamente nas ciências mais desenvolvidas que esses e outros handicaps se fazem sentir com mais estridência, dolorosamente, ao ponto de que nenhum profissional da área tem o cinismo de ignorá-los por completo. O exemplo supremo é a física, a maior colecionadora de glórias e vitórias do método experimental. Não é possível estudar nem um pouquinho da relatividade, ou da teoria quântica, sem esbarrar a cada minuto em perguntas cabeludas que o método experimental, por si, não tem como responder, e que forçam o cientista a mergulhar em considerações filosóficas -- às vezes pseudofilosóficas -- no esforço de compreender o que está fazendo. O motivo disso é simples: quanto mais precisão se alcança na descrição de um fenômeno, mais enfático se torna o contraste entre o domínio técnico que se exerce sobre ele e a constatação diuturna de que, no fim das contas, não se sabe o que ele é. Quanto mais uma ciência se encontra num estágio infantil, engatinhando, nebulosa e confusa, incapaz de acertar os métodos de verificação que lhe permitam discernir constantes e enunciar previsões rigorosas, mais forte é a tendência de continuar tentando e tentando, acumulando hipóteses, observações e números, na esperança de que um dia as leis gerais apareçam e os fatos as confirmem (...)"

Isto faz parte um pouco da história de qualquer ciência. Você tem uma fase de coleta, então você vai coletando fatos parciais, fazendo generalizações parciais na esperança de que um dia apareça um quadro inteiro e você, então, tenha em mãos as leis ou princípios gerais dessa ciência. Ás vezes, isto nunca acontece - como não aconteceu até agora com a sociologia, antropologia e etc.

"(...) Nesse estado de coisas, é compreensível que as questões de fundamento ontológico devam ficar para depois, talvez para o dia de são nunca, pela simples razão de que ainda não se tem um [00:10] objeto preciso que possa ser fundamentado. As eventuais discussões filosóficas que emerjam no meio desse estado de coisas não soam senão como interessantes tagarelices, boas somente para adornar com um verniz de sofisticação a má-consciência do cientista que não tem nas mãos (e sabe que não tem) senão um objeto fluido, mal definido e experimentalmente incontrolável. Uma "ontologia do ser social", por exemplo, como foi tentada por György Lukács na década de 70, não passou de uma ejaculação precoce, atestando a impotência da sociologia marxista. Quando todas as previsões baseadas na luta de classes e na mais-valia deram errado, quando até as definições dos termos básicos se revelavam inadequadas e o historiador marxista E. P. Thompson constatou que era impossível distinguir proletariado e burguesia por critérios econômicos, tornou-se evidente que a "ciência" marxista da sociedade não tinha nas mãos um objeto acuradamente descrito do qual se pudesse, então, sondar a ontologia, o lugar na estrutura geral do ser. (...)"

Quer dizer, você não tem sequer a descrição do fenômeno. Então você vai investigar a ontologia do que? O fundamento ontológico do que? Se você não tem a menor idéia, por exemplo, de uma descrição acurada do que seja a sociedade humana, como é que você vai fazer uma ontologia da sociedade?

Então, das duas uma: neste caso, quando a ciência está atrasada ou engatinhando, ou os problemas ontológicos são adiados -- e é justo que sejam adiados -- ou, então, você tenta entrar numa especulação ontológica e faz como Lukács, uma ejaculação precoce, quer dizer, uma coisa que não tem pé nem cabeça.

"(...) Mas quando, ao contrário, o objeto está tão bem descrito quanto o comportamento de certas partículas subatômicas na física quântica, ao ponto de que esta pode se gabar, com justiça, de não haver no mundo fenômeno mais exatamente medido, observado, comprovado e meticulosamente testado milhares de vezes, então a ciência não tem mais como avançar um passo sem tropeçar na pergunta fatídica: "Mas, afinal de contas, o que é? Quid est? (...)"

Este é exatamente o problema que o professor Wolfgang Smith investiga no livro O Enigma Quântico, que foi traduzido em português pelo Raphael de Paola, cuja tradução, aliás, é excelente. Uma raridade no Brasil.

Ele diz: "Olha, de fato, aqui o que nós temos em física quântica é um fenômeno muitíssimo bem observado, testado milhares de vezes. Nós sabemos que as coisas são assim. Nós só não sabemos o que é. Quer dizer, você tem fenômenos --- aparências que dançam na nossa frente e que você pode medir e dizer exatamente como elas vão se comportar --- mas você não sabe sequer se aquilo existe ou se é um fenômeno encobrindo outro fenômeno."

"(...) Nesse ponto, as fronteiras entre a investigação científica e a especulação filosófica se esfumam como que por encanto, e os físicos começam a produzir, às pencas, livros de filosofia, ou quase de filosofia, uns ruins, outros bons, às vezes mais sérios do que as obras dos filósofos profissionais. (...)"

Os próprios livros do professor Wolfgang Smith demonstram isto. É difícil você encontrar algum livro de filosofia da ciência que seja mais interessante do que Cosmos e Transcendência ou O Enigma Quântico, embora o professor Smith não seja um filósofo profissional. Ele não tem nenhum estudo especializado em filosofia. Ele estudou matemática e depois física e química, e ponto final.

"(...) Coisa idêntica acontece na genética, outra ciência bem sucedida, madura e triunfante. É impossível ter diante de si um fenômeno tão bem descrito como o código genético sem querer saber por que ele é como é, qual o sentido da sua existência, que conseqüências sua descoberta acarreta para a concepção geral do mundo, da humanidade e da cultura. Igualmente impossível é impedir que o simples fato de colocar essas questões sugira novas pesquisas experimentais, exercendo um influxo benéfico dentro do território científico propriamente dito (...)"

Isto quer dizer que as fronteiras entre o que seria, vamos dizer, o "acúmulo do conhecimento"-- que o Michael Dummett atribui exclusivamente à ciência -- O que é a compreensão desse conhecimento -- como ele define, que é a função da filosofia -- permaneçam em etapas separadas. Uma coisa interpenetra na outra. Então, você não tem mais uma fronteira nítida entre filosofia e de ciência.

"(...) Tive a alegria de receber uma confirmação direta e pessoal disso quando um dos geneticistas mais destacados da atualidade, Laurent Danchin, me escreveu, anos atrás dizendo que meu livro Aristóteles em Nova Perspectiva (1995), que ele havia lido em tradução francesa inédita, o ajudara nas suas investigações sobre a origem da vida. Como era possível uma coisa dessas? (...)"

Se eu fosse outro cara, já estaria a anos alardeando "Ah! O Laurent Danchin falou bem do meu Aristóteles em Nova Perspectiva". Eu tinha até esquecido isso daí! Ficou guardado e agora que eu estava discutindo sobre isso, eu disse: "Espera aí! Eu tenho o depoimento do Laurent Danchin".

Quer dizer, eu estou escrevendo um livro sobre a lógica de Aristóteles, o homem lê e diz "Opa! Isso aí me ajuda".

"(...) Como era possível uma coisa dessas? Em que é que uma reinterpretação do Organon aristotélico pode ser útil em pesquisas genéticas? A resposta é simples: a tarefa da filosofia não se resume em "compreender o conhecimento que já temos", como presumia Michael Dummett num exagero de modéstia bem tipicamente anglo-saxônico, mas o esforço de compreensão mesmo, por mais distante que esteja dos laboratórios, interfere na prática científica, sugerindo novas articulações teóricas, novas conexões entre conceitos, novas hipóteses, novas linhas de investigação (...)"

É impossível que a atividade de compreensão dos conhecimentos obtidos não reflua de algum modo sobre estes conhecimentos, abrindo novos campos de pesquisa, sugerindo hipóteses, e assim por diante. É uma atividade que não se pode dizer que é puramente filosófica, isto faz parte da ciência. Quer dizer, você conceber hipóteses é uma das partes do método cientifico e isso aí é uma ocupação propriamente filosófica. Então, onde é que termina uma coisa e onde é que começa a outra? Ninguém sabe.

"(...) A análise conceptual e o trabalho de laboratório continuam formalmente distintos, como aliás já o eram no tempo da "filosofia natural" de Newton, mas há entre eles uma continuidade, uma solidariedade que evoca a diferença, tão bem traçada pelos escolásticos, entre "distinção" e "separação" (...)"

Que são coisas distintas, mas não separadas.

"(...) São momentos distintos, mas encadeados num esforço unitário que já não permite uma separação estanque entre "conhecimento" e "compreensão". Parafraseando o lema cristão, a linha mestra desse esforço é: "nosce ut intelligas, intellige ut nosceas" -- "conhece para que compreendas, compreende para que conheças (...)"

Assim como tinha o "Crede ut intelligas et intellige ut credas".

"(...) O presente estado de coisas nas ciências mais avançadas, com sua interação frutífera de pesquisa empírica e análise filosófica, sugere antes um retorno à pergunta básica: Que é "conhecimento"? Não podendo aqui esquadrinhar essa questão em detalhe, vou logo à resposta que costumo lhe dar nos meus cursos: conhecimento é a transfiguração da experiência bruta em formas inteligíveis articuladas em discurso coerente e compreensível. Mas uma coisa é a compreensibilidade do discurso em si, outra a dos materiais da experiência inicial que dão a razão de ser de todo o esforço cognitivo. A primeira, evidentemente, não basta: é preciso que, através do discurso, se chegue à compreensão da experiência mesma. Cada uma das etapas dessa transfiguração "é" conhecimento, no sentido potencial, mas não o "é" em sentido cabal e final. Nessa perspectiva, os resultados de uma pesquisa científica que não se integrem numa compreensão adequada -- ainda que parcial e provisória -- do seu estatuto ontológico e do seu lugar na cultura ainda não são propriamente "conhecimentos": são conhecimento potencial, são materiais, são peças, são partes e etapas de um conhecimento possível, que só se efetivará no momento da "compreensão", por problemática e incompleta que seja. (...)"

Então, essa é a idéia que me ocorre, por exemplo, quando eu leio O Enigma Quântico. Quando você vê que o fenômeno está perfeitamente observado, medido, descrito e etc., então, temos certeza de que as coisas são assim; só que não temos a menor idéia do que é. Mas, em que medida isso é conhecimento? Quer dizer, algo que você observa, que você não sabe o que é, e você não sabe responder Quid est?

Em que sentido isto é conhecimento? Bom, é conhecimento no sentido parcial, potencial. Mas não é conhecimento no sentido cabal e satisfatório.

Quer dizer, a inteligência humana só se satisfaz quando ela tem não apenas um fenômeno, mas o númeno por trás. Não se tem apenas as descrições das aparências, mas você sabe de que realidade mais estável e profunda aquilo emerge. Aí sim a inteligência encontra o seu estágio de repouso. Até lá, ela está inquieta, porque ela ainda não possui um conhecimento, mas sim materiais para um conhecimento.

Então, ao contrário do que diz o Dummett, só depois da compreensão filosófica é que os dados científicos se convertem, verdadeiramente, em conhecimento.

É a mesma coisa que dizia o Jean Piaget, de que a filosofia não produz conhecimento, ela apenas nos dá o senso de orientação e de valores, inclusive cognitivos.

Eu digo: Mas, o que significa um conhecimento, cujo valor cognitivo você não é capaz de medir? Quer dizer, eu sei uma coisa, mas eu não sei quanto aquilo vale dentro da estrutura geral do [0:20] conhecimento. Eu não sei o que é, quanto vale, não sei o que fazer com aquilo. Então, que sentido faz você chamar isso de conhecimento?

Então é só quando o conhecimento se integra, vamos dizer, num sentido de orientação geral, valorativo - inclusive de valor cognitivos -- que você pode dizer que é conhecimento.

Então, qualquer tentativa de dizer "a filosofia não produz conhecimento". Não, é o contrário. A ciência fornece os materiais que a filosofia transfigura em conhecimento. Se essa transfiguração é sempre incompleta e imperfeita, isso faz parte da natureza humana, e isso não é culpa da filosofia.

"(...) A compreensão filosófica é a causa final do esforço científico, que só nela se perfaz -- ou deve perfazer-se -- como vitória efetiva do intelecto humano sobre a confusão das coisas. Se a conquista dessa compreensão não raro se mostra dificultosa e problemática, isso não justifica nem que a busca experimental fique parada à sua espera, nem que a etapa experimental seja elevada à condição de meta final e autônoma do processo cognitivo (...)"

Como faz Piaget e, também, o Dummett. Quer dizer, o conhecimento é a meta; e a compreensão é, então, algo que vem depois.

"(...) como se a compreensão fosse apenas um adorno suplementar -- ou uma ocupação exclusiva dos departamentos de "filosofia", sem importância para os de "ciência"(...)"

Bom, isso pode ser uma divisão departamental, burocrática, e como tal pode funcionar. Mas, na inteligência humana não funciona assim. Você não pode separar na sua cabeça "conhecimento" e "compreensão". Isso é absolutamente inviável.

"(...) A propósito, que é "ciência", no fim das contas? Uso aqui a palavra "ciência" no sentido moderno de conhecimento experimental sistemático, e forneço aqui em formato compactado a resposta que tenho exposto com maiores detalhes nos meus cursos e conferências: no conjunto das investigações filosóficas, "ciência" é a estabilização parcial e provisória de certas áreas de investigação que, durante algum tempo mais longo ou menos longo, podem ser submetidas um tratamento homogêneo segundo um protocolo mais ou menos fixo de procedimentos experimentais, sem a necessidade de maior fundamentação ontológica, até que seus resultados atinjam o nível de perfeição em que se torne novamente necessário buscar essa fundamentação e a ciência em questão se reintegre, com todos os seus resultados, no panorama geral das discussões filosóficas (...)"

Então, quando Newton ou Leibniz falavam de filosofia natural para designar o que hoje nós chamamos de ciência experimental, eles tinham toda razão, porque eles entendiam que aquilo era uma etapa do processo cognitivo. E que esta etapa deveria se encaixar depois numa etapa de aprofundamento filosófico da coisa e só aí você teria, então, o que você poderia chamar de conhecimento efetivo.

Mas, acontece que algumas questões são elaboradas filosoficamente de maneira tão boa, que você formula então certas perguntas que tem de ser respondidas pelo método experimental.

Olha, o método experimental é um protocolo fixo de procedimentos que é igual para todos os cientistas, então, é como se delegasse uma parte dos filósofos e fosse dito "Olha, você fica tratando dessas questões aqui pelo método experimental e não precisa buscar nova fundamentação filosófica durante certo tempo, mas quando terminar esse trabalho, quando você tiver resultados de um certo nível, aí sim as perguntas filosóficas vão voltar todas" -- como aconteceu com a física e com a genética.

"Embora a formulação em palavras seja minha, quem deu essa resposta não fui eu: foi a evolução das ciências nas últimas décadas. Foi ela que reaproximou filosofia e ciência, mostrando que o divórcio delas não havia sido senão uma etapa provisória, explicável pelo próprio estado incipiente em que determinadas ciências se encontravam, e destinada a dissolver-se espontaneamente tão logo essas ciências alcancem certo nível de maturidade."

Então, quer dizer que o famoso processo de separação das ciências e da filosofia, que acontece no começo da idade moderna, ele se fecha. Agora, quando certas ciências, como a física quântica e a genética, alcançam um nível de perfeição em que a descrição do fenômeno está tão completa e tão precisa que o passo seguinte só pode ser dado mediante a formulação de certas perguntas filosóficas, como Wolfgang Smith está fazendo.

Vocês que leram O Enigma Quântico podem imaginar o efeito que este livro pode ter dentro do próprio âmbito das ciências experimentais. Quantas novas investigações o que o Wolfgang Smith está dizendo ali não podem inspirar? Quer dizer, pode-se inaugurar uma nova etapa da física quântica a partir do livro do Wolfgang Smith.

Então, a propósito desse tema e outros correlatos, surgiram durante a semana várias investigações -- talvez vocês tenham lido no Mídia Sem Mascara esta coisa que escrevi a respeito de um post colocado pelo Julio Lemos, no site da Dicta & Contradicta, a respeito do Sir Michael Dummett. Eu não vou retomar aquele texto. Eu não creio que seja necessário. Mas, se for a gente volta. Mas, eu vou retomar esta discussão a partir de uma pergunta que me foi colocada -- não no site do Seminário, mas no Facebook -, por um cidadão chamado Fabio Salgado de Carvalho, que eu não sei se é aluno do Seminário. Ele diz:

"Professor, muito interessante o seu artigo "Cigarras e Formigas". Impressiona-me, contudo, como o senhor pode falar que a escola analítica não trouxe grandes resultados filosóficos, ignorando aquele que é um dos maiores arautos da escola, Saul Kripke, cujo trabalho *Naming and Necessity (*Nomeação e Necessidade) teve o impacto de ressuscitar a metafísica que andava desacreditada -- pelo menos, entre os analíticos. Quanto a Gottlob Frege é impossível falar do que quer que seja em filosofia da linguagem contemporaneamente sem o citar. Alias, também achei estranho o senhor não citar um filosofo como David Kaplan, que possui importante trabalho na semântica dos demonstrativos, que teve repercussões em outra áreas da filosofia. Se os principais avanços da linguagem vem da escola analítica, o que dizer da filosofia da mente? Qualquer livro introdutório mais recente não dispensa o tratamento analítico. Até mesmo o campo da filosofia da religião tem se desenvolvido hoje, principalmente, a partir dos analíticos. Grande estudiosos da área hoje são justamente da escola analítica, como Alvin Plantinga, William Alston, McTaggart e Richard Swinburne. Até mesmo na teologia existe uma corrente nova chamada "Teologia Analítica" e que tem se desenvolvido bastante. Veja, a titulo de exemplo o livro de Oliver D. Crisp e Michael Rea, intitulado Analytic Theology: New Essays in the Philosophy of Theology. Acho que o senhor foi injusto com os analíticos."

Então vamos ver qual é o problema.

A escola analítica criou um número enorme de objeções a setores inteiros da filosofia -- como a metafísica, filosofia da religião, moral e etc. Bom, passado algum tempo, em função dessas dificuldades, acreditou-se que inumeráveis questões tradicionais filosóficas podiam ser afastadas como questões não-filosóficas ou como questões insolúveis, ou como questões de fé, ou até como questões de livre-arbítrio. Quer dizer, o sujeito escolhe o que ele quer. Passado algum tempo, como é inevitável que aconteça, começa a surgir as respostas ás objeções dentro da mesma técnica analítico-demonstrativa que foi usada para formulá-las.

Ora, isto quer dizer que o que todos esses autores -- eu não acompanho todos esses autores, o único que eu conheço bem aqui é o Plantinga; os outros eu sei por alto, então, eu não posso me pronunciar. Mas, vendo no exemplo do Plantinga: O que ele está fazendo? Ele está pegando toda aquela linguagem da filosofia analítica e demonstrando nela que a metafísica é possível e viável.

Mas é o caso de dizer: Quem é que não sabia? Só os membros da escola analítica. Por quê? Porque eles criaram dificuldade e objeções que paralisam o interesse deles por essa área. Então tudo o que esse pessoal está fazendo é resolver problemas internos da escola analítica, que para pessoas de outra orientação, não são problemas de maneira alguma.

Por que a possibilidade de você criar objeções -- o próprio Michael Dummett dizia que durante muito tempo, todo o aparato da escola analítica foi usado só para fins destrutivos, isto é, para negar o interesse por certas questões filosóficas, mas diz ele, também, isso pode ser usado no sentido construtivo -- a um interesse que você tem por determinado problema deve valer? Eu não vejo nenhum motivo para isso, sobretudo quando estas objeções são formuladas, não com base no exame dos próprios objetos de que trata a metafísica, a filosofia, a religião etc., mas com base na linguagem que você está usando para falar desses assuntos.

[30:00] Quando você diz que determinado problema resulta de um equívoco de linguagem, você está excluindo a hipótese de que este equívoco não tenha nada a ver com o objeto do qual você está falando. Mesmo que haja um equívoco de linguagem, isso não quer dizer que a questão mesma seja puramente lingüística: isto é uma confusão entre o objeto de experiência e a linguagem na qual se fala dele.

Este fenômeno foi bastante estudado pelo Eric Voegelin1 e pode-se formulá-lo da seguinte maneira: as experiências fundamentais de que fala a metafísica, a filosofia da religião, os mitos, os textos sagrados, etc., não são afirmações sobre objetos, mas afirmações sobre uma totalidade de experiência na qual o próprio sujeito está dentro da esfera da experiência. É o ambiente daquilo que Platão chamava metaxis, participação. Ou seja, não são afirmações objetivas sobre objetos da experiência. Por que chama objeto? Objeto quer dizer ob jectare, jogar adiante, aquilo que está adiante, como agora eu tenho diante de mim esta câmera, as pessoas que eu estou vendo etc. Então eu sou o sujeito da cognição e esses elementos são os objetos da minha cognição. Há uma distinção sujeito e objeto e eu faço afirmações objetivas sobre aquilo que eu estou captando nos objetos. Quando você fala de Deus ou da eternidade você não está falando de objetos, mas de uma situação dentro da qual você está; não é possível formular afirmações objetivas sobre isto porque a realidade da qual você está falando não é objetiva nem subjetiva. Ou seja, o conceito de sujeito e objeto não se aplica absolutamente. Então a linguagem apropriada para falar disso não é a linguagem da discussão e da prova, da formulação de afirmações objetivas que possam ser testadas ou provadas, mas é a discussão da meditação onde você, por assim dizer, expressa a experiência tal como ela está acontecendo, não tentando formular afirmações objetivas que possam ser testadas ou provadas. Veja que Platão, no momento culminante de seus diálogos, após ele ter removido várias objeções e dificuldades, quando perguntam a Sócrates: "Mas o quê que você acha mesmo? Qual é a verdade sobre isto?", o quê que ele faz? Ele expressa um mito, porque a linguagem mítica é mais apropriada à descrição desse tipo de experiência do que uma linguagem presumidamente objetiva, que serve para falar de objetos externos ao sujeito. Por exemplo: se eu estou descrevendo o comportamento de um gato, a embriologia de um gato, este não é um processo do qual eu participe: e não tenho nada a ver com este processo; eu estou descrevendo um objeto. Mas se eu estou falando de eternidade e tempo, ó meu Deus do céu!, eu estou dentro do tempo e estou dentro da eternidade, então não são objetos dos quais eu possa formular juízos que possam ser conferidos objetivamente. Também não se trata de pura subjetividade porque subjetividade é algo que diz respeito a mim e eu não posso dizer que eternidade e tempo são coisas subjetivas --- se fossem subjetivas existiriam só dentro de mim e estariam todos livres do tempo --- eu estou falando de uma experiência minha da qual eu sei que os outros seres humanos compartilham porque a minha própria convivência com eles está dentro disto. Então, são realidades inegáveis mas ao mesmo tempo não são objetivas: ou seja, o conceito de objetivo e subjetivo não serve. Como as pessoas perdem de vista isso, às vezes entendem que o filósofo está fazendo afirmações objetivas e que, portanto, podem ser provadas ou impugnadas, por exemplo, a famosa prova ontológica de Santo Anselmo: ela não é uma prova, mas a descrição meditativa de um tipo de experiência que foge a esse critério da prova. Isso quer dizer que a prova ontológica de Santo Anselmo funciona como prova se você participa dessa experiência: se você não é capaz de se transpor mentalmente a ela então, evidentemente, aquilo nada prova e são apenas palavras.

Por exemplo: quando Kant diz que o conceito de um ser infinitamente perfeito --- o conceito aqui apela a Santo Anselmo --- é uma coisa e que o ser infinitamente perfeito é outra eu digo: "Ora, em que medida esta distinção se aplica realmente?" Eu não posso ter um conceito de um ser infinitamente perfeito: ele não é pensável, ele só é participável; não é um objeto do qual eu esteja falando. Se você entende isso então o argumento de Santo Anselmo vira, pra você, uma realidade profunda. Se, no entanto, você não é capaz de entender isso e você acha que existe um conceito do ser infinitamente perfeito em vez de haver apenas uma alusão vagamente indicativa, você distingue o conceito e o seu objeto, como faz Kant, e diz: "Essa prova não vale, ela não prova nada", mas esta é uma maneira errada de tratar o assunto.

Ora, toda a escola analítica trata todos os juízos filosóficos como se fossem juízos de sujeito e objeto e, naturalmente, a maior parte desses juízos aparecem, de repente, desprovidos de significado. Porque Kant pode dizer: "Bom, o conceito do ser infinitamente perfeito é um conceito desprovido de significado" --- não foi exatamente isso o que ele disse mas o que ele disse é que um raciocínio que você faça sobre um ser infinitamente perfeito só prova algo com relação ao conceito desse ser e não com relação ao próprio ser. Eu já escrevi alguma coisa sobre isso2 mostrando que essa objeção é totalmente inválida porque não é disso que se trata no Santo Anselmo.

Então, todas essas palavras de ordem meditativa que expressam a experiência da participação --- da metaxis, como dizia Platão --- não estão sujeitas ao tipo de análise feita pelo pessoal da escola analítica, porque eles só admitem julgamentos atomísticos sobre objetos, o qual é um julgamento separado de outros objetos. Por exemplo, "a galinha botou um ovo" é um julgamento atomístico porque é separado de qualquer outra coisa: a galinha pode ter botado um ovo quando estava havendo uma guerra ou quando estava tudo em paz, quando em volta existe pobreza ou riqueza, quando todos estão felizes ou infelizes; é atomístico porque é separado. Este é um juízo atomístico sobre um fato, e eles só admitem este tipo de juízo.

Bom, a partir da hora que você só admite juízos objetivos de tipo atomístico, então o que você fez foi se comprometer a não compreender nunca todos os textos filosóficos e todos os textos da religião, porque nenhum deles é constituído de juízos atomísticos sobre fatos da realidade: eles são juízos sobre a experiência da participação dentro da realidade como um todo, o que é uma coisa completamente diferente. Isso quer dizer: a própria origem da escola analítica é baseada numa incompreensão de textos.

A partir do instante que eu percebi isso eu perdi todo o interesse por essa escola: bom, você vai ficar o resto da vida partindo o cabelo em quatro e criando objeções em cima de objeções, e um dia isso vai se tornar tão sufocante que você vai ter que virar a coisa do avesso e provar que tudo aquilo que você disse que era impossível na verdade é possível --- e é exatamente isso o que está acontecendo agora. Só que foram eles mesmos que criaram as objeções e eles mesmos que as estão respondendo; e eu pergunto: o quê é que nós temos a ver com isso?

A escola analítica só se tornou importante porque ela dominou politicamente as universidades da Inglaterra e dos Estados Unidos --- só por causa disso --- e não porquê fosse superior intelectualmente a outras escolas: dificilmente você vai dizer que tenha alguém na escola analítica que seja superior a um Edmund Husserl, a um Xavier Zubiri, a um Bernard Lonergan; não tem isso aí.

Também acontece um outro problema: muita gente está estudando discurso lógico, lógica, lógica matemática, sem nunca ter parado pra pensar uma simples coisa, uma coisa muito simples, elementar, que é o seguinte: o que é discurso lógico?

Bom, as relações lógicas e as relações matemáticas são atemporais: elas não dependem de tempo; são, por assim dizer, eternas. Antes do mundo existir dois mais dois já era quatro. Quando este mundo tiver se desfeito em farrapos e não existir mais sequer uma partícula no espaço, e não existir nem mesmo espaço, dois mais dois vai continuar dando quatro e A vai continuar sendo igual a A. Isso quer dizer que todas as relações lógicas e matemáticas, além de [0:40] ser eternas e atemporais, elas são simultâneas. Elas não aparecem umas depois das outras. Não é que primeiro dois mais dois é quatro e depois três mais três é seis. Não, isso é tudo ao mesmo tempo. Todo o conjunto das relações matemáticas, conhecidas ou não conhecidas, é válido simultaneamente e atemporalmente.

Ora, o quê que é discurso? Discurso é um pensamento que se desenrola no tempo. Daí a distinção que faz a Igreja Católica, que entende mais disso do que todos os filósofos juntos. Ela diz o seguinte: só tem acesso ao conjunto das relações lógicas o pensamento angélico, porque não é discursivo, é instantâneo. Isso quer dizer que um anjo, quando pensa uma coisa, ele conhece instantaneamente a linha inteira dos antecedentes e conseqüentes. Isso quer dizer, por exemplo, que um anjo conhece todas as relações matemáticas ao mesmo tempo, simultaneamente; nós não podemos conhecer isso. O fato de existir uma história da lógica, uma história da matemática, já mostra isso. Quer dizer, essas relações vão sendo descobertas gradativamente, estão sendo descobertas até hoje e ninguém terminou.

Isso significa o seguinte: a expressão "discurso lógico" é auto-contraditória. Um discurso nunca pode ser lógico porque ele não pode abarcar a totalidade das relações lógicas: ele só pode pegar uma ou outra relação lógica separadamente, distintamente, solta no ar, sem saber os antecedentes e conseqüentes. Então isso quer dizer: um discurso nunca é lógico.

Logos não é só a razão humana. Logos é, até para o próprio Platão, a inteligência divina, a inteligência da simultaneidade, da eternidade; o nosso discurso somente imita a lógica --- não há discurso lógico. Se não há discurso lógico há apenas um discurso que tende à lógica, mas tende como a uma assíntota: quer dizer, é como uma curva que vai aproximando do negócio, aproximando, mas nunca chega. Então, por mais que você aperfeiçoe o discurso lógico, você nunca chega lá. Está aí o famoso teorema de Gödel para provar que não existe o discurso inteiramente coerente: em algum momento você vai ter que ter um salto intuitivo qualquer, por mais que você o aperfeiçoe.

Se você continuar aperfeiçoando e aperfeiçoando formalmente o discurso o que acontece? Você pode mecanizá-lo e colocá-lo num computador, e daí o computador é capaz de fazer cálculos tão complexos e tão longos que não há a possibilidade de um ser humano conferi-los; isso já acontece hoje. Há certas contas que você entrega pro computador e se você botar mil matemáticos fazendo conta dia e noite pra conferir se o resultado está certo ou errado eles não vão terminar; e isso é mais uma prova empírica do que eu estou dizendo: o pensamento lógico é inacessível ao ser humano; nós só podemos tender a ele.

Isto significa, sumariamente, que a lógica é a estrutura da possibilidade universal: todas as possibilidades nas suas interconexões internas necessárias -- então você tem a distinção do necessário e do impossível. Nós conhecemos o impossível? Não, você conhece que algumas coisas são impossíveis. Você conhece a escala da necessidade? Não, você sabe que algumas coisas são necessárias, e se uma coisa é necessária o oposto dela é impossível.

Quando dizemos, por exemplo: "se dois mais dois é quatro é impossível que seja cinco". Bom, vamos supor que você fosse fazer esse raciocínio só com relação aos números: uma conta de dois mais dois tem quantos resultados certos? Um. Quantos resultados errados? Infinitos. Você pode conferir um por um? Não pode. Então isso significa: a noção de "discurso lógico" é auto-contraditória, a noção de "discurso lógico" é ilógica. Portanto, todo e qualquer discurso que se apresente como lógico está apenas tendendo a uma lógica sem poder alcançá-la, por definição. Isso significa, em outros termos, que a lógica jamais é critério da verdade: não é possível. Se nós fôssemos depender do discurso lógico para critério da verdade nós jamais a alcançaríamos; não poderíamos saber nem isso que eu estou dizendo agora, porque eu sei isso por quê? Por lógica? Não, eu sei por experiência, intuitiva e imediata. Eu sei que um discurso transcorre no tempo por quê? Porque eu penso temporalmente; eu não consigo pensar tudo ao mesmo tempo; e qualquer um de vocês pode comprovar essa experiência.

Quer dizer, o discurso, o pensamento discursivo, é a forma humana do pensamento lógico. Ela é a forma especificamente humana de pensamento, ao passo que a apreensão intuitiva e simultânea é angélica, mas nós também temos conhecimento intuitivo. Mas nós temos conhecimento intuitivo da realidade? Não, nós temos conhecimento intuitivo somente daquilo que veio parar na nossa frente.

Por exemplo, se eu tenho uma dor de barriga, isso é um conhecimento intuitivo: ninguém precisa me informar que eu estou com dor de barriga e eu não preciso pensar pra saber que estou com dor de barriga. Por quê? Porque eu conheço a própria dor de barriga e não o conceito dela. Se aparece um gato, um cavalo ou um elefante na minha frente, eu tenho o conhecimento intuitivo deles porque eu estou vendo o próprio gato, o próprio cavalo, o próprio elefante e não o conceito deles. Aliás, se eu for tentar pensar um conceito de cavalo eu posso ter até alguma dificuldade de distinguir o cavalo de outros seres parecidos: quer dizer, o pensamento conceitual seria mais demorado. No entanto eu vejo um cavalo e sei, portanto, por intuição sensível, que o cavalo está na minha frente: eu não preciso pensar para isso.

Então nós temos conhecimento intuitivo, mas temos conhecimento intuitivo da realidade? Não, nós temos de algumas realidades; na verdade temos conhecimento intuitivo de um número insignificante delas. Por quê? Porque quando eu cheguei ao mundo praticamente tudo já havia acontecido e eu não posso ter conhecimento intuitivo de nada disso. Também não posso ter conhecimento intuitivo daquilo que está a meu alcance espacialmente: eu só posso ter intuição daquilo que se apresenta. Por exemplo, eu sei que existe o ornitorrinco porque eu li num livro de zoologia, mas eu nunca vi um --- eu nunca tive um conhecimento intuitivo do ornitorrinco ---, mas eu sei que existe cachorro, galinha etc., porque eu já vi.

Então, o conhecimento lógico é inacessível ao ser humano e o conhecimento intuitivo é limitado. No entanto, nós podemos ter um pensamento que se aproxime do padrão lógico simbolicamente, no sentido em que ele é parcialmente lógico e ele remete a uma perfeição possível. Neste sentido pode haver provas negativas --- você pode provar que determinada coisa é impossível; que uma coisa é impossível, e outra coisa é impossível, mas você não pode provar a totalidade dos impossíveis.

Isso significa, de cara, que o pensamento lógico não é critério de veracidade quase nunca: ele é apenas o instrumento auxiliar, assim como o conhecimento intuitivo também não pode ser, por si, critério de veracidade: você precisa articular um e outro com um terceiro modo de conhecimento --- que é o que Platão chamava a metaxis --- que é a consciência de participação, a consciência de estar dentro de uma realidade que me abarca e da qual eu sou parte e que, em mim, se transforma, de algum modo, numa coisa auto-consciente: quer dizer, quando eu tomo consciência de algo, aonde está acontecendo esta tomada de consciência? Está acontecendo dentro da realidade: é uma parte da realidade que está tomando consciência de si mesma. Então, este é um modo de conhecimento que eu não posso dizer que é nem racional e nem intuitivo: é um terceiro, que é exatamente aquele que eu chamei de conhecimento por presença --- um termo que pode ser até errado mas foi o que eu pude arrumar para o momento.

Então, nós só podemos ter certeza absoluta daquilo que nós testemunhamos diretamente, intuitivamente. Por exemplo, se eu assisti a um crime, eu vi um sujeito matando o outro, eu tenho certeza absoluta de que aquilo aconteceu: eu vi o sujeito enfiar a faca na barriga do outro e o outro, estrebuchar e morrer. Eu tenho certeza absoluta disto mas eu não posso provar isto para [0:50] um terceiro. Isso quer dizer que a maior parte dos conhecimentos absolutamente certos que os seres humanos têm são, por assim dizer, intransmissíveis: só são transmissíveis através do discurso, mas o discurso por si não é prova do testemunho; ao contrário, o testemunho é que é prova do discurso.

Pergunto eu: existe algum domínio da realidade onde o testemunho seja dispensável? onde se possa conhecer algo totalmente sem testemunho? Não tem nenhum. Se o sujeito disser: "Ah, mas e a física quântica que faz essas observações, essas medições certas, etc.". Acontece que alguém teve que fazer esta medição e para fazer a medição ele teve que lidar com um equipamento. Como é que ele adquire domínio sobre este equipamento? Ele tem que ter uma prática de anos: não basta ler um manual de instruções. Isso quer dizer que o conhecimento que um técnico tem de um determinado equipamento não é, por sua vez, totalmente transmissível em palavras: depende do hábito que ele adquire ao lidar com aquele equipamento, e a maior parte disso é intransmissível em palavras. Então eu dependo que um sujeito que adquiriu o hábito de lidar com aquele equipamento e, portanto, tem o domínio daquilo, me dê um depoimento sobre o teste que ele fez e os resultados que encontrou. Na mais exata das ciências o testemunho continua indispensável.

Isso quer dizer que a base do conhecimento humano é o testemunho: primeiro o testemunho direto, não só do tipo intuitivo, mas de tipo participativo também. E este testemunho é válido e é eficaz na medida em que os seus interlocutores tenham experiência semelhante e que possam se comunicar. Portanto, na totalidade do universo cognitivo, o fundamento, a base da credibilidade, é a confiabilidade do testemunho: isto é a condição humana. A certeza total, imediata e integral, somente a inteligência angélica pode alcançar: os anjos têm certeza absoluta, nós nunca temos. "Ah, então nós dependemos da confiabilidade do testemunho? Nós temos que confiar em nós mesmos e nos outros?" Sim. Eu sei que isso é angustiante. Nós gostaríamos de ter a certeza total, absoluta, angélica, mas nós não temos.

Ora, para quê se desenvolve tanto a ciência da lógica, a técnica das demonstrações etc.? Para nos poupar da angústia de depender do testemunho, para tentar criar um aparato técnico que me liberte da dependência do testemunho, que me dê a certeza total e final, só que isto é impossível.

Do mesmo modo que existe inteligência angélica, existe inteligência demoníaca. A inteligência demoníaca é angélica: ela também é simultânea, ela também conhece a totalidade das relações, só que ela decidiu mentir num ponto. E, mais ainda, nós humanos podemos transitar entre a mentira e a verdade: nós mentimos, depois nos arrependemos, confessamos que mentimos, mas os demônios não podem fazer isso; quer dizer que a mentira é definitiva e continuará produzindo os seus resultados lógicos irreversivelmente, implacavelmente, até o fim.

Isso quer dizer que nós, inspirados por uma dúvida demoníaca, podemos criar objeções infinitas. E quando você cria objeções você é obrigado a aprimorar a técnica lógica para responder à objeção. Você pode se manter ocupado com isto o resto da sua vida, e é exatamente isto o que faz a escola analítica. É claro, que uns o fazem destrutivamente: "Nós vamos negar tudo", como Wittgenstein, para quem praticamente todas as questões de metafísica, religião etc., não são questões filosóficas, não podem ter tratamento racional etc., e pode vir um ou outro, que tem uma boa intenção, um sujeito piedoso, que diz: "Não, ao contrário, dá pra fazer, vamos elaborar a técnica lógica e vamos chegar lá etc.".

Eu digo, escuta: mas isso aí é somente baseado na recusa do testemunho? Isto é baseado no temor de ser enganado pelo testemunho dos outros, só que a confiabilidade do testemunho é a base da sociedade humana, é a base da ciência, é a base de todo o conhecimento, é a base da história, é a base de tudo o mais: não tem escapatória, meu filho. Quer dizer, não existe uma vacina que te proteja contra a possibilidade de ser enganado por outros seres humanos ou por você mesmo. Não existe!

Então, se a base do conhecimento é o testemunho, então como é que eu posso adquirir mais certeza e mais firmeza neste ponto, ainda que dentro da limitação humana? Através do meu próprio testemunho. É isso o que eu chamo o Método da Confissão: a única via de acesso à verdade é o testemunho fiel que você dá de você pra você mesmo.

Na medida em que você é capaz de fazer isto você também adquire o senso de perceber se o outro está depondo fidedignamente ou não: então isso é o que se chama o senso da verdade. O senso da verdade não é um poder mágico que me permita apreender a verdade universal, a totalidade das relações lógicas, a estrutura do universo: não é nada disso. O senso da verdade, que é também falível, é a capacidade que nós temos de perceber se uma outra pessoa está sendo sincera ou não. Ora, aí me lembrou o livro do Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiança. Claro que a sociedade se baseia na confiança!

Do mesmo modo que em ciência e em filosofia existe essa obsessão da técnica lógica perfeita, que nos dispense dos riscos da confiabilidade e nos dê a prova objetiva final de tudo o que nós estamos dizendo, existe, no campo da política e da sociedade, o desejo do controle perfeito, que dispense as pessoas de confiarem umas nas outras porque tem uma administração que criou todos os regulamentos possíveis e que vela para que elas não façam mal umas às outras. Isso também é impossível! Se tem uma coisa que a história comprova é que quanto mais leis você tem mais aumenta a criminalidade.

Assim como a prova completa, perfeita, é impossível, o controle perfeito da sociedade também é impossível. Ou seja, nós estamos vivendo entre seres humanos e, se nós não confiamos uns nos outros, se nós não somos nós mesmos dignos de confiança, então nós estamos num mato sem cachorro definitivamente: não há precaução contra isso.

É por isso mesmo que todos estes esforços da escola analítica para: "Agora nós vamos restaurar a possibilidade da metafísica", eu digo: "isso é um problema de vocês, meus filhos. Vocês aprimoraram a técnica lógica para criar um monte de objeções, agora vocês aprimoram a técnica lógica para responder suas próprias objeções", só que isto não é uma via de acesso à verdade, isto é uma discussão interna de um grupo cuja relevância filosófica é nula.

Porque a finalidade da filosofia não é produzir a prova final de nada, é produzir um senso de orientação suficiente para a duração de uma vida humana, é produzir uma área de inteligibilidade suficiente para um ser humano, para uma determinada sociedade, durante algum tempo. A finalidade da filosofia, como já era em Platão, é criar uma certa área de luminosidade dentro da experiência da metaxis, e não fornecer prova de tudo. Se você lê a obra de Platão, ele nunca prova coisíssima nenhuma: você reconhece o que ele está dizendo por quê? Porque você tem a experiência, mas isto não é uma prova: isto é apenas o diálogo de duas testemunhas confiáveis. Se o interlocutor não for confiável ele pode produzir objeções em número infinito, e depois que você der a prova, por exemplo: "Ah! Veio aí o Alvin Plantinga e provou que a metafísica é viável etc.", você tem certeza de que não vão surgir novas objeções? É claro que vão! E depois outras, e depois outras, e depois outras.

[01:00] É claro que o pensamento humano tem de buscar alguma coerência lógica; quer dizer, a consistência lógica é uma virtude do pensamento humano, mas ela é uma virtude somente imitativa e, por assim dizer, simbólica, que nós jamais alcançamos. Por outro lado, a capacidade que você tem de raciocinar logicamente é uma capacidade natural que o ser humano tem. Outra coisa é a técnica lógica desenvolvida pelos lógicos: uma coisa não tem nada a ver com a outra. Pessoas que nunca estudaram lógica podem ter um raciocínio lógico exemplar e outra que estudou lógica a vida inteira pode ser incapaz de raciocinar sobre o que quer que seja. Vamos dizer que a lógica está para o pensamento lógico, a lógica no sentido técnico da coisa, assim como a fisiologia da respiração está para a respiração: você não precisa conhecer a fisiologia da respiração para respirar perfeitamente bem, assim como você não precisa conhecer gramática para você escrever maravilhosamente bem, porque existe uma espécie de instinto gramatical nos escritores de verdade.

Agora mesmo, acabei de escrever algo observando o fato de que não houve nenhum gramático que tenha sido um grande escritor e que nenhum dos grandes escritores foi um gramático. Homero não foi dramático, Goethe não foi gramático, nem Dante, nem Shakespeare, e no entanto, o mundo está cheio de gramáticos que escrevem mal. Até lembrei duma frase do Millôr Fernandes que falava do Antônio Houaiss: "Ele conhece todas as palavras do idioma, só não sabe juntá-las".

Então, a gramática está para a escrita assim como a técnica lógica está para o pensamento lógico. Os escolásticos, por exemplo, desenvolveram bastante a técnica lógica, só que o mais brilhante de todos eles, o maior de todos, que foi São Tomás de Aquino, deu muito pouca atenção às questões puramente lógicas. Não há uma descoberta lógica que se pode atribuir a São Tomás de Aquino. Ele simplesmente sabia raciocinar logicamente, dentro dos limites do humanamente possível.

Não existe prova lógica suficientemente perfeita que possa eliminar a possibilidade de toda a objeção. Isso significa que o esforço de provar muitas vezes é apenas a recusa de você descrever a experiência tal como ela aparece. A própria experiência da participação, ou da metaxis. Todos aqueles mitos platônicos não provam nada, mas eles nos dão uma idéia da experiência da metaxis. Então, se você tem a mesma experiência que todo mundo tem, saiba ou não, você é capaz de reconhecê-la, isso não quer dizer que Platão provou aquilo.

O próprio esforço de provar só vale para afirmações atomísticas sobre objetos. A quase totalidade do que se pensou e se escreveu de valioso no mundo não se refere a isso. A obra inteira de Shakespeare não se refere a isso, a obra inteira de Platão não se refere a isso. O próprio Aristóteles, que foi o fundador da lógica, tem uma frase para se pensar: "A poesia é mais verdadeira do que a história". A história lida com o quê? Com fatos documentados. E a poesia? Lida com coisas que você inventou. Não! Você não inventou não! Você captou da experiência da participação e expressou em palavras.

Isso quer dizer que Aristóteles via na poesia uma forma muito superior de conhecimento. Ele não foi inventor da lógica. Ora, o que a poesia diz você não pode provar, mas você reconhece a veracidade daquilo porque você participa da mesma experiência, que ali não está tão descrita, está apenas insinuada, ou simbolizada. Então, partindo dessa noção da confiabilidade do testemunho, que não é dispensável nem na mais exata das ciências e não será dispensável nunca, você entende claramente que o aperfeiçoamento dos meios técnicos de prova tem uma importância filosófica muito pequena, porque não é disso que a filosofia trata. Porém, como a filosofia analítica só reconhece a existência de juízos atomísticos sobre objetos, então, para eles, isso é tudo.

Então, eu digo, uma geração de filósofos analíticos distintos, se ocupar de tentar provar que algo é impossível, depois vem outra e tenta provar que é possível. Isso é problema deles. Eles que se entendam. É "briga de branco" isso, deixa eles brigarem lá. Essa briga é de gente importante por quê? Porque eles dominam as universidades.

A história de como a filosofia analítica chegou a dominar as universidades é uma história de politicagem, de sacanagem, de boicote, não de superioridade intelectual. Houve gente muito superior a qualquer filósofo analítico que foi boicotada aqui: o próprio Eugen Rosenstock-Huessy, ou, até o próprio Eric Voegelin.

A filosofia não é a arte da prova. A lógica é a arte da prova. Aristóteles dava muito mais importância à dialética que é a lógica invenciones, a lógica da descoberta, do que à lógica, porque ele sabia que somente um grupo muito pequeno de objetos pode ser objeto de prova, e que as coisas fundamentais não serão objeto de prova jamais. Logo que você prova alguma coisa, pode aparecer outra objeção, e mais outra e mais outra. Você pode se manter ocupado por muitas gerações com isso aí. E é exatamente isso que a escola analítica vem fazendo. Isso é ocupação de nerds, não de filósofos.

Nesse sentido é que eu considero que a admiração que certas pessoas têm por isso é aquilo que Ortega y Gasset chamava de admiração ao "Hércules de feira ", um sujeito fortão, que fica lá levantando peso e que não serve para absolutamente nada. Tem gente que admira muito a capacidade técnica em si, o virtuosismo técnico em si, e é exatamente disso que se trata com essa escola analítica; ali dentro só resta você aperfeiçoar instrumentos técnicos de demonstração para inventar objeções ou para respondê-las.

Só que tudo isso o que é? É uma discussão retórica, que não terminará nunca. Por isso mesmo é que os admiradores disso tendem a uma atitude devota, de verdadeiros crentes, que não admitem um arranhão.

Esse rapaz que escreveu no Facebook, o Fábio Salgado de Carvalho, pelo menos tem a decência de reconhecer o seguinte: "Saul Kripke, com o trabalho Naming and Necessity teve o impacto de ressuscitar a metafísica, a qual andava desacreditada, pelo menos entre os analíticos". Mas isso é um problema dos analíticos. Eles criaram objeções por quê? Porque eles trataram as afirmações metafísicas como se fossem juízos atomísticos sobre objetos, coisa que elas não são. A coisa já começa com um erro de leitura.

Quando eu li pela primeira vez a História da Filosofia Ocidental, do Bertrand Russell, que era um autor de que eu gostava muito na época, eu via que quando ele tratava de Platão, ou de Hegel, por exemplo, ele simplesmente não sabia ler. Ele não sabia do que eles estavam falando. Ele tratava tudo como se fosse exatamente juízos atomísticos sobre objetos, quando não são. São expressões simbólicas duma experiência. Experiência o quê? Subjetiva? Não, experiência da participação, experiência da metaxis.

Ele simplesmente não entende esses filósofos. Então tem alguma coisa a menos na cabeça dele. Ele só admite, ele só aceita, aqueles pensamentos que ele pode dominar e provar, ou seja, somente juízos atomísticos sobre objetos. Então, para eles, tudo é objetivo ou subjetivo. A metaxis, a participação, não existe mais. Infelizmente nós estamos dentro da metaxis. Sujeito e objeto são distinções funcionais.

Eu escrevi isso também a respeito de Kant. Quando Kant diz que nós só conhecemos os fenômenos, e nunca o que está por trás deles, os numenos. Eu diria que ele só diz isso porque ele só concebe a si mesmo como sujeito do conhecimento, nunca como objeto. Ele não lembra que [1:10] ele também é objeto, e que, se é verdade que nós só conhecemos os fenômenos, então nós não podemos conhecer o pensamento de Kant, nós só podemos conhecer a sua aparência fenomênica.

É um erro pueril, se você pensar. Como é que um gênio como Kant comete um erro desses? Em primeiro lugar não sei se é tão gênio assim, é apenas uma mente complexa. Gênio para mim é aquele que transmite coisas importantes e não quem cria dificuldades para depois vender facilidades. A história da escola analítica consiste nisto: uma geração cria dificuldades, depois a outra vem e vende facilidades. De Bertrand Russel e Wittgenstein até Alvin Plantinga e Michael Dummett, foi isso o que aconteceu. Esses dois últimos, depois de decorridos 100 anos, estão provando que é possível fazer aquilo que os anteriores diziam que era impossível.

Isso é um assunto gremial, isso não tem nada a ver com a evolução da história da filosofia, mas com um desenvolvimento paralelo local do mundo anglo-saxônico. Isso começou na Alemanha, mas pegou mesmo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Em função disso, vemos que essa opção que eles fizeram já é irracional, por apostar na perfeição do discurso lógico, quando a própria expressão "discurso lógico" já é ilógica.

Quando o sujeito aposta numa coisa dessas, evidentemente ele está mentindo para si mesmo, está numa posição existencial absolutamente falsa, está vivendo em cima de uma impossibilidade pura e simples, por isso a suscetibilidade neurótica que esse pessoal tem quando a gente fala de Wittgenstein ou qualquer outro.

Então, esse menino que escreveu para o Seminário de Filosofia faz exatamente isso. Como é mesmo o nome dele? Douglas. Como está publicado no Seminário de Filosofia então acho que merece alguma discussão.

"Não sei qual o seu objetivo em caluniar o Wittgenstein". Bom, em primeiro lugar use as palavras certas. Caluniar é atribuir crime, eu não atribuí crime nenhum a Wittgenstein, então, se quer me acusar de alguma coisa, acuse-me de difamá-lo, não de caluniá-lo. "Como eu conheço bem a vida do sujeito". Não conhece não, nós vamos ver daqui a pouco. "[...] para ficar apenas em dois exemplos, o senhor em alguma aula passada, disse que Wittgenstein não foi para o campo de batalha, ficou apenas fazendo serviço de escritório, chamando-o também de covarde".

Eu não disse nada disso. Eu estava me referindo ao fato de que, na Segunda Guerra, ele fez trabalho de análise de informações ao invés de ir para o campo de batalha, isso não implica em covardia nenhuma. Eu estou apenas descrevendo o tipo de trabalho que ele fez na Segunda Guerra. Aí não há nenhuma insinuação de covardia. Será que todos os analistas de informação são covardes por causa disso? Não, não há aí nenhuma insinuação de covardia, isso está na sua imaginação.

É aquele negócio, brasileiro não lê o que o escritor escreve, ele lê o que imagina que o escritor pensou. Então, você está me atribuindo intenções que, obviamente, pela minha frase, não se pode dizer que eu tive.

Em segundo lugar, eu estava me referindo a Segunda Guerra, e não a Primeira, porque daí ele vem e diz que Wittgenstein esteve no front, recebendo várias condecorações. Isso foi na Primeira Guerra, eu estou me referindo ao serviço que ele fez na Segunda. O que uma coisa tem a ver com a outra? Absolutamente nada.

"Em outro momento, o senhor diz que o sonho do filósofo era ser professor na União Soviética, mas que ninguém deu um cargo a ele, o que o deixou frustrado, o que é falso. Wittgenstein recebeu oferta de uma cátedra na Universidade de Kazan, e uma segunda oferta [...]".

Não, eu disse que ele tinha o sonho de ir para a União Soviética, eu não disse que ele tinha o sonho de ser professor na União Soviética.

E ele diz: "Ele não aceitou nenhum dos dois convites". Bom, ele começa a me falar dos biógrafos do Wittgenstein e cita alguns, entre os quais o Ray Monk. Ele não leu o livro do Ray Monk, se tivesse lido, saberia por que o governo soviético ofereceu primeiro um cargo na Universidade de Kazan e depois outro na Universidade de Moscou ao Wittgenstein. Porque ele estava querendo ir para lá fazer serviços voluntários, humildes serviços voluntários. Ele adorava tanto a sociedade soviética que queria sacrificar a sua carreira acadêmica para se dedicar à construção da sociedade soviética. Isso chegou ao ouvido dos governantes em Moscou e eles disseram: "Pô, não fica bem você pegar um cara que está lá em Oxford e deixar ele limpar privada aqui em Moscou. Que ele vão dizer de nós?". Aí disseram: "Se ele quer vir para cá, então venha como professor de universidade".

Então, este caso aqui prova exatamente o amor exagerado que ele tinha à sociedade soviética, e não que ele desprezou os dois convites que tinha recebido, provando que ele não queria ir para a União Soviética. Ele queria ir sim, mas não como professor. Ele queria ir como um humilde militante e queria levar alguns estudantes para fazer a mesma coisa.

Depois o Douglas diz: "Ah! O senhor comprou as idéias do livro de Kimberley Cornish, The Jew of Linz". Não comprei idéias nenhuma! A única informação que usei deste livro foi a respeito da decifração dos códigos navais alemães, que me parece uma informação bastante viável e que não foi desmentida corretamente em parte alguma. O resto, todas as teses enunciadas lá, não tem nada a ver com isso. Eu as considero altamente duvidosas. Eu sei que o autor partiu de dois fatos que ele tinha na mão. Um, é o referente à decifração dos códigos alemães, o outro, é que Wittgenstein e Hitler freqüentaram a mesma escola na Áustria. Partindo disso, ele construiu toda uma série de especulações que são completamente ousadas, no mínimo.

Agora, eu não cheguei a dizer que Wittgenstein foi um espião soviético. Ele fez esse trabalho. São coisas completamente diferentes. Você acha que qualquer um que se ofereceu para entregar uma informação é um espião soviético. Você está completamente enganado. Um espião precisa ser formado para isso, o que dá um trabalho miserável. Wittgenstein não teve essa formação. Então, ter colaborado com o governo soviético não faz dele um espião, e nem eu disse que isso o fizesse.

Daí ele faz algumas críticas, sem citar sequer as fontes...

"Wittgenstein é inocente do crime que lhe foi imputado, como ser um espião". Eu não disse que ele foi um espião. Eu disse que ele decifrou o código naval alemão e entregou para os russos e não para o governo inglês. Isso sequer pode ser qualificado como traição porque na época Rússia e Inglaterra eram aliados. Condená-lo como criminoso seria injusto, como aconteceu com um sujeito aqui nos Estados Unidos, o Jonathan Jay Pollard, que entregou um segredo para Israel, que é um país aliado. Ele foi parar na cadeia, mas é totalmente injusto. Há, inclusive, uma campanha nacional em favor dele.

Portanto, eu não estou acusando Wittgenstein de crime algum, estou apenas fornecendo um dado que prova a adoração dele pelo regime stalinista. Mais propriamente pelo stalinismo que pelo comunismo, porque ele não era propriamente um marxista, nem um adepto sistemático do socialismo.

Outra coisa, eu nunca disse que Wittgenstein foi socialista. Se você analisar bem a ideologia dele, perceberá que ele era um totalitário, sempre. Ele era contra a democracia, contra a ciência moderna aliás, anti-iluminista radical; mas que, na objeção dele ao mundo moderno, metade era revolucionária e metade reacionária. Agora, no meio disso, quando apareceu o stalinismo, deixou-o encantado. Mais ainda, se você lesse o livro do Ray Monk veria que ele estava tão obcecado, tão hipnotizado de paixão pelo regime soviético, que não abdicou disso nem mesmo quando houve o escândalo dos processos de Moscou, que foi o que criou a primeira onda de decepções e defecções do movimento comunista. Ele ficou lá, impávido colosso.

Então, eu não disse que ele era um socialista, ou um comunista. Só disse que ele era um puxa-saco de Stálin, um adorador de Stálin e do stalinismo.

Agora, o cidadão vem aqui, e é a segunda vez que ele insiste em discutir sobre Wittgenstein. O seu amor ao Wittgenstein é, realmente, um negócio que está começando a me parecer mórbido. Não se pode falar nada sobre o Wittgenstein que, primeiro: o Douglas amplia o que foi dito; para dar uma impressão horrorosa, e depois começa a discutir e querer contestar.

[Intervalo]

Temos algumas perguntas interessantes, vamos começar com essa aqui do Leandro Diniz:

Aluno: Para que possamos plantar aa semente da civilização em nosso deserto mental, de tamanho continental, não seria uma urgente missão resgatar o que fizeram os gigantes da Idade Média (daí ele cita aqui um parágrafo do Luiz Jean Lauand com que eu concordo plenamente).

Olavo: A resposta é evidentemente sim; com uma ressalva: a cultura escrita que nós recebemos da Idade Média já não tem em si o segredo de sua própria grandeza. Tudo que foi feito a partir do fim do século XII, sobretudo no século XIII resulta de três séculos de trabalho anônimo e discreto feito nas chamadas escolas catedrais, que eram escolas que visavam não à produção intelectual mas a criação de grandes personalidades. Eu recomendo esse livro The Envy of Angels -- A inveja dos anjos -- o autor chama-se C. Stephen Jaeger. Este livro tem que ser muito meditado porque aqui você vê o que é a verdadeira educação. Não quer dizer que as técnicas que eles usavam naquela época possam ser repetidas hoje, mas é algo que pode muito nos inspirar. Outro dia alguém me perguntou: a educação clássica não poderia resolver as coisas? Nem a educação clássica nem a imitação dos grandes filósofos medievais podem nos dar isso porque, em geral, é a superposição de uma cultura letrada a uma personalidade tosca e mal formada. Não se pode esquece que se você nasceu e cresceu no Brasil têm vícios de sentimentos e julgamentos desde a infância, vícios de percepção e isso tudo tem que ser corrigido primeiro. Você tem que fazer uma revisão dos seus sentimentos de base das suas reações mais espontâneas e ver se você não esta perdendo alguma coisa. Por exemplo: Qual o tipo de senso de humor que você tem? Vejo que hoje em dia no Brasil, as novas gerações só acham engraçado aquilo que é sádico, aquilo que humilha o ser humano. Um humor compassivo ou doce eles já não sentem que seja engraçado. É preciso ter sempre uma maldade.

Isso vem do berço, vem da casa. Não é uma coisa que a educação letrada, por si, possa corrigir. Isso tudo só pode ser corrigido mediante um aprofundamento e a um exercício muito sério do próprio método da confissão: Quem sou eu? Quais são meus sentimentos de base? O que eu realmente sinto com relação às pessoas?

Vejo que sentimentos verdadeiramente compassivos estão praticamente ausentes da sociedade brasileira, as pessoas não sabem mais o que é isso. Lembrei-me de um vídeo que tem no YouTube, em que uma senhora sem cultura e evidentemente de Q.I. Baixo, tentando pronunciar a palavra YouTube e não consegue de jeito nenhum. Você pode olhar isso de duas maneiras: como uma espécie de prazer sádico em ver a burrice e a incapacidade do outro ou com humor compassivo -- coitadinha, ela não consegue mesmo -- é engraçado. Então, você vai rir sem malícia, sem maldade, sem querer humilhar. Eu vejo que as reações das pessoas com relação a isso são muito diversas, mas, qualquer forma de humor em que esteja ausente a compaixão, a mim, não parece ser engraçado de jeito nenhum, me parece sim algo muito triste.

Claro que você pode exercer um humor sádico, mas não com relação a pessoas inermes, desamparadas e muito fracas. Pode-se fazer isso quando se trata de um sujeito forte e presunçoso. Humilhar esses camaradas é até um benefício que você faz para a humanidade e até a eles mesmo como essas maldades que eu acabo de fazer com o Sr. Júlio Lemos que ele fez por merecer e acredito que isso não fará mal algum a ele. Quando a pessoa está empedrada, somente a humilhação pode arrebentar a casca que está em volta do coração dele e fazê-lo sentir alguma coisa, se não consegue sentir nada que sinta pelo menos humilhação.

Toda educação dos sentimentos é uma coisa que hoje, praticamente, não existe mais porque para tê-la você precisaria ter o que havia nessas escolas catedráticas dos séculos X, XI e XII. Que não é uma fase brilhante da atividade intelectual humana, mas é onde se criam as bases humanas, espirituais e psicológicas de vão mais tarde florescer na maravilhosa cultura letrada do século XIII. As grandes obras escolásticas não saíram do nada. Goethe dizia que: "O Gênio é um prêmio que Deus dá a uma família depois de muitos séculos de virtude e abnegação". Quer dizer, onde houve várias pessoas de mérito naquela família, aparece um gênio das artes, das ciências, mas que isso não saiu do nada. Eu acho que ele tem razão.

A um longo trabalho anônimo por trás de tudo isso e ali, não na cultura letrada, esta a base da civilização. A cultura letrada já não pode ser uma base porque ela já é um florescimento. Florescimento é aqui que aparece em cima, aparece na superfície da planta.

Aluno: Há mais de um ano que não assisto a uma aula ao vivo. Sou um de seus primeiros alunos e atravesso uma experiência curiosa: estou numa fase tal de abstinência de opiniões que desconfio até de meus próprios sentimentos, quero descobrir as causas primeiras do meu pensar e só encontro vícios e falhas. Estou paralisado, incapaz de perceber minhas próprias intuições pois vejo nelas apenas conseqüências de impulsos alheios a mim mesmo. Perdi a confiança nas leituras porque elas me parecem áridas e estéreis. Consigo apenas refletir em minha consciência um pálido simulacro de experiências que sei que não são minhas e continuo sedento pelo momento que motivou o autor a escrever, sabendo que não são meus os seus pensamento. Tento fomentar em mim o dom de dilatar o entendimento a ponto de reverberar em minha alma, nem que seja ao menos por um instante, a nota que vibra na obra de um grande autor, mas vejo que é marginal o meu esforço por não conseguir verbalizar minha experiência própria com tão perfeita eloqüência. Enfim, percebo a grande que me cerca ao mesmo tempo em que percebo a insignificância do meu ser e isso me traz uma angústia devastadora.

Olavo: Bernardo, está na hora de você virar um filósofo. É assim que você tem que estar para começar a praticar a técnica da confissão. Sua confissão não está perfeita ainda porque ela está muito baseada num sentimento autocrítico e não consegue verbalizar uma experiência própria. É isso que você tem que começara fazer. Esforçar-se para verbalizar a experiência própria, real. Por enquanto você esta fazendo uma autocrítica. Isso de fato não é uma descrição da experiência, é um pensamento crítico que você está fazendo de si mesmo. Mas a partir da hora em que você realmente conseguir verbalizar o que se passa dentro de você -- isso pode ser feito numa linguagem literária ou numa linguagem filosófica -- as duas coisas comportam dificuldades, você estará tendo alguma experiência da realidade. Acho que você está num momento muito bom. Temos que ficar justamente assim: Não tenho certeza de mais nada eu não sei quem eu sou, eu não sei o que estou fazendo aqui, não sei o certo e o errado. Ótimo! É assim que se faz! É assim que se começa!

Evidentemente a palavra confissão tem mais o significado da confissão dos pecados e dos erros. Mas aí tem um momento que é muito perigoso: que é o momento em que você não consegue distinguir o arrependimento do remorso. Remorso é uma palavra que vem de remorder, quer [1:30] dizer, morder a si mesmo, e o arrependimento é exatamente o contrário, é quando se vai a Deus para pedir que ele te poupe de uma punição. Se você está com remorso você já está se punindo. Você não pode estar buscando uma punição e uma absolvição ao mesmo tempo. Portanto, não há arrependimento verdadeiro enquanto você está na fase do remorso. Se você está na fase do remorso você já virou juiz de si mesmo e está querendo, de alguma maneira, sofrer as conseqüências dos seus atos, portanto está querendo uma punição. Na confissão verdadeira você pode pedir a Deus, não apenas o perdão dos seus pecados, pedir que eles não impliquem em conseqüências espirituais no juízo final, mas também pedir até que Ele te poupe das conseqüências temporais. A Igreja quando dá uma indulgência plenária ao sujeito: você está livre de todos os pecados que cometeu na sua vida -- está livre das conseqüências espirituais, as do juízo final, mas sem prejuízo das penalidades temporais. Se um sujeito matou uma pessoa e recebe indulgência plenária isso não será levado em conta no juízo final mas a polícia pode prendê-lo e leva-lo para cadeia. Mas você também pode pedir a Deus que te poupe das penas temporais e das conseqüências dos seus atos. Isso só Deus pode fazer e eu garanto que isso funciona porque já aconteceu comigo: Eu quero que o Senhor poupe-me das conseqüências. E ele poupou. Muita gente tem essa experiência. Então, quando você vai para a confissão, você não pode ir com espírito de remorso, espírito de tristeza, claro que você tem que sentir tristeza na hora que você lembra dos pecados, mas daí você diz: o que eu quero é a libertação completa. E realmente não é possível quer isso se você já está se punindo, então, tem que parar a punição. Isso é muito importante -- Confissão é um momento de esperança. Se você não espera ser absolvido, para que pedir? O Senhor vai mandar-me para o inferno mesmo mas eu vou pedir perdão. Isso é masoquismo, você está se castigando.

A tendência ao remorso é evidentemente demoníaca e você pode ver como funciona este negócio porque a acusação demoníaca jamais para na nossa mente ela é como as objeções da escola analítica: não vão terminar jamais. E existe uma diferença do que é a dúvida humana e o que é a objeção demoníaca. A Dúvida humana, quando você dá uma explicação acalma enquanto que a objeção demoníaca não para jamais. Há experiência em que percebo que até meus sentimentos vem de coisas externas. Uma das coisas externas, meu filho, é o diabo, o diabo existe e esse que tem o discurso de acusação dentro da sua cabeça não é você, isso é diabólico mesmo. Não é algo controlável, o máximo que você pode fazer é não acreditar, mas ele vai continuar e continuar. Você não pode ir para uma confissão, nem no sentido ritual da coisa, nem no sentido de uma confissão interior, com espírito diabólico de auto-acusação. Acertar a verdadeira sinceridade, que eu chamo de descobrir a própria voz (esse que está falando sou eu, não o diabo dentro da minha cabeça, também não é uma advogado de defesa, sou eu mesmo!), quer dizer eu como autor dos meus atos, com plena responsabilidade do que eu fiz eu reconheço que não quero sofrer as conseqüências nem espirituais nem temporais, então eu peço a Deus que me livre. Não é possível você pedir uma coisa dessas e estar se punindo ao mesmo tempo. Existe uma forma de "sincerismo" masoquista que é uma das piores perversões da alma. Você fala só aquilo que é ruim. É isso que as pessoas pensam ser sinceridade. Isso é um teatro também. Você se fazer de importante, de bonzinho claro que é um teatro, mas esse sincerismo masoquista também é. Então, Bernardo, cuidado para você não cair nesse sincerismo masoquista. É preciso falar as coisas como elas são entendendo o seguinte. Primeiro, você realmente não é pior que os outros. A experiência humana verdadeira é muito parecida em todas as pessoas embora individualizada. Você tem que falar coisas nas quais as pessoas se reconheçam também.

Aluno: Estou na aula 62 e peço desculpas por sair um pouco dos tópicos desta aula. No artigo publico hoje "Cigarras e Formigas" o senhor cita Wittgenstein como entusiasta do stalinismo o contexto é que levantando o status questionis do trabalho que pretendo realizar na área de estética, vi que o Wittgenstein também versou nessa área. Ele é um autor confiável nessa área?

Olavo: Não! Wittgenstein não é confiável em coisíssima nenhuma! Embora seja um homem de enorme capacidade. O que falta a ele é um mínimo de sinceridade. Um sujeito que oculta fontes e escreve coisas como Tractatus lógico-filosófico que obriga a aceitar vinte páginas de premissas arbitrárias para depois fazer uma construção em cima e depois dizer que essa construção não vale nada e que é melhor ficar quieto. O que esse cara está querendo? Ele realmente está fazendo consigo mesmo aquele negócio de inventar dificuldade para vender facilidade. Não é alguém que se deva levar a sério, eu recomendo um livro para vocês chamado Malign Masters -- Os Mestres Malignos - o autor chama-se Harry Redner, é um filósofo australiano, e trata de quatro filósofos: Giovanni Gentile, Wittgenstein, Heidegger e György Lukács. Filósofos ideologicamente diferentes mas os quatro com mentalidade totalitária, um totalitarismo às vezes mais formal, menos informal mas ele está lá. Quanto ao Wittgenstein, ele não tinha uma ideologia socialista ou comunista, ele era meio revolucionário, meio reacionário mas de qualquer maneira era um totalitário sempre. Ele gostou do Stalin porque era totalitário apenas não porque ele tivesse estudado marxismo, que ele nunca estudou, vamos dizer que ele era comunista sem ser marxista, do que ele gostava era a idéia da sociedade totalitária em si, ele via isso como uma resposta ao artificialismo da vida moderna. Artificialismo que, de certa forma, ele era um representante. Então, antes de você começar a ler Wittgenstein, leia o livro do Harry Redner. Claro que você vai ter que passar pelas idéia estéticas do Wittgenstein mas não faça isso antes de ler o Redner.

Aluna: Celina diz: a aula está supimpa -- obrigado -- Diga-me; a Escola Analítica e a Escola de Frankfurt são demoníacas? --- ela escreve Freakfurt, está muito certa.

Olavo: Ambas são demoníacas uma num sentido outro em outro. A Escola de Frankfurt ela parte mais de uma espécie de angelismo, quer dizer, como ela faz a crítica de tudo o próprio fato de eles chamarem de teoria crítica: Nós não vamos afirmar nada nós só vamos falar mal de tudo que existe. É a crítica do Universo. Isso pressupõe angelismo, vocês estão acima de tudo. Vocês são críticos do Universo? Isso aí é agnosticismo quatro cruzes e sempre coloca você fora do âmbito. Aí chega naquelas situações em que eles ficam estimulando os garotos a serem rebeldes a destruir a instituição universitária, mas quando eles invadiram a sala do Teodoro Adorno ele achou muito ruim. É só no dos outros. Isso é de uma hipocrisia! Não é nem paralaxe cognitiva é hipocrisia pura e simples. E a Escola Analítica é demoníaca no sentido da objeção sem fim, isto é, prolongar inutilmente uma discussão que você deveria cortar na base mediante o poder do [1:40] testemunho: eu não preciso de uma prova definitiva do que estou dizendo por que eu sei, eu estive lá e eu vi. Se existe a recusa do testemunho então você começa a buscar os procedimentos absolutamente certos de demonstração; o discurso absolutamente coerente o qual não existe e que, às vezes você pode usá-lo para negar alguma coisa ou afirmar alguma coisa mas a discussão vai continuar do mesmo modo. Então, a presente geração tem inúmeros cristãos na Escola Analítica que estão ali tentando convencer os outros de que a metafísica e possível, que Deus existe, etc. Vamos ver a geração seguinte -- vai negar tudo de novo. Uma pessoa que entrou no espírito da negação obsessiva, o espírito da objeção interminável, não precisa de resposta, nenhuma resposta vai satisfazê-la. Se ela já pulou fora da confiabilidade do testemunho então ela mesma não é confiável mais. Você vai prolongar a discussão em vão.

Aluno: A famosa defesa protestante de um cristianismo bíblico, que a bíblia deve interpretar a própria bíblia não é análoga ao apego dos cientistas à lógica desconsiderando a confiabilidade do testemunho?

Olavo: Se bem que eu não acuso os cientistas modernos disso, quem é culpada é a Escola Analítica, não os cientistas. A frase em si não está errada. Se você desconfia, se você não tem alguma confiança na credibilidade das primeiras gerações de cristãos então como é que você vai confiar na bíblia? Como é que você vai confiar nos evangelhos, escritos quarenta anos depois dos acontecimentos? Se você não tinha uma atmosfera de santidade como pode ter emergido dali o texto do evangelho? É como diz o Padre Paulo Ricardo: parece que a bíblia apareceu pronta. Sem a confiabilidade da Igreja também não tem o Evangelho. O Evangelho não saiu do nada. Acho que existe esse forte elemento crítico que origina o protestantismo com fortes elementos de insinceridade. Leia o livro do Heinrich Denifle sobre Lutero, que é um livro recomendado pelo próprio Eric Voegelin, o qual era luterano, ou pelo menos teve formação luterana e pediu para ser sepultado no rito luterano. O livro mostra os elementos de insinceridade, de farsa ali em Lutero. Lutero era muito forte e algo disso passou para as gerações seguintes e isso não vem sem culpa, quer dizer, a pessoa sente culpa, alguma culpa dentro de si e essa culpa tenta aliviar no angelismo, aquela conduta impoluta, aquela fiscalização da conduta alheia que nos EUA a gente vê muito, e no Brasil também. Esses pastores indo à TV acusar um ao outro: Ah, você comeu sua empregada! O outro dizendo: Você comeu a mulher do seu vizinho, você roubou... A que leva tudo isso? Não leva a absolutamente nada.

Por hoje já foi, aliás, já foi longe demais. Existe um apêndice desde texto sobre o divórcio entre ciência e filosofia que vamos analisar na aula que vem e depois nós retomamos o Descartes.

Até semana que vem e muito obrigado.

Transcrição: Rafael Guedes da Silva, Paulo Ricardo Costa Pinto, Jeferson Leandro Milani e

Vicente Pessôa.

Revisão: Carlos Felice Zaccardelli.

Footnotes

  1. ^1^Eric Voegelin, "Structures of Consciousness", Conference at York University, Toronto, November 22, 1978, transcription by Zdravko Planinc.

  2. Olavo de Carvalho, "Kant e o primado do problema crítico", Apostila do Seminário de Filosofia 1 -- Fevereiro de 1996 - http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/kant.htm