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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 137

14 de janeiro de 2012

Boa noite a todos, sejam bem-vindos.

À medida que nós vamos lendo este texto do Descartes, vocês vão apreendendo aos poucos como é a técnica da leitura aprofundada de textos filósofos. Nesta técnica o foco da sua atenção desliza entre vários planos de realidade. Primeiro, naturalmente, você terá de entender cada frase separadamente no seu sentido mais imediato e material. Mas é claro que isso não basta se você não entender qual é o lugar dessa frase dentro da seqüência em que ela está colocada. Então você tem uma espécie de relação, uma dialética, uma tensão entre a parte e o todo já no próprio texto.

Em seguida, em busca do significado disso, você tem de se voltar para si mesmo e perguntar: O que isso significa para mim agora? Qual é a ressonância que isso tem dentro de mim neste momento? Ao fazer isto, você nota que existe uma separação, quase que um abismo, entre você e o autor do texto na medida em que você está situado entre outra época, outra cultura, outra língua etc. Então existe aí também uma segunda tensão entre o seu ambiente cultural e o ambiente cultural do autor.

Após ter percorrido todo esse percurso, você lerá a frase seguinte e repetirá o mesmo processo novamente. Isto quer dizer que, para cada linha que você lê, existe um jogo entre a intenção do autor e a intenção com que você o está lendo, quer dizer, a repercussão que a coisa tem dentro de você, o que aquilo significa na sua experiência. E ao mesmo tempo esta experiência tem de ser compreendida em termos do que você sabe do seu ambiente cultural e psicológico que formou a sua mente. E é a partir dos elementos que esse contexto cultural lhe dá que você vai poder compreender o contexto cultural do autor e assim por diante.

De modo que nessas várias operações não é possível você realizá-las em série. Primeiro, fazer uma leitura estritamente literal e segundo, analisar o ambiente cultural, quer dizer, primeiro fazer uma leitura interna para depois fazer uma leitura externa. Há quem sugira isso. Eu acho isso absolutamente utópico. Não tem como você fazer isso em série, você terá de fazer tudo isso ao mesmo tempo. E é por isso mesmo que a leitura desses textos tem de ser mais lenta do que a leitura de um texto de ficção ou de história.

Eu costumo comparar os livros de filosofia como se fossem partituras musicais. Elas, em si mesmas, nada significam, é necessário você executá-las. Para [que] o [texto] adquira a sua plena realidade, é preciso que você faça algo com [ele]. E o que você vai fazer? Você vai refazer as mesmas experiências interiores e vai chegar as suas próprias observações e conclusões, as quais podem coincidir em mais ou em menos com as do autor. Mas se você não consegue refazer a experiência, então tudo aquilo não significa nada para você.

Mas este refazer implica também você estar consciente de que os significados que as palavras do texto dele adquirem para você não são necessariamente as mesmas que ele tentou expressar. Aí há uma comunicação entre dois espíritos humanos. É como se fosse uma sessão espírita onde você está fazendo o sujeito reviver e falar com você alguma coisa, você vai ter de entendê-lo como ser humano. Isso significa que não há nenhuma possibilidade de entender um texto de filosofia, se você levar em conta somente as teses abstratas que ele está apresentando, e não o significado concreto que essas mesmas teses têm para o indivíduo real que as enunciou. Então uma certa identificação psicológica com o autor é absolutamente necessária.

Isso pode apresentar dificuldades enormes, e tanto mais complicadas quanto mais remoto no tempo seja o texto, principalmente se escrito em línguas mortas como o grego clássico ou latim. Aí você irá precisar de muletas filológicas o tempo todo, praticamente palavra por palavra. Mas é justamente aí que você vai recuperar a possibilidade de certas experiências interiores, das quais se originaram as idéias ou "doutrinas" do autor.

É importante você entender que a filosofia não se constitui das doutrinas prontas, mas, sobretudo das experiências cognitivas que as originaram, sem as quais elas não têm sentido nenhum. Quer dizer, um mesmo enunciado filosófico pode corresponder a diferentes experiências interiores. E se você não acerta e capta qual foi precisamente o que se deu no caso deste autor e deste texto em particular, então realmente você não entendeu o texto, você está criando uma outra filosofia por sua própria conta.

Quando tentamos fazer isso, nós vemos que tudo o que se fez no século XX em matéria da linguagem, sobretudo a partir da chamada escola analítica --- Bertrand Russel, Wittgenstein e outros ---, é uma coisa perfeitamente inútil. A idéia de Wittgenstein de que você poderia dissolver os problemas filosóficos mediante a pura análise da linguagem, ou seja, você pega uma tese filosófica e procura qual o "jogo de linguagem" que está por trás dela e a que isso corresponde na linguagem vulgar. Isso, segundo Wittgenstein dissolveria os problemas filosóficos. Você vê que isso é uma coisa totalmente utópica.

Em primeiro lugar, porque o sentido de uma filosofia não se esgota nas das palavras que o indivíduo está usando. Por trás dessas palavras existem experiências que têm de ser revividas e que por sua vez às vezes não são tão facilmente dizíveis num primeiro momento. Vocês viram que, analisando as primeiras meditações de Descartes e comparando com os três sonhos que ele teve, nós vemos que por trás da narrativa aparentemente tranqüila, da exposição tão límpida que ele está fazendo das suas experiências cognitivas, existe um aspecto quase de terror metafísico.

No confronto dele com o gênio mau, este confronto não é de maneira alguma uma figura de linguagem que ele está usando e muito menos um recurso lógico de exposição. Pelos sonhos fica claro que Descartes realmente teve o confronto com o gênio mau, que é a pergunta que ele faz: "Será que eu estou enganado a respeito de tudo?". Não é somente uma pergunta de ordem cognitiva, mas é uma pergunta sobre o destino da sua própria alma.

Esses dias inclusive eu estive tentando corrigir a minha apostila "Consciência e Estranhamento" para inseri-la no livro sobre Descartes e estive então revivendo aquela coisa toda e reexaminando para ver se eu tinha razão naquelas observações. Hoje eu acho que aquilo me parece mais certo do que na época em que eu escrevi. Aristóteles dizia que todo conhecimento começa com o estranhamento, uma emoção que ele chamava, em grego, tambus. Tambus não é só estranhamento, é espanto, na verdade. Então o espanto ante alguma coisa que você não compreende de maneira alguma. Mas que não é só um estranhamento cognitivo ou intelectual, é um estranhamento existencial que implica então a idéia de um medo, de um pavor ante o desconhecido.

Agora, quando Aristóteles diz que o conhecimento começa com o estranhamento, começa com o espanto, você vê que em nenhum momento Aristóteles estranha que isso aconteça. Quer dizer, o espanto provoca a busca do conhecimento, mas em nenhum momento ele pergunta: por que é assim? A existência do espanto e da busca do conhecimento que o espanto desperta, para [Aristóteles] é um processo natural que por si mesmo não requeria nenhuma explicação. E ele também não estranha que o ser humano conheça.

Você veja que a busca do conhecimento e a busca dos critérios do conhecimento supõem que o conhecimento exista. Se você sabe que você é capaz de fazer alguma coisa, você pode até investigar como é capaz de fazê-lo ou por que é capaz de fazê-lo. Por exemplo, nós podemos estudar a fisiologia da respiração e para isso nós precisamos continuar respirando. E se nós não respirássemos, não investigaríamos fisiologia da respiração nenhuma.

Então é este o espírito com que Aristóteles se lança nesse estudo, existe uma natureza, existe um mundo objetivo, o ser humano tem uma determinada constituição, uma determinada natureza, e o que eu tenho de fazer é simplesmente tentar entender e descrever essa natureza tal como ela aparece. Não há em Aristóteles nenhuma tentativa de se colocar fora da natureza humana ou fora da estrutura da realidade e tentar fundamentá-la ou justificá-la. A justificação de tudo é buscá-la na própria natureza das coisas. Portanto, Aristóteles pode dizer que o conhecimento começa com o estranhamento, mas ele não estranha que ele mesmo possa conhecer. [00:10]

Porque se você se coloca numa posição de estranhamento perante o conhecimento, esta é a pergunta: onde está você no instante em que você faz isso? Por um lado, você é o sujeito do conhecimento, mas lhe parece estranho que você seja o sujeito do conhecimento, então você se coloca fora daquilo para observar a sua consciência, por assim dizer, desde fora. Eu digo, mas você não pode observar a consciência desde fora da consciência, é como você arrancar os seus próprios olhos para poder olhá-los. A consciência tem esta característica, você não pode sair dela, você só pode intensificá-la.

Então pergunto eu, a que corresponde na realidade esse estranhamento cartesiano perante o conhecimento? Ele não corresponde a nenhuma experiência humana que se possa realizar na prática. Eu posso estranhar tudo, mas eu não posso estranhar que eu esteja estranhando. Eu posso estranhar qualquer objeto de conhecimento, mas eu não posso me desidentificar de mim mesmo enquanto sujeito do conhecimento, o que é precisamente o que Descartes está tentando fazer.

Então a pergunta é por que ele quis fazer isso? Como é possível você estender, radicalizar a sua dúvida a este ponto de imaginar que tudo é um engano universal e que você está condenado ao erro pelos séculos dos séculos? Essa é uma hipótese tão extrema e tão radical e tão inumana que eu digo que nenhuma dúvida propriamente filosófica ou teórica poderia levar o indivíduo a desejar fazer essa experiência. Somente uma espécie de terror metafísico poderia induzir Descartes a esta hipótese do gênio mau. Quer dizer, será que estamos enganados a respeito de [absolutamente] tudo?

Esta hipótese jamais ocorreu a Aristóteles. Aristóteles admite o seguinte, algum conhecimento nós sempre tivemos. Então, por exemplo, você nasce com o conhecimento dos primeiros princípios da lógica, sem os quais você não poderia pensar. Por exemplo, o conhecimento do princípio de identidade não é uma coisa que precisa lhe ser ensinado porque você nasceu com isso. Então você já nasce com algum conhecimento e ao longo da vida você acrescenta outros conhecimentos e vai reorganizando tudo à medida que vai crescendo.

Aristóteles não tenta em nenhum momento se colocar fora do processo cognitivo para poder julgá-lo e examiná-lo. Esta desidentificação, esta ruptura profunda da alma consigo mesma não corresponde a nenhuma investigação propriamente filosófica, mas corresponde ao que nós podemos chamar o temor da segunda morte, o temor da morte da alma que é a total desidentificação entre a alma e ela própria. Quer dizer, é uma situação propriamente infernal.

Quanto mais eu examino esse texto das Meditações, mais eu vejo que a verdadeira motivação de Descartes foi a de exorcizar o temor do engano universal. E para exorcizar esse temor que implica então a perda da alma por si mesma, Descartes realiza, em escala pequena, o experimento da perda da alma por si mesma como se fosse ingerir homeopaticamente uma substância em dose infinitesimal para se vacinar contra o envenenamento por essa mesma substância. Então o que tem por trás disso é um experimento psicológico e espiritual de um radicalismo extremo. É isto que explica a atração que esse livro exerceu ao longo dos últimos quatro séculos. É isto, e não propriamente a validade do método que ele colocou.

Quando Edmund Husserl diz que o método da dúvida radical (da dúvida metódica) é o começo obrigatório de toda filosofia, eu acho que ele está radicalmente enganado. Ao contrário, eu acho que esse método não é realizável na prática. O sujeito cognoscente pode colocar tudo em dúvida, exceto a sua própria condição de sujeito cognoscente. De certo modo o cogito ergo sum já está pressuposto na própria pergunta inicial. Mas se você sabe que nada pode conhecer, se você mesmo não for o sujeito cognoscente, se você sabe que não pode se desidentificar da sua condição de sujeito cognoscente, então para que a idéia da dúvida radical, para que a idéia de duvidar de tudo? Não pode ser, de maneira alguma, para uma simples fundamentação lógica do conhecimento, deve ser para alguma motivação muito mais profunda e muito mais radical.

Este temor do demônio, temor do inferno, temor da segunda morte é uma coisa que está presente, de algum modo, em todos os seres humanos de maneira mais ou menos consciente. [Porém], é somente em Descartes que ela se torna o centro motivador de uma investigação filosófica. E, no entanto, ele não narra isso de uma maneira clara e sim como se fosse uma mera experiência cognitiva realizada na paz e no sossego e na segurança da sua mente, ou do seu quarto. [Como] no segundo sonho, ele se isola dentro do quarto e ainda ouve o ruído da tempestade lá fora e sabe que a tempestade não pode atingi-lo mais. Do mesmo modo que, para estudar e realizar as suas meditações, ele se fechava no seu quarto, garantindo que nada do mundo exterior viesse perturbá-lo.

Esta própria reação de se defender contra a tempestade, de se defender contra aquela ventania, fechando-se dentro do seu quarto, é exatamente a mesma coisa que o isolar-se dentro da sua mente para se defender contra um risco espiritual que o envolve. Isto [significa] claramente [que] a narrativa que Descartes nos oferece não corresponde à experiência real que ele teve, mas a uma espécie de simplificação dela, uma espécie de transposição de uma experiência espiritual e existencial muito grave para um plano da mera especulação lógica, tranqüila e sem maiores problemas.

E depois de tudo isso [Descartes] chega finalmente a encontrar o seu porto seguro na noção de Deus, quando diz que "eu tenho em mim a idéia de um ser infinito e perfeito, e eu não poderia nem criá-la eu mesmo", quer dizer, "eu não poderia tirar essa idéia de mim mesmo e nem de nada do mundo exterior, portanto deve ter sido o próprio Deus que infundiu essa idéia em mim". Então pronto, ali eu estou defendido contra o gênio mau. E a partir daí ele começa a especular sobre o conhecimento de Deus, mas começa a fazê-lo em termos que parecem o de um tratado escolástico.

A partir do meio da "Terceira Meditação", Descartes como que muda de plano. Adeus gênio mau, adeus dúvida radical, agora estamos aqui no terreno das certezas absolutas que nos vêm diretamente de Deus. E a partir daí, do conhecimento de Deus, nós podemos deduzir a possibilidade do conhecimento das demais coisas. Aí começa a aparecer a estrutura da Suma contra os Gentios de Santo Tomás de Aquino, que começa com Deus, depois desce para os anjos, depois desce para o cosmos, depois desce para o ser humano e para todos os conhecimentos mais particularizados. Você vai indo do mais universal para o mais particular, e de repente Descartes está aqui falando como um escolástico.

[No entanto], em que esta argumentação depende daquilo que foi colocado na primeira parte? Em absolutamente nada. A própria idéia que ele vai expor na "Quarta Meditação" que é a de que o conhecimento de Deus é primeiro na ordem. Primeiro você conhece Deus para depois você poder conhecer as outras coisas. É exatamente o argumento que já tinha sido apresentado por São Boaventura no "Itinerário da Mente a Deus", onde ele diz: "Se eu não conhecesse Deus, não conheceria mais nada. Portanto, tudo o que eu conheço, eu conheço em Deus e através de Deus". Que é um argumento que será depois impugnado por Santo Tomás de Aquino.

Santo Tomás de Aquino dirá que, ao contrário, nós partimos das coisas sensíveis para gradativamente, por analogia, nos elevarmos à idéia de Deus. Só que São Boaventura está falando da hierarquia dos conceitos e Santo Tomás de Aquino está falando do processo empírico real do conhecimento. Então são dois planos diferentes e as duas explicações não se contradizem de algum modo.

Mas qual é a diferença disso em relação ao que nós estamos vendo nessas meditações e veremos ainda com mais clareza na Quarta? É que Descartes está argumentando com uma tese boaventurina, mas pretendendo ao mesmo tempo estar descrevendo o processo real do conhecimento. Ou seja, ele está [00:20] querendo realizar o que fez Santo Tomás de Aquino pelos meios de São Boaventura. Quer dizer que a prioridade do conhecimento do divino, tal como aparece aqui nas "Meditações", não é somente de ordem metafísica --- o conceito dos particulares depende do conhecimento do conceito mais universal ---, ele está dizendo que na prática e na experiência real do conhecimento, nós primeiro conhecemos a Deus e depois as outras coisas. É uma terceira tese escolástica. Entre São Boaventura e Santo Tomás de Aquino apareceu uma terceira escola que seria então representada por René Descartes. O que eu não vejo é qual é a conexão entre essa argumentação e a dúvida metódica e o cogito ergo sum. Toda essa argumentação é perfeitamente independente.

Então vamos continuar lendo aqui. Estamos na "Quarta Meditação":

"1. Acostumei-me de tal maneira desses dias passados a desligar o meu espírito dos meus sentidos e notei tão exatamente que há muito poucas coisas que se conhecem com certeza no tocante às coisas corporais, que há muito mais que nos são conhecidas quanto ao espírito humano, e mais ainda quanto ao próprio Deus, que agora desviarei sem nenhuma dificuldade o meu pensamento da consideração das coisas sensíveis ou imagináveis, para dirigi-lo àquelas que, sendo desprendidas de toda matéria, são puramente inteligíveis.

2. E certamente a idéia que tenho do espírito humano, enquanto é uma coisa pensante e não extensa, em longura, largura e profundidade, e que não participa em nada que pertence ao corpo, é incomparavelmente mais distinta do que a idéia de qualquer coisa corporal. E quando considero que duvido, isto é, que sou uma coisa incompleta e dependente, a idéia de um ser completo e independente, ou seja, de Deus, apresenta-se ao meu espírito com igual distinção e clareza; e do simples fato de que essa idéia se encontra em mim, ou que sou ou existo, eu que possuo esta idéia, concluo tão evidentemente a existência de Deus e que a minha depende inteiramente dele em todos os momentos de minha vida, que não penso que o espírito humano possa conhecer algo com maior evidência e certeza. (...)"

Portanto, a idéia de Deus é a mais evidente de todas e ela deriva imediatamente do conhecimento que o pensamento tem de si mesmo enquanto existente no momento que pensa. Nós só temos aí um pequeno problema. Aqueles que assistiram o meu curso "Consciência de Imortalidade" sabe que ali eu fiz uma distinção muito clara entre o que é o eu substancial e o eu reflexivo, ou o eu autobiográfico. Ora, o eu que pensa só tem certeza de si mesmo no instante em que ele pensa --- é um instante, por assim dizer, atomístico, é um instante mais ou menos sem duração ---, mas ao mesmo tempo Descartes atribui a este eu atomístico a duração no tempo. Porque se eu faço um silogismo do tipo "penso, logo existo", eu estou supondo [que] aquele eu que existe é o mesmo eu que estava pensando e que, portanto, ele permaneceu o mesmo no tempo.

Só que a constatação dessa permanência no tempo não é acessível ao próprio cogito ergo sum. Se o cogito ergo sum é uma percepção instantânea --- estou pensando, portanto eu existo neste momento ---, isto não me dá evidência alguma de que eu existo no tempo, aquilo que é uma percepção imediata e momentânea não assegura a minha existência no tempo. Nós entendemos que se fôssemos apenas a coisa pensante a que Descartes está se referindo, a nossa existência seria atomística, nós só existiríamos no instante em que estamos pensando.

E, no entanto, todos os nossos atos, todos os nossos pensamentos, todos os estados interiores que vivenciamos supõem a nossa continuidade no tempo, ou seja, eu que estou aqui sou o mesmo que vivenciou tais ou quais estados no passado. Se eu não tivesse de algum modo a certeza da minha continuidade no tempo, então eu não poderia ser sequer o sujeito de uma frase, eu não poderia sequer dizer a palavra "eu". A possibilidade de dizer "eu" repousa inteiramente na existência de um "eu" substancial que transcende não só todas as suas vivências momentâneas, mas transcende o seu próprio pensamento.

Daí a diferença que eu estabeleci entre aquilo que é cognoscível e aquilo que é pensável. Há muitas coisas que são cognoscíveis, mas que não são pensáveis, ou seja, você não pode abarcá-las e contê-las com o seu pensamento, você pode apenas reconhecer a existência delas para além do horizonte do seu pensamento. E entre as coisas que são cognoscíveis, mas não são pensáveis, tem uma especial que é você mesmo, você pode se conhecer, mas você não pode se pensar como um todo, você só pode pensar aspectos, ou partes ou momentos.

E se você, como pretendia Hume, não tivesse "eu" substancial nenhum, se você se reduzisse a esses aspectos e momentos, então a existência do seu "eu" substancial seria apenas uma hipótese ou matéria de crença. E daí você teria uma situação muito peculiar, um eu que não existe que é apenas matéria de crença e tem, no entanto alguns conhecimentos seguros de validade eterna. Isso evidentemente é inconcebível. Então a existência do eu substancial não é matéria de pensamento, você não tem acesso a ele mediante o pensamento. Só existe uma coisa que você pode fazer você tem de admiti-lo. Isso não é matéria de fé e não é uma crença que você tem, é uma condição prévia sem a qual você não poderia ter crença nenhuma. Então a existência do eu substancial é matéria de reconhecimento e de admissão.

Quando nós entendemos isso, nós entendemos também que existe um limite do pensável, mas que esse limite não coincide com o do cognoscível. A idéia, por exemplo, de que a realidade fundamental das coisas é de ordem material e sensível e de que, dentro desse mundo material e sensível que se estende a nossa volta, existe uma coisa que se chama a nossa alma, ou pensamento, ou coisa pensante, se torna nessa hora inteiramente inviável. Por quê? Porque o conhecimento que eu tenho das coisas materiais é ainda mais atomístico e mais fragmentário do que o conhecimento que eu tenho de mim mesmo. Não há uma única sensação que se prolongue no tempo por mais de alguns segundos.

Hoje, por exemplo, que nós conhecemos melhor a fisiologia da visão, nós sabemos que o nosso olho pega um pedacinho, outro pedacinho, outro pedacinho e o cérebro imediatamente reconstrói um quadro. Mas você não viu o quadro inteiro, só viu certos pedaços. Então tudo o que se refere ao mundo material é realmente uma construção mental que você faz com materiais colhidos atomisticamente aqui e ali. Então o mundo material não pode ser o fundo contínuo em cima do qual emerge então o meu eu pensante, deve haver uma outra coisa mais estável e mais profunda do que o próprio mundo material. Mas também não pode ser o mundo dos meus pensamentos. Este eu a que se refere Descartes, que é o eu pensante, é o eu dos filósofos idealistas, ele também não pode ser a base constante sobre a qual se ergue todo o mundo do conhecimento. Por quê? Porque ele também é intermitente, porque ele também é fragmentário.

O que é permanente, o que está por baixo de tudo isso, é o que se chama o eu substancial. Ou como diria Guillaume Apollinaire: "Les jours s'en vont, je demeure" --- "os dias vão e eu fico". A minha existência substancial, que está por baixo do meu pensamento, que está por baixo de todos os meus estados interiores e que está por baixo também de todas as experiências sensíveis que eu tenho, este é fundamento seguro da realidade. Quer dizer, eu tenho de admitir que eu existo para muito além do meu pensamento e que, até para eu chegar ao "penso, logo existo", é necessário que eu seja algo mais além da coisa pensante a que Descartes está se referindo porque a coisa pensante só toma conhecimento de si mesmo de modo atomístico.

[00:30] Esta minha existência permanente é o fundamento de tudo o que eu conheço. E se existe uma comunicação, se existe um Deus que fundamentou a minha existência e que está, por assim dizer, me infundindo as idéias eternas etc., Ele não está exercendo esta ação no meu eu pensante, e sim no meu eu substancial. Deus não pode se comunicar diretamente com o eu pensante. Por quê? Porque o eu pensante é intermitente.

Então, se houvesse a comunicação diretamente Deus e o eu pensante tal como Descarte está dizendo aqui, a possibilidade de duvidar de Deus seria mínima. Ou seja, Deus sustenta minha existência, mas não a existência do meu eu pensante e sim do meu eu substancial que está por baixo do meu eu pensante e que não é acessível ao eu pensante e a qual o eu pensante só pode chegar mediante um reconhecimento, ou seja, mediante uma admissão da sua própria impotência e da sua própria limitação. Eu sei que eu existo realmente como substancia por quê? Porque eu não sou capaz de me pensar como um todo. Eu só penso momentos, aspectos etc.

Mas eu sei que para continuar fazendo isto eu preciso continuar existindo nos intervalos de pensamentos. Então é o limite do meu pensamento, vamos dizer, minha impotência cognitiva que me obriga a reconhecer a existência de uma coisa chamada realidade e saber que eu faço parte dessa realidade e que, portanto eu não preciso me reconstruir a mim mesmo desde o meu pensamento e reconhecer também que é impossível eu me fechar dentro do meu pensamento como está fazendo Descartes e, muito mais ainda, não posso me fechar dentro do meu pensamento e encontrar Deus ali. Então tudo que Descartes está argumentando aqui, pressupõe que ele conheça Deus por algum outro meio que não é este que ele está dizendo.

Estão entendendo? Eu não sei se essa explicação está demasiado sutil. Vocês vêm que para entender o que Descartes esta dizendo eu fui obrigado a voltar para alguma coisa que não foi Descartes que pensou, mas fui eu mesmo que pensei e que fui descobrindo ao longo do tempo. Que é a questão do eu substancial, portanto, a questão da imortalidade da alma. Então, essa foi uma experiência minha. Eu quando estava tentando escrever algumas coisas sobre experiências que eu vivi na infância, eu vi que eu estava absolutamente seguro de que aquelas experiências tinham se passado comigo e que eu era o sujeito delas não uma outra pessoa e eu perguntei: como isso é possível? E vi que se a minha certeza absoluta da minha continuidade no tempo, da minha identidade, dependesse do meu pensamento, seria absolutamente inviável. Porque -- estou falando, sobretudo daquelas experiências que eu escrevi sob o título de memória de um brontossauro-filósofo mirim, que está no meu blog - que eu comecei e parei -- entre o momento em que eu vivi aquelas experiências e o momento que eu decidi escrever algo a respeito transcorram-se cinqüenta anos e eu não pensei no assunto nesse ínterim.

Então, é evidente que, a minha identidade não foi construída pelo meu pensamento. Então, será que ela depende da continuidade do meu corpo? Não! Porque o meu corpo, já está mais do que provado, todas as células já são outras, já se modificaram completamente e eu não sou capaz de ter hoje as sensações que eu tinha quando era criança. Então, não existe continuidade nem no pensamento nem na existência corporal. Tudo que nós conhecemos do nosso pensamento e tudo que nós conhecemos das sensações corporais é matéria fragmentária, é como se fosse uma poeira absolutamente intermitente e fragmentária.

E, no entanto, de onde nos vem essa certeza da continuidade do nosso eu? Ela vem de uma absoluta imposição da realidade. Ou seja, eu não posso abarcar o mundo nem meu pensamento e nem nas minhas sensações e eu não posso abarcar a mim mesmo, ou seja: eu sou muito mais do que aquilo que eu percebo fisicamente e sou muito mais do que aquilo que eu penso. Então, nesse momento, Ah! existe um treco chamado realidade. E nós a conhecemos por algum meio que está, por assim dizer, por baixo, seja das sensações físicas, seja do pensamento. Então, existe uma outra modalidade de conhecimento e esse conhecimento [é] o que eu chamei de "conhecimento por presença".

O conhecimento por presença é uma condição sem a qual não é possível nem conhecimento pelas sensações nem o conhecimento pelo pensamento. Nós vemos que aqui, nessa análise que Descartes está fazendo, ele atribui ao eu pensante certas características que de fato pertencem ao eu substancial. Ora, você veja que coisa interessante, não é possível você ler aprofundadamente um texto filosófico sem você de algum modo não estar criando naquele momento a sua própria filosofia. Na medida em que você concorda, discorda, se ajusta ou se desajusta, você está reagindo intelectualmente de uma maneira ativa. E essa é a verdadeira maneira de ler os textos filosóficos, ou seja: você lê um texto filosófico filosoficamente, você lê um texto filosófico filosofando, não há nenhuma outra maneira de entender isso.

Existe uma reação, por assim dizer, criativa ao que o filosofo está dizendo e se existe alguma utilidade nos textos filosóficos, bom, é justamente de despertar isso em você. Isso significa que não é uma questão de você concordar ou discordar com o texto. Eu acho que não há nenhum texto filosófico que possa ser aceito integralmente por nenhum outro filósofo que o leia. Por quê? Porque nós todos estamos dentro da mesma realidade, mas eu acabei de dizer que essa mesma realidade é inabarcável pelo pensamento. Isso quer dizer que o filósofo qualquer que seja ele só vai se referir a esta realidade simbolicamente e analogicamente, ou seja, ele vai falar de certos detalhes que no intuito dele se reportam ao todo dentro do qual ele estava e dentro do qual você está.

Mas o todo não é dizível, ele é reconhecível, mas não visível então o que interessa é você se aproveitar do texto filosófico como um aglomerado de símbolos que despertam em você a consciência dessa realidade ou desse todo que você também não poderá expressar de maneira adequada. Mas aí a pergunta, para que eu preciso expressar o todo se todos nós estamos dentro dele e todos nós sabemos disso? Ou seja, a idéia de uma doutrina, a idéia de uma teoria que vá abarcar a totalidade é, de certo modo, autocontraditória, se uma teoria abarcasse a totalidade ela seria superior a essa totalidade, ela seria a chave de abóboda, por assim dizer, da totalidade. Então essa totalidade se tornaria dispensável nesse mesmo momento. Então a finalidade das teorias filosóficas nunca é expressar a estrutura da realidade como um todo, mas remeter as pessoas, recordar às pessoas a consciência de totalidade que elas já têm e sem a qual toda comunicação seria impossível.

Continuando aqui:

"(...) e já me parece que descubro um caminho que nos conduzirá dessa contemplação do verdadeiro Deus, no qual todos os tesouros da ciência e da sabedoria estão enterrados ao conhecimento das outras coisas do Universo. Pois, primeiramente, reconheço que é impossível que ele me engane jamais, posto que em toda fraude e embuste se encontra algum modo de imperfeição". (...)

Então aqui ele encontrou o sossego e a paz perante a hipótese do gênio mau. O Gênio mau não me domina, ele não pode me enganar, sobretudo porque para isso ele precisaria se sobrepor a autoridade de Deus que me criou e no qual não existe imperfeição ou engano.

E, conquanto me pareça que querer enganar seja sinal de sutileza ou de poder. Todavia, querer enganar testemunha indubitavelmente fraqueza ou malícia.

Note bem, que isso aqui é uma coisa que é válida no contexto cristão, mas não no contexto islâmico. Quando você lê o corão, você vê ali que Deus diz "engana os maus". Então, tem até um versículo que diz "eles podem tramar ou conspirar o quanto queiram, nós (usando o plural majestático) somos melhores conspiradores". [00:40] Esta hipótese de que, desejar enganar expresse uma malícia está supondo o quê? A inocência da vítima. Se Deus para me enganar precisa de malícia quer dizer que eu sou uma vítima inocente. Mas se eu for malicioso também? Então, o que haveria de mal e de malicioso em enganar o malicioso para fazê-lo tropeçar e arrepender-se? Não haveria nada de mau.

Aqui nós voltamos a um tema que eu já falei atrás que Descartes coloca tudo em dúvida, mas não coloca em dúvida a idoneidade do seu desejo de conhecer a verdade, ele admite que ele pode se enganar mas em nenhum momento ele se pergunta "será que eu estou querendo a verdade mesmo?" O que é uma coisa altamente duvidosa. Então, você vê que a certeza que o eu tem de sim mesmo já está pressuposta na própria formulação da pergunta, então o "cogito ergo sum" que aparece aqui como a conclusão de um raciocínio é na realidade a premissa dele, quer dizer, eu me conheço, eu sei quem sou, eu sei que sou honesto, eu sei que eu quero a verdade e ainda que eu esteja rodeado de enganos por toda parte, eu não vou me enganar. Por quê? Porque Deus falou comigo e infundiu em mim a certeza. Então, Descartes está atribuindo ao eu pensante uma autoridade que ele jamais poderia ter. Quer dizer, Deus fala diretamente com o eu pensante dos profetas que eu saiba. Com meu eu pensante ele jamais falou.

Agora, ele fala ao meu eu substancial porque ele o criou. Na medida em que eu transfiro a autoridade cognitiva do eu substancial para o eu pensante eu já me afastei de Deus automaticamente. E é esta operação tão complexa que Descartes está querendo fazer aqui. Você vê que no sonho ele foge do vento, o vento é um dos símbolos mais tradicionais e universais do Espírito Santo. Deus quando cria o homem infunde o espírito através do sopro. Então, quando Descartes foge do vento e se abriga dentro do seu quarto, no sonho, ele vê o quê? Várias luzes que iluminam o quarto. Por que várias luzes e não uma única fonte de luz que é o próprio Deus? Então, essas luzes são as suas idéias claras e distintas uma aqui, outra ali, outra ali, outra ali.

Então, na verdade, ele mostra ali que ele foge da inspiração do Espírito para se fechar dentro da sua própria mente e pretende encontrar nessa mente a garantia divina dos seus conhecimentos. É uma operação totalmente utópica que vai resultar, evidentemente, no surgimento do idealismo filosófico. O qual vai culminar, por exemplo, em Hegel que acha que o processo cognitivo dele é a própria evolução da realidade universal e vai culminar também em Fitche que vai dizer que a única realidade é o eu, só existe o eu, o resto é tudo função do meu eu.

Agora, como cada um de nós tem um eu, se eu digo que o eu é a realidade fundamental, no caso é o eu pensante, evidentemente, nós temos o seguinte problema, a realidade fundamental esta no meu eu ou no seu eu? Então, isso significa que a ordenação cognitiva e real do mundo passa a depender de um eu, mas esse eu para ser soberano ele tem que ser soberano não somente sobre as coisas, mas sobre todos os demais "eus". E isso vai culminar no quê? Na doutrina do Führer. É um sujeito que decide tudo. Isso aparece na doutrina do nazismo e aparece mais claramente na doutrina do fascismo através do Geovanni Gentile, onde a cabeça do Duce é o fator ordenador do conjunto.

Porém, para chegar a isso é necessário o quê? Que os demais eus sejam negados e Giovanni Gentile, no livro Origem e Estrutura da Sociedade (um dos seus últimos livros), tenta uma justificativa final do fascismo que aquela altura já estava na fase final --- quando Mussolini já tinha caído e daí o Hitler mandou libertá-lo e constituiu uma espécie de governo fantoche. Então Giovanni Gentile, vendo a derrota eminente, decide redobrar a aposta.

Ao invés de ele voltar atrás e se arrepender, ele diz: "Não, vamos insistir mais ainda, o fascismo está mais certo do que eu dizia antes". O que é que ele faz? Ele nega totalmente qualquer autonomia à consciência individual, ele reduz o sujeito humano, o indivíduo humano ao que ele chama de uma sociedade em miniatura: somente a sociedade existe. E no topo da sociedade está o estado que abarca e que é a fonte de toda racionalidade, e este estado se encarna na pessoa do Duce. Então só existe um eu no mundo, o eu do Duce. Você veja que do mesmo modo, isso aparecerá no tal do "decisionismo" da doutrina nazista.

Quer dizer que alguém tem que tomar várias decisões? Quem? Só um pode tomar a decisão. Quer dizer que o espírito universal e a realidade do mundo se encarnam então num único indivíduo e os outros são todos colocados entre parênteses. Então, é isso que vai ser o resultado final do idealismo filosófico. Você veja que Gentile não é mais um autor muito lido hoje em dia, mas não podemos esquecer que ele foi o primeiro a elaborar a idéia de que o estado é, por assim dizer, o mestre da sociedade, é o professor de moral, é a fonte de toda moral: uma idéia que hoje todo mundo aceita. Eles acham que o pessoal não lê o Gentile, mas é como se numa sessão espírita baixou o espírito de Geovanni Gentile e entrou na cabeça de todo mundo. E Gentile é, ao mesmo tempo, o mais radicalmente idealista dos filósofos idealistas, ele leva o idealismo filosófico até às suas últimas conseqüências.

Não é coincidência que a radicalização do idealismo culmine na formulação da doutrina fascista que é hoje, eu acho, a doutrina de maior sucesso na história humana. Mas é um sucesso do qual ninguém fala, porque é uma porcaria na qual hoje todo mundo acredita, todo mundo está praticando e ninguém sabe nem que aquilo é fascismo e muito menos donde aquilo surgiu. Então Giovanni Gentile é de certo modo a eminência parda da história do século XX e do começo do XXI. E qual é a raiz remota de Giovanni Gentile? É esse subjetivismo de Rene Descartes.

[Intervalo]

Aqui tem uma mensagem muito interessante do Renato Emídio da Silva Júnior, inclusive ele manda aqui a dissertação de mestrado que ele apresentou em Santa Catarina. A mensagem dele é muito cumprida de maneira que só vou ler aqui a pergunta final que ele fez.

Aluno: Sou aluno de filosofia, cursando há mais de dois anos, queria parabenizá-lo pelo curso, realmente é fantástico -- "muito obrigado" -- é visível o ganho intelectual nesse tempo, a maneira como me coloco diante dos problemas já me adianta sobremaneira a forma de solucioná-los... E aqui ele coloca uma pergunta sobre a mente revolucionária: Em várias oportunidades o senhor define como um dos aspectos do revolucionário é de que ele cria uma imagem-idéia do futuro e através dessa imagem-idéia ele julga todo o passado e todo presente. Essa não seria a definição que Lyotard também usa para defender o projeto moderno, mas especificamente as chamadas metas narrativas da modernidade? Em minha dissertação o senhor pode achar uma passagem em que ele diz que uma idéia futura funcionaria como um objetivo a ser perseguido e ela mesma teria o poder de legitimar as ações do presente e passado em função de um futuro hipotético. Sua definição é a mesma de Lyotard ou existe alguma diferença? Tenho a impressão que autores como Hayek, Ortega e Gasset, Peter Kreeft e outros também, senão utilizaram essa definição ipsis litteris a utilizaram de forma muito parecida ou pelo menos esboçaram alguma coisa nessa direção. Assim também pergunto, caso haja alguma diferença entre a sua definição e a de Lyotard, onde o senhor tirou a definição da mente revolucionária e em especial a ênfase para um tribunal, a questão de um tribunal da ideia futura?

Olavo: Muito bem, em primeiro lugar o futuro, a idéia do futuro como modeladora do presente é uma coisa que faz parte da própria estrutura da vida humana. [00:50] Toda ação pressupõe que você tem uma representação, uma idéia qualquer de onde você quer chegar e isso naturalmente vai orientar as suas ações presentes e até um certo ponto vai também influenciar a idéia que você faz do passado, quer dizer, a medida que você se aproxima da realização daquilo que você está querendo a sua concepção do passado vai necessariamente mudando. O que caracteriza a mente revolucionária é que a idéia de futuro adquire um papel soberano no julgamento e na interpretação do presente e do passado. Não apenas que ela influencia influenciar, isso é normal. No livro Antropologia Metafísica o Julián Marías até cria um neologismo que é a palavra "futuriça", ele diz que a vida é futuriça, no sentido que tem esse final "iça" que designa uma tendência como, por exemplo, resvaladiça ou cediça. Quer dizer, a vida é estruturada em direção a um futuro, os atos do presente só são compreensíveis em função de uma imagem do futuro e nesse sentido uma imagem do futuro naturalmente retroage sobre a concepção que você tem do presente e do passado. Isso tudo é normal. O que caracteriza a mente revolucionária sobre este aspecto é que a idéia do futuro se torna o único critério. Quer dizer, o presente e o passado perdem qualquer validade ou consistência ontológica em si mesmo. Eles são apenas o elo que vai conduzir a esse futuro hipotético e o futuro hipotético então se instala como um tribunal para o julgamento de tudo. Não só para o julgamento no sentido do valor ativo, mas para o conhecimento até a objetividade do conhecimento que você tem do presente e do passado depende desse tribunal futuro. Quer dizer, o que a mente revolucionária faz é radicalizar e exagerar uma tendência que já é, de certo modo, estrutural na própria mente humana. Então, a confrontação do passado e do futuro é uma coisa normal, o que é anormal é você, por assim dizer, abolir a autonomia do passado, você esvaziá-lo de uma identidade própria.

Há um exercício, que você pode fazer, no livro O Futuro do Pensamento Brasileiro e eu até sugeri isso aí. Você vê que as filosofias do passado são continuamente reinterpretadas então você entende Platão à luz de Hegel, ou Aristóteles à luz de São Tomás de Aquino ou Nietzsche em função de Foucault etc., e eu penso: porque não fazer ao contrário? Por que não examinar como Platão julgaria as filosofias modernas? Aliás, quando ele aqui citou o Peter Kreeft é interessante porque o Peter Kreeft faz isso, ele cria um personagem imaginário de Sócrates e coloca Sócrates discutindo com Marx com Nietzsche etc. Essa é uma idéia muito boa, mas a mentalidade revolucionária suprime esta possibilidade de que o passado julgue o futuro, é só o futuro que julga o passado [1:00]. Em segundo lugar, precisa ver que você tem razão quando diz que esta característica também é a definição do Lyotard para o projeto moderno, quer dizer, as metas narrativas da modernidade. Só que, nem tudo isto é revolucionário porque a idéia revolucionária não consiste somente em conceber o presente e o passado no molde do futuro, mas tentar realizar este futuro mediante a concentração do poder.

Isto é uma das coisas mais extraordinárias do debate de filosofia política universal. É o fato de que todos os críticos do comunismo, socialismo, a maioria deles aceita a idéia de que uma sociedade justa e igualitária é uma idéia nobre, razoável e inteiramente defensável em si mesma e ele só tem a objetar contra ela duas coisas: contra a idéia em geral, eles argumentam que é irrealizável e contra o comunismo, socialismo soviético, chinês em particular, eles argumentam que tentando realizar o impossível, ele recorreu a meios totalitários e sangrentos que acabam transformando o sonho um pesadelo. Quase todas as críticas ao comunismo, socialismo, são desse teor.

Eu nunca encontrei, pode existir, mas eu nunca encontrei alguém que entendesse que a própria idéia socialista em si mesma é maligna. E, como eu não encontrei ninguém que dissesse isto, eu resolvi dizer eu mesmo. A idéia de uma sociedade justa, a idéia de criar uma sociedade justa para ela vale aquilo que Karl Kraus dizia da psicanálise, que ela mesma era a doença da qual ela prometia a cura. Então, a idéia da sociedade justa está na raiz de todos os males que ela promete curar, então, é só uma questão de você analisar o conceito da sociedade justa e você vê que tudo o que aconteceu de maligno nos regimes revolucionários do século XX, comunismo, fascismo etc., já estava dado no conceito mesmo da sociedade justa.

Agora, pergunto eu: por que é que você tem de esperar para aprender com as lições da história, pagas com o sangue de milhões de inocentes, aquilo que você já poderia ter aprendido da simples análise do conceito que é uma atividade perfeitamente incruenta e pacífica? Só que não quiseram analisar o conceito e aceitaram sua simples formulação verbal, sem entender que por trás da formulação verbal, existe uma referência a uma realidade substantiva e esta realidade substantiva é que corresponde ao conteúdo do conceito.

Então, toda a idéia que pretenda se transformar em realidade, ela implica, primeiro, o reconhecimento de que é necessário algum meio e; segundo, de que nem todo o meio serve, tem que usar os meios que são apropriados. Portanto, a idéia de meios e de uma seleção de meios está dada automaticamente na simples formulação da idéia de um projeto. Então, analisando o próprio conceito de sociedade justa, você vê que esta idéia se baseia na convicção de que a presente sociedade é injusta e é injusta não em detalhes, não nisso, não naquilo, mas é injusta na sua própria estrutura, ou seja, está viciada desde a raiz mesmo. E, se a sociedade é tão corrupta assim, então, é evidente que ela não pode se arrepender e se corrigir e se redimir por si mesma. É necessária uma ação. O sujeito desta ação não pode ser assim mesmo a sociedade na sua ação espontânea, tem de haver um agente e este agente tem de ser transcendente à sociedade. Ele não pode ser alguma coisa interna à sociedade, então vamos chamar este agente de elite revolucionária ou partido, para simplificar.

O partido ou a elite revolucionária, ele pode nascer de dentro da própria sociedade, mas ele a transcende. Então, as contradições da sociedade fazem nascer o partido, mas o partido, na medida em que ele apreende intelectualmente o conjunto dessas contradições, ele a transcende e pode, portanto, desde fora manipular a sociedade inteira, não é simplesmente uma parte da sociedade agindo sobre a outra parte. Uma parte da sociedade agindo sobre uma outra parte é um processo social normal, isso acontece em todas as sociedades e que por isto mesmo a ação de uma parte sobre outra parte não pode transformar o todo.

Para você transformar a estrutura da sociedade, transformar a sociedade como um todo, é preciso um agente que seja transcendente à sociedade e, portanto, mais poderoso do que ela como um conjunto. Isto está dado no próprio conceito de sociedade justa. Presta atenção, é uma questão de você analisar o conceito e você perguntar o que este conceito quer dizer. Se a sociedade é injusta e se nós podemos criar em cima dela uma [outra] sociedade. Podemos destruí-la para criarmos uma sociedade justa, então tem de haver um agente e este agente não pode ser uma simples parcela ou aspecto ou efeito da sociedade, ele tem que transcender a sociedade, se sobrepor a ela para poder agir como um todo. Então, para poder agir sobre ela como um todo, não basta que ele a transcenda intelectualmente, ele tem que ter um poder que seja superior ao da sociedade como um todo e, portanto, ele tem que concentrar mais poder do que a sociedade tem.

O que é que isto implica necessariamente (eu estou falando pela simples análise apriorística do conceito, sem nenhuma experiência histórica)? Então, o que é que isto implica? É necessário constituir uma elite que vai se sobrepor à sociedade como um todo, não só intelectualmente mas materialmente que vai ter mais poder do que ela. Então, de cara você tem a constituição de uma sociedade de classes, quer dizer, sem criar uma nova sociedade de classes, não é possível a criação da tal sociedade justa.

Então, a classe dominante ou a elite ou o partido que se transforma em classe dominante, eu pergunto: como é que ele vai fazer em seguida para desfazer a diferenciação de classe que ele não criou. Ele tem que entregar de volta o poder, mas acontece que se ele não entregar de volta o poder, das duas uma: ou acaba o processo revolucionário ou começa um outro processo revolucionário diferente. Segundo, quando é que a diferenciação de classes será abolida? Havia uma diferenciação de classes antes, a revolução cria uma outra diferenciação de classe mais radical e mais extrema, porque, [1:10] note bem, se você pega o proletariado e burguesia, a burguesia é mais poderosa do que o proletariado mas não é mais poderosa do que a sociedade inteira, é apenas uma parte da sociedade que é mais poderosa que a outra, mas o processo revolucionário implica a criação de um centro de poder que se sobrepõe à sociedade inteira.

Se não, não é possível, você não pode agir sobre uma sociedade inteira se você não tem mais poder do que ela. Repito: isto não é experiência e não estou analisando a experiência histórica mas o simples conceito de sociedade justa. Então, a idéia da criação da sociedade justa implica a criação da elite revolucionária e implica a concentração do poder de modo que o poder da elite revolucionária se sobreponha à de toda a sociedade. Então, criou uma nova sociedade de classes.

Pergunto eu, quando que esta sociedade de classe então será abolida para instituir um igualitarismo que foi prometido? A resposta é: nunca, por definição. Por quê? Enquanto você tem a diferenciação de classe, você tem ainda a injustiça, então a sociedade não está justa, então, portanto, o agente revolucionário não pode devolver à população o poder que ele tomou dela. Então, a idéia da sociedade justa cria um poder que se sobrepõe a toda a sociedade e que não pode ser devolvida à sociedade jamais. Então, pela simples análise do conceito de sociedade justa você vê que esta idéia se levada à prática criaria o regime que, primeiro, seria uma sociedade de classes mais estratificada e mais injusta do que todas as anteriores. Segundo, esta nova estrutura não poderia se dissolver jamais.

No instante em que ela se dissolvesse, acabaria o processo revolucionário ou começaria um outro processo revolucionário diferente por outra elite ou pela mesma, ou, vamos dizer, sob novo disfarce que é exatamente o que está acontecendo na Rússia. A experiência histórica nos mostra que foi assim, mas essa experiência histórica era inútil e dispensável se alguém tivesse tido a coragem e a cabeça de simplesmente analisar o conceito de sociedade justa entenderia que é uma idéia maligna que só poderia resultar em miséria, genocídio, sofrimentos descomunais. Mas por que a idéia de sociedade justa adquiriu este prestígio? Porque os próprios inimigos da idéia reconheceram que em si ela era belíssima e o ideal nobre porque tem raízes bíblicas. Digo, raízes bíblicas? Quer dizer, aí a idéia da revolução da sociedade igualitária e justa aparece como uma simples versão terrestrealizada da palavra divina e adquire todo o prestígio religioso inerente a essa semântica.

Mas procurem na bíblia, vê se você tem alguma acusação por mais mínima que seja a uma estrutura social. Nenhuma. Você vê acusação a pessoas ou a situações determinadas, por exemplo, quando o profeta Natan fala mal de Davi porque Davi praticamente matou o sujeito para tomar a mulher dele, o profeta foi [até Davi] e fala mal disso. Quer dizer, é um governante que está sendo criticado ou [se] fala mal do faraó. Falar mal da estrutura social, da sociedade como um todo? Não! Então a idéia de sociedade justa, ela não pode corresponder a nada de real e nem mesmo a nada de ideal, sociedade justa não chega a ser uma idéia, é uma figura de linguagem, por que a justiça é uma virtude, e só pode ser sujeito de virtude aquele ser que tem a capacidade de ação consciente e voluntária e, portanto, que tenha unidade de um eu, ou seja, somente o ser humano pode ser justo ou injusto, aplicar este conceito à sociedade é uma figura de linguagem, ou seja, a idéia de sociedade, sociedade justa não pode ser sequer definida como idéia, só pode ser expressa verbalmente, mas é uma construção verbal à qual não corresponde, não só corresponde a nenhuma realidade, como não corresponde a nenhuma idéia identificável, é uma metonímia, uma figura de linguagem e, no entanto, há duzentos anos nós estamos vivendo e sofrendo por causa dessa maldita idéia da sociedade justa.

Nenhuma sociedade jamais será justa, isto é impossível, isto é um conceito que não faz sentido, o que pode haver é alguma sociedade na qual as pessoas têm mais meios de fazer justiça do que numa outra, mas isto mesmo pressupõe que a injustiça continuará existindo ali. Então toda e qualquer sociedade é uma mistura de justiça e injustiça, meu Deus do céu, por definição, isto quer dizer, a busca da justiça, aquilo que fala Rudolf von Ihering, a luta pelo direito, a luta pela justiça é um elemento permanente da vida humana, pois se você falar uma sociedade justa, acabou a luta pela justiça, isto é mesma coisa que você dizer que você vai tomar o seu banho definitivo, você vai tomar um banho tão bem feito que nunca mais você vai precisar tomar banho. Então, é uma idéia absurda que implica a paralisação do tempo. Então a paralisação do tempo é aquela transfiguração do tempo histórico que, de repente, adquire, sem perder a sua característica de temporalidade terrestre, adquire a feição da eternidade. É um delírio evidentemente.

Então, quem aparecer falando de sociedade justa, é um charlatão ou é um idiota. É importante dizer que os seres humanos ajam com justiça e é importante que na sociedade não sejam abolidos os meios de lutar pela justiça. Então, o que é que seria a sociedade maximamente justa que possamos conceber usando ainda a metonímia como, vamos dizer, símbolo orientador do que nós queremos, seria a sociedade onde os meios de buscar a justiça não são bloqueados. Mas isto não quer dizer que a justiça vai imperar. Não existe o império da justiça. E, quando você fala o império da lei, não significa que não há mais injustiça, mas ao contrário, existem meios de lutar contra ela e esses meios são permanentes, por quê? Por que a injustiça é permanente.

Então, a idéia de sociedade justa não é sequer uma idéia, ela é apenas uma expressão verbal da incapacidade de lidar com idéias e mais ainda com realidades. Então, isto é o que caracteriza realmente o pensamento revolucionário. É um pensamento alienado, louco, um pensamento impostado que se transporta, vamos dizer, a um mundo de realidades puramente verbais, às quais não corresponde nada, nem mesmo no plano das idéias e que hipnotiza as pessoas com esses truques verbais, esses joguinhos verbais idiotas e, prometendo realizar uma coisa que não é possível, não é possível, não é boa, não é conveniente, mata milhões de pessoas. Quem é o culpado disso? O socialismo? Não, o liberalismo também. Todas as ideologias que apareceram, são todas assim.

Então, qual é a diferença delas em relação, por exemplo, ao cristianismo? Eu acabei de explicar isto no arquivo que eu mandei esta semana que fala das causas sagradas. A idéia de que você pode se tornar melhor, se enobrecer mediante o serviço que você presta a uma causa, é uma idéia típica da modernidade, é uma idéia na qual a nobreza está na causa e não nas pessoas. Eu digo, mas uma causa em si não pode ser nobre, nem nada, só as pessoas podem ser. Vamos dizer a nobreza, a qualidade, a virtude só pode estar em seres que tenham capacidade de ação voluntária e tenham consciência própria, portanto. Então, existem pessoas nobres e pessoas ignóbeis como existem pessoas justas e pessoas injustas, mas a causa em si mesma ela não pode ser nobre. Quer dizer, é o indivíduo humano real que transmite a sua nobreza à causa que ele defende. Então, o portador da nobreza, o portador da virtude é o ser humano, e qual é a diferença dessas ideologias todas para o cristianismo?

Bom, o cristianismo, antes de ser um movimento, de ser uma causa, de ser uma doutrina, de ser uma igreja, foi uma pessoa, e é esta pessoa que transmite, vamos dizer, aos seus sucessores toda a virtude e toda a nobreza que eles possam ter. Não é uma causa que enobrece você, é a pessoa do Nosso Senhor Jesus Cristo que faz isso. Então é esta a diferença entre o cristianismo e as ideologias modernas. Isto quer dizer que, por mais perfeita que seja a elaboração da doutrina cristã ao longo dos séculos, e olha que algumas das melhores inteligências humanas gastaram todos os seus neurônios tentando fazer isto, ela nunca poderá substituir a pessoa originária. Porque é dessa pessoa que vem o poder efetivo. Então, do mesmo modo eu expliquei aulas atrás, qual é a forma da sabedoria, a filosofia é a busca da sabedoria, amor à sabedoria. A sabedoria pode ser uma doutrina? Uma idéia? Se fosse uma idéia, um conjunto de doutrinas, [1:20] isto seria superior à realidade como um todo porque ela seria a fórmula, a lei da realidade.

Então, isto é possível? Quer dizer uma fórmula verbal estaria acima do conjunto da realidade. Então, não haveria realidade acima da lei ou desta teoria. É possível uma coisa dessa? É evidente que não. Quando, se diz na bíblia que Deus criou o mundo através da sua palavra, isto não está colocando a palavra acima do próprio Deus. É a palavra que vem de Deus e não Deus que vem da palavra. Então, isto quer dizer, a sabedoria só pode tomar a forma de uma pessoa, nunca de uma fórmula verbal, nunca de um discurso, nem mesmo de um discurso divino. É por isto que várias vezes, ao longo do Evangelho, Jesus Cristo diz que o Deus Pai está acima dele e tem coisas que só Deus Pai sabe e que ele não sabe, mas ele não é o verbo divino? A palavra divina? Sim, a palavra provém de Deus e não Deus da palavra. O filho é filho do Pai, não o pai que é filho do filho. Quer dizer, este é o simbolismo bíblico que está dizendo claramente isso, a verdade, a sabedoria, é uma pessoa real, é a estrutura da realidade que é baseada na pessoa divina, na sua ligação com a pessoa humana.

Então, aí vem outra pergunta que é a pergunta da Celina, onde estava o eu substancial antes de eu nascer? O eu substancial é apenas uma possibilidade teórica na mente de Deus, à qual ele dá nascimento de uma vez para sempre e este é o verdadeiro fundamento da realidade, porque aquilo que está no catecismo elementar, para quem Deus criou o mundo? Para o ser humano, então, o ser humano é o motivo da existência do universo e, portanto, ele é o centro de construção da coisa toda. Então, o que é que é a realidade primária? É Deus. Qual é o segundo plano de realidade? O mundo das almas que uma vez criadas, existem para sempre. Qual é o terceiro plano de realidade? O cosmos. Então, você vê que essa realidade chamada pessoa que é uma coisa que você conhece pela sua convivência com a sua mãe, com os seus amigos, com a sua namorada etc., etc., esta é a realidade fundamental. O mundo não é um conjunto de coisas, o mundo é um conjunto de pessoas para as quais existem as coisas.

Aluno: A alma imortal é o fundamento do eu substancial?

Olavo: Não, ela é o próprio eu substancial. O eu substancial é a alma imortal que não se torna imortal depois de morrer, mas que é imortal desde agora. E que não será extinta porque a condição infernal não é uma extinção, se fosse uma extinção seria um alívio, mas é uma espécie de estado de extinção perpétua que não termina jamais e que do total estranhamento que corresponde justamente essa experiência a que Descartes alude com a idéia do gênio mal.

Aluno: As coisas existem para as pessoas inclusive o Estado existe para as pessoas e não as pessoas para o Estado.

Olavo: Mas é evidente, se existe uma única alma imortal que uma vez criada não será extinta nunca mais, a duração desta alma é maior do que toda a história humana. Uma única alma abarca o conjunto da história humana e este é o coeficiente de verdade que existe no idealismo. O idealismo é uma vaga e obscura insinuação desta realidade. A diferença é que o idealismo acredita que o que é a realidade fundamental é o eu pensante. Quando não é. É o eu substancial que está por baixo do eu pensante e que, vamos dizer, fundamenta a sua possibilidade de existência. Então, é claro que tudo foi feito para essas almas. Tudo foi feito para os eus substanciais os quais necessariamente tendem a existir em quantidade múltipla, não pode haver um eu, a idéia, vamos dizer, a contradição entre o primado do eu e a existência do mundo é uma coisa que existe no idealismo filosófico que coloca a questão, mas não sabe resolvê-la. É no idealismo filosófico que se o eu é soberano, então, só pode um eu, só pode existir um eu que é soberano, os outros não, os outros não são nem eus, são apenas, como diz Giovanni Gentile, são a sociedade em miniatura. Só tem um eu no topo que é o Führer, o Duce, o guia genial dos povos, alguma porcaria assim. Na realidade das coisas, os eus imortais, eles são múltiplos. Por quê? Por que eles são constituídos do amor divino e o amor pressupõe a dualidade ou multiplicidade, então, é por isso que São Tomás de Aquino diz que na eternidade, as almas estarão fundidas, mas não confundidas, quer dizer, conservam a sua identidade pessoal, portanto, a sua estória pessoal também. E esta é a realidade fundamental. Agora, a tradição filosófica dos últimos séculos ela procura a realidade ou sob a forma de idéia ou sob a forma de coisa, daí saindo às duas tradições: a idealista e a materialista. Eu digo idéia e coisa existe em função de um outro negócio chamado pessoa, primeiro a pessoa divina e, em segundo lugar, a nossa pessoa. E, idéias e coisas existem para nós, não nós para elas. Elas não são a nossa explicação, nós somos explicação delas.

Transcrição: Jussara Reis, Paulo Ricardo e Rimi Oliveira.

Revisão: José Márcio Carter