Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 133
03 de dezembro de 2011
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos. Nós vamos continuar hoje com a leitura das Meditações, sempre lembrando que a perspectiva com que nós fazemos esse exame não é discutir a filosofia de René Descartes, mas analisar este texto como um documento psicológico. E a razão pela qual nós procedemos assim é porque o próprio autor apresenta essas meditações como se fossem uma narrativa autobiográfica. Portanto, a recordação de uma seqüência de fatos que aconteceram realmente a ele ou que pelo menos ele pede que o leitor presuma que esses fatos aconteceram realmente. Antes de nós podermos abstrair dessa narrativa uma filosofia, uma doutrina de René Descartes, nós temos de ler o texto ao pé da letra, tal e como ele se apresenta.
Curiosamente, dentro da imensa bibliografia cartesiana, eu não encontrei ninguém que examinasse isso desta maneira. Mesmo aqueles que ressaltam o caráter de depoimento das Meditações não chegam a examinar linha por linha neste sentido como nós estamos fazendo. Então como seria o método de fazer isso? É como você ler qualquer outra autobiografia, sobretudo uma autobiografia interior, ou seja, uma narrativa de estados interiores, estados psicológicos que foram vivenciados por uma pessoa real, e que nós só podemos compreender por empatia, isto é, tentando revivenciar imaginariamente aquilo que ele disse que se passou com ele. Sem isso, nós não entendemos narrativa nenhuma, não só autobiográfica como qualquer narrativa ficcional, ou uma peça de teatro ou coisa assim. Se não procedermos como se aquilo que está sendo narrado fosse uma seqüência de experiências imaginárias nossas, então evidentemente não entendemos nada. No caso, como é um indivíduo falando dele mesmo, então nós temos de fazer de conta que somos o René Descartes e tentar refazer a experiência por nós mesmos para ver o que acontece.
Claro que isso deve ser feito com toda a ingenuidade e sem nenhuma tentativa de discutir filosoficamente o que ele está dizendo. Embora nós usemos aqui conceitos filosóficos para fazer a nossa análise, conceitos, instrumentos e métodos filosóficos, o propósito final não é uma discussão teórica, mas a revivescência de uma experiência interior e análise dessa experiência. A análise visa, em primeiríssimo lugar, distinguir duas coisas: a narrativa escrita e a seqüência de fatos. Embora a narrativa escrita se apresente como se fosse um retrato ou um desenho da seqüência de fatos, é óbvio que as duas coisas não coincidem totalmente. Nós sabemos que, por melhor que seja o narrador, tem alguns pontos onde a narrativa pode não reproduzir exatamente aquilo que sucedeu. E na tentativa de reviver essa experiência, nós acabamos percebendo esta diferença: tem pontos onde ele diz que as coisas se passaram assim, assim, assado, mas, quando você tenta reviver aquilo, você diz "não pode ter sido, deve ter sido alguma outra coisa parecida, que ele está expressando verbalmente de uma certa maneira, mas que não pode ter sido exatamente assim".
E eu acho que é exatamente por esse modo que nós vamos chegar à compreensão mais profunda, não da doutrina filosófica, mas da experiência cognitiva de René Descartes. Experiência cognitiva que, quaisquer que tenham sido os seus efeitos históricos benéficos ou desastrosos, é uma coisa cuja importância nós não podemos negar porque ela cria uma espécie de modelo que será repetido não só na própria filosofia, mas que vai se espalhar por toda a cultura ocidental, e que vai ser uma das forças básicas na criação do chamado individualismo moderno. Quer dizer, o individualismo significa encarar tudo desde o ponto de vista dessas unidades independentes, que são os indivíduos humanos, e encarar as demais realidades como se resultassem de uma soma ou de uma agregação de ações individuais. É uma possibilidade, é um método, não deixa de ser um método que às vezes funciona. Também se pode encarar as coisas de outra maneira: você tendo uma idéia aproximada de totalidade universal e encarando os indivíduos como se fossem expressões dessa totalidade. O individualismo, nesse sentido, é sem dúvida uma característica do pensamento ocidental, pelo menos até o começo do século XX. Então, como René Descartes deu um passo importante na constituição desse elemento da cultura ocidental, então não podemos negar o papel central que ele teve.
Também nós devemos lembrar o seguinte: têm algumas coisas aqui que ele está examinando pela primeira vez, quer dizer, é uma experiência cognitiva muito peculiar, muito estranha, muito inusitada para aquela época. E eu acho natural que o indivíduo não tivesse os instrumentos narrativos suficientes para dizer o que ele estava querendo dizer, para contar o que havia se passado. Nós não podemos esquecer que o treinamento de René Descartes não foi um treinamento literário, foi um treinamento filosófico, embora Descartes seja um grande escritor. É até lamentável ter que ler nessa tradução, porque no original francês essa coisa é tão bonita, tão elegante, tão bem montadinha, que nós vemos a desgraça que os caras fizeram aqui. Não que esteja inexato, não está inexato, mas não soa bem, não tem a música, que é um elemento importante da narrativa. Para aqueles que lêem em francês, eu sugiro que leiam no original se puderem. E os que puderem ler em latim, melhor ainda. O domínio que esse homem tem do latim é absolutamente extraordinário, o que não era incomum na época dele.
Nós estamos aqui na Terceira Meditação, no parágrafo dez, da edição que nós estamos usando. E ele está dizendo então que vai examinar as idéias que lhe passam pela cabeça. E ele tinha dito, no parágrafo seis, que dessas idéias algumas se apresentam como imagem de coisas --- na hora que ele pensa uma casa, um homem, um bode, uma montanha, ou mesmo coisas imaginárias como um dragão, um duende ou coisa assim ---, e que outras são coisas que passam dentro do próprio espírito dele, das quais algumas, ele diz, são chamadas vontades, outras afecções ou sentimentos, ou seja, chamados de juízos (quer dizer, juízos são proposições, são afirmações).
E, ali no parágrafo dez, ele vai dizer:
"Ora, destas idéias, umas me parecem ter nascido comigo, outras ser estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas e inventadas por mim mesmo."
Algumas idéias nasceram com ele desde sempre. Eu suponho, por exemplo, que ele se refira aos princípios elementares da lógica, que ele não inventou e nunca teve de pensa-los expressamente, mas começou a usar instintivamente desde o começo. Então nasceu com ele, são idéias inatas. Outras vieram de fora e outras foi ele mesmo que inventou.
"Pois, que eu tenha a faculdade de conceber o que é aquilo que geralmente se chama uma coisa ou uma verdade, ou um pensamento, parece-me que não o obtenho em outra parte senão da minha própria natureza; mas se ouço agora algum ruído, se vejo o sol, se sinto calor, até [00:10] o presente julguei que estes sentimentos procediam de algumas coisas que existem fora de mim; e então parece-me que as sereias, os hipogrifos e toda as outras quimeras semelhantes são ficções e invenções de meu espírito. Mas também talvez eu possa persuadir-me de que todas essas idéias são do gênero das que eu chamo estranhas (...)"
Ou seja, pode ser que a idéia da sereia ou do dragão também tenha vindo de fora.
"(...) e que vêm de fora ou que nasceram comigo ou, ainda, que foram todas feitas por mim; (...)"
Ou seja, ele não tem muito jeito de discernir se as idéias que lhe parecem vir de fora também não foram inventadas por ele mesmo.
"(...) pois ainda não lhes descobri claramente a verdadeira origem. E o que devo fazer principalmente neste ponto é considerar, no tocante àquelas que me parecem vir de alguns objetos localizados fora de mim, quais as razões que me obrigam a acreditá-las semelhantes a esses objetos."
Ou seja, se eu penso em bode, por que eu acredito que isso é semelhante a um bode? Então diz ele: o problema é saber, com relação àquelas idéias que ele imagina virem de fora, por que ele acredita que elas são semelhantes a algo que existe fora.
"A primeira dessas razões é que me parece que isso me é ensinado pela natureza; e a segunda que experimento em mim próprio que essas idéias não dependem, de modo algum, de minha vontade; pois amiúde se apresentam a mim mau grado meu, como agora, quer queira quer não, eu sinto calor, e por esta razão, persuado-me de que esse sentimento ou essa idéia de calor é produzido em mim por algo diferente de mim mesmo, (...)"
Há duas razões pelas quais ele acredita as idéias de coisas externas são realmente semelhantes a coisas externas. A primeira é: isso lhe parece natural, quer dizer, essas idéias vêm acompanhadas naturalmente da crença de que refletem algo do exterior. E a segunda é a seguinte: ele não se lembra de tê-las produzido. Por exemplo, se ele vê uma montanha, ele não se lembra de ter criado essa idéia de montanha, mas aquilo se imprimiu nele independentemente da vontade dele. Ou, como o exemplo que ele dá, a temperatura, ele sente calor sem que ele mesmo tenha produzido a sensação de calor.
"(...) E nada vejo que me pareça mais razoável do que julgar que essa coisa estranha envia-me e imprime em mim sua semelhança, mais do que qualquer outra coisa.
Agora é preciso que eu veja se estas razões são suficientemente fortes e convincentes. Quando digo que me parece que isso me é ensinado pela natureza, entendo somente por essa palavra natureza uma certa inclinação que me leva a acreditar nessa coisa, e não uma luz natural que me faça conhecer que ela é verdadeira (...)"
Isto é, [ele] está distinguindo aqui a natureza e o que é luz natural. A luz natural, ou seja, a razão, a inteligência, a consciência, etc. etc. Por exemplo, quando você vê que 2+2 são 4, ele diz [que] é uma luz natural que mostra que isso é verdadeiro. Ora, quando eu recebo as imagens das coisas, eu recebo somente essas imagens e não a convicção espontânea de que ela é verdadeira. Mas aí nós temos um problema. A luz natural só pode mostrar-me como verdadeira a conclusão de um juízo de algo que eu pensei, ou seja, a razão só pode me mostrar a veracidade daquilo que é racional, e não daquilo que vem da experiência. O que vem da experiência vem apenas como experiência, ou como coisa, ou como fato, não vem como verdade, ou seja, não vem acompanhado de uma afirmação. Quando você vê um bode, o bode não está dizendo para você "eu estou aqui". Ele simplesmente está ali, ele não está afirmando nada. Então, você tem esse dois modos de acesso à realidade. Você tem o modo experiencial, por assim dizer, que é constituído apenas da presença de dados empíricos. E você tem o modo racional, que é constituído do sentimento de veracidade que você tem quando a conclusão de um juízo decorre necessariamente de suas premissas, sem que possa ser de outra maneira.
O que Descartes está fazendo aqui? Ele está cobrando dos dados experienciais um tipo de veracidade que é próprio da verdade racional e não da simples presença empírica. Então nós poderíamos usar o mesmo critério de duvidar de tudo o que não está suficientemente provado e perguntar: mas por que os simples dados da experiência deveriam vir acompanhados da sua própria certeza racional, se eu mesmo estou dizendo que esses dados parecem vir de coisas externas e a certeza racional vem do meu próprio pensamento? Por que a coisa vinda por um canal deveria vir acompanhada de um tipo de certeza que eu só posso obter por outro canal? Então, o que ele está fazendo é submeter um tipo de idéias a uma modalidade de julgamento que ele mesmo sabe ser aplicável a outro tipo de idéias.
Então, o que ele chama "luz natural", ou seja, a razão, a inteligência, só pode conferir veracidade aos pensamentos que ela mesma gerou, porque é da coerência interna desses pensamentos que ela tira a sua veracidade. Então, quando você faz um silogismo --- premissa maior, premissa menor, conseqüência ---, você pensou as três coisas, e o que você chama de veracidade não é senão a coerência interna de um pensamento com outro. Que você vê que um pensamento está contido implicitamente no outro e, portanto, se um é verdadeiro, o outro também é verdadeiro.
Na verdade, todo o mundo desses pensamentos, que ele diz conhecer por luz natural, ou pela razão, em si mesmo, não tem nada a ver com a veracidade, ele tem apenas a ver com a forma ou com a coerência interna. O conjunto inteiro do pensamento lógico não pode afirmar a veracidade de nada porque tudo ali não passa de uma relação entre premissa e conseqüência. Ou seja, a veracidade de um juízo, logicamente falando, não passa da sua coerência interna. E se você fizer uma série de raciocínios absolutamente sem conteúdo como, por exemplo, se você diz que A=B e B=C, então A=C, o que é A, o que é B e o que é C? Você não tem a menor idéia, pois sabe apenas a relação entre esses elementos. Você sabe a veracidade dessa relação, mas essa é uma veracidade interna que independe do que sejam esses três elementos e independe dele serem verdadeiros ou falsos. Então, eu digo assim: se os dragões são latas de sardinha e as latas de sardinha são cachorros, então os dragões são cachorros. Este é um raciocínio perfeitamente lógico e a "veracidade" dele consiste apenas na sua coerência interna.
Então é uma coisa que eu me pergunto: por que Descartes foi se lembrar de pedir aos dados dos sentidos um tipo de coerência formal que é própria somente dos juízos lógicos? Para isso, seria necessário que esses dados dos sentidos fossem, por sua vez, afirmações e juízos, mas eles não são, eles são apenas coisas. Os antigos lógicos chamavam isso aí de simples apreensão. Quer dizer, quando você pensa ou vê um bode, um poste, uma tartaruga, um sapo, você não está afirmando nem negando nada, você está apenas apresentando a você mesmo certa idéia. Se você nada afirmou nem negou, daí os antigos lógicos diziam: não existe veracidade nem falsidade na simples apreensão.
Mas, quando você se coloca na perspectiva do Descartes e diz: "a idéia que eu tenho de tal objeto deve coincidir com o objeto [00:20] externo", então ele está supondo que essa idéia traz em si uma afirmação. Quer dizer, se eu tenho na minha retina a imagem de um bode, está ali contida implicitamente a afirmação de esse bode corresponde a um ente do mundo real. E é essa afirmação então que ele está querendo colocar em exame para ver se ela procede ou não procede. A idéia de que a simples percepção, ou "idéia", como ele a chama, contém uma afirmação implícita é absolutamente necessária para que ele possa submeter os dados dos sentidos a um tipo de exame que normalmente só se faz com os raciocínios lógicos.
"(...) Ora, essas duas coisas diferem muito entre si; pois eu nada poderia colocar em dúvida daquilo que a luz natural me revela ser verdadeiro, assim como ela me fez ver, há pouco, que, do fato de eu duvidar, podia concluir que existia. (...)"
Ou seja, na verdade, quando ele se refere ao cogito ergo sum, está dizendo: se eu duvido, isto é, eu penso, então, para isso, eu tenho necessariamente de existir. Aí, evidentemente, há uma premissa lógica de que aquilo que não existe nada faz, e como o pensar é fazer alguma coisa, então evidentemente aquele que pensa existe. É um exame puramente lógico, na verdade. Ele não precisa de uma constatação experimental disso. Quer dizer, é o tipo de raciocínio que também se pode fazer hipoteticamente, quer dizer, se eu pensasse, eu existiria porque pensar é agir, e só aquilo que existe age. Quer dizer, ele não precisaria fazer esse raciocínio voltado para a realidade dele mesmo, ele poderia fazer esse raciocínio em modo puramente hipotético, e funcionaria do mesmo modo.
Quando ele diz "o que a luz natural me revela eu não posso negar", nós não podemos esquecer: o que essa suposta luz natural revela nele são somente relações lógicas, são somente relações formais. Porque para que esses juízos [da luz natural] contivessem algo de conteúdo fático, de conteúdo real, seria preciso que eles se referissem a algo que está fora do pensamento. E daí no que caso eles dependeriam do quê? Das chamadas idéias que vêm de fora. Note bem: o que confere veracidade aos juízos racionais é a sua coincidência com algo que não é juízo racional, mas que é dado da realidade, que é dado empírico. E ele está aqui invertendo o processo. Ele está querendo fazer com que o critério racional confira validade ao dado empírico. É claro que é uma operação muito difícil. É como se ele tivesse criado uma dificuldade para vencer facilidade.
"(...) E não tenho em mim outra faculdade, ou poder, para distinguir o verdadeiro do falso, que me possa ensinar que aquilo que essa luz me mostra como verdadeiro não o é, e na qual eu me possa fiar tanto quanto nela. (...)"
Ou seja, acima da luz natural eu não tenho outra faculdade que possa arbitrar essa questão.
"(...) Mas, no que se refere a inclinações que também me parecem ser para mim naturais, notei frequentemente, quando se tratava de escolher entre as virtudes e os vícios, que elas não me levaram menos ao mal do que ao bem; eis por que não tenho motivo de segui-las tampouco no referente ao verdadeiro e ao falso."
Aqui também se introduz também outra ambiguidade, porque ele diz "eu não tenho uma faculdade acima da luz natural, porém a natureza às vezes infunde em mim desejos que eu mesmo acho que são errados, portanto eu também não posso me fiar na natureza". Peraí, ele está se referindo à natureza ou à luz natural? Eu achei um dos parágrafos mais obscuros do texto porque ele está falando da luz natural, distinguindo-a da natureza. Veja, lá em cima ele disse: "entendo por essa palavra natureza uma certa inclinação que me leva a acreditar nessa coisa, e não uma luz natural que me faça conhecer que ela é verdadeira". Então, natureza é inclinação espontânea dele próprio e luz natural é aquilo que lhe revela a verdade. Mas, em seguida, ele diz que não tem nenhuma faculdade acima da luz natural, "mas, no que se refere a inclinações que também me parecem ser naturais", elas às vezes lhe infundem desejos, inclinações, que ele próprio acha que são erradas.
Vamos deixar essa dúvida no ar e voltaremos a ela depois.
"E, quanto à outra razão, segundo a qual essas idéias devem provir de alhures, porquanto não dependem de minha vontade, tampouco a acho mais convincente. (...)"
Ou seja, primeiro ele deu dois motivos para crer que as idéias de coisas internas coincidem com as coisas externas. Primeiro, a natureza: é natural, é espontâneo pensar assim. Segunda razão: essas idéias devem vir de fora porque não dependem da minha vontade, não sou eu que as estou criando, pelo menos deliberadamente.
(...) tampouco a acho mais convincente. Pois, da mesma forma que as inclinações, de que falava há pouco, se encontram em mim, não obstante não se acordarem sempre com minha vontade, e assim talvez haja em mim alguma faculdade ou poder próprio para produzir essas idéias sem auxílio de quaisquer coisas exteriores, embora ela não me seja ainda conhecida; como, com efeito, sempre me parece até aqui que, quando durmo, elas se formam em mim sem a ajuda dos objetos que representam. (...)"
Em suma, como ele diz: às vezes tenho desejos que são contrários a minha vontade. Então, evidentemente, eu os estou criando, mas os estou criando contra mim mesmo. Então, evidentemente, existe em mim uma faculdade misteriosa que me faz, por assim dizer, querer o que eu não quero. Então, do mesmo modo, passando da esfera volitiva para a esfera cognitiva, é possível que haja em mim uma faculdade que está produzindo as imagens destes objetos, sem que eu tenha a consciência de produzi-los. Então, o argumento de que essas idéias devem coincidir com objetos externos porque eu não as produzi também não é inteiramente fiável, eu possa tê-las produzido sem perceber.
"(...) E, enfim, ainda que eu estivesse de acordo que elas são causadas por esses objetos, não é uma conseqüência necessária que lhes devam ser semelhantes. Pelo contrário, notei amiúde, em muitos exemplos, haver uma grande diferença entre o objeto e sua idéia. Como, por exemplo, encontro em meu espírito duas idéias do Sol inteiramente diversas: uma toma sua origem nos sentidos e deve ser colocada no gênero daquelas que disse acima provirem de fora, e pela qual o sol me parece extremamente pequeno; a outra é tomada nas razões da Astronomia, isto é, em certas noções nascidas comigo, ou, enfim, é formada por mim mesmo, de qualquer modo que seja, e pela qual o Sol me parece muitas vezes maior do que a Terra inteira. (...)"
Opa, essa diferença é muito simples. A idéia perceptiva do Sol, a idéia sensitiva do Sol o mostra como pequeno e afastado. Mas, o Sol da Astronomia não é obtido pelos sentidos, ele é um objeto racional obtido por uma série de medidas, comparações e construções racionais. Então, é verdade que eu tenho duas idéias do Sol, que essas idéias são diferentes, porém as duas não vêm pelos sentidos, vêm por fontes completamente diferentes. Então seria o caso de dizer: por que a percepção sensível do Sol deveria coincidir exatamente com a idéia astronômica? Se a idéia astronômica é construída por mim mediante comparações, medições etc. [00:30], então ela não é uma percepção de maneira alguma, ela é um conceito. Então, nós temos uma percepção do Sol como distante e pequeno e nós temos um conceito do Sol como um astro muito maior do que a Terra. Mas pergunto eu: nós poderíamos ter a percepção do Sol como muito maior do que a Terra? Para isso precisaríamos ver o sol de perto, e estaríamos torrados. De onde lhe veio a idéia de que ele deveria cobrar das percepções sensíveis o mesmo tipo de exatidão matemática que podem ter os conceitos, quando nós sabemos que isso é absolutamente impossível?
Nós podemos dizer: "nós temos uma idéia de René Descartes a partir do que ele escreveu, da documentação existente, etc. etc.". Mas, por outro lado, nós sabemos que existiu um sujeito fisicamente real chamado René Descartes, e um não coincide perfeitamente com o outro. Eu digo: ora, mas eles não podem coincidir. Porque a experiência sensível que eu tivesse de um sujeito chamado René Descartes o mostraria somente em certos momentos --- ou ele está sentado ou andando, ele está falando comigo ou com outra pessoa, está dormindo etc. ---, e eu não poderia ver fisicamente nesse indivíduo chamado René Descartes todas as idéias que ele me transmitiu por escrito, e que foram sendo acumuladas ao longo de uma imensa tradição. É exatamente a mesma coisa. Então o que eu poderia ver de René Descartes, se eu estivesse lá, é uma coisa e o que eu sei dele por outros meios, por meios intelectuais, é outra coisa completamente diferente.
Então quando ele cobra isso das imagens do Sol, a comparação é altamente forçada. Então, de novo é o eu pensante cobrando das coisas sensíveis aquilo que elas, por definição, não podem dar. Então você vê que há aí uma espécie de vontade deliberada de levar essa experiência às suas últimas conseqüências, ainda que ao custo de algumas comparações hiperbólicas como essa. Por que o Sol que eu vejo não é tão grande quanto o Sol que eu conheço pela Astronomia? Ou seria assim: por que o gato que eu vejo não coincide com o gato que eu conheço pela Zoologia, pela fisiologia do gato, etc. etc. etc.?
Por exemplo, eu lembro a descrição Aristóteles faz da embriologia do gato, que até hoje é considerada a descrição mais perfeita que já se fez, quer dizer, a formação do embrião no ventre da gata. Eu digo: eu posso fazer essa descrição, mas eu não posso ver esse embrião, eu não posso ver o desenvolvimento do embrião, eu só posso vê-lo num determinado instante. O embrião está com uma semana, então ele não está com três semanas. Eu não posso ver os dois ao mesmo tempo, isto é contraditório com as condições básicas da própria percepção sensível.
Então, o que ele está perguntando é o seguinte: por que, quando eu vejo um gato, eu não vejo simultaneamente todas as fases do embrião do gato? Porque a simultaneidade de todas as fases é um conceito contraditório. Simultaneidade de todas as fases só pode existir como conceito e não como realidade, senão não seriam fases. Quer dizer, fases são aquilo que se desenrolam no tempo, e se se desenrolam no tempo, não podem estar na simultaneidade.
Eu estou dizendo isso sempre assim: eu ressalto o caráter artificial, forçado, hiperbólico da experiência que ele está querendo fazer. Ele sabe que é hiperbólico, ele sabe que de certo modo está exigindo o impossível. Mas justamente por estar exigindo o impossível, nós temos de distinguir a cada momento os dois níveis desse discurso: o nível narrativo e o nível lógico. E eles aparecem mesclados o tempo todo, ou seja, há uma seqüência de experiências que ele diz que teve e há a estrutura do raciocínio que ele está fazendo. Há uma ordem narrativa e uma ordem lógica, e o tempo todo ele mescla as duas. E nós é que temos de separar essas duas coisas
"Tudo isso me leva a conhece suficientemente que até esse momento não foi por um julgamento certo e premeditado, mas apenas por um cego e temerário impulso, que acreditei haver coisas fora de mim, e diferentes de meu ser, as quais, pelos órgãos de meus sentidos ou por qualquer outro meio seja, enviam-me suas idéias ou imagens e imprimem em mim suas semelhanças."
Ou seja, se eu acredito que existem coisas fora de mim, é por uma crença cega ou por um impulso natural, e não por uma certeza racional. Mais repito: toda certeza racional é de ordem puramente lógico-formal, não se refere jamais a um ser real. Não há um só pensamento lógico que por si mesmo possa provar a existência de alguma coisa, ele só pode provar relações lógicas. Portanto, para o conhecimento do mundo real nós dependemos da experiência sensível, e é articulando a experiência sensível com o pensamento racional que nós podemos estender o conhecimento que nós temos das coisas para além daquilo que os dados dos sentidos nos informam no momento.
Por exemplo, se eu vejo uma gata com um barrigão, eu sei que ela está cheia de gatinhos e que dali a um tempo vão nascer os gatinhos. Não vai nascer um sapo, não vai nascer um elefante e, sobretudo, não vai nascer eu. Eu não posso ver isto, eu só vejo a gata grávida, não vejo mais nada. Então, o que eu estou fazendo? Eu estou usando os dados dos sentidos como premissas de raciocínios que eu faço. Mas eu só posso usá-los como premissas, se eu tomá-los como verdadeiros. Portanto, todo o universo do conhecimento depende disto: dados dos sentidos que você toma como premissas de raciocínio. Então você os transforma, transfigura, por assim dizer, em afirmações e os articula logicamente com outras premissas, e tira conclusões que idealmente se aplicam a dados do mundo real. Mas essa articulação nunca é perfeita porque os dados dos sentidos sempre se apresentam a mim como fatos concretos. O que é o fato concreto? É o fato composto da multidão dos elementos essenciais e acidentais que o compõe.
Por exemplo, a gata está em cima da mesa, ou no chão, ou no sofá, ou em algum lugar, voando é que não está. Então, nenhuma dessas posições que a gata está pode ser deduzida da essência de gata --- esse é um dado da experiência. E tudo o que eu raciocino é na base de conceitos gerais que nada me dizem sobre o fato concreto. Para eu poder raciocinar sobre uma coisa, eu preciso abstrair o seu conceito essencial, separando dos elementos acidentais, e passo a raciocinar só com o conceito essencial. Portanto, as conclusões do meu raciocínio só se aplicam a esquemas gerais que idealmente são compatíveis com a multidão de situações acidentais, mas que não contêm nenhuma delas na definição. Situações acidentais que, portanto, eu só poderei conhecer por novas experiências sensíveis.
Aqui, o que ele está exigindo é que a experiência sensível lhe forneça o mesmo tipo de certeza formal que ele obtém dos raciocínios. Na mesma medida, ele está exigindo que os raciocínios tenham o mesmo tipo de presença sensível que tem os objetos do mundo físico. Você vê que é um hiperbolismo monstruoso.
"Mas há ainda uma outra via para pesquisar se, [00:40] entre as coisas das quais tenho em mim as idéias, há algumas que existem fora de mim. A saber, caso essas idéias sejam tomadas somente na medida em que são certas formas de pensar, não reconheço entre elas nenhuma diferença ou desigualdade, e todas parecem provir de mim de uma mesma maneira; mas, considerando-as como imagens, dentre as quais algumas representam uma coisa e as outras uma outra, é evidente que elas são bastante diferentes entre si. (...)"
Ou seja, enquanto experiências que ele tem são todas iguais. Mas, por outro lado, na medida em que elas representam diferentes objetos, elas divergem entre si também.
"(...) Pois, com efeito, aquelas que me representam substâncias são, sem dúvida, algo mais e contêm em si (por assim falar) mais realidade objetiva, isto é, participam, por representação, num maior número de graus de ser ou de perfeição do que aquelas que representam apenas modos ou acidentes. (...)"
Ou seja, se eu penso uma substância, por exemplo, o gato, então esta idéia tem mais riqueza de conteúdo do que eu pensar somente a cor do gato, por exemplo.
"(...) Além do mais, aquela pela qual eu concebo um Deus soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador universal de todas as coisas que estão fora dele; aquela, digo, tem certamente em si mais realidade objetiva do que aquelas pelas quais as substâncias infinitas me são representadas."
Então, claro, o conceito de Deus como infinito, absoluto, eterno, etc. etc., tem uma multidão de conteúdos muito maior do que qualquer objeto em particular. É isso que ele quer dizer com "mais realidade objetiva". Mais realidade objetiva não quer dizer mais riqueza subjetiva. Ou seja, o próprio fato de você dizer que Deus é infinito significa o seguinte: eu não estou pensando todas as características de Deus, eu sei que Ele é infinito, mas eu não represento na minha mente quantitativamente todos os aspectos dessa infinitude, [porque] seria impossível. Então, o grau de realidade objetiva não coincide com a riqueza quantitativa que o conceito tem na sua mente, subjetivamente.
"Agora, é coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito; (...)"
Opa! Então isso aqui é um princípio inato. Ele diz: "deve haver pelo menos tanta realidade na causa quanto no efeito". Aquilo que não existe não tem efeito nenhum. Para que algo produza um efeito, é necessário que ele seja real, e a realidade que existe no efeito tem de existir na causa também. De onde ele tirou isso? Ele diz que esse é um princípio inato que ele recebeu da luz natural, essa é uma das precondições do pensamento humano.
"(...) pois de onde é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia esta causa lha comunicar se não a tivesse em sim mesma?
Daí decorre não somente que o nada não poderia produzir coisa alguma, mas também que aquilo que é mais perfeito, isto é, o que contém em si mais realidade, não pode ser uma decorrência e uma dependência do menos perfeito. E essa verdade não é somente clara e evidente nos seus efeitos, que possuem essa realidade que os filósofos chamam de atual ou formal, mas também nas idéias onde se considera somente a realidade que eles chamam de objetiva: por exemplo, a pedra que ainda não foi, não somente não pode agora começar a ser, se não for produzida por uma coisa que possui em si formalmente, ou eminentemente, tudo o que entra na composição da pedra, ou seja, que contém em si as mesmas coisas ou outras mais excelentes do que aquelas que se encontram na pedra; e o calor não pode ser produzido em um objeto que dele era privado anteriormente se não for por uma coisa que seja de uma ordem, de um grau ou de um gênero ao menos tão perfeito quanto o calor, e assim os outros. (...)"
Ele está dando vários exemplos da lei de que uma coisa não pode estar no efeito se não está na causa. E que, portanto, a causa deve ter no mínimo tanta realidade objetiva quanto o seu efeito.
"(...) Mas ainda, além disso, a idéia do calor, ou da pedra, não pode estar em mim se não estiver sido aí colocada por alguma causa que contenha em si ao menos tanta realidade quanto aquela que concebo no calor ou na pedra. (...)"
Ou seja, ele está dizendo que a proporção da realidade objetiva entre a causa e o efeito repete-se na idéia que ele faz das coisas. Se ele pensa um efeito, ele mesmo tem de admitir que a causa daquilo tem no mínimo tanta realidade objetiva quanto o efeito.
"(...) Pois, ainda que essa causa não transmita à minha idéia nada de sua realidade atual ou formal, nem por isso se deve imaginar que essa causa deva ser menos real; (...)"
Ou seja, mesmo que eu não consiga pensar quantitativamente todos os elementos que estão presentes na causa, eu sei que ela tem tanta realidade quanto o efeito.
"(...) mas deve-se saber que, sendo toda idéia uma obra do espírito, sua natureza é tal que não exige de si nenhuma outra realidade formal além da que recebe e toma de empréstimo do pensamento ou do espírito, do qual ela é apenas um modo, isto é, uma maneira ou forma de pensar. Ora, a fim de que uma idéia contenha uma tal realidade objetiva de preferência a outra, ela o deve, sem dúvida, a alguma causa, na qual se encontra ao menos tanta realidade formal quanto esta idéia contém de realidade objetiva. Pois, se supomos que existe algo na idéia que não se encontra em sua causa, cumpre, portanto, que ela obtenha esse algo do nada; mas, por imperfeita que seja essa maneira de ser pela qual uma coisa é objetivamente ou por representação no entendimento por sua idéia, decerto não se pode dizer, no entanto, que essa maneira ou essa forma não seja nada, nem por conseguinte que essa idéia tire sua origem do nada. Não devo também duvidar que seja necessário que a realidade esteja formalmente nas causas de minhas idéias, embora a realidade que eu considero nessas idéias seja somente objetiva, nem pensar que basta que essa realidade se encontre objetivamente em suas causas; pois, assim como essa maneira de ser objetivamente pertence às idéias, pela própria natureza delas, do mesmo modo a maneira ou forma de ser formalmente pertence às causas dessas idéias (ao menos às primeiras e principais) pela própria natureza delas. E ainda que possa ocorrer que uma idéia dê origem a uma outra idéia, isso todavia não pode estender-se ao infinito, mas é preciso chegar ao fim a uma primeira idéia, cuja causa seja um como padrão ou original, na qual toda a realidade ou perfeição esteja contida formalmente e em efeito, a qual só se encontre objetivamente ou por representação nessas idéias. (...)"
Ele está dizendo o seguinte: que se ele tem uma idéia, e essa idéia supõe certa realidade objetiva, então evidentemente essa idéia tem de ter surgido de alguma coisa, essa coisa pode ser outra idéia, e essa idéia por sua vez pode se originar numa outra idéia, e numa outra, e numa outra, e numa outra, mas isso não pode recuar indefinidamente. É preciso haver em algum momento uma causa que tenha em si uma realidade objetiva para permitir o pensamento dessas idéias.
"(...) De sorte que a luz natural me faz conhecer evidentemente que as idéias são em mim como quadros, ou imagens, que podem na verdade facilmente não conservar a perfeição das coisas de onde foram tiradas, mas que jamais podem conter algo de maior ou de mais perfeito".
Então, muito bem. As idéias que eu formo podem não conter em si toda a riqueza da realidade objetiva dos seus objetos, mas não podem conter mais do que os objetos. Isso é muito simples: as idéias são todas obtidas por abstração, quer dizer, você separa alguns aspectos. Então, por exemplo, eu vejo um gato: do gato eu só penso alguns aspectos, eu não posso pensar tudo a respeito do gato, nem de um único gato. Você pode pensar, por exemplo, toda a vida de um gato, em todos os seus momentos desde que ele foi gerado até que ele morreu? Você não consegue pensar isso e, no entanto, objetivamente você sabe que tudo isso está no gato.
Então, o que ele quer dizer é o seguinte: o objeto tem em si certa consistência e riqueza de realidade objetiva. Quando você o pensa, é possível pensar menos, ou seja, na representação feita, você não precisa embutir toda a riqueza de dados objetivos que estão naquele objeto. Então, você pode pensar menos, você não pode é pensar mais. Ou seja, o pensamento que você tem de um objeto [00:50] é sempre menos rico do que a realidade objetiva.
"E quanto mais longa e cuidadosamente examino todas estas coisas, tanto mais clara e distintamente reconheço que elas são verdadeiras. Mas, enfim, que concluirei de tudo isso? Concluirei que, se a realidade objetiva de alguma de minhas idéias é tal que eu reconheça claramente que ela não está em mim nem formal nem eminentemente e que, por conseguinte, não posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, daí decorre necessariamente que não existo sozinho no mundo, (...)"
Este trecho é absolutamente fundamental na história. Ele diz: "se eu pensar uma idéia e reconhecer racionalmente que a realidade objetiva, isto é, o conjunto de traços que estão objetivamente naquele objeto, transcende infinitamente tudo aquilo que eu possa pensar, então eu tenho de reconhecer que aquilo existe fora de mim".
"(...) ao passo que, se não se encontrar em mim uma tal idéia, não terei nenhum argumento que me possa convencer e me certificar da existência de qualquer outra coisa além de mim mesmo; pois procurei-os a todos cuidadosamente e não pude, até agora, encontrar nenhum".
Eu digo: mas como não encontrou nenhum? Espera um pouquinho. Se você pega um objeto mais simples: uma formiga, e você vê que quanto mais você pensar da formiga sempre vai ficar faltando alguma realidade objetiva que tem de estar nela para ela existir, e que você não pode esgotar de maneira alguma. Ou seja, em todo e qualquer objeto existe mais realidade objetiva do que é pensável, mas em qualquer objeto é assim. Então, quer dizer, esse teste dele, ele vai dizer que o objeto que atende a esse requisito é Deus: Deus tem mais realidade objetiva do que eu posso pensar ou criar pelo meu pensamento. Mas eu digo: não é Deus, qualquer objeto é assim.
Então, por que ele não encerrou o raciocínio aí mesmo? Por que ele não reconheceu [que] qualquer objeto do mundo tem mais riqueza objetiva do que eu posso pensar: uma formiga, uma minhoca, uma pedra. Você imagina, por exemplo, a pedra um dia se formou. Quando ela se formou? Talvez, sei lá, trilhões de anos, não sei, não dá para você pensar isso aí. E, no entanto, você sabe que a pedra tem de ter se formado muito antigamente, que ela não surgiu ontem. É justamente esse resíduo do impensável que nos garante a realidade objetiva das coisas.
Você imagina uma pessoa, uma pessoa que você conhece: sua mãe. Mas você conhece a sua mãe? Sim. Mas a sua mãe já estava aí há muito tempo antes de você nascer, não estava? Você sabe tudo o que aconteceu com ela, desde que ela nasceu? Ora, desde que ela nasceu não pararam de acontecer coisas, não pararam um único segundo, quer dizer, não teve um período onde ela entrou em estado de inexistência para voltar a existir muitos minutos, segundos ou anos depois. Ou seja, a existência dela foi perfeitamente contínua. Se ela tivesse parado de existir, ela teria de voltar magicamente à existência, e isso não é possível. Então, essa existência perfeitamente contínua, você sabe que ela tem de estar lá, mas ao mesmo tempo você não pode pensá-la.
Eu disse já há muitos anos o seguinte: ser cognoscível sem ser pensável é o traço definidor do mundo real. Tudo que é real é assim. Agora, aquilo que é ao mesmo tempo cognoscível e inteiramente pensável é apenas pensamento. Por exemplo, eu posso pensar o conceito de uma figura geométrica e deduzir todas as suas propriedades sem faltar nenhuma. Você deduzindo os teoremas, deduzindo, deduzindo, chega uma hora você entra no repetitivo, não há mais nada o que deduzir daquela figura geométrica. Para você descobrir coisas novas, precisaria você inventar outra figura.
Você pega a Geometria de Euclides. Está lá a definição de triângulo e você vai tirando propriedades, propriedades. Chega uma hora que acabou. Eu falo: não tem mais nenhuma propriedade, você entra na repetição. Então isso é inteiramente cognoscível e inteiramente pensável. Agora, você pega uma pessoa: sua mãe, sua namorada, seu filho, seu vizinho. Você o conhece, mas ele não é inteiramente pensável. Sempre tem um resíduo de traços que é necessário que estejam lá para que ele exista, mas que transcendem infinitamente a sua capacidade de pensá-los. Então, a totalidade do que existe no mundo é mais facilmente cognoscível do que pensável. Este é o traço definidor da realidade objetiva: ser impensável, embora seja cognoscível.
Isso quer dizer que conhecer não é pensar; e pensar não é conhecer: são operações distintas. Daquilo que você conhece, é possível às vezes aperfeiçoar o conhecimento mediante o pensamento. Por exemplo, de tudo aquilo que você viu de um ente, você pode fazer perguntas sobre coisas que você não viu. Por exemplo, se a gata está grávida, você supõe que um gato a engravidou, porque não existe geração espontânea de gatinhos. Mas você não estava lá, você não viu o gato fazer nada, você pode nem saber que gato foi. Então eu digo: essa parte você não pode conhecer por experiência, então você conjetura, faz perguntas e, por assim dizer, tampa os buracos da experiência com uma conjetura racional.
Mas de qualquer modo vale este princípio: o que caracteriza, o que define a presença de uma coisa chamada realidade é sua impensabilidade. Ou seja, você pode conhecê-la, mas não como conteúdo da sua mente. Por exemplo, você toma uma pessoa qualquer, a sua mãe: você pode conhecê-la, mas apenas como pessoa real, não como pensamento. Na hora de pensar, você só pode pensar aspectos ou fatos isolados ou características, não a pessoa inteira. Mas você sabe que para ela existir, ela tem de ser uma pessoa inteira, ela não pode ser constituída somente dos pedaços que você viu.
Então, há um modo de conhecer que é o conhecimento da realidade concreta, onde você conhece as coisas, mas não como objeto do seu pensamento. Isso é a distinção fundamental que, ao longo de toda essa narrativa, parece lhe escapar, embora ele esteja consciente dela. Se eu digo que tudo o que conheço são idéias, então existem idéias que eu tenho, que eu suponho que vêm de coisas externas e têm outras idéias que fui eu mesmo que produzi. Ora, para uma coisa ser idéia é preciso que eu a tenha pensado, mas eu não posso conhecer um gato como pensamento meu. Só o que eu conheço como pensamento é a idéia que eu faço dele. Mas eu sei que para ele existir, tem de ter muitos mais elementos de riqueza objetiva do que aqueles que eu posso pensar. Não só um gato: uma formiga, uma minhoca, uma pedra.
Qualquer ente do mundo real tem em si mais riqueza objetiva do que eu posso pensar. Então ele não pode ser conhecido como pensamento meu, ele só pode ser conhecido como realidade concreta. Na hora que eu o transmuto [1:00] em pensamento, eu só estou lidando com um aspecto dele, e esse aspecto fui eu mesmo que selecionei e eu mesmo que pensei. E eu sei que esta idéia não coincide na sua totalidade com o ente real, porque eu obtive aquilo por abstração. O que é abstração? Separação. Se eu separei uma coisa de outros aspectos que necessariamente têm de estar nela, eu sei que eu não estou pensando a coisa inteira. Mas quando eu a encontro na realidade e a reconheço, eu a reconheço inteira, eu sei que o que está presente dentro de mim é o gato inteiro, e não somente aqueles pedaços que eu estou vendo dele agora. Por exemplo, o gato tem uma idade: ele tem dois anos, ou ele tem três anos, ou tem três meses. Ele não surgiu do nada. Porque se ele tivesse surgido do nada neste instante, ele não seria um gato, ele seria outra coisa, seria um ser miraculoso.
Então, por baixo de todo conhecimento que eu posso obter por exame ou por reflexão, etc. etc., existe um negócio que eu chamo o conhecimento por presença. É esse exatamente o conhecimento por presença. E essa, se vocês querem saber, é a forma mais exata e infalível de conhecimento. É a presença de algo que é cognoscível porque eu estou conhecendo, mas que ao mesmo tempo é impensável, ou seja, não pode ser reduzida a pensamento meu. E o que Descartes está exigindo é que os entes da realidade tenham as características de silogismos, ou seja, de pensamentos racionais. Isso é a completa inversão da experiência real. Então eu digo: não é uma experiência real: é uma hipótese. Tudo isso que ele está falando é hipotético.
Mas quando ele diz que vivenciou efetivamente isso, está querendo dizer que ele acreditou nesse pensamento em cada um de seus passos. Mas ao mesmo tempo ele mesmo está declarando que se algo contém em si mais riqueza objetiva do que eu posso pensar, então esse algo não pode ter sido criado por mim. Então quer dizer que desde o começo ele sabia que tudo isso é hipótese. E se ele sabia que é hipótese, então ele não vivenciou a dúvida metódica efetivamente, mas só como hipótese. Então ele não entrou nesse estado de dúvida que ele está dizendo, não foi essa coisa dramática que ele apresentou no começo, como se fosse uma fase da vida dele em que ele viveu nessa dúvida. Então vemos aqui claramente o elemento ficcional.
Ele pega uma série de pensamentos hipotéticos e apresenta como se tivesse sido uma experiência real vivida no tempo. Quando na verdade ele pensou tudo isso aqui em dois minutos, quer dizer, toda a construção hipotética e, em seguida, a estendeu no tempo como se fosse uma narrativa. Ora, e se há esse elemento ficcional, então existe evidentemente toda aquilo que Coleridge chamava a suspension of disbelief. Ou seja, você tem de participar da narrativa de Descartes como você participa de uma peça de teatro, quer dizer, você não faz certas perguntas, você não coloca aquilo em dúvida. Você aceita a proposição, por quê? Porque você sabe que a peça não vai durar para sempre, que vai terminar a peça e você volta para casa. Do mesmo modo que você aceita então revivenciar a experiência de Descartes, porque você sabe que ela não vai durar para sempre, o livro vai terminar e você vai voltar para a sua vida normal.
Então você tem aqui todos os elementos da persuasão ficcional: a suspension of disbelief. Que coisa incrível! A experiência da dúvida metódica exige que você não a ponha em dúvida, ou seja, que você a aceita como você aceita as premissas de uma peça de teatro. Por exemplo, existiu um príncipe chamado Hamlet em tal lugar, e o pai dele fez isso e mais aquilo. Se você colocar em dúvida, falar [que] não existiu Hamlet nenhum, pronto, acabou a peça. Então, aqui é o grande paradoxo de que o procedimento da dúvida metódica é baseado na suspension of disbelief (suspensão da descrença), ou seja, suspensão da dúvida. Se você colocar isso aqui em dúvida por um minuto, acabou a dúvida metódica.
"Ora, entre essas idéias, além daquela que me representa a mim mesmo, sobre a qual não pode haver aqui nenhuma dificuldade, há uma outra que me representa um Deus, outras as coisas corporais e inanimadas, outras os anjos, outras os animais, outras, enfim, que me representam homens semelhantes a mim. Mas, no que se refere às idéias que me representam outros homens ou animais, ou anjos, concebo facilmente que podem ser formadas pela mistura e composição de outras idéias que tenho das coisas corporais e de Deus, ainda que não houvesse, fora de mim, no mundo, outros homens, nem quaisquer animais ou anjos. (...)"
Ou seja, eu posso ter formado essas idéias por composição de outras idéias que eu tirei de mim mesmo. Mas nós acabamos de ver que isso é impossível. Eu posso fazer isso se eu compuser somente idéias. Mas se eu me perguntar qual é o coeficiente de realidade objetiva que essas coisas precisam para poder existir e estar diante de mim, eu vejo que há mais realidade objetiva nelas do que eu posso pensar. Então, eu sou obrigado a reconhecer que elas não foram criadas por mim.
Ou seja, para eu criar uma simples imagem de gato com toda a sua realidade objetiva, eu precisaria conhecer toda a formação temporal do gato desde sua origem e precisaria conhecer todas as causas que o geraram. Em suma, eu precisaria conhecer todo o reino animal e toda a natureza. Porque, por exemplo, alguma coisa o gato comeu. Ou ele chegou aos dois anos de idade e aí vai comer pela primeira vez? E o que ele comeu certamente não era gato, era outra coisa. Então esta outra coisa faz parte da realidade objetiva do gato. É só eu perguntar pelo coeficiente de realidade objetiva que um ente precisa ter para ele poder estar diante de mim, e eu vejo que ele transcende infinitamente a minha idéia. Portanto, eu vejo que eu não posso tê-la gerado. Quantas idéias eu não precisaria compor para formar uma simples minhoca? É um número infinito, é natureza inteira que está suposta ali.
"(...) E quanto às idéias das coisas corporais, nada reconheço de tão grande nem de tão excelente que não me pareça poder provir de mim mesmo; (...)"
Eu digo: Como? Se ele acabou de dizer que uma coisa tem mais realidade objetiva do que é pensável, ela tem que provir de fora e não dele mesmo, como é que ele pode dizer em seguida que ele pode ter formado todas as idéias dos entes corporais? Não, ele pode ter formado esquemas dos entes corporais, definições dos entes corporais, conceitos ou imagens, mas não os próprios entes corporais. Se eu defino um ente como constituído só daquilo que eu estou vendo dele naquele momento ou só daquilo que estou pensando, eu estou declarando no mesmo momento que não é um ente e sim uma idéia. Agora, se eu começo a me perguntar sobre qual é o coeficiente de realidade objetiva que ele precisa para ele poder estar diante de mim, eu vejo que aquilo transcende a minha capacidade de pensar.
Então, uma coisa é o ente objetivo, outra coisa é a idéia que eu faço dele. Agora, se eu me pergunto: a idéia corresponde a um ente objetivo? A resposta é não. A idéia nunca corresponde a um ente objetivo, ela corresponde a uma seleção que você fez, uma seleção esquemática. Mas de onde você tirou essa seleção? Por exemplo, suponha mesmo uma idéia inexistente, um dragão. Eu criei a idéia de dragão? Eu posso criar a idéia de dragão? Eu sozinho? Não, se eu não estou vendo dragão nenhum, eu penso a idéia de dragão, o dragão não me infunde medo algum. Mas quando eu o concebo, eu não o concebo como uma figura temível, que supostamente infundiu medo a não sei quantas pessoas e comeu vivo não sei quantos seres humanos? Porque se ele não fez nada disso, ele não é um dragão, ele é apenas uma lagartixa.
Eu posso formar a idéia de dragão ampliando uma lagartixa? Não basta ampliá-la, seria preciso infundir nessa idéia outras propriedades que não são [1:10] da lagartixa, por exemplo, soltar fogo pela boca. Eu posso conceber isso sem conceber ao mesmo tempo toda a herança cultural de lendas que existem sobre dragões? Se não existisse nenhuma lenda sobre dragão, e eu fosse inventá-la neste momento, eu precisaria complementá-la com muitas outras idéias, por exemplo, a idéia das vítimas que o dragão comeu e assim por diante.
Então, mesmo as idéias imaginárias, eu não posso tirá-las todas de mim, eu dependo de uma tradição cultural que me transmitiu essas idéias. E mesmo que o dragão não exista fisicamente, ele existe culturalmente, ele existe como uma crença. E essa crença, eu poderia criá-la, sozinho? Ora, se eu a criasse sozinho, eu saberia que ninguém jamais teve medo de dragões porque sou eu mesmo que a estou inventando naquele momento. Então, nem mesmo as idéias fantasiosas podem ser totalmente inventadas por mim, porque elas têm mais coeficiente de realidade objetiva do que eu posso conceber.
Por exemplo, se você pegar toda a civilização chinesa, o dragão ali é uma das figuras mais onipresentes, tudo tem uma referência a um dragão. Eu digo: e eu sei tudo o que os chineses falaram sobre os dragões? Não. Então, nessa realidade chamada dragão está contido, como elemento da sua realidade objetiva, tudo aquilo que a tradição chinesa foi acumulando sobre dragões ao longo de milênios. Quando eu falo a simples palavra dragão, eu tenho uma referência implícita a essa multidão de significações que está presente diante de mim como um dado cultural, mas que ao mesmo tempo não é pensável quantitativamente. Então, as realidades culturais inventadas por seres humanos participam dessa característica dos entes objetivos do mundo físico no sentido de que elas são cognoscíveis e não pensáveis.
Então, essa abertura do pensamento ao cognoscível não pensável é o que define o que nós chamamos de senso da realidade. Você só tem o senso da realidade quando sabe que está pensando em coisas que o seu pensamento não abrange no todo.
"(...) E quanto às idéias das coisas corporais, nada reconheço de tão grande nem de tão excelente que não me pareça poder provir de mim mesmo; pois, se as considero de mais perto, e se as examino da mesma maneira como examinava, há pouco, a idéia da cera, verifico que pouquíssima coisa nela se encontra que eu conceba clara e distintamente: (...)"
Ora, o critério da clareza e distinção é um critério que se aplica às construções lógicas. Quer dizer, para que você possa considerar alguma coisa como real no mundo externo, basta que ela seja clara e distinta? Eu falo: mas de jeito nenhum. Ao contrário, só o que pode ser clara e distinta é a idéia em si mesma. Mas a idéia que eu mesmo produzi. E eu digo: e a realidade objetiva da coisa? Não pode ser clara e distinta jamais, porque a clareza e distinção suporia a presença de todos os elementos objetivos que compõem aquele ente. E isso não pode jamais estar diante do meu pensamento e nem diante da minha percepção.
Eu estou dizendo isso para enunciar: "a experiência que Descartes realmente teve não bate com a narrativa". A narrativa é montada como um raciocínio. Mas é evidente que, ao longo dessa "experiência", ele percebeu muitas outras coisas que ele não está dizendo aqui. Eu posso me representar integralmente a totalidade da experiência cognitiva que Descartes teve? Não, não posso. Porque se a experiência não foi exatamente como ele a narra, alguma coisa ela foi, alguma coisa aconteceu. E essa coisa como aconteceu realmente a um ser humano contém, na sua realidade objetiva, mais dados do que eu posso pensar. A própria narrativa de Descartes mostra o que eu estou dizendo.
Ela aconteceu, e eu sei que ela aconteceu fora de mim, por quê? Porque quando eu leio o que ele contou, eu vejo que para ele contar isso, ele precisaria ter percebido muitas e muitas outras coisas simultaneamente, e não somente essas. Por exemplo, quando ele diz que ele prosseguiu esse pensamento por vários dias, eu digo: ele ficou só pensando nisso? E durante esses dias, ele não comeu, não dormiu, não conversou com ninguém? Não, tudo isso aconteceu. E se não tivesse acontecido, também não poderia acontecer os fatos narrados. Então eu sei que essa experiência teve alguma realidade objetiva, por quê? Porque ela é cognoscível por mim através dessas pequenas informações que ele dá, mas que ela não é pensável inteiramente por mim.
Então, a adoção da clareza e distinção como critério de realidade já não é crível desde o início. Ele diz: "eu sou vou acreditar naquilo que é claro e distinto". Então você acabou de dizer que só vai acreditar nos seus próprios pensamentos, e não em coisas do mundo real, que nunca pode se me apresentar a mim com toda essa clareza e distinção, por quê? Para elas existirem, elas têm de ter mais riqueza objetiva do que eu posso pensar. É isso que eu chamo o círculo de latência. Quando você percebe um ente real, não percebe só o que ele está apresentando no momento, mas um círculo em aberto de possibilidades, de potencialidades, que estão ali, e que se não estivessem ali, esvaziariam aquele ente da sua realidade.
O exemplo que eu dou é o de um cachorro deitado. Você sabe que o cachorro pode abanar o rabo, pode rosnar para você, pode ficar dormindo, pode não fazer nada, pode mordê-lo. E se ele não puder fazer nenhuma dessas coisas, ele não é um cachorro, ele é somente uma idéia de cachorro ou, sei lá, é um boneco que parece um cachorro. Então, quando você percebe o cachorro, instantaneamente percebe nele todo esse potencial de ação e de transformação que está nele. Esse potencial é maior em alguns seres e menor em outros. Por exemplo, ele é maior num ser humano do que num cachorro, o ser humano pode fazer mais coisas do que o cachorro. Por exemplo, o ser humano pode querer falar com você, o cachorro, não; o ser humano pode tentar lhe vender alguma coisa, o cachorro, não; o ser humano pode mentir para você, o cachorro, não. E se você não souber que o ser humano pode fazer tudo isso, você não sabe o que é um ser humano, ou seja, você não o distingue de um cachorro.
Então, perceber um ser não é perceber só a sua presença física, mas o seu círculo de latência. Note bem: o círculo de latência não tem nada a ver com aquilo que você imagina que o bicho pode fazer. Imaginar e conjeturar o que ele pode fazer é apenas explorar o seu círculo de latência. Mas você não poderia explorar o círculo de latência se você não o tivesse percebido. Então é absurdo você dizer que você só conhece de cada ente, de cada objeto, a sua presença física imediata e o resto você só conhece por conjetura. Na conjetura, você está explorando o círculo de latência já percebido, porque, senão, seria preciso que, para cada objeto que conhecido, você conscientemente fizesse conjeturas a respeito dele.
Por exemplo, eu estou vendo um monte de livros na minha estante e eu automaticamente sei que alguma coisa está escrito neles. Eu não preciso abrir livro por livro para conferir isso, todos os dias, de novo. Eu volto aqui à minha biblioteca e digo: "deixe-me ver se aquelas coisas ainda estão escritas lá". Então isto não é uma conjetura que eu faço. O livro está presente como livro, por quê? Porque algo está impresso lá. Então eu sei que para cada um desses livros tem uma infinidade de experiências humanas que está ali escrita de alguma maneira. E se eu não soubesse disso, eu não saberia que são livros.
[1:20] Não interessa agora discutir como você chega à percepção do círculo de latência dos vários tipos de objetos. Por exemplo, para eu chegar a perceber o que é um livro, eu precisaria ter aprendido a ler. Agora, para eu perceber o círculo de latência de um gato, eu não preciso ter aprendido nada. O círculo de latência está presente porque o gato sempre está fazendo alguma coisa. Se ele não estiver fazendo nada, no mínimo ele está respirando. Por exemplo, a percepção de que um ser vivo está vivo: é uma conjetura que você faz ou é uma percepção imediata? Uma percepção imediata. E estar vivo é ter um círculo de latência, ou seja, é poder fazer uma série de coisas no instante seguinte.
Quando eu começo a conjeturar, eu estou então explorando esse círculo de latência que eu já percebi. Se eu não o tivesse percebido, eu não poderia explorá-lo de jeito nenhum. Então, não é verdade que nós só conhecemos as coisas pela sua presença sensível acompanhada de uma conjetura, que é uma análise que muitos filósofos influenciados pelo positivismo faziam. Alain, por exemplo, tem páginas magistrais sobre o que ele chama o conhecimento por antecipação. Ele dá o exemplo: eu escuto o passo de um cavalo, eu suponho um cavalo. Note bem: o passo de um cavalo não é um ser, é uma relação. Então do passo de um cavalo, eu concluo a presença de um cavalo. Mas, quando eu vejo um cavalo, eu não preciso conjeturar que ele pode andar. Eu sei que ele pode andar porque se ele não puder, ele é um cavalo de palha. Então ele confunde a percepção de relações fenomênicas com a percepção de entes.
A percepção de um ente é a percepção do seu círculo de latência. Se você disser: o círculo de latência inteiro? Eu falo: a expressão é autocontraditória. O círculo de latência é latente, portanto, nunca está inteiro. É a percepção daquele ente como um feixe de potências e não simplesmente como uma presença sensível.
"(...) Quanto às outras coisas, como a luz, as cores, os sons, os odores, os sabores, o calor, o frio e as outras qualidades que caem sob o tato, encontram-se em meu pensamento com tanta obscuridade e confusão que ignoro mesmo se são verdadeiras ou falsas e somente aparentes, isto é, se as idéias que concebo dessas qualidades são, com efeito, as idéias de algumas coisas reais, (...)"
Mas é muito simples isso aqui. Qualquer dessas qualidades que você perceba concretamente... Não estou falando da idéia que você faz delas, mas, por exemplo, se eu sinto calor, para o calor estar presente, é necessário que ele tenha em si mais qualidades objetivas do que eu posso pensar. Por exemplo, este calor que está na atmosfera se estende até certa área, ele não chega até o Polo Norte, por exemplo. Eu sei até onde vai esse calor? Não, não sei. Mas eu sei que se o limite deste calor estiver no meu corpo, então ele reflete uma situação interna do meu corpo e não o calor externo. Se eu não soubesse isso, eu jamais poderia distinguir um calor de uma febre. Porque a febre é quando você sente calor, sem que o calor esteja fora. Você sabe distinguir isso? Qualquer um sabe, e diz: "eu estou com febre", ele não diz: "eu estou com calor".
Então até para eu saber a minha febre --- eu estou sentindo febre ---, eu sei instantaneamente todo o processo interior do meu corpo que gerou a febre? Eu percebo instantaneamente? Não, não percebo. No entanto eu sei que está lá. A febre pode ter vindo sozinha sem nenhuma alteração interna do meu estado corporal? Eu sei que não, porque eu sinto alguma dessas alterações junto com a febre. Por exemplo, eu sinto dor de cabeça, eu sinto cansaço, etc. Então eu sei que algo aconteceu. Por que eu tenho de ir ao médico para saber que alguma coisa aconteceu? Porque eu não estou percebendo imediatamente tudo o que aconteceu. Eu não acompanho todas as transformações pelas quais passa o meu corpo no dia a dia e, no entanto, eu sei que elas estão lá porque senão a febre não seria febre.
Então, mesmo estas sensações isoladas que ele diz, cada uma delas tem mais riqueza de realidade objetiva do que eu posso pensar. E isso prova que existem realmente, e não como criações minhas. Na verdade, uma criação minha, uma idéia que eu tive, eu sei toda a história dessa idéia? Não, não sei. Eu sei que realmente a pensei, justamente porque a idéia é pensável no seu conteúdo, mas não na sua realidade histórico-temporal inteira. Então, o critério que ele usou da riqueza da realidade objetiva já responde inteiramente a questão que ele está colocando. Só que, em seguida, ele nega que os entes do mundo sensível e as percepções etc. têm esse coeficiente de realidade objetiva. Por que ele diz isso? Porque ele não examinou o problema, ele simplesmente passou em cima. Passou em cima por quê? Porque ele está arrastado pelo consequencialismo lógico do seu raciocínio, em vez de se ater à narrativa real que ele se propôs fazer.
Isso vai chegar ao ponto seguinte: se tudo o que é externo ao eu pensante é eu duvidoso, então não são somente duvidosas as coisas do mundo físico, mas também a existência de pessoas. O que é pessoa? Pessoa é um ser autoconsciente e agente tal como René Descartes se descreve a si mesmo. Ele pensa, ele decide, ele tem volições, ele tem sentimentos, ele tem estados, etc. etc. Ele sabe que tudo isso aí vem de dentro dele como ser agente. Não dentro corporalmente, mas é um sujeito autoconsciente e agente. Se eu duvido da existência do mundo exterior, eu duvido da existência de outros seres humanos conscientes e agentes como eu mesmo. Se eu duvido até que eles existam fisicamente, como é que eu não vou duvidar que eles sejam sujeitos autoconscientes e agentes?
Ora, pelo critério da riqueza objetiva ele vai chegar à conclusão mais adiante (e nós veremos isso nas aulas subsequentes) de que a idéia de Deus não poderia ter sido criada por ele, mas tem de ter sido infundida nele por uma causa suficientemente rica de qualidades objetivas para poder manifestar a sua presença na consciência de René Descartes. Acontece que se ele duvida da existência de outros seres agentes e conscientes, ele não pode conhecer Deus como pessoa, isto é, como sujeito agente, ele só pode conhecer Deus como um conceito abstrato universal. E um conceito abstrato universal não age. Então como é que um conceito universal abstrato pode agir a tal ponto de meter uma idéia na cabeça de René Descartes? Isto quer dizer que o Deus que ele conhece não é o Deus como pessoa agente, mas o Deus como conceito universal abstrato. E isso é tudo o que ele sabe de Deus.
Então, significa o seguinte: veja que, no início, eu disse havia uma defasagem entre o eu pensante e o eu existencial de Descartes. O eu pensante se constitui só daquilo que ele pensa. Mas entre os pensamentos, ele diz, também existem sentimentos e volições os quais não podem existir sem corpo, portanto o corpo também está incluído. Então no eu existencial real está incluído o corpo, mas no eu pensante não está, e que Descartes pula de um para o outro e confunde os dois. Esta dualidade se reproduz no conceito que ele tem de Deus, porque ele pensa Deus como conceito abstrato universal e, ao mesmo tempo, diz que esse deus age, e agiu tão profundamente que meteu uma idéia na cabeça dele. Então aí também está confundido o Deus como conceito universal e o Deus como pessoa agente, essa confusão, essa mistura, essa indistinção surge da indeterminação entre o eu pensante e o eu existencial.
[1:30] Então você está vendo que o homem das idéias claras e distintas parece que só tem idéias obscuras e confusas. Não quer dizer que essas idéias estejam erradas, mas algo ele está querendo dizer que ele não consegue dizer. E nós é que temos de escavar por baixo dessa confusão e falar: qual foi a experiência real de René Descartes? E a única maneira de fazermos isso é: tentarmos a mesma experiência de novo. Só que aí vemos que a experiência nossa não bate com a que ele está narrando, talvez tenha batido com aquela que ele realmente atravessou, ele realmente vivenciou, mas nós não sabemos.
Então você vê a força e a fecundidade desse método psicológico. Agora, se nós transformamos automaticamente este texto de René Descartes numa exposição doutrinal e passamos a discuti-la filosoficamente, nós perdemos tudo isto. Então dizer: "é um clássico da filosofia, deve ser lido filosoficamente". Sim, mas antes disso, num nível mais imediato, ele se apresenta como uma narrativa autobiográfica. Então, para chegar à filosofia de René Descartes, nós temos de passar pela autobiografia de René Descartes. Então, vamos isso primeiro como autobiografia, ou seja, de um ponto de vista psicológico e procedendo por empatia, isto é, por participação na experiência dele. Ficou claro tudo isso? Então, vamos fazer uma pausa. Daqui a pouco nós voltamos.
Então vamos lá. Tenho aqui algumas perguntas.
Aluno: Tipos de apreensão, segundo Descartes. Primeiro: a veracidade do raciocínio lógico a qual depende somente da sua coerência interna. É evidente, absolutamente certa, mas não nos acrescenta conhecimento. Segundo: a verdade experiencial que é aquela que simplesmente se apresenta, sem ser falsa ou verdadeira. A veracidade ou falsidade deve ser buscada posteriormente e nos conduzirá a juízos de ordem probabilística apenas, nunca à evidência, nunca ao conhecimento apodíctico. Esse parece ser o mesmo problema com o qual Kant se deparou. Isto é correto? (...)
Olavo: Em parte. Já vamos ver já.
Aluno: (...) Kant tentou resolvê-lo criando o juízo sintético a priori. Mas, acho eu, em Kant está ausente a noção de princípios autoevidentes. Quer dizer, ele não considerou a existência de outros tipos de apreensão, digamos assim, que diferem desses dois apresentados do qual junta o mérito do primeiro tipo com o do segundo. É evidente que nos oferece um acréscimo de conhecimento. A primeira tese da filosofia concreta de Mário Ferreira dos Santos é um exemplo disso: quando afirmamos "alguma coisa há", tal é evidente, não apenas um raciocínio tautológico. Isso tudo é correto?
Olavo: Aqui está tudo certo, mas o problema em toda essa discussão é sempre saber se você pode criar algum juízo que seja fundamento de todos os outros, que seja um juízo por si mesmo autoevidente. Mas, sinceramente, eu não acredito muito que juízos possam ser autoevidentes, pelo simples fato de que os juízos têm de ser pensados. E a única coisa que é autoevidente é a existência da realidade.
Quando o Mário diz "algo há", você pode pensar isto como uma proposição --- e como proposição ela pode ser discutida, claro que você chega à prova dela ---, mas também pode ser compreendida como simples tradução da experiência da presença do ser. Quer dizer, esta é a única coisa autoevidente: a presença do ser. E a presença do ser não é uma afirmação. Quer dizer, quando você a transporta para o reino das afirmações, transmutando-a numa tese filosófica, automaticamente foi criado um problema que não pode ser resolvido, porque a tese filosófica pode ser sempre discutida. E pode ser discutida indefinidamente.
É por isso que eu prefiro definir a verdade como um domínio existencial no qual você está ou no qual você não está, ou do qual você se isola, e não como um juízo filosófico autoevidente. Eu acho que você só vai procurar juízos filosóficos autoevidentes, se você acredita somente na veracidade dos juízos e não na presença do ser. Mas se você não acredita na presença do ser, então já arrumou um problema, arrumou sarna para se coçar. Quer dizer, a presença do ser é a condição absolutamente necessária para que exista investigação filosófica, a presença do ser não tem que ser justificada pela investigação filosófica, isso não faz o menor sentido. Isto aí é o que Wittgenstein chamaria um pseudoproblema, quer dizer, é um erro de construção lógica ou até um erro de categoria gramatical.
Eu não creio que a demonstração da existência da realidade seja um problema filosófico. Você vê que Platão e Aristóteles nunca trataram disso, não são idiotas para fazer uma coisa desta. [Dizer que] nós temos que buscar um juízo apodíctico que seja o fundamento de tudo mais, eu digo: um juízo apodíctico só pode ser fundamento de um discurso. E o que você está querendo: um juízo apodíctico ou o conhecimento da realidade? Um dia você vai ter que escolher. Você pode achar um juízo apodíctico de ordem formal e criar todo um sistema dedutivo em cima disso o qual não diga absolutamente nada. Eu não acho que todos os problemas filosóficos sejam legítimos. Quer dizer, um problema, para ele adquirir estatuto de um problema filosófico digno de atenção, tem de se justificar.
Durante toda essa fase moderna, apareceram milhares de problemas filosóficos que são verdadeiramente ridículos, que contribuem um pouco para imagem popular do filósofo como sujeito que tem a cabeça no mundo da Lua. É a história do filósofo que estava andando, meditando e caiu no poço. Embora essa história seja antiga, eu acho que a filosofia moderna corresponde muito mais a essa imagem do que a filosofia antiga. Um problema como a existência do mundo exterior, para quem você vai colocar este problema? Para alguém que não existe? O simples fato de o sujeito sair escrevendo mostra que ele não leva a sério a pergunta. Por que você vai escrever o quê? Num livro que só existe na sua imaginação para ser lido por um leitor que também só existe na sua imaginação? Aí você entra no paradoxo do mentiroso: o próprio fato de você dizer alguma coisa prova que o que você está dizendo é falso.
O número de problemas filosóficos deste tipo que apareceram na modernidade é enorme. Isso mostra que a filosofia virou uma espécie de doença mental. São problemas que Platão, Aristóteles ou Sócrates jamais considerariam problema filosófico real. São problemas que não têm suficiente dignidade, não são problemas, são pegadinhas lógicas do tipo que os cépticos gostavam de fazer. O negócio do pau que entra na água e parece quebrado, eu digo: por que o pau na água deveria parecer igualzinho ao pau no ar? Por quê? Então são perguntas que é só você invertê-las, [e] elas se esvaziam automaticamente.
E nesse sentido a crítica de Wittgenstein tem muita razão. Quer dizer, o exame que ele faz das proposições filosóficas, ele mostra que elas não estão dizendo nada. Ele tem razão. Mas ele não vai encontrar esse tipo de problema em Aristóteles ou Platão, nem nos escolásticos. Mas em Descartes, Kant, Hegel, vai encontrar milhares dessas coisas. O reconhecimento da presença do ser é o começo do problema filosófico. Quando Aristóteles dizia que o conhecimento começa com o espanto, alguma coisa espantosa tem de ter acontecido, você não vai se espantar com nada. O acontecer é o motivo da investigação filosófica, e isto me parece autoevidente. Eu começo a filosofar porque tem algo que eu não entendo. Mas se algo não existe, então ele não é problema de maneira alguma.
A simples busca de uma proposição autoevidente --- que é um esquema que o Mário Ferreira dos Santos aceita, quer dizer, ele quer construir um sistema dedutivo perfeito que seja, diz ele, a metalinguagem de todas as ciências ---, eu digo: eu acho que isso é perfeitamente possível de fazer, mas aonde você vai chegar com isso? Quer dizer, que problema concreto, efetivo, você vai resolver com isso? Eu não acredito que isso seja realmente tão importante assim. Aqui eu vou fazer uma série de proposições que ninguém jamais poderá negar. Um monte de gente fez isso. Mas depois que o Kurt Gödel demonstrou que não existe sistema [1:40] dedutivo perfeito, então isso significa que o mundo do discurso humano jamais pode ter aquela veracidade apodíctica que a presença do ser tem. Nós não podemos reproduzi-la na esfera do discurso, o discurso humano não se destina a isso, o discurso humano não se destina a abranger a totalidade do real, acolhê-la dentro de uma malha de afirmações do qual ninguém possa escapar. O discurso humano visa apenas a preencher certos hiatos que aparecem no mundo da experiência. Quer dizer, é a parte que você não sabe por experiência, é a parte que não é acessível à experiência, mas que é acessível à imaginação, à conjetura, ao raciocínio, etc. etc. Então ele visa a complementar.
Então eu acho que a verdade não é uma coisa que esteja contida dentro do discurso. A verdade é a posição efetiva, a posição real, de um indivíduo pensante dentro e perante a presença do ser. A hora que ele aceita: "eu estou aqui no mundo que eu não fiz, que eu não sei de onde surgiu, e eu estou fazendo perguntas sobre isso". Então eu acho que a verdade nunca pode estar no discurso, mas está na relação entre o falante e a presença do ser. Quer dizer, você tem de estabelecer uma relação verdadeira, eficaz com a presença do ser. E, sobretudo, a verdade está na sua adequação a esse ser dentro e diante do qual você está --- o ser tomado como totalidade.
Para você fazer um discurso filosófico universalmente abrangente seria necessário justamente que ele esgotasse, como diria Descartes, o coeficiente de realidade objetiva que tem de ter no mundo. Isso é impossível. Então, o discurso filosófico perfeito, para mim, é uma contradição de termos. Ele não se destina a isso. E por isso mesmo eu acho que a definição escolástica da verdade como coincidência entre o pensamento e o ser é verdadeira, mas ela não é suficiente, porque aí está supondo que existe verdade somente no juízo. Eu digo: não, não. A verdade está na relação efetiva entre a consciência e o ser, portanto ela não é só o conteúdo de uma proposição.
Eu não acredito que as proposições são verdadeiras em si, por que, afinal de contas, o que é uma proposição? É algo que alguém disse, e esse algo tem de ser ouvido por outra pessoa, a qual vai entendê-la desta ou daquela maneira. Quer dizer, a verdade só se efetiva no ato concreto da consciência. Então é por isso que Aristóteles dizia: "a verdade está no juízo", mas juízo não é proposição. A proposição é apenas a frase, a sentença. O juízo é o que você efetivamente percebe quando você ouve ou lê a proposição. Então existe a verdade desta consciência no momento em que ela entende a proposição dentro do quadro geral da presença do ser, senão está fora da realidade. Então a presença do ser não é em si mesma uma questão filosófica, ela é, como diria o Louis Lavelle, o começo de todas as perguntas.
E na hora que você admite a presença do ser... como se estivesse no seu poder negá-la. Para você negá-la é preciso que você esteja nela faz tempo. A não ser que antes de nascer já começasse a negar. Então o reconhecimento da presença do ser é a condição necessária para a colocação de qualquer questão filosófica séria. Você vê que as questões que Sócrates coloca são mortalmente sérias: o que é a justiça, existe a imortalidade. Então são questões referentes a aspectos do ser, nunca vão colocar em dúvida a presença do ser. A questão da realidade, se existe a realidade ou não, é uma questão totalmente ignorada pelos gregos, e ignorada com justa razão.
Aluno: O conhecimento por presença é um ponto de partida para a busca da verdade? Ou a busca da verdade consiste em sempre tomar consciência daquilo que já sabemos por presença? E se sim, como é possível saber algo sem estar consciente dele? Não seria antes uma questão de ampliar o foco da nossa atenção para a própria constituição da realidade?
Olavo: Sem dúvida. O conhecimento por presença já está dado como precondição de qualquer outro conhecimento que você tenha. Porém, ele, para nós, não basta. É preciso que você o transforme numa admissão consciente do conhecimento por presença. É por isso que eu digo que o método central é a confissão. Mas na medida em que você vai confessando o que você já sabe, você vê que sabia mais coisas. Em parte também é o método socrático: quando ele faz perguntas, as pessoas vão admitindo, e elas mesmas acabam descobrindo que elas já sabiam mais e mais e mais e mais. Como no caso do escravo que ele interroga e vê que o escravo no fim conhece os princípios da geometria.
Então, é uma questão de você recordar aquilo que já sabe. Claro que existem perguntas cujas respostas você não sabe, radicalmente você não sabe. Porém, a resposta delas só pode se encontrar dentro da reflexão que você faz sobre o conhecimento por presença. A reflexão não pode ser uma força autônoma, uma coisa assim puramente criativa que vai criar um sistema filosófico, que vai abranger o mundo como numa rede. Eu falo: não, isso tudo é loucura. Quer dizer, a reflexão é sobre aquilo que você já conhece. E essa reflexão visa a tornar mais consciente esse conhecimento, mais diferenciado linguisticamente, de maneira que ele seja expressável de tal modo que outras pessoas possam reconhecê-lo no instante em que ouvem. E visa também a constituir um patrimônio que vai se acumulando ao longo do tempo. Patrimônio que não valeria nada se as pessoas não tivessem acesso às mesmas experiências fundamentais que ali estão registradas de algum modo. Se você próprio não tem conhecimento por presença, não tem a presença do ser, não tem nada, então como você vai entender o que nós estamos dizendo?
Muitas dessas perguntas que surgiram na filosofia moderna são, de fato, erros de comunicação verbal, às vezes de comunicação do sujeito com ele mesmo. Nós estávamos acabando de ver como Descartes às vezes não sabe expressar o que ele está querendo dizer. Ele tenta, mas na hora que ela vai passar do fato para o discurso, então a mecânica interna do discurso, a força da dedução silogística o arrasta e ele acaba falando de outra coisa. Então, caso ele se ativesse mais fielmente à reprodução da experiência, a narrativa da experiência, as conclusões teriam sido outras. Por exemplo, isso que ele coloca sobre o coeficiente de realidade objetiva que tem dentro do ser, ele não percebe que ali ele já matou a questão. Ele poderia ter dado um salto de muitos séculos aí.
Mas ele está interessado em provar a soberania do eu. Então o eu pensante tem uma comunicação direta com Deus, e esta comunicação direta garante a realidade do mundo. Eu digo: por que Deus fez isso comigo apenas? Por que Ele não fez com todo mundo? E se ele fez com todo mundo, então eu sou obrigado a reconhecer automaticamente a presença de outros agentes pensantes e conscientes iguais a mim. Então, está morto o problema. E outra coisa: ele não está falando de uma comunicação entre Deus e a alma humana, ele está falando da comunicação entre Deus e o eu pensante. O eu pensante que se torna então, de certo modo, uma dimensão superior à própria alma.
E, ora, entre o eu pensante e Deus só existe a relação da conseqüência à sua premissa, quer dizer, a existência de Deus é uma premissa do eu pensante tal como o entende Descartes. Eu digo: mas essa é uma relação puramente lógica, e não existencial. [1:50] Então o que ele está fazendo é: o conceito do eu subentende o conceito de Deus. Eu falo: muito bem, mas o conceito de Deus não pode ter colocado nenhuma idéia na sua cabeça.
Então essa ambiguidade entre o raciocínio puramente formal e a narrativa factual, isso aí é a marca característica das Meditações de René Descartes. Essa é a grande diferença entre o cogito cartesiano e o cogito agostiniano. Porque o cogito agostiniano é um reconhecimento de uma realidade, não é uma dedução que ele está fazendo. Quando ele diz "eu sei que eu sou, mas eu não sei por que eu sou", então eu estou dizendo que a minha própria existência contém aspectos que transcendem o meu círculo de consciência no momento. E eu sei que eu existo precisamente porque eu estou aberto a essa infinidade de conhecimentos ao meu próprio respeito que não me são pensáveis no momento. Então isso garante a minha consistência de ser real. É o que eu não posso pensar, mas que eu tenho de admitir: é exatamente isso que é a garantia do real.
Agora, Descartes faz o contrário: o que ele não pode pensar, ele nega. Quer dizer, ele literalmente serra o galho onde está sentado. Isso não aconteceria se todo o caminho para isso não tivesse sido preparado por todo um culto do eu que apareceu na época. E o culto do eu era a idéia assim: eu posso ser o que eu quiser, eu faço, eu aconteço, eu mando. Que hoje nós sabemos que é tudo uma ilusão. Porque se tem um cara que manda, deve ter alguém que obedece. E esse alguém que obedece, o que é, é um eu também? É o eu pensante autônomo, autocriador também? Se ele é, então o fato de você tomar as decisões por ele é uma invasão de privacidade, no mínimo.
Quer dizer, o culto do eu é automaticamente paradoxal. Eles falam: "o culto do homem", eu digo: não, o culto de alguns homens. É o culto de alguns homens e o rebaixamento de outros, por definição. Eles falam: "o grande líder que manda em todo mundo", eu digo: mas ele é o eu dele, não o meu. E qual é o problema aí? É que consideram o eu de um indivíduo como se ele representasse automaticamente toda a humanidade. Então quer dizer que a ascensão do chefe, do líder, é como se fosse a ascensão de todo mundo. Mas isso é evidentemente uma ilusão. Quer dizer, as conseqüências últimas disto você vai ver, sobretudo, quando aparece o fenômeno fascista. O culto do eu do líder, é o führer, é o dulce. Então as pessoas que o apóiam, sentem também que elas estão subindo junto com ele, mas é só imaginação, na verdade quem subiu foi ele, você foi para baixo. Então o eu humano também tem essa característica de que ele é um eu dialogal. Ele tem uma existência própria, porém essa existência só se desenvolve no confronto com os outros eus. Se não houvesse nenhum eu consciente com quem eu conversar, para quem eu ia escrever o livro?
No mesmo momento em que ele está querendo colocar uma relação direta entre ele e Deus, ele está afirmando que tem a mediação das outras pessoas. Porque se só existisse ele e Deus, ele vai escrever esse livro para Deus? Mas Deus já sabe tudo isso. Se ele fosse fazer seriamente, "vou escrever para Deus, como Santo Agostinho", então o livro teria de ter uma estrutura totalmente diferente, como tem as Confissões de Santo Agostinho, onde, à medida que ele vai falando coisas para Deus, Deus revela outras coisas para ele que ele também não sabia. Então ele não é de certo modo o senhor da sua obra, como Descartes é. Descartes domina o esquema dedutivo que ele está criando. Então isso aí reflete mesmo aquele negócio do Henri Bergson da alma fechada e da alma aberta. A alma aberta então sabe que o discurso dela é apenas um acontecimentozinho dentro da presença do ser, e que ela não vai se sobrepor à presença do ser como uma malha conceitual que embrulhe tudo.
Aluno: Quando leio as Meditações de Descartes, encontro as bases da Crítica da Razão Pura de Kant embutidas lá, principalmente a questão dos juízos sintéticos a priori e a noção de coisa-em-si. De fato então a única diferença substancial de Kant no que concerne à ontologia e à teoria do conhecimento é a solução dada por eles às categorias a priori do sujeito transcendental?
Olavo: Sim. Ele está partindo de um problema cartesiano evidentemente, que ele vai tratar de outra maneira, com outra estratégia. Mas, eu acho que as conclusões finais do Kant, por exemplo, "nós não conhecemos a coisa-em-si, tudo o que nós conhecemos são os aspectos fenomênicos que chegam até nós e, portanto, isso reflete a nossa estrutura cognitiva e não a estrutura do mundo real necessariamente", eu também acho que tudo isso é uma maneira falsa de colocar o problema, desde o início. E uma das raízes desta falsidade é a própria constituição da profissão de filósofo de certa maneira, onde o indivíduo fala como um papel social que não tem que dar conta da realidade da sua existencial no mundo. Por exemplo, eu posso escrever um livro para outras pessoas, sem ter de levar em conta que essas pessoas existem. Então, eu não conheço a coisa-em-si, mas eu pretendo que você conheça o meu pensamento em si, e não apenas como forma fenomênica.
Se for levar o Kant absolutamente a sério, eu digo: nós não temos acesso ao pensamento de Kant, nós temos acesso a um objeto material chamado o livro do Kant, Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática, que está impresso num papel, numa determinada língua que precisa ser decifrada para você chegar lá. Então, você tem várias camadas de aparência fenomênica. E quando você chega ao pensamento de Kant? Jamais. Se eu não posso ver um elefante em si, como eu posso conhecer o pensamento de Kant em si que é muito mais evanescente? Então o próprio fato de Kant escrever o livro já contradiz a importância do problema que ele está colocando.
Por isso que eu digo [que] a filosofia, meu filho, é da Renascença para trás, principalmente Platão e Aristóteles. Quer dizer, Platão e Aristóteles ainda são os donos do pedaço. Os Escolásticos apenas acrescentaram um ou outro elemento técnico ali, [e] só. E na filosofia moderna a coisa vai ficando cada vez menos séria, até que o pensamento se dissolve em fantasia, em ideologia, em reforma do mundo, etc. etc. Nós, olhando tudo isso, é como dizia Pirandello: "Ma non è una cosa seria", quer dizer, eles não estão falando nisso porque eles acreditam nisso. É apenas um jogo que eles desempenham, que eles jogam, no exercício de certas funções sociais que garantem para eles um dinheiro da universidade todo mês. Quer dizer, o sujeito não precisa acreditar no que ele está falando.
Aliás, a própria noção de acreditar desaparece. Você veja que o suprassumo disso chega quando aparecem as grandes ideologias modernas. Eu estava lendo agora mesmo o livro do Alain Besançon, As Origens Intelectuais do Leninismo, em que ele cita do trecho do Soljenitsyne em que fala da fórmula do materialismo dialético, da doutrina oficial da URSS. E ele diz que essa ideologia funciona porque ninguém acredita nela, ninguém leva aquilo a sério. Então é um instrumento de você aprisionar o outro dentro de certa grade de exigências que você mesmo não precisa cumprir. Então, aí chega à farsa total.
O curioso é seguinte (é outra observação finíssima do Besançon e isso eu confirmo por experiência própria): quando você lê os manuais de marxismo-leninismo, como os feitos na Academia de Ciências, o do Bukharin, etc. etc., eles dizem: "Isso aqui é uma apresentação popular [2:00] do marxismo-leninismo". Eu digo: agora, cadê a apresentação erudita? Ela não existe, ela é igual. Quer dizer, você só tem aquela versão esquemática boboca, que justifica o fato de ser boboca por ser popular. Agora, cadê o andar superior? Você não tem, não tem uma única apresentação do marxismo-leninismo que seja superior ou mais elegante. Por exemplo, você tem o manual de marxismo-leninismo do Otto Kuusinen, um negócio de 700 páginas. Eu digo: aquilo ali é o manual popular. Então cadê outra versão mais elegante? Não há. Então o próprio modo de apresentação da ideologia já é uma farsa. Você apresenta uma versão popular, se você fizer qualquer crítica, eles dizem: "não, é só porque é uma versão simplificada". Eu falo: está bem, então me dá a versão sofisticada que responda a isso. Ela não existe.
Então é a definição que ele dá da ideologia: "É a crença não crida". Foi a isso que nós chegamos, começando com esta palhaçada aqui! Claro que você não vai responsabilizar Descartes por tudo o que aconteceu depois, mas foi-se criando uma tradição de fingimento. É o que eu digo, é um pensamento impostado: aquilo não é a sua voz verdadeira, é uma voz elevada a outro plano para alcançar a plateia. Mas, por exemplo, as emoções que o autor transmite no palco são emoções que ele não precisa acreditar. Aliás, se ele acreditar, ele fica completamente louco. Porque o sujeito está representando que é Otelo, então a mulher dele o trai, ele chega em casa e mata mulher? Ele não vai fazer isso. Então é uma crença momentânea, só serve para os fins da representação, para os fins da encenação.
E muito dos que os filósofos dizem desde então só serve para você dizer na cátedra, não para você acreditar realmente. Então é o tal negócio, eu digo: isso que você está dizendo nem mesmo você acredita, nem mesmo você leva a sério, mas quer que eu leve a sério. Então é exatamente como o materialismo dialético: o autor do livro de materialismo dialético não precisa acreditar em nada daquilo, mas você é obrigado a acreditar. Então é claro que tudo isso vira uma palhaçada infernal, uma farsa medonha. E essa farsa, ela se universaliza, e não é só no marxismo-leninismo. Você veja o negócio das teorias nazistas também. O Hitler confessou para o Hermann Rauschning: "Eu não acredito em nada dessa história de raça, mas nós temos que usar isso aí". Quando você vai ver, o que o Hitler tinha contra os judeus? Hitler não era um biólogo, não era um estudioso do fenômeno de raça, nada, nada, nada. O que ele tinha contra os judeus, o que ele alegava contra os judeus era exatamente o que Marx alegava: os judeus são o espírito do capitalismo.
Ou seja, o verdadeiro argumento de Hitler contra os judeus era um argumento ideológico de classe, por assim dizer, não um argumento racial. Então ele estava agindo como um bolchevista, um materialista dialético, e por isso mesmo ele estava contra os judeus. Mas nós dizermos apenas, não é suficiente para convencer, então nós temos de inventar outro negócio: nós vamos medir a cabeça do judeu, fazer uma série de argumentos antropológicos, uma palhaçada pseudocientífica toda para justificar que nós queremos matar os caras e tomar o dinheiro deles. Que era exatamente o que os bolcheviques faziam, igualzinho. Então o que é isso aí? É uma palhaçada. É a ideologia, a crença não crida. Eu não acredito naquilo, mas eu torno obrigatório para você.
Isso aí aparece o tempo todo na vida moderna. Quando você vê o desarmamentista que foi pego vendendo arma para o traficante, eu digo: o que é isso? Você não pode chamar isso de hipocrisia porque todos são assim. Quer dizer, por que você quer proibir as pessoas honestas de ter armas ao mesmo quando você não faz nada para tomar as armas dos bandidos? Você pode achar que a pessoa acredita realmente no desarmamentismo? Eu falo: Não, ela não acredita, mas quer que você acredite. Então é como um hipnotizador que vai convencê-lo que alguma coisa que ele sabe que é falso; diz: "Agora você tem cinco anos de idade, você está levando uma bronca da mamãe e você começa a chorar porque a sua mamãe está dando uma bronca em você". Mas o hipnotizador não acredita naquilo.
Estes processos tornaram-se, depois que veio a sociedade moderna com os meios de comunicação de massa e tal, imensamente fácil. Por exemplo, você não pode conceber fenômenos como Stalin, Hitler ou Mussolini sem o rádio. Quer dizer, no tempo em que você dependia da viva-voz para transmitir a sua imagem, você não podia criar um movimento ideológico de massas. Então daí veio o rádio e teve um efeito multiplicador. Então o rádio permite que chegue a você a voz de um cara que você não está vendo, então você cria a imagem dele apenas a partir da voz. Voz que foi treinada etc. para dar certa impressão. Então tudo isso aí implica em quê? A supressão da pessoa real e a sua substituição por uma imagem pública criada. Ou criada pelo próprio sujeito, como autor de livros, por exemplo, ou criada por técnicos, como o caso de Stalin, de Hitler ou de qualquer líder moderno.
Qual é a função da filosofia nessa hora? Criar um sistema dedutivo? Eu falo: não, não, não. É simplesmente despertar as pessoas para elas voltarem à realidade existencial, como fazia Sócrates: mostrar que as pessoas estão falando do que elas não sabem, o que elas dizem não confere com o que elas vivem e com o que elas realmente acreditam. Então você tem de devolver as pessoas ao seu centro, por assim dizer. E essa é a função da filosofia, e não construir sistemas, nem mesmo, como diz o Mário, criar a metalinguagem de todas as ciências. Você pode ter a metalinguagem de todas as ciências e todo mundo continuar tão louco quanto estava antes.
Aquela função curativa da filosofia, tal como Sócrates a praticava: isto que é o essencial. O resto são instrumentos que você criou para isso, inclusive a lógica é um instrumento criado para isso. A lógica, a dialética, inclusive a dialética marxista. Eu não acho que ela seja uma coisa desprovida de valor, ao contrário, aprendi muita coisa com ela e acho muito útil se aplicada com a devida sinceridade e seriedade. Coisa que o doutrinário marxista não pode fazer. Se você for um doutrinário marxista, você tem de começar por negar a sua própria posição de classe. Você é o burguês que fala em nome do proletário e diz, sem jamais ter visto um proletário, que foi o proletário que infundiu aquela idéia na sua cabeça. É tudo farsa, é tudo palhaçada. É isso eu digo: está na hora de acabar com isso.
E quando você escava a história das origens do pensamento moderno, você vê que o número de mentiras, de lendas, de mitos e de fabricações ali é fantástico. Então, quer dizer, nós estamos vivendo embaixo de quatro séculos de loucura organizada, por assim dizer, que vira neurose porque é a mentira esquecida e você continua acreditando. Por exemplo, a biografia de Newton é um exemplo, o caso Galileu é outro, Descartes é outro.
Então, isso aqui eu acho que é um trabalho para muitas gerações. Logo, vamos parar de construir sistemas filosóficos e vamos simplesmente contar a nossa história como ela realmente aconteceu. É por isso que alguns filósofos modernos, como Eric Voegelin, por exemplo, começa por colocar questões filosóficas, mas depois ele acaba tendo de buscar a verdade na narrativa histórica. Você não pode colocar as questões abstratamente se você não sabe de onde você veio e por que está colocando aquela questão.
Eu há pouco estava lendo os livros do Ernst Nolte, o historiador alemão. Ele não tinha formação de historiador, ele tinha formação de filósofo (estudou com Heidegger), e daí começou a colocar certos problemas e acabou escrevendo só livros de história porque ele queria entender de onde nós viemos, como é que nós chegamos nesta porcaria aqui. Então escreveu dez livros sobre a história do fascismo. É compreensível. Se um alemão quer entender de onde ele saiu, ele tem de contar a história do nazi-fascismo, sem dúvida.
Eu acho que hoje não dá para responder mais nada. Tem algumas perguntas interessantes aqui, mas que escapam do assunto desta aula e, portanto podem ficar para próxima. [2:10] Tem algum aviso? Então até a semana que vem. Muito obrigado.
Transcrição: Jussara Reis de Abreu
Revisão: Alexandre Magno Fernandes Moreira