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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 120

03 de setembro de 2011

Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.

Nós vamos ler hoje esse texto da biografia de René Descartes, por Richard Watson. Biografia muito boa, muito meticulosa. No começo, ele dá um perfil geral do que teria sido a herança de René Descartes para o mundo moderno. Depois, um pouco mais tarde no texto, ele mesmo contesta, um pouco, o relativismo dessas coisas.

Mas eu queria explicar para vocês que todas essas questões que vêm da discussão da herança de um filósofo --- o que resultou dele; quais foram as consequências da sua filosofia para a cultura ocidental --- são sempre insolúveis, porque pode-se ampliar tremendamente as consequências que se imagina poder ser atribuídas a um filósofo, como se ele tivesse, por assim dizer, dado à luz uma civilização inteira, com seus méritos e deméritos, com todas as suas maravilhas e todos os seus horrores. E é claro que isso é evidentemente um exagero. Então os críticos e os defensores do filósofo procurarão esticar ou comprimir o rol dessas consequências conforme elas pareçam mais convenientes ou menos convenientes. E essas discussões jamais têm fim.

Esses problemas aparecem ― e vocês vão ver que neste texto aparecem de montão ― porque em geral os historiadores trabalham na linha da filiação das ideias: tal ideia gerou outra ideia, que gerou outra ideia, que gerou outra ideia, que gerou outra ideia. Ou seja: eles se concentram na influência positiva. Positiva não no sentido valorativo, mas no sentido de eficácia: a influência efetiva que uma doutrina ou uma teoria teve sobre outra, que depois teve sobre outra, sobre outra, sobre outra e assim por diante. Então, por exemplo, poderíamos traçar uma linha que vai de Descartes até o Iluminismo, através da apologia da razão, da contestação da autoridade tradicional; por sua vez o Iluminismo gera uma série de tendências revolucionárias entre o fim do século XVIII e a metade do século XIX; e assim por diante.

Essas linhas são sempre rastreáveis de alguma maneira. Mas o filósofo morto já não está mais lá para você poder perguntar para ele se as consequências que tiraram do pensamento dele eram desejadas ou indesejadas; eram previstas ou imprevistas. Então, surge um problema de responsabilidade moral um pouco deslocada. Até que ponto o indivíduo é responsável pelas consequências que outros tiraram do seu pensamento, uns alegando-se seus continuadores e outros de maneira mais ou menos inconsciente ou nebulosa? Esses problemas são todos sempre muito difíceis de resolver.

Sempre que eu leio essas coisas é assim: tudo o que dizem de um lado me parece certo e o que dizem do outro também me parece certo. Então, desde muitos anos, eu tenho pensado qual seria uma solução para esse problema. Em parte, a solução que eu encontrei eu apliquei no livro do Maquiavel. Minha ideia ali foi justamente fazer abstração de todas as consequências que tiraram de Maquiavel no século seguinte e reduzir o Maquiavel, não ao seu pensamento originário e autêntico --- eu não tenho a presunção de conhecer o pensamento originário e autêntico de um pensador ―, portanto, eu não digo o que Maquiavel pensava, mas o que Maquiavel sabia. Isto é muito importante. Então eu uso aí a noção de horizonte de consciência. Horizonte de consciência é até onde um sujeito enxerga e a partir de onde ele não enxerga mais.

É muito fácil você perceber, às vezes, o que o indivíduo não está enxergando. Por exemplo: quando um filósofo altamente capacitado, como Descartes ou Hegel, se contradiz de uma maneira muito flagrante, é porque algo lhe escapou, ou porque ele está mentindo; quer dizer: há algo escondido. Pode estar escondido apenas para nós ou pode estar escondido apenas para ele. Quando o sujeito nega uma informação que lhe era acessível, que estava na mão dele, então nós sabemos que, ou ele esqueceu, ou ele está mentindo.

Então eu não tentei recompor o que foi o pensamento originário de Maquiavel, mas o que foi o horizonte de consciência de Maquiavel: o que ele sabia e o que ele não sabia. E, mais ou menos a mesma técnica, eu estou aplicando aqui no Descartes. Neste sentido, a influência positiva ― note bem: eu não estou usando "positiva" no sentido valorativo; eu estou usando no sentido científico da palavra; no sentido de efetivo: uma coisa que aconteceu realmente; como se usa a expressão "direito positivo": o direito positivo é o direito que está escrito mesmo na lei que já está promulgada e que está em vigência ― de um filósofo pode ser interpretada de muitas maneiras e pode dar pano para manga eternamente.

Sobretudo se você levantar o problema do ponto de vista moral: se o filósofo é responsável por tais ou quais malefícios que se praticaram em nome ou em função das suas doutrinas; aí a argumentação é sempre válida de parte a parte, porque a culpa pressupõe um sujeito agente. Um indivíduo que age indiretamente através de suas obras não é mais um sujeito agente: as suas obras se tornam ocasião e instrumento da ação de terceiros. Então a imputação de responsabilidade moral é um negócio altamente complexo e, a meu ver, inútil na maior parte dos casos. Mesmo porque, se chegarmos à conclusão de que Descartes, ou Hegel, ou Karl Marx, ou Maquiavel são monstros que trouxeram malefícios para a humanidade, como poderíamos puni-los se eles não estão mais aí? Quer dizer: a questão foi transferida para o tribunal divino e já não é mais da nossa alçada. Então essas questões têm mais uma importância ideológica do que uma importância filosófica.

Mas, existe um ponto onde a influência de um autor é nítida e inegável. E isto está justamente, não naquilo que ele afirmou; não naquilo que ele ensinou; não naquilo que ele acreditava; mas naquilo que através dele se tornou invisível. Ou seja: naquilo que está ausente na sua filosofia, embora, pela lógica interna dessa filosofia, devesse estar presente lá. Eu me refiro, ou àqueles pontos que são pontos cegos [00:10] no horizonte de consciência do filósofo, ou àqueles pontos onde houve uma ocultação premeditada. Aquilo que um filósofo disse, que ele colocou --- por isso eu uso a palavra "positivo", positivo vem de pôr, colocar ---, pode ter consequências multilaterais: as consequências podem ir para um lado, podem ir para o outro; elas podem crescer, podem diminuir. Mas se ele for realmente influente, aquilo que através dele se tornou invisível, fica invisível por muito tempo.

Ou seja: se os debates se concentram, se a filosofia do sujeito se torna um pólo de atração e as discussões começam a se articular em torno daquela filosofia, --- nunca acontece só com uma filosofia: são duas, ou três, ou quatro --- se a filosofia é um dos pólos em torno dos quais se articula a discussão pública, então o que está radicalmente ausente naquela filosofia desaparece do horizonte de visão coletiva. Por isso é que eu digo que se a influência positiva de um filósofo é um negócio problemático e meio esquivo, a influência negativa --- também não negativa no sentido moral, mas negativa no sentido de excluir --- é muito mais facilmente identificável.

Então, se acompanhamos o fio das discussões que ocorreram em torno da filosofia de Descartes... E note bem que eu não pretendo conhecê-lo inteiro, é muito mais fácil acompanhar as discussões em torno de Maquiavel do que em torno de Descartes: o horizonte de debate em torno de Maquiavel é muito mais limitado. Descartes não é possível, porque são bibliotecas inteiras! É como Aristóteles: quando eu escrevi o livro do Aristóteles, eu coloquei ali alguns marcos na evolução dos estudos aristotélicos; mas, entre um marco e outro, se intercalam milhares de livros. No caso de Descartes também existem certos livros que são marcos, então eu li esses livros, mas ficou faltando um montão.

Mas, por esses livros essenciais, nós notamos quais foram os temas que foram desaparecendo do universo filosófico e, portanto, do universo cultural, em função da influência e do papel que aquela filosofia teve. Nesse sentido, pode-se falar de um inconsciente filosófico. É por isso que o método para estudar essas coisas é, em grande parte, um método psicológico. Quer dizer: se eu quero entender o indivíduo não apenas na expressão formal do seu pensamento; se eu quero entender não apenas uma doutrina, mas eu quero entender uma mente humana; eu quero fazer do filósofo uma espécie de interlocutor; eu quero ter diante de mim aquilo que o Unamuno chamava o homem de carne e osso; eu quero saber o que o sujeito pensava; no que ele acreditava mesmo, então o problema do horizonte de consciência se coloca automaticamente.

É claro que as limitações do horizonte de consciência de um pensador de três ou quatro séculos atrás não fazem parte de sua obra publicada: são justamente aquilo que não está na obra. Mas aí nós temos de fazer uma distinção, que os escolásticos faziam, entre o que é a nesciência e o que é a ignorância. A nesciência é você não saber alguma coisa; a ignorância é você não saber alguma coisa que você deveria saber. Então, nós temos de sair em busca dos pontos de ignorância do filósofo, ou seja, aquilo que ele não viu, embora estivesse na frente dele, e embora, pela lógica do seu pensamento, ele devesse ver.

Nós temos de tomar cada filosofia como se fosse um projeto que o indivíduo enuncia e que ele tenta construir de alguma maneira. Então, tomamos o seu projeto como medida de aferição daquilo que ele fez. E, se no curso da transformação do projeto em obra houve lacunas que não se explicam pela lógica interna do processo e também não se explicam por circunstâncias biográficas fortuitas --- por exemplo, o sujeito ficou doente e não pode completar um pedaço da obra ---, então nós temos de fazer a hipótese da ignorância, que pode ser uma ignorância espontânea: algo que o indivíduo realmente não viu; ou uma ignorância premeditada: algo onde houve uma ocultação ou uma mentira.

Isto quer dizer que o método que eu uso é exatamente o contrário do que o Richard Watson está usando aqui, e o contrário do método que geralmente se usa para esse tipo de coisas. É normal dizer que um filósofo tal foi pai ou avô de tal ou qual corrente de pensamento que apareceu depois. Não é nisso que eu estou interessado. Eu estou interessado em saber qual é o limite do horizonte de consciência do indivíduo: até onde ele enxergava, e onde ele pára. Claro que todo horizonte de consciência é limitado, mas como eu não estou falando da nesciência e sim da ignorância, eu me refiro àqueles pontos que o indivíduo ignora, mas não poderia ignorar. Quer dizer: pela lógica do projeto dele, ele teria que conhecer aquilo, para fazer aquilo que ele disse que iria fazer.

Por exemplo: quando eu examinei a obra de Kant --- eu não li a obra inteira de Kant, mas eu li um bocado ---, eu não vi nenhum sinal de que ele se examinasse a si próprio como objeto do conhecimento; só como sujeito. Do mesmo modo que Descartes. Mas em Kant isso é mais pronunciado ainda. Ora, mas se você quer fazer um estudo sobre as formas a priori que determinam o quadro da sua percepção do mundo, você está supondo que este quadro é mais ou menos o mesmo em todos os seres humanos; portanto, que aquilo não funciona só em você; não funciona, só quando você vê uma coisa. Porque Kant dizia que o universo em torno só nos dá estimulações caóticas e que é a nossa mente que organiza aquilo num quadro. Eu suponho que ele está dizendo que isso se passa assim não somente nele, mas também se passa em mim; então, portanto, deveria se passar igual no indivíduo que estivesse vendo o próprio Kant, ou seja: a figura que o corpo de Immanuel Kant transmite para o seu visitante é apenas um conjunto de estimulações caóticas, à qual aquele indivíduo visitante dá uma forma através dos esquemas apriorísticos da sua mente.

Se o Kant perguntasse isso: qual é a possibilidade de que eu, Immanuel Kant, seja apenas uma forma caótica que a mente do outro organiza? Se ele tivesse feito essa pergunta uma única vez, a filosofia dele não poderia ser realizada do jeito que foi; ele teria de mudar o curso dela. Quer dizer: é uma pergunta faltante que não pode faltar. Se ele estivesse fazendo apenas uma análise autobiográfica, dizendo: "a minha mente funciona assim, a de vocês eu não sei"; mas ele estava supondo que a de todos os seres humanos funciona igual.

Aliás, ele diz exatamente isso: "nós não podemos falar de realidade do conhecimento humano, mas podemos falar de validade"; e a validade é assegurada por quê? Porque as formas a priori são as mesmas em todos os seres humanos. Se ele mesmo introduz esse princípio de validade, então esse princípio tem de ser válido não só para ele ― não pode estar em operação só no instante em que ele enxerga o mundo ―, mas no instante em que alguém o enxerga.

E, no entanto, foi só no século XX, passados uns 120-130 anos depois de Kant ― das suas obras principais ------, que um filósofo chamado Nicolai Hartmann lembrou que existia um a priori, não somente do sujeito, mas que existe o a priori do objeto. O que não é uma crítica completa, mas já é alguma coisa. Então, por que essa pergunta que é tão óbvia e tão necessária dentro do projeto do próprio Kant demorou tanto para aparecer? E por que o próprio Kant não fez essa pergunta? O fato de ele não ter feito e de sua filosofia ter se tornado tão influente, significa que essa pergunta foi empurrada para debaixo do tapete durante 130 anos!

Então, isto aí não é uma coisa que dependa da minha interpretação; eu não estou dizendo assim: Kant exerceu tal influência; convenceu tal pessoa de tal coisa e isto gerou tal movimento cultural, um movimento científico, um movimento político, religioso etc. Não, não, não. Eu não estou no campo das influências positivas, que depende [00:20] da subjetividade do freguês. Porque se um filósofo influencia o outro, você jamais pode considerar que o segundo foi apenas uma vítima inerme nas mãos do primeiro: ele também é um centro agente. Nunca há uma influência linear; nunca um filósofo desencadeia uma sequência de causas que vai seguindo mecanicamente até gerar situações universais. A coisa realmente não é assim. Cada um dos influenciados também se influencia a si próprio; também tem certa autonomia. Então a dose de autoria e de mérito, ou de responsabilidade, de cada um é sempre bastante relativa.

Mas neste ponto que eu estou falando, não! Aí é um fato histórico constatável objetivamente. Quer dizer: o indivíduo lançou certa teoria, e esta teoria fazia parte de certa constelação de ideias, de hipóteses, de sugestões, de argumentos, e ficou faltando um pedaço. E nós podemos constatar historicamente que nas discussões que se sucederam, o mesmo pedaço ficou faltando durante "x" tempo. Embora o outro método também seja necessário ― você tem de saber qual foi a influência positiva que os outros filósofos desencadearam e quais foram as consequências históricas ― mas aí nós estamos no reino da imprecisão. Mas nós podemos limitar essa imprecisão complementando este método ― que já é tradicional ― com este outro que eu estou falando, que é o método do horizonte de consciência, e o método, portanto, do recorte, do perfil da ignorância.

É claro que os ensaios que eu fiz para aplicar este método ainda são muito rudimentares. Mas, por exemplo, ali no Maquiavel você vê que a confusão da mente do Maquiavel exerceu muito mais influência na discussão política subsequente do que qualquer das ideias do Maquiavel em particular. O simples fato de que, decorridos quatro ou cinco séculos da morte do sujeito, os seus discípulos e os seus detratores ainda não tenham firmado um consenso quanto a certas ideias elementares do filósofo, mostra que nesse setor do conhecimento humano, que é a filosofia política, reina uma confusão idêntica à confusão de Maquiavel.

Vejam, por exemplo: durante o século XX, nós observamos facções em conflito, das quais uma demoniza de tal maneira o líder e mentor da outra, na mesma proporção que o outro lado o santifica. Quando você vê, hoje, documentários, e você vê a população russa entusiasmadíssima com Stálin e chorando toneladas de lágrimas quando o homem morreu e, do outro lado, você vê o horror que ele suscitava em outros lugares. E não se vê fenômeno parecido em nenhuma época anterior da história humana. Esse fenômeno, grosso modo, nós podemos chamar fanatismo: a adesão ou repulsa extrema a um líder, a uma ideia. Sobretudo, à pessoa de um líder. Como vamos comparar, por exemplo, o entusiasmo que a população alemã sentia por Adolf Hitler ― que é um negócio altamente documentado ― com o horror que ele suscitava em outros lugares? São seres humanos dos dois lados; como é que a realidade pode parecer tão invertida?

Isto nunca aconteceu em épocas anteriores. Se você tomar, por exemplo, as Cruzadas: uma guerra de religião. É claro que havia ódio de parte a parte, mas não havia essa impossibilidade de diálogo que houve no século XX, entre ideologias opostas. Isto quer dizer que eles estavam em desacordo sobre muitas coisas, mas eles sabiam sobre o que estavam em desacordo, e sempre era possível fazer uma comparação e haver um esforço de persuasão racional. Quando Santo Tomás de Aquino escreve a Suma Teológica e a Suma contra os Gentios, ele escreve a primeira para os cristãos e a segunda para os judeus e muçulmanos, que não compartilham com os cristãos a aceitação dos dogmas da fé. Então, ali ele sabe que tem de argumentar apenas na base da razão natural. Isto quer dizer que era possível um diálogo na base da razão natural entre um católico e um mulçumano em plena época de guerra de religião.

Do mesmo modo, quando vemos a polêmica entre católicos e protestantes, mais tarde, toda a discussão tem uma base comum: eles estão baseados no mesmo Evangelho, afinal de contas. E tem um monte de elementos que são da tradição católica que foram também incorporados pelo Protestantismo. Então eles não são incomunicáveis. Você não pode dizer que o protestante está vivendo num mundo e o católico está vivendo num outro mundo completamente diferente. Não! Eles estão brigando, mas estão no mesmo mundo.

Agora, quando nós chegamos ao século XX, o mundo que grupos em conflito vêem já não é o mesmo; não há nenhuma medida comum. Você imagina se seria possível um debate de persuasão racional entre os nazistas e os judeus. Isso é impensável! Ou, hoje em dia nós observamos a mesma coisa aqui nos EUA, entre obamistas e antiobamistas: parecem que vivem em mundos separados. Isto quer dizer que não há um núcleo comum ― não digo um núcleo comum dos princípios em torno dos quais eles estejam divergindo ― não há um núcleo comum de fatos aos quais se possa apelar como medida de julgamento. Quer dizer: todos os fatos que um acredita, o outro nega completamente.

Isto é uma coisa que só aconteceu no século XX, na mesma medida em que, dentro do campo da filosofia propriamente dita, também se observa essa ruptura entre escolas filosóficas diferente, entre as quais não é possível nenhum diálogo, porque elas não estão falando da mesma coisa. E até o que elas chamam de filosofia são atividades completamente diferentes.

É por isso que eu digo que o fenômeno da ocultação e da restrição do horizonte de consciência pode ser mais facilmente identificado historicamente do que o fenômeno da influência positiva. Por exemplo: se você pegar a literatura marxista inteira, você vê que aparece ali o fenômeno que o Voegelin chama proibição de perguntar. Tem certas perguntas que você não pode fazer; elas não existem. Se você faz, você está fora do clube e as pessoas não querem dialogar com você. Por exemplo: a questão do sentido da vida, ou da imortalidade da alma; não tem como você discutir a imortalidade da alma com um marxista, porque ele não acredita nem mesmo que exista alma; então não há base para você poder estabelecer um diálogo.

Isto significa que algo do horizonte da realidade desapareceu. E desapareceu por quê? Não por causa da influência positiva que o marxismo exerceu na cabeça do fulano ou fulano, ou seja, a influência de persuasão, a influência de convicção, mas a influência de limitação da atenção. Quer dizer: aquela filosofia pode afirmar isto, ou aquilo, ou aquilo outro, mas não é disso que eu estou falando. Estou falando que ela atrai a atenção para certos pontos e desvia a atenção de outros pontos. Este é um tipo de influência que nós poderíamos dizer quase hipnótica.

A persuasão positiva que uma filosofia exerce não pode ser hipnótica. O sujeito, para se persuadir daquilo, precisa estudar aquele negócio, precisa entender o que ele está lendo e, [00:30] aos poucos, ele vai concordando ou discordando. Mas, essa influência de exclusão temática e problemática é hipnótica porque a pessoa não percebe que isso está acontecendo. E não percebe por quê? Porque aqueles pontos para os quais aquela filosofia chamou a atenção são tão importantes e tão atraentes que simplesmente não se lembra de pensar na outra coisa.

Isto tudo me foi inspirado longos anos atrás. São conclusões que eu estou tirando agora, mas que foram inspiradas pela ideia do Jean Fourastié, quando ele falava que "junto com o progresso do conhecimento existe o progresso da ignorância". Quando eu li isto, a primeira coisa que me ocorreu foram algumas conclusões que eu coloquei naquela apostila "Inteligência, Verdade e Certeza", onde eu falava do mapa da ignorância. Mas eu falava isso na escala puramente pessoal e pedagógica. Eu sugeria que o indivíduo fizesse um mapa da ignorância ― presta atenção: não de tudo o que ele ignora; não o mapa da nesciência --- mas o mapa da ignorância. Nesciência é tudo o que você não sabe; ignorância é aquilo que você não sabe, mas precisa saber. Por exemplo: para você entender certas coisas sobre as quais você tem uma opinião ou acha que deveria ter uma opinião, o que mais você precisaria saber? E é claro que este mapa da ignorância é o verdadeiro começo da educação. Enquanto você não tem ideia do que está lhe faltando, você não começou a aprender.

Quando eu recomendava, por exemplo, que antes de você estudar um livro sobre determinada disciplina, você tentasse organizar a bibliografia cronológica daquela disciplina ― quais são os livros que marcaram época e que foram formando historicamente aquela disciplina ― isto aí faz parte do quê? Do mapa da ignorância. Quer dizer: eu não li aqueles livros ainda, mas eu tenho mais ou menos uma ideia do que está lá e do que eu poderia saber se eu os lesse para complementar aquilo que eu estou pensando agora.

Então eu comecei usando isso só como um método pedagógico, em primeiro lugar, para minha própria educação e, depois, para a educação daqueles que quisessem seguir o meu mau exemplo. Mas, aos poucos, eu fui vendo que eu tinha descoberto um método histórico absolutamente fabuloso, muito mais certo do que quaisquer estudos de influência, como este aqui que nós vamos ler. Depois nós vamos dar um exemplo aqui.

A influência pode ser interpretada de várias maneiras. E como existe sempre o aspecto de louvor e censura ao autor: louvor pelos méritos de desbravador que ele teve na civilização: ele descobriu novos continentes de conhecimento etc. etc.; e de censura pelas consequências às vezes nefastas que as suas ideias tiveram. Tudo isso coloca você numa polêmica que não tem mais fim, embora seja uma polêmica importante. Eu não estou negando que isso aí não tenha de ser estudado, é claro que tem. Mas tem de ser estudado sem a esperança de você chegar a um resultado confiável.

Ao lado disso, eu vi que existe um terreno muito mais seguro no qual nós podemos pisar, que é o terreno justamente da exclusão da temática. Quer dizer: aqueles assuntos que eram importantes e que, através da concentração das atenções em novos temas, desapareceram do repertório, às vezes para ressurgir séculos mais tarde, e às vezes para não ressurgir nunca mais.

No caso de Maquiavel, por exemplo, eu não coloquei isso explicitamente no livro. Talvez tenha de colocar mais tarde. Precisaria completar o estudo que eu fiz de Maquiavel com outro estudo sobre a influência de Maquiavel, não no sentido usual da palavra "influência", mas neste sentido: quais são aqueles temas importantes que através de Maquiavel desapareceram do horizonte de consciência. Apenas para dar um exemplo: as pessoas falam hoje muito de Estado leigo, esquecendo que o termo "leigo" se aplica aos membros da Igreja. A Igreja se divide em clero e laicato. Quer dizer: quem está fora da Igreja não é um leigo de maneira alguma, é um ser estranho. E a hipótese de que possa existir um Estado leigo foi lançada por Maquiavel, que jamais discutiu se era possível isto ou não. Ele simplesmente não coloca o problema. Então, para criar a ideia do Estado leigo, ele faz uma confusão miserável em torno da função profética, e esta confusão está aí à solta até hoje. Ou seja: ninguém sabe colocar esse problema de maneira decente. Essa é um das muitas confusões que circulam por aí graças a um escotoma na cabeça de Maquiavel.

Quando começamos a sondar isso em René Descartes, a coisa assume proporções, assim, mastodônticas, oceânicas. Por quê? Descartes é um filósofo muito maior, muito mais competente do que o Maquiavel. Maquiavel, para dizer a verdade, é um coitado. Mas curioso que, logo depois de eu soltar o livro do Maquiavel, duas semanas depois, aparece um sujeito dizendo que vai dar um curso de Maquiavel com uma interpretação inédita, que na verdade é a interpretação do Leo Strauss que tem mais de 50 anos, e ao mesmo tempo intitulando Maquiavel como um dos grandes filósofos da humanidade. Maquiavel não é um dos grandes filósofos da humanidade. Para quem é capaz de enfrentar um Descartes, ou um Kant, ou um Aristóteles, você sabe o que é um grande filósofo e o que não é. Como Descartes é realmente um grande filósofo, um homem de uma competência imensa, então aquilo que se tornou invisível através dele está encoberto por muitos e muitos séculos.

Eu vou começar a ler este negócio, e quando chegar a algum ponto aqui, eu vou parar para mostrar para vocês como que aquilo que era invisível para Descartes continua invisível.

Então diz Richard Watson, no livro Cogito ergo sum -- The Life of René Descartes, de 2002:

René Descartes, o pai da filosofia moderna, um dos maiores gênios matemáticos que já existiu, lançou as bases para o predomínio da razão na ciência e nas coisas da vida humana, dessacralizando a natureza e colocando o indivíduo humano acima de Igreja e Estado. Sem o individualismo cartesiano, não teríamos democracia; sem o método cartesiano de analisar as coisas materiais, dividindo-as até seus elementos primários, nunca teríamos desenvolvido a bomba atômica. A ascensão da ciência moderna do século XVII, o Iluminismo do século XVIII, a Revolução Industrial do século XIX, o computador pessoal do século XX e a decifração do cérebro humano do século XXI são todos cartesianos. O mundo moderno é um mundo cartesiano até a medula -- todo este mundo da alta tecnologia, da física-matemática, das calculadoras e robôs, da biologia molecular e da engenharia genética -- no qual a razão dedutiva guia e controla não só nossa ciência, tecnologia e ação prática, mas também a maioria das nossas decisões morais.

A objetividade está na moda, a subjetividade, não. Descartes triunfou precisamente porque o seu método de tratar como máquinas os entes naturais -- até mesmo os corpos humanos -- funciona. Ele fez a promessa de que, com o seu método, nos tornaríamos senhores e possuidores da natureza. E ele a cumpriu.

Esta é uma ideia corrente. Mais tarde o próprio Watson colocará isso em questão de maneira muito inteligente até. Mas o que ele está dizendo aqui é a ideia que se tem normalmente de Descartes. Acho que praticamente todo mundo concorda com esse parágrafo aqui. [00:40] Só que o que Descartes nunca, nunca, nunca colocou em questão ― você pode procurar que você não vai encontrar ― é a questão do poder. Não existe uma filosofia cartesiana do poder. E, no entanto, na hora em que Descartes promete que, através do seu método, nós alcançaremos maior poder sobre a natureza, não aparece nunca a pergunta: nós quem, cara pálida? Nunca!

Ora, se nós estudarmos o progresso das ciências nos últimos quatro séculos, veremos que, em alguns pontos, alguns seres humanos conseguiram controlar alguns processos naturais. Por exemplo: eu mesmo sou testemunha; nós conseguimos controlar a proliferação de uma infecção. Ninguém pode negar que isso é uma maravilha. Nós conseguimos controlar certos movimentos mecânicos, como por exemplo, através do motor à explosão. Ou seja, conseguimos controlar vários processos naturais. Mas, se pegarmos a totalidade da natureza, o que são esses processos naturais, comparados com todos aqueles que nós não controlamos de maneira alguma? São uma fração infinitesimal.

Porém, ao mesmo tempo, o poder que alguns seres humanos têm sobre outros aumentou num nível que era impensável para todos os governantes e os tiranos da Renascença, da Idade Média e da Antiguidade, no Oriente e no Ocidente. Se você dissesse para Gengis Khan: aqui nós vamos lhe entregar uma maquininha que permite você ouvir o que o seu inimigo está tramando a 10 quilômetros de distância; que permite você violar a correspondência dele sem chegar perto dele; aqui nós vamos lhe entregar um arquivo que tem todos os dados sobre todos os seus inimigos possíveis e imagináveis, inimigos reais e virtuais e, pior, nós não vamos só ter os dados, nós vamos ter o acompanhamento diário, minuto a minuto, de tudo o que eles estão fazendo. Gengis Khan, ou César, ou Átila, ou Huno recuariam horrorizados; eles diriam: "Isso é um poder divino, isso é uma blasfêmia, eu não posso ter tudo isso". E, no entanto, isso aconteceu.

Isto quer dizer que o "poder" do homem sobre a natureza aumentou um pouquinho, mas o poder de alguns seres humanos sobre outros aumentou numa medida que raia o divino. Não do divino no sentido do Deus único e absoluto ― ninguém pode se comparar com ele ―, mas podemos nos comparar com os deuses gregos, que não eram onipotentes, eram apenas muito poderosos. Qual é o poder que a deusa Vênus tinha sobre os seres humanos? Ela tinha o poder de seduzi-los e de enlouquecê-los hipnoticamente e de certo modo concentrar as suas atenções nela de modo que não pensassem em outra coisa.

Quando você vê que, no século XX, surgiram movimentos políticos poderosíssimos baseados no desejo sexual, é um poder comparável ao da deusa Vênus. Isto quer dizer que certo grupo de pessoas consegue espalhar obsessões sexuais em escala que faria inveja à deusa Vênus, porque afinal de contas a deusa Vênus só agia ali na Grécia, não se sabe se ela seduziu alguém na China ou no Afeganistão. Mas esses camaradas, desde o Pólo Norte até a Patagônia, seduzem todo mundo. Está lá o sujeito na Patagônia, numa estação polar, com gelo em volta, e ele está lá na internet vendo sacanagem. Como dizia aqui uma velhinha, que a Liúba me contou: "Essa juventude está perdida, eles ficam o dia inteiro vendo pornografia no microondas". Onde existe um ser humano, está lá a pornografia universal através do microondas ou qualquer micro-qualquer-coisa. É um poder descomunal.

Por exemplo: se você vê o número de divórcios que apareceu depois dos anos 50 é um negócio extraordinário. Como é que essa instituição do casamento conseguiu se manter mais ou menos estável durante séculos e, de repente, desabou? É porque houve atrativos. Quantas pessoas foram seduzidas para fugir dos seus cônjuges e buscar esperança de algo mais interessante? Bilhões de pessoas. Vênus nunca fez isso; não tem nenhum caso de sedução em massa que Vênus tenha feito. Este é um poder divino ― na escala dos deuses gregos, evidentemente.

Do mesmo modo, não preciso falar do poder de destruição. Quando, nos anos 40, os camaradas inventaram certas armas capazes de estourar o planeta, criaram uma modificação na consciência humana, que Paul Valéry expressou na seguinte frase: "Nós, as civilizações, agora sabemos que nós somos mortais". Mas não só nós, as civilizações: a espécie humana descobriu a sua mortalidade. Isto nunca tinha acontecido antes. Qual é o poder efetivo, o poder material, que essas bombas têm? Bom, o poder delas é bastante relativo, porque, para elas poderem ser acionadas, depende de todo um mecanismo político-militar, estratégico, altamente complexo, que até agora tem impedido que essas bombas sejam lançadas todas de uma vez. Mas o poder de controle que isso deu aos governos sobre as massas é imensurável.

Outro dia eu estava lendo aqui uma repórter do Washington Post chamada Dana Priest. Ela começou a fazer uma pesquisa sobre quais são as entidades de segurança ― organizações de segurança ― que foram criadas, nos EUA, para o combate ao terror depois do 11 de setembro, entre organizações militares, civis, estatais, privadas etc. etc. E ela descobriu que era uma rede de mais de três mil organizações: uma coisa absolutamente inadministrável. Ou seja: a tentativa de controlar a sociedade resultou na criação de um poder que, ele próprio, é incontrolável.

Não existe, em nenhum momento, na filosofia de René Descartes, uma pequena preocupação sobre isso. Eu digo: Como? Você está querendo construir máquinas que teoricamente aumentarão o poder do homem sobre a natureza, mas quem é esse homem? Todos vão operar essas máquinas? Ou só você e os seus cupinchas? Não é a pergunta que deveria ter surgido imediatamente? Quer dizer: se eu tenho uma proposta que vai aumentar o meu poder, então, naturalmente, eu terei o poder não só sobre a natureza, mas também sobre alguém.

Ora, essa pergunta levou séculos para ser formulada. Mas o processo de crescimento do poder de uns homens sobre outros começa imediatamente. [00:50] Por exemplo: quando você fala do império da razão, um dos primeiros setores da vida humana onde aparece o império da razão é na administração estatal, que já no século XVII começa a crescer de maneira absolutamente incontrolável. Leiam o livro de Bertrand de Jouvenel, Sobre o Poder: História Natural de seu Crescimento, e vocês verão do que eu estou dizendo.

Quando nós comparamos, por exemplo, como era a vida de um senhor de terras medieval na sua convivência com os seus servos da gleba, a diferença de poder não era muita. É claro, o senhor tinha um treinamento militar, ele sabia lidar com uma espada, com arco e flecha, usava uma armadura etc. etc., e o camponês não sabia nada disso. Mas o camponês tinha uma faca, tinha uma foice e, se pegasse o seu senhor de terras numa emboscada, ele podia facilmente matá-lo quando o indivíduo estivesse sem as suas armas e sem a sua armadura.

Mais ainda: a convivência do senhor de terras com os seus servos era uma coisa direta e cotidiana. Ainda no século XVI-XVII, estudando-se a biografia das pessoas, vê-se que na mesma escola estudavam nobres e pessoas que vinham do povo. Não havia uma estratificação. Claro, a maioria era gente da classe alta, mas de vez em quando um sujeito que saia do nada conseguia uma proteção e entrava ali na escola. Ontem mesmo eu estava lendo a biografia de William Lilly que é um astrólogo famoso no século XVII. Ele é um sujeito que veio do nada e teve o melhor estudo que podia ter na época. Sobretudo nas escolas da Igreja: os seminários eram um instrumento de democratização do ensino fabuloso, porque não havia estratificação. Os seminários não rejeitavam ninguém. Se uma pessoa queria entrar na carreira eclesiástica, era aceita no seminário, pronto e acabou! E através disso qualquer pessoa de origem humilde podia subir muito na vida. Eu também estava lendo do Lewis Mumford, A Cidade na História. Ele mostra que a cidade medieval era um ambiente de convivência altamente igualitária.

Imagine, hoje, o sujeito que está trabalhando numa fazenda, capinando numa fazenda, e a produção dele já está toda comprada por uma multinacional, por uma Bunge & Born ou alguma coisa assim. Ele nunca vai ver o seu patrão; o patrão está colocado numa névoa de visibilidade olímpica.

Isto quer dizer que a diferença de poder entre os seres humanos cresceu formidavelmente.

Quando dizem que se não fosse Descartes, não existia democracia, não se pode esquecer que a democracia existe no que diz respeito ao sistema judiciário e às eleições. Mas junto com essa igualização dos direitos, surge uma estratificação de poder que vai muito além do que qualquer aristocrata poderia jamais ter imaginado. Então isto quer dizer que, do ponto de vista substantivo, isto é, da verdadeira estrutura social, não houve democratização coisíssima nenhuma. E, no entanto, esse fenômeno, que é a decorrência imediata do aumento do poder material, não é em nenhum momento questionado em Descartes. Isso vai começar a ser objeto de discussão no século XIX, quando algumas mentes mais esclarecidas, como Lord Acton ou Jacob Burckhardt, percebem que o futuro que vem pela frente é de um crescimento da autoridade num nível impensável.

Todo esse pessoal, os filhos de Descartes, por exemplo, os iluministas, acreditavam estar criando um mundo de igualdade. Mas como se pode criar igualdade através da técnica? A técnica não pode ser compartilhada por todos; isto é impossível, porque qualquer técnica requer um ensinamento que, de cara, é especializado. Por exemplo: o médico com quem eu estou tratando tem algum poder sobre a infecção que está aqui na minha barriga, porém pode ter um sujeito que está grampeando as conversas dele pelo telefone, e ele não tem essa técnica.

Também, por exemplo, quando ele sai de automóvel, ele é obrigado a seguir um planejamento de trânsito que ele jamais entenderia. O sujeito, para virar um engenheiro de trânsito, tem de estudar 6, 7, 8 anos. Então, o coitado do médico, que é tão poderoso sobre a minha infecção, está totalmente inerme quando ele sai na rua. E ele pode, a qualquer momento, ser multado por uma coisa que ele não sabia que é ilegal. Por quê? Porque existe um treco chamado poder legislativo, que faz parte da democracia, cuja função é legislar permanentemente.

Também é essa, outra questão que ninguém perguntou. O poder legislativo é uma das bases da democracia. A independência dos poderes: tem o poder executivo, o legislativo e o judiciário. Agora, se existe um poder que legisla permanentemente, isto quer dizer que em brevíssimo tempo o corpo total das leis se torna inabarcável para o cidadão comum. Então qualquer pessoa hoje é regida por milhares e milhares e milhares de leis que ela desconhece completamente. E continua vigorando o princípio de que ninguém pode alegar ignorância da lei; quando de fato ninguém pode alegar conhecimento dela.

São questões que surgem instantaneamente tão logo você pensa em aumentar o poder do "ser humano" sobre a natureza. Ou seja, há uma confusão entre o sentido da palavra "nós", quando aplicada ao detentor da técnica, e a palavra "nós" quando aplicada à humanidade em geral. Por exemplo: aumentou o nosso poder sobre a constituição íntima da matéria: nós podemos partir o átomo nos seus pedaços e explodir metade do mundo, se nós quisermos, mas também podemos gerar energia elétrica, podemos fazer mais isso e mais aquilo... Podemos, quem? Não é possível compartilhar esse poder. A ideia de que o ensino compartilha esse poder é absolutamente inviável. Ninguém pode ser um especialista em tudo.

Eu me pergunto: como essas perguntas não surgiram imediatamente? Por exemplo: Newton é o primeiro sujeito que demonstrou a existência de uma lei universal regendo a matéria. Antes se conhecia, é claro, processos particulares: a formação das marés, as órbitas planetárias etc. etc. Mas Newton foi o primeiro que formulou um princípio geral da natureza. Ora, se existe um princípio geral da natureza, então significa o seguinte: nós podemos compreender tudo, nós podemos entender o universo total. Eu digo: nós, quem? Só aqueles que sejam capazes de ler o livro de Newton.

Mais ou menos na mesma época, William Harvey estava descobrindo a circulação do sangue. E quanto tempo levou para ele descobrir a circulação do sangue? Quantos anos de estudo ele precisou para fazer isto? E poderia ele fazer isto ao mesmo tempo em que estava estudando as obras de Newton?

Mesmo naquela época, onde ainda havia gênios universais que estudavam [01:00] vinte, quarenta, cinquenta disciplinas ao mesmo tempo, você vê que a coisa na prática é impossível. Ou seja, se nós podemos compreender tudo, este "nós" significa um reduzido número de pessoas, e automaticamente este número reduzido de pessoas começa a ter sobre os outros um poder que os outros não podem sequer imaginar.

Esta é só uma de dezenas, pelo menos, de perguntas que não apareceram nessa época, embora existissem outros filósofos que estavam pensando exatamente nisso. Por exemplo, Thomas Hobbes: ele estava pensando no problema do controle social. Então Thomas Hobbes leu essas obras; ele conhecia essas coisas. E talvez outros tivessem ouvido falar de Thomas Hobbes. Como é que não se relaciona uma coisa com outra? Por que essa pergunta tão óbvia leva tantos séculos para aparecer? Talvez tenha aparecido numa cabeça ou noutra isoladamente, mas esse tema não se incorpora na cultura antes do século XIX.

E, note bem: o primeiro livro, na história humana, que diz que o poder do Estado cresce necessariamente é o de Bertrand de Jouvenel, que é, salvo engano, dos anos 50-60. Antes todo mundo acreditava que o poder às vezes cresce. No livro do Friedrich von Hayek, O Caminho da Servidão, ele mostra que as políticas estatistas, assistencialistas etc. levam necessariamente ao crescimento do poder de Estado e, portanto, à tirania. Mas, e a alternativa contrária? Ela produz exatamente o mesmo resultado. Uma coisa não depende da outra. Ou seja: não é a política deliberada, assistencialista ou privatista, que vai determinar o crescimento do poder do Estado; é a dialética que vem diretamente das relações entre a técnica e a política.

Se disser assim: vamos privatizar tudo. Há duas maneiras de privatizar: a) pode-se fazer como, por exemplo, o Clinton fez aqui: privatizar e ao mesmo tempo criar órgãos reguladores, agências reguladoras. Se fizer isso, então a legislação aumenta e se torna enormemente complexa, o que aumenta o poder do Estado; b) também se pode privatizar à moda russa: não regulamenta nada; simplesmente entrega as firmas para o primeiro cidadão privado que aparecer com dinheiro para comprá-las. O que acontece? Cria-se uma casta de gângsteres que tem um poder absolutamente incontrolável: de um jeito, você aumenta o poder de quem está em cima; e do outro jeito, diminui o poder de quem está embaixo.

Ou seja, o mundo regido pela ciência e pela técnica é um mundo estratificado; não é um mundo de democracia, igualdade e direitos humanos de forma alguma. A possibilidade da sobrevivência de democracia, liberdade e direitos humanos dentro disso é um negócio altamente complexo, que mal começou a ser estudado.

Outro dia me mandaram um estudo feito por um sujeito lá do Egito que diz que a internet dificulta as revoluções populares. Por quê? Porque as pessoas tendem a se fechar em si mesmas e passam a viver num mundo de fantasias e não agem politicamente. Ora, isto se refere a revoluções populares. Mas acontece que as revoluções populares já desapareceram do cenário ocidental na década de 20. Na década de 20, já muita gente sabia que os levantes populares tinham se tornado impossíveis, graças à complexidade e abrangência da administração estatal moderna, que tinha absorvido, além de todos os aportes da ciência natural, também os aportes da ciência social: da economia, da sociologia, da psicologia etc. etc.

Era a tese de Adolf Hitler: só é possível fazer revoluções por cima. E quem, desde então, fez uma revolução por baixo? A Revolução Cubana? Não! O sucesso da Revolução Cubana foi determinado pelo Departamento de Estado, que mandou o Batista sair e chamou os caras que estavam lá na Sierra Maestra e que saíram de Sierra Maestra e foram até Havana sem disparar um tiro. Então foi uma revolução por cima; muito mais acima do que o governo cubano.

E essas revoluções que estão acontecendo no Oriente Médio? Você acha que sem a decisão do governo americano essas coisas aconteceriam? Nunca! Também são revoluções por cima. E para as revoluções por cima, a internet é um instrumento de mobilização absolutamente maravilhoso, porque é instantâneo. Isto quer dizer que você move as massas como peões no tabuleiro, com a maior facilidade. Lembram, na Espanha, quando houve aquele atentado na estação ferroviária? Vinte e quatro horas depois havia uma manifestação popular multitudinária. Contra os terroristas? Não! Contra o governo. Claro que isso tinha sido preparado de antemão. Como foi preparado? Pelo correio? Foi de boca em boca? Não! Foi pela internet. Leiam aquele estudo da Rand Corporation, Netwar, e verão que, se os levantes populares se tornaram impossíveis enquanto manifestações que vêm debaixo, as revoluções planejadas de cima se tornaram imensamente mais fáceis. Isto quer dizer que só há revoluções desde cima há muito tempo.

Tudo isso é consequência imediata da simples ideia de aumento do poder. Na hora que falaram "vamos aumentar o nosso poder sobre a natureza", no instante seguinte teria que se perguntar: o poder de quem? O poder da espécie humana? O poder do homem? Mas este é um homem abstrato. Se um sujeito tem mais poder, nós podemos dizer o homem, a espécie humana tem mais poder através de um. Mas não é a mesma coisa que todos terem o poder.

Ora, esta mesma confusão entre o ser humano concreto e o pronome genérico abstrato aparece nas Meditações de Filosofia Primeira como eu mostrei no "Descartes e a Psicologia da Dúvida", em que ele começa contando a história de uma experiência real que ele passou e, de repente, ele está falando do eu filosófico geral. E aquilo que era uma narrativa se torna uma dedução, a partir daí. É a mesmíssima confusão! Descartes pára de falar de sua pessoa concreta --- note bem! --- num livro que é universalmente reconhecido como uma autobiografia.

Eu tenho aqui um livro de um congresso recente sobre a autobiografia como gênero literário filosófico. É uma série de estudos de vários autores: Autobiography as Philosophy: The Philosophical Uses of Self-Presentation. Há uns vinte estudos aqui no meio, todos muito interessantes. E evidentemente tem lá um estudo sobre as Meditações de Filosofia [01:10] Primeira, de René Descartes, como tem sobre as Confissões de Santo Agostinho, Confissões de Jean-Jacques Rousseau, o Ecce Homo do Nietzsche etc. etc.

O livro é universalmente considerado uma autobiografia interior. Mas, esta autobiografia interior só trata do indivíduo concreto René Descartes até certo ponto; e depois começa a falar de outra coisa. É um eu genérico, um eu universal, que é a fonte de toda certeza porque ele sabe que ele existe enquanto ele está pensando. O que não se aplica somente a René Descartes. Então, esta mesma indistinção entre o eu individual concreto e o eu filosófico, o eu abstrato, o eu genérico é a mesma coisa que aparece na frase "nós aumentamos o nosso poder sobre a natureza".

Sim, eu pertenço à mesma espécie humana que o Julius Robert Oppenheimer, o homem que fez a bomba atômica, só que eu não sou capaz de fazer uma bomba atômica. E --- note bem --- quando explodiu a bomba atômica Oppenheimer ficou muito assustado e se considerou um criminoso. Mas, esse que viu a bomba atômica ser solta não era o mesmo que fizera a bomba atômica? Quando o sujeito está construindo uma bomba, ele não sabe para que serve a bomba? Ele só percebe isso depois que ela explodiu?

É o mesmo problema de René Descartes. Há algo de errado nisso aí; algo aí se perdeu. E o que se perdeu? Perdeu-se o senso da pessoa humana concreta. Todo mundo começa a raciocinar em termos de um nós ou de um eu, que é um negócio, por assim dizer, hiperbólico.

Vamos continuar aqui:

Descartes partiu em busca do conhecimento certo. Sua procura pela certeza, nas Meditações sobre a Filosofia Primeira (1641), começa pela classificação de todo o conhecimento em três categorias, de acordo com a sua fonte: autoridade, experiência sensorial e razão. (...)

Não está faltando nada? Note bem: naqueles sonhos que eu comentei na aula passada, Descartes diz que recebeu uma inspiração divina. Ele diz isto! Esta inspiração veio pela autoridade, pela experiência sensorial ou pela razão? Não veio por nenhuma das três. Veio pela revelação. Quer dizer: há uma quarta fonte, e esta fonte é Deus. Mais tarde, nas próprias Meditações, Descartes dirá que o conhecimento das ideias eternas, os fundamentos do pensamento lógico, foram colocados nele por Deus, e que a própria ideia de Deus foi colocada lá por Deus. E, no entanto, as fontes de conhecimento que ele coloca em dúvida são somente estas três: a autoridade ― ou tradição ―, as percepções sensíveis e a razão.

Então, ele coloca estas três em dúvida. E Deus, ele coloca em dúvida? Em nenhum momento! O que ele coloca em dúvida é se Deus é um Deus bom, que está ali ensinando a verdade, ou se é um gênio mau, que está criando um universo de ilusões para enganá-lo. Isto, sim! Em nenhum momento ele coloca em dúvida o conhecimento divino, mesmo porque ele dizia que ele não queria se meter em assuntos teológicos. Na verdade se meteu: se meteu, acho que mais do que qualquer outro.

Mas, como é que o conhecimento divino chega até nós? Ele pode chegar por uma via subjetiva, como esta de René Descartes. Mas pode chegar por uma via objetiva, que é ação de Deus no mundo. Esta ação é visível: a história inteira dos milagres está aí para nos comprovar isso. No século XVIII surgirá uma imensa discussão voltada a criar a dúvida quanto ao milagre, porém se você vasculhar toda a bibliografia antimiraculosa do século XVIII, da qual o grande historiador Paul Hazard dá uma ideia nos seus livros O Pensamento Europeu do Século XVIII e A Crise da Consciência Européia, nos dois têm capítulos bastante extensos sobre o combate aos milagres. Você procura ali, e não se discute um único milagre: discute-se a possibilidade teórica do milagre. Ora, o argumento de possibilidade ou verossimilhança nada vale contra um fato. Se algo aconteceu, é porque tem de ser possível. E isto me parece o começo de qualquer discussão.

Quando você vê, por exemplo, esse fenômeno da incorruptibilidade dos corpos dos santos católicos ― que são centenas e centenas; um negócio assim absurdo ― e você vê que isto está totalmente ausente no Islã, no Budismo etc. etc. Tem os fenômenos de mumificação que não têm nada a ver com a história. Quando eu falo da incorruptibilidade, significa que o corpo do cidadão está lá enterrado faz 500 anos: se você corta, sai sangue. Isto é outra coisa! Então, isto tem de ser reconhecido simplesmente como um fato. Colocar em dúvida a sua possibilidade é um argumento logicamente impotente. Você tem de partir do princípio de que o fato existe: daí você pode tentar explicar do jeito que você quiser. Mas, discutir a sua possibilidade, discutir na pura esfera dos argumentos racionais um fato? É um erro lógico muito elementar.

Mas, quando Descartes fala do conhecimento divino, ele se refere apenas ao conhecimento por revelação pessoal. Ou seja: existem quatro fontes do conhecimento: a) a autoridade, ou tradição; b) o conhecimento sensível; c) a razão; d) e a quarta: Deus falando comigo! Não com os outros; não agindo sobre o mundo; não agindo sobre a matéria. Então isto significa o seguinte: a partir desse momento, o milagre sai da discussão.

Quando você vê que até hoje o pessoal entende a religião como crença pessoal, eu digo: começou aqui.

Não porque Descartes dissesse que é assim. Isto não é uma doutrina cartesiana. Ele não diz nada a esse respeito. Simplesmente aquilo que ele não disse ― aquilo que ficou fora das fontes de conhecimento ― continua fora, porque as pessoas começam a discutir René Descartes tal como está escrito nos livros de René Descartes. E aquilo que René Descartes não disse ― do qual ele não falou nada ― é gradativamente esquecido.

(...) Em seguida, ele mostra como duvidar de cada tipo de conhecimento. O princípio [01:20] subjacente é que você não deve confiar em nenhuma fonte que alguma vez já o enganou ou iludiu, ainda que só por uma vez.

Descartes mostra, em primeiro lugar, que se pode duvidar de qualquer conhecimento que venha da autoridade. A razão disso é que especialistas divergem e não temos um modo seguro de chegar a uma decisão sobre qual deles está certo. Eis uma história que ilustra o problema. No início da Revolução Protestante, os católicos disseram que não havia maneira de discernir se Lutero e Calvino eram loucos ou não (uma suspeita que você poderia ter a respeito de qualquer um que pensasse estar em contato com Deus). Por outro lado, os católicos podiam saber a verdade, porque o papa é infalível. Porém, os protestantes, rebeldes e ardilosos, não contestaram a infalibilidade papal; eles simplesmente fizeram a seguinte pergunta: Quem é o verdadeiro papa? Não há maneira pela qual um ser humano falível possa dizer quem é papa e quem não é -- só o verdadeiro papa sabe ao certo. E houve momentos em que mais de um cardeal afirmou ser o papa. Isso dá conta do conhecimento baseado na autoridade. Ora, esta mesma história mostra também como duvidar de uma espécie muito influente de autoridade da cristandade ocidental, a da revelação. Talvez Deus tenha revelado algumas verdades para os patriarcas bíblicos, como Moisés, por exemplo. Mas como eles sabiam que aquele era Deus? E se era mesmo Deus, será que eles o entenderam? E se eles o entenderam, será que conseguiram escrever a mensagem direito? E se conseguiram escrevê-la direito, como saber se nós a entendemos? (...)

Tudo isto aqui está muito certo, com exceção de um ponto: se você nada aceitar da autoridade, você não tem acesso a essa discussão. Por exemplo: se alguém contesta que o Papa é Papa, ele o faz, certamente, com alguma autoridade. Ou seja: a possibilidade de você colocar totalmente entre parênteses qualquer autoridade é nula: você só pode contestar uma autoridade em nome de outra. Se há um entrechoque de autoridades, você tem de reconhecer que uma delas é autoridade, ou nenhuma delas é e deve haver uma terceira. Se você neutralizar completamente a ideia de autoridade, o pensamento se torna inviável na mesma época, porque autoridade vem de autor, ou seja, é o poder do testemunho. Se eu colocar em dúvida todos os testemunhos --- e note bem que a autoridade em última análise se resume à ideia de testemunho ---, então eu não posso ter sequer acesso aos dados do problema.

Porque eu leio: os católicos disseram tal coisa; os protestantes disseram o contrário. E eu confio nesta informação; eu confio neste testemunho. E se alguém me disser: os católicos não disseram nada disso e nem os protestantes responderam, isto é tudo uma ilusão. Ou seja, se eu não tenho nenhuma confiança no testemunho, eu não tenho acesso a nenhum fato que eu não tenha testemunhado pessoalmente. Então o meu próprio acesso à discussão... [1:23:44 - interrupção da aula]

Isto quer dizer que você pode contestar algumas autoridades, mas não todas, senão o próprio relato do conflito entre as autoridades seria inacessível. Se alguém me diz que há um conflito entre católicos e protestantes, ou eu confio no que esta pessoa está me dizendo, ou eu vou ter de sair perguntando para cada católico e cada protestante pessoalmente.

Isto é: a crítica que Descartes faz à autoridade não é uma crítica radical. É uma crítica, por assim dizer, fingida. Ele contesta algumas autoridades, mas não todas. E quando ele contesta essas algumas, ele diz que está colocando entre parênteses todo o conhecimento advindo da realidade. Eu digo: como é que ele não percebeu isto? O homem daquela inteligência! O homem que inventou a geometria analítica! Então alguma coisa errada tem. Eu não sei se ele mentiu ou se ele realmente não percebeu. Nos dois casos é muito grave.

Mas, a ideia de que se pode contestar o conhecimento baseado na autoridade é uma ideia que hoje qualquer criança de escola tem, e isto se impregnou na cabeça de quase toda a humanidade ocidental. E não tem uma pessoa para dizer: Meu filho, sem a confiabilidade do testemunho foi tudo para o beleléu. Alguma autoridade tem de existir e alguém tem de confiar em alguém; não é possível verificar tudo pessoalmente. Se eu duvido da autoridade dos Papas, é porque eu confio na autoridade do historiador que conta as burradas que os Papas fizeram. Se eu desconfio da autoridade de Lutero, é porque eu confio em quem me contou que Lutero é maluco. Se eu duvidar de todos, pronto, eu estou paralisado.

Toda crítica a uma autoridade é feita em nome de outra autoridade; toda crítica a um testemunho é feita em nome de outro testemunho. Aristóteles já dizia: "Todo conhecimento se baseia em outro conhecimento". Não há nenhum conhecimento que se baseia no nada. Passados mil e novecentos anos depois de Aristóteles, vem um indivíduo que diz que vai partir do zero. E as pessoas acreditam que ele partiu do zero. Este é o maior gesto de credulidade da história universal!

"Ah, Descartes fez tábua rasa". O quê? Claro que ele não fez: ele disse que fez. Ele está representando a coisa como se fosse num teatro. Só que este teatro, como todo teatro, tem uma função hipnótica: você esquece que é um teatro e vivencia aquilo como se fosse realidade. Claro, sabendo que, depois de terminar o teatro, você volta para casa e volta tudo ao normal. Só que nesse caso, você não volta para casa: você continua, pelos séculos dos séculos, esquecendo-se de fazer a pergunta que Descartes não fez. Se eu não acreditar em autoridade nenhuma, eu não posso colocar em questão nenhuma autoridade.

Sim, eu posso duvidar de que Moisés fez isso ou aquilo, mas para eu chegar a duvidar disso, eu preciso ter acesso a um livro que diz que Moisés fez isso ou aquilo. E se alguém me traz informações que contradizem aquilo que Moisés diz que fez, eu vou ter de acreditar neste testemunho para poder colocar Moisés em dúvida. Isto significa que a autoridade e a confiança são elementos básicos de qualquer conhecimento humano. E Aristóteles já sabia disto. Entende porque Schelling diz que, a partir desse momento, a filosofia voltou para um nível pueril? É por causa disso.

E, passado quatro séculos, um homem inteligente como esse biógrafo de René Descartes passa em cima dessas questões sem nem perceber que elas estão lá. Por que ele faz isso? Porque ele confia na autoridade do consenso. Está todo mundo dizendo a mesma coisa a respeito de René Descartes, todo mundo acredita que Descartes colocou tudo em dúvida, então quem sou eu para colocar em dúvida essa autoridade do consenso? Então o indivíduo afirma resolutamente a sua confiança cega na autoridade, no mesmo instante onde ele diz que está contestando toda e qualquer autoridade. Você entende por que às vezes a filosofia raia à estupidez pura e simples? E que às vezes ser um grande filósofo é apenas ter desenvolvido uma espécie requintada, sofisticada, de estupidez?

Nosso conhecimento sensorial também é duvidoso. Má [01:30] iluminação, olhos fracos ou ilusões podem fazer com que nos enganemos, (...)

Aí ele vai voltar à famosa escola céptica.

(...) por exemplo, a respeito das cores e tamanhos das coisas. Ou podemos estar bêbados, ludibriados, sonhando ou loucos. Claro, eu acho que sou perfeitamente são, mas o Napoleão Bonaparte que mora na minha rua também acha.

Mais ainda, Descartes afirmou que todas as sensações que temos se passam dentro de nossas mentes e que não temos nenhuma experiência direta do mundo externo. (...)

Esta é uma das coisas mais fantásticas que um filósofo já pensou: que as sensações se passam dentro do meu corpo. Ou seja: que eu posso produzi-las todas sem a interferência do mundo exterior. É claro que não! Eu não posso fazer o meu dedo queimar sem metê-lo no fogo; e eu não posso fazer o fogo sair da minha cabeça. Quer dizer: a nossa impotência de gerar sensações é tal que nem o mais fanático dos masturbadores chegou a confundir a masturbação com o ato sexual. Por mais convicto que o sujeito estivesse de que dentro do seu banheiro ele estava acompanhado, quando termina ele sabe que não está.

Isto aqui foi a maior masturbação filosófica da história humana. Dizer que as sensações se passam dentro do meu corpo? Não! Só algumas se passam dentro do meu corpo: aquelas que vêm de dentro. As que vêm de fora, alguém tem de me ajudar. É o que já dizia Santo Tomás de Aquino: "Concentre-se na ideia de que você é um boi; sente aí e vamos ver quando começa a aparecer os chifres". Sem alguma ajuda da sua mulher, você não vai conseguir.

Essa facilidade com que o sujeito dispensa o mundo exterior, e acha que todas as suas sensações estão dentro, revela, em primeiro lugar, uma confusão entre sensações internas e externas. Eu não tenho sensações epidérmicas sem tocar em alguma coisa, ou pelo menos tocar em mim mesmo. Isto é impossível. Aqui tem o vidro em cima da mesa; eu quero sentir o frio do vidro; eu fico aqui sem tocar: não consigo. Eu tenho de me encostar no vidro para sentir o frio. Então, é claro que a sensação não é algo que se passa no corpo: a sensação é uma relação que se estabelece.

Mesmo as sensações internas, eu não posso produzi-las à vontade. Eu não posso ter digestão sem ter comido. Se fosse interno, eu não precisaria comer: a minha barriga se encheria de conteúdo sozinha. E mais ainda: para que um masturbador precisa se masturbar, se para masturbar ele precisa fazer um ato externo? Ele pega a sua mão e vai tocar um órgão que não é a mão; ele vai tocar uma coisa externa. Se fosse interna, ele pensava e... Pronto! Tinha orgasmo só de pensar. Será que Descartes nunca foi ao banheiro se masturbar? Será que ele acha que é um negócio meramente interno? É absolutamente ridículo o que eu estou falando, mas é verdade.

Eu acredito que não se pode filosofar sem a mais extrema e radical sinceridade; sem confessar as coisas que nós sabemos. Mais ou menos na mesma época, um sujeito maligno, mas inteligentíssimo, que era Calvino, definiu a consciência como aquilo que me impede de negar o que eu sei que eu sei.

Descartes está fazendo abstração da consciência, mas acontece que a consciência é ele mesmo. Como é que ele pode fazer abstração da sua consciência no instante em que está contando a sua história? Ele está fazendo de conta que ele não sabe a sua própria vida, no instante em que está contando a sua própria vida. É claro que é fingido. Se é um fingimento premeditado, maligno, ou se é um fingimento esquizofrênico, eu não sei. Pode ser um fingimento histérico, e a histeria aumentada vira uma esquizofrenia.

Então vamos continuar aqui com a crítica aos sentidos:

(...) As pessoas acreditam que vêem, tocam, ouvem, sentem o gosto e o cheiro dos corpos materiais diretamente, mas isso não acontece. (...)

O que quer dizer diretamente? Ora, se eu toco este objeto, por exemplo, eu não o estou tocando diretamente; eu o estou tocando através da minha epiderme. O que quer dizer o diretamente? Quer dizer que o seu eu abstrato vai tocar o isqueiro? Não pode ser. Ou seja: tocar indiretamente, tocar através da epiderme, é simplesmente tocar. Não há outra maneira de tocar. Eu, através da minha pura mente, posso tocar a ideia do isqueiro, mas não posso tocar o isqueiro. Então, dizer que eu não posso tocá-los diretamente é um flatus vocis; não quer dizer absolutamente nada!

Quando ele diz "as pessoas", eu digo: Mas quais são as pessoas? São as pessoas consideradas apenas como seres pensantes, incorpóreos, ou como seres dotados de um corpo e, portanto, de uma epiderme? De qual dessas duas pessoas você está falando? Existe a ideia de pessoa; a ideia de consciência. A ideia de consciência não tem corpo, e a ideia de consciência não toca nada; mas a pessoa concreta toca. E é isso que você está chamando de tocar indiretamente?

O que ele está dizendo é o seguinte: eu, sem os órgãos dos sentidos, não tenho sensações. E é caso de perguntar, como aquele português ao qual o turista perguntou: "O senhor sabe onde fica o Convento dos Carmelos?", e ele respondeu: "Oh raios, e quem é que não sabe?". Então é o caso de perguntar: Oh raios, e quem é que não sabe?

Isto quer dizer que se eu não tenho sentidos, eu não tenho sensações. Ora, o fato de eu precisar dos sentidos para ter sensações nada prova contra as sensações e nem contra os sentidos. Isto aqui é um erro lógico.

(...) Na verdade, o que ocorre é que o mundo age sobre os órgãos sensoriais, os quais enviam mensagens ao cérebro através dos nervos. Em seguida, estados cerebrais (ou ativações neurais, para usar o termo mais atual da ciência que estuda o cérebro) fazem com que a mente tenha experiências sensoriais de visão, tato, audição, paladar e olfato. (...)

Ora, meu Deus do céu! Mas se eu não sei sequer se um isqueiro está aqui quando eu o toco, como é que eu vou saber tudo isto? Eu não posso conhecer um isqueiro diretamente quando eu o toco, mas eu posso conhecer ativações neurais e toda a rede de comunicações que chega até o cérebro! Como é que eu faço isso? Sobretudo, como é que eu faço isso sem confiar nas sensações corporais? Ou seja: se eu posso saber tudo isso a respeito do processo do conhecimento sensorial, isto revela que eu tenho uma confiança extraordinária no meu conhecimento sensorial, sem o qual eu não poderia saber nada disso.

Ou seja: um conhecimento sensorial mais aprimorado não é um argumento contra o conhecimento sensorial. Mas como Descartes não percebe isto? Como é possível ele se deixar enganar desta maneira, por um simples jogo verbal? Como é possível um homem, que era sem dúvida um gênio das matemáticas, cair numa dessa? [01:40]

(...) Conhecemos o mundo por meio dessas representações sensoriais. Nossa experiência sensorial está confinada a um círculo de imagens mentais causadas pelo mundo material. Acreditamos que essas imagens sensoriais são semelhantes aos corpos materiais, (...)

Peraí! O que é ser um corpo material? É ter a capacidade de me transmitir essas imagens sensoriais. Não há outra coisa que o corpo material possa fazer. Quer dizer, eu vejo um isqueiro e imagino: parece um isqueiro, funciona como isqueiro, e digo que isto é uma imagem mental. Claro, examinando do meu ponto de vista, isto é apenas uma imagem mental. Agora, olhemos a coisa do ponto de vista do isqueiro. Pode o isqueiro fazer algo além de me transmitir, através dos meus órgãos dos sentidos, da minha rede neuronal, essas imagens? Que outra capacidade ele tem, além disso? E o que é ser um corpo material senão precisamente ter a capacidade de emitir essas informações para um aparato sensorial constituído como o meu?

Vocês percebem que todo esse raciocínio é um jogo de palavras? Baseado no quê? Na ruptura entre o eu pensante e o eu existencial. O eu pensante faz de conta que ele não é o eu existencial e começa a cavar um abismo entre ele e ele mesmo. Não entre ele e os objetos, mas entre ele e ele mesmo.

Quando ele diz que eu não vejo um corpo material realmente, eu vejo apenas uma forma que o corpo material transmitiu ao meu cérebro através da minha rede neuronal, eu estou supondo que existe outro ente material para além desse que eu vejo e toco, e que este é inacessível (já é o negócio das "coisas em si", kantiano, que já está insinuado aí). Acontece que este ente que está para além do corpo material não é um corpo material, e ele não pode ser tocado sensivelmente.

O que aí está se introduzindo é uma confusão entre o corpo material, tal como se apresenta, e a ideia de corpo material. E ele está se queixando de que ele não consegue tocar a ideia, o númeno, a coisa em si. Mas o que seria tocar a coisa em si? Tocar é uma relação. O que ele está dizendo é o seguinte: eu não posso ter uma relação se não tem uma relação. Vocês estão entendendo que isso é uma estupidez? Que isso é burrice? Que isso não significa nada?

E se ele disser que fez tudo isso para, no fim, encontrar um novo fundamento da certeza, quando ele chegar no novo fundamento da certeza, ele vai ver que não é fundamento nenhum. Ou seja, ele está usando um caminho errado para chegar a um outro negócio mais errado ainda.

E note bem: em tudo isto, o problema está na pergunta que ele não faz. Quando ele diz: "Quando eu toco um corpo material, eu não estou tocando um corpo material, estou tocando apenas uma imagem que foi transmitida ao meu cérebro", e ele não pergunta: o que é ser um corpo material? Se ele disser que ser um corpo material é apenas ocupar um lugar no espaço, ele está esquecendo que para eu tocar o objeto material, eu também tenho de ser um corpo e ocupar um lugar no espaço, e que só no momento em que eu tocar o objeto haverá a relação. Então, no fundo não está dizendo absolutamente nada.

(...) mas nunca poderemos saber se o mundo material realmente é como as experiências sensoriais que temos dele, porque nunca poderemos comparar essas experiências mentais com o próprio mundo. (...)

O que é o próprio mundo? Em que consiste ser o mundo, senão estar aí à disposição da nossa sensorialidade? Se existe um mundo para além daquilo que é acessível sensorialmente, ele não é um mundo material. É imaterial. É a essência do mundo. É o mundo em si. Mas o mundo em si não pode ser material. Então ele está dizendo: "Eu só toco materialmente aquilo que é material e não toco aquilo que é imaterial". Oh, raios! E quem é que não sabe?

(...) Para saber se o mundo realmente é como as sensações que temos dele, teríamos de conhecer o mundo diretamente, (...)

De novo diretamente! O que é conhecer o mundo diretamente? Seria conhecê-lo sem a mediação dos sentidos. Mas acontece também que este mundo só está aí através da mediação das informações que ele passa para mim. Se ele não passasse informação nenhuma, ele não estaria aí.

(...) É ingênuo, dizia Descartes, pensar que vemos as coisas do mundo externo como elas realmente são. (...)

E mais ainda, também: o que é realmente? Então ele vai dizer: "Realmente é como eu o concebo de maneira clara e distinta". Passados quatro séculos, o poeta Antonio Machado derrubou isso em três linhas, com um versinho onde ele dizia:

En mi soledad

he visto cosas muy claras,

que no son verdad

Ou seja, a minha mente pode construir muitas coisas claras e distintas que não são verdade.

(...) E mais ainda, o mundo material não é nada parecido com as nossas experiências sensoriais. (...)

Espera um pouquinho! Se o mundo material não é parecido com as nossas experiências sensoriais, ele não é material, porque ser material é ter essas propriedades que lhe permite chegar ao meu aparato sensorial. Se há algo no mundo material que não pode chegar ao meu conhecimento sensorial de maneira alguma, então eu não sei nada a respeito dele. Absolutamente nada! Ora, mas o meu conhecimento sensorial também pode ser aumentado através de aparelhos. Por exemplo: põe-se lá um microscópio eletrônico e descobrem-se as estruturas da matéria. Isso também não é material? Também não é sensorial? Ou seja: tudo que é material é sensorial.

Assim como nem todas as pessoas enxergam igualmente bem, nem todas as épocas enxergam igualmente bem. Você pode inventar aparelhos que aumentem a sua visão, e daí você vai ver outros aspectos do mundo material. Mas elas não serão menos materiais do que aquelas primeiras. Nem menos, nem mais.

(...) Corpos, por exemplo, podem fazer com que você sinta calor, mas eles próprios não sentem calor; são seus átomos que estão movendo-se bastante rápido. (...)

Mas se eu não posso sequer constatar o calor de um corpo, como é que eu posso constatar o movimento de átomos, que é muito mais difícil?

(...) Aqui estão alguns exercícios para convencê-lo de que você nem mesmo consegue ver os tamanhos e formas corretas das coisas.

Levante seu polegar e olhe para ele. Agora pressione um dos seus globos oculares. O que você vê? Dois polegares. Mas só há um polegar lá, então o que você vê é diferente do que está lá. (...)

Ora, ele está pretendendo que deveria existir um polegar que tenha a propriedade mágica de pressionar o meu olho e continuar sendo visto inalteravelmente como antes. Nenhum polegar tem essa capacidade. Não é uma limitação que está no meu olho: está no próprio polegar. É claro: você está vendo um polegar aqui, e quando você vê, apareceram dois. Mas se botar a dez quilômetros, não tem polegar nenhum. O que você está querendo dizer é apenas que a distância a que você vê os objetos altera a visão que você tem deles. Oh raios! E quem é que não sabe?

[01:50] Existe algum objeto que tenha a propriedade de, a diferentes distâncias, ser visto do mesmo tamanho? Para isso precisaria não apenas do meu aparato sensorial ser diferente, mas todo o universo ser diferente. Faça esse teste: pegue um espelho e olhe de pertinho. Depois vá longe e olhe. Você vai ver que você está longe. Isto é uma limitação sua? Não. É uma limitação do espelho: o espelho não tem a capacidade de trazer você para perto quando você foi longe.

Isto quer dizer: se você mesmo define materialidade como ocupar um lugar no espaço, então, evidentemente, os corpos estão sujeitos à estrutura do espaço. E o polegar que se afasta ou se aproxima, e que parece dois, ou parece um, ou parece nenhum, está fazendo isso por quê? Porque ele está submetido à estrutura do espaço, e não somente às limitações da minha visão.

(...) Mantenha o polegar bem na frente de você, a uma distância equivalente ao comprimento do seu braço. Agora traga-o lentamente para cada vez mais perto de seus olhos. O que é que acontece? Ele se torna maior. (...)

Ora, para que ele permanecesse do mesmo tamanho ― que eu o visse do mesmo tamanho ― seria preciso que ele tivesse a capacidade de me transmitir as mesmíssimas informações, independentemente da distância onde se encontra. Ou seja: não apenas a minha visão precisaria ser diferente, mas o polegar também precisaria ser diferente. Essas várias alterações sensoriais, que a antiga escola céptica afirmava ― e que Descartes reafirma aqui ― mostram a perfeita adequação do aparato sensorial à estrutura do mundo, e não uma defasagem. Essa defasagem só pode surgir na base de o indivíduo pensante negar que ele sabe o que ele sabe, ou seja, abolir a consciência e sobrar só o pensamento.

Esta abolição da consciência e a entronização, quase divinização, do pensar é um escotoma na filosofia de Descartes, porque ele não examina esse problema em parte alguma; ele passa por cima. E os outros também passaram por cima e continuaram examinando as coisas nos termos que Descartes colocou. Então um fala a favor, outro fala contra, mas o problema básico continua ignorado.

Eu, muitas vezes, já enfatizei aqui a diferença entre o saber ― ou conhecer ― e o pensar. Tem muitas coisas que a pessoa conhece, mas não pode pensar. Por exemplo: você conhece uma pessoa ― eu conheço a Roxane, conhece a Liuba, conheço o Moreno ― posso pensá-los? Não. Eu posso pensar neles. O meu pensamento pode se referir a eles. Mas eu não posso pensá-los como totalidades. Eles nunca serão conteúdos da minha consciência: eu penso um pedaço, penso outro...

Por exemplo: cada uma das pessoas aqui eu sei que já foi um bebê e que veio crescendo ao longo dos tempos etc. Sei que não surgiram prontas. Alguns eu acompanhei desde pequenininho, como a Leila: vi crescendo de pouquinho etc. etc. No entanto, eu não posso ver tudo isto, e não posso pensar tudo isto também. E, no entanto, eu sei. Se eu deixasse de saber isso por um minuto, eu não reconheceria a pessoa. Se eu esquecesse isso por um segundo, eu veria somente a figura externa, e não um ser humano concreto que tem uma vida, que tem uma biografia etc. etc., e daí eu não conseguiria me relacionar. Quer dizer: o campo todo das relações humanas estaria desorganizado instantaneamente.

Portanto, eu tenho de reconhecer que eu sei coisas que eu não consigo pensar. Do mesmo modo como o seu corpo tem uma série de capacidades que você não consegue pensar. Será que para você respirar você precisa ter estudado fisiologia da respiração? Quer dizer: o seu corpo sabe tudo o que ele precisa saber da respiração, mas você não sabe nada. Porque um é o saber que está presente, está em ação, e outro é o saber pensado, reflexivo. Vocês lembram o exemplo das duas pilhas de baralho que eu dei logo nas primeiras aulas?

Então, o que está Descartes fazendo? Ele está cortando o elo entre pensamento e consciência, e ficando só com o pensamento, sem a consciência. Ele está fazendo de conta que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. E isto aqui influenciou muito mais as gerações seguintes do que qualquer doutrina explícita de René Descartes. Por exemplo: os cartesianos subsequentes ― os discípulos de René Descartes ― tem muitas ideias de René Descartes que eles jogaram fora imediatamente. Por exemplo: René Descartes acreditava que as ideias eternas só existem porque Deus as pensou. Ou seja, elas não são propriamente eternas; elas são criadas. Todo mundo leu isso e falou: "Isso é bobagem, passa adiante". Ninguém levou a sério. Ou seja: ninguém aceitou o cartesianismo inteiro.

Agora, nas partes que aceitaram, passaram, dentro, esses pequenos problemas; essas bombas de efeito retardado. Qualquer malefício que possa ter vindo das ideias de Descartes, veio menos das ideias, do que destes rombos. Não podemos culpar um filósofo do que outros fizeram com a influência que ele passou, mas nós podemos culpá-lo, sim, de ter tampado certos problemas; de ter tirado certos temas do repertório. Isso ele fez realmente; ele fez materialmente. E nós podemos acompanhar historicamente o sumiço de certos temas.

Às vezes só leitores de altíssimo gabarito é que percebiam algo dessas coisas, como, por exemplo, Leibniz, que disse que só com os elementos mensuráveis nós não podemos criar um corpo; o corpo não pode existir só pelas suas medidas: ele precisa de algo, precisa ter algo dentro, precisa ser alguma coisa. Mas, o fato é que, na época, ninguém prestou atenção em Leibniz.

Leibniz é autor de uma obra imensa: acho que ele escreveu quarenta vezes mais do que René Descartes. Aqui eu tenho a obra completa de René Descartes: cabe toda em doze volumes. A de Leibniz daria uns trezentos. E tudo fragmento: é tudo carta, tudo rascunho, e só no século XX começaram a juntar.

Tudo isso que eu estou dizendo agora, talvez Leibniz tivesse percebido, e isto esteja em algum manuscrito que não abriram ainda, porque Leibniz era um sujeito que percebia tudo, era um negócio fantástico. Então, pode ser, mas até hoje eu não vi ninguém dizendo essas coisas.

Para chegar a isso, eu parti de uma análise que podemos dizer psicológica. No livro que eu estou escrevendo sobre Descartes eu digo que usei o método Stanislavski. Foi uma coincidência que no tempo em que eu estava lendo estas coisas, eu também estava estudando teatro com Eugenio Kusnet, não para ser um ator, mas só por cultura geral.

O método Stanislavski é o método de você apelar para a sua memória afetiva. Quer dizer: você lembrar de experiências análogas que você teve, para poder sentir a emoção, a experiência primária de um personagem. Eu achei que era lícito fazer isso com o próprio Descartes, ou seja, eu peguei o texto de Meditações Primeira de Filosofia como se fosse o texto de uma peça que eu ia representar: então eu sou René Descartes e eu estou dizendo essas coisas. Eu acho que os historiadores não fazem isso.

Se é uma autobiografia, o que impede de fazer uma peça das Confissões de Santo Agostinho, ou uma peça de qualquer coisa? Hoje mesmo eu estava lendo uma entrevista do Albert Camus sobre a adaptação que ele fez do romance do Dostoievski: Os Demônios. Você pode fazer [02:00] da vida de Jean-Jacques Rousseau, qualquer coisa, e alguém vai ter de representar o Jean-Jacques Rousseau, René Descartes ou Santo Agostinho. O Roberto Rossellini não fez o filme de Santo Agostinho? Isto quer dizer que o ator teve stanislavskianamente de se identificar com Santo Agostinho.

Então eu vou fazer a mesma coisa: sou eu o René Descartes; eu vou representar René Descartes; eu tenho de pensar as coisas do jeito dele. Só que na hora que eu tentei pensar, eu falei: Não dá! Eu tento, mas não consigo. Por exemplo: eu tento imaginar que todas as minhas sensações vêm apenas do meu corpo. Eu não consigo, porque isto implicaria eu negar a diferença, que conheço perfeitamente bem, entre sensações internas e externas. Ninguém consegue fazer isso; ninguém nunca fez; e Descartes também não fez: só disse que fez.

Isto quer dizer que a crítica que ele faz aos sentidos é uma crítica lógica. Ele faz um argumento contra os sentidos. Não é algo que ele efetivamente observou em seus sentidos; é apenas uma composição de palavras. Pode-se inventar um argumento contra qualquer coisa. Por exemplo: quando está chovendo, você pode inventar um argumento contra a chuva, mas isso não vai parar a chuva nem fazer chover. Então, você pode inventar um argumento contra os sentidos, mas esse argumento é apenas um pensamento; não é um conhecimento, é simplesmente algo que você arquitetou hipoteticamente.

Isto quer dizer que toda a narrativa das famosas experiências interiores de Descartes é falsa. O elemento de falsidade se comprova, muito mais tarde, quando Garcia Hernandez descobre que isso foi tirado de uma peça de Plauto. Então, é um artifício literário. Até aí muito bem; você pode usar todos os artifícios que você quiser. O problema é que esses artifícios são construídos na base de você chamar a atenção sobre certos esquemas lógicos que você criou, de tal maneira, que o assunto ― o objeto originário do qual aquelas perguntas apareceram ― desaparece, e de agora em diante só se pode fazer, a respeito, aquelas perguntas que você fez, e não as outras. É a criação de um escotoma. É uma influência negativa ― influência excludente. Não uma influência positiva, de uma ideia, de persuasão etc. etc.

Então, fica isso aí como amostra desse método. Na semana que vem tem mais coisas.

Agora, vamos responder algumas perguntas. Aqui tem algumas perguntas interessantes. Vamos começar por esta, que não tem nada a ver com a aula, mas é interessante:

Aluno: Quase fui enforcado e esquartejado por uma professora de história, que formada na UFRJ e que tenta fazer seu mestrado falando das "cicatrizes eternas que a ditadura militar deixou no Brasil", quando fiz um quadro comparativo entre Rússia, Cuba e a ditadura brasileira. Essa professora, uma patricinha comunista, dessas formadas pelas universidades marxistas públicas, chamou-me de anacrônico, pois eu estava comparando períodos históricos antagônicos.

Olavo: Diga, literalmente, à sua professora que você conversou com o Olavo de Carvalho, e ele disse que ela é uma analfabeta, incompetente; que ela não tem capacidade de ensinar nada. Ela não sabe nada, nada, nada a respeito de história.

Primeiro lugar: o partido que governa Cuba só foi declarado como partido comunista único em 1965, um ano depois do golpe militar no Brasil. Em 1968, foi quando a URSS invadiu a Tchecoslováquia, não num ato de guerra, mas para reprimir uma manifestação popular. Quer dizer: foi um caso inédito na história, em que um país invadiu outro, não para atacar as suas forças militares, mas para atacar diretamente a sua população civil. Em 1968! Foi o ano do AI-5. 1975: enquanto no Brasil se fazia um barulho danado por causa da morte do Vladimir Herzog, que eu mesmo ajudei a fazer o barulho, foi o ano do genocídio no Camboja. Em um ano eles mataram dois milhões de pessoas! Como é que é anacrônico, se está acontecendo exatamente ao mesmo tempo? E no ano seguinte, foi quando Cuba invadiu Angola. Chegou lá e matou dez mil pessoas e, pior, invadiu com a ajuda da nossa ditadura militar. O maior crime da ditadura militar foi ter ajudado Cuba a invadir Angola, e disso ninguém fala.

Como anacronismo, se está acontecendo ao mesmo tempo? Essa mulher não tem capacidade nem para ser animadora pedagógica de criança, de falar: "bate palminha, levanta as mãozinhas". Vai para casa, vai pegar um tanque e lavar roupa, mulher! Pode dizer que eu falei isso. Pessoas como ela tinham de ser colocadas fora do ensino. Fora!

Aluno: Eu pretendo ser historiador. Eu percebi que as obras historiográficas que se tornaram clássicas, ou seja, que continuam a ser lidas por várias gerações e até mesmo sobrevivem aos próprios erros, são aquelas que trouxeram inovações metodológicas, conseguiram recriar com mais vida uma época do passado e fizeram as duas coisas ao mesmo tempo. Daí eu pergunto: É isso mesmo? Uma obra historiográfica que tenha todo o rigor investigativo, se for caprichosamente narrada, pode ter o mesmo valor simbólico de uma obra literária?

Olavo: A história existe para fazer isso: realçar exatamente o valor simbólico do fato real. Às vezes isto não é possível, e você tem de inventar os fatos, então você faz uma obra de ficção. Mas, se você consegue, com os dados reais, extrair o sentido simbólico universal que aqueles acontecimentos têm, então você realmente é um grande historiador.

Eu considero que a melhor obra de história que eu já li é Origens da França Contemporânea do Hippolyte Taine. Mas, no mesmo nível está a História da Arte do Élie Faure; está o livro Jacob Burckhardt sobre a Renascença; o livro do Leopold von Ranke sobre história dos Papas. Todos eles fazem exatamente isso. Se não é para fazer isso, é para fazer o quê? Se não é para você extrair um significado da coisa, então para que serve a história? Pode ir em frente que é exatamente isto!

Aluno: Quais são as obras essenciais de Camilo Castelo Branco? Tem algum comentário sobre a importância da obra literária deste autor?

Olavo: Ninguém jamais escreveu como Camilo Castelo Branco. É um homem que faz o que ele quiser com a língua portuguesa: fá-la ter todos os sons; é uma polifonia; é um negócio absolutamente extraordinário. E também vale pela profundidade da concepção trágica da vida. Por exemplo: se você comparar Eça de Queirós com Camilo Castelo Branco, você tem a impressão de que Eça de Queirós está apenas brincando, fazendo piadinha e tal, e o Camilo Castelo Branco está falando as coisas profundamente a sério.

Eu não posso dizer quais são as obras essenciais, mas eu posso dizer aquelas que mais me atraíram, que foram: as Novelas do Minho, que é uma obra já de uma certa idade avançada, onde ele faz um experimento naturalista. O famoso Amor de Perdição, que é o contrário, é uma obra romântica do começo. O Coração, Cabeça e Estômago, que é uma farsa, uma comédia. E Eusébio Macário e A Corja, que são mais ou menos obras de costumes, sobre a sociedade portuguesa. Mas ele escreveu uma infinidade de coisas. Eu li pouca coisa de Camilo Castelo Branco, mas tudo o que eu li me impressionou muitíssimo.

E o Herberto Sales que foi o escritor brasileiro que, segundo o Otto Maria Carpeaux, mais tinha consciência literária, que tinha consciência dos deveres do artista da língua, ele achava que ler Camilo Castelo Branco é o aprendizado, é o bê-á-bá da literatura em língua portuguesa.

Aluno: O que você pensa do método de alguns místicos, principalmente orientais, sobre a necessidade de neutralizar e esvaziar a imaginação de elementos externos e internos a fim de alcançar a theosis*, em contraposição à sua recomendação de ampliar a imaginação como meio de educação* [02:10] moral e intelectual?(...)

Olavo: Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Inclusive são momentos diferentes: aprendizado é uma coisa e prática mística é outra completamente diferente. Mas, se você quer saber, eu não acredito em nenhuma prática mística. Não é a prática mística que vai levá-lo a lugar algum; quem vai levá-lo a algum lugar é Nosso Senhor Jesus Cristo. Se você pedir para ele, e se você quiser. Quer dizer, o desejo é a coisa mais fundamental: você tem de querer, querer, querer...

Você tem de lembrar o seguinte: o sentido da vida é muito simples; o sentido da vida é alcançar a vida eterna; é só isto! Ponto final! E se você meter isto na sua cabeça; falar "eu quero porque quero"; quer dizer: "eu quero estar na eternidade com Nosso Senhor Jesus Cristo"; peça isto vinte quatro horas por dia; insista, insista, insista, e você vai conseguir. Não há necessidade de nenhuma técnica. Esta é a técnica. Quando Jesus Cristo disse: "Uma só coisa é necessária", é esta a coisa necessária. O resto é tudo enfeite.

(...) P.S.: Sou o mesmo aluno que estava propondo a organização de um Gashuku. (...)

Olavo: O que é um Gashuku?

Aluno: Reunião para treinamento de arte marcial.

Olavo: Reunião para treinamento de arte marcial. Nossa! Isto é novo. Antigamente não tinha isso; nunca vi isso. Mas eu sou dos anos 60.

(...) Passei meu telefone com um pedido, em aula anterior, para vários e-mails, mas não obtive resposta. Já conversei pessoalmente com o Pe. Paulo Ricardo, e ele concordou com a participação, mas temos de adiar a realização. Por isto gostaria de falar com o senhor (...)

Olavo: Aqui ele dá os números do telefone. Eu vou ligar para você.

Aluno: Estudando Kant, tentei descobrir porque diabos ele insistia que existia uma coisa em si. Se ela é por definição incognoscível, por que Kant postula a sua existência? A conclusão a que pude chegar é que Kant a inventou porque estava mais do que impressionado, aterrorizado, pela lei da causalidade. Kant aceitou que esta lei submetia todas as coisas existentes e concluiu que por causa dela o livre-arbítrio era impossível. Não podendo aceitar isto, recorreu aos dois mundos: um submetido às categorias a priori, incluindo a causalidade, e o outro não submetido, o das coisas em si. (...)

Olavo: Eu acho que você tem razão. Eu nunca examinei a coisa sob esse ponto de vista, mas me parece que você tem razão. Como salvar o livre-arbítrio diante de uma atmosfera protestante? Eu acho que você está numa pista certa. Continue investigando por aí, você vai descobrir alguma coisa.

(...) Kant estava certo em pensar que a lei da causalidade implica o determinismo, portanto, a impossibilidade do livre-arbítrio?

Olavo: Olha, se Deus criou uma criatura como o ser humano, com a inteligência de alcance quase universal que tem, para que Ele faria isto se estivesse tudo já absolutamente predeterminado? Se você não fosse também uma força causal? Se você fosse um elo de uma cadeia causal já anterior, a simples existência da inteligência humana seria uma coisa totalmente incompreensível; seria, parece-me, uma espécie de excrescência.

Na verdade, Lutero até chegava à conclusão de que era excrescência mesmo. Se você começa a usar a razão ― se você acredita na razão e no livre-arbítrio ― você acaba negando a divindade. Eu acho que não é bem assim, mas esta é uma problemática protestante terrível. Calvino, quando ele aceita o negócio da predeterminação, então só sobra um assunto para se pensar. Se já está tudo predeterminado, só tem um problema: eu estou entre os eleitos ou eu estou entre os danados? Como é que eu vou saber? Não tem jeito de saber. Então você vai viver na dúvida. Significa o seguinte: a fé vira uma dúvida. Isto não tem saída. Isto deve ter incomodado muito as pessoas mais inteligentes.

Ontem mesmo eu estava lendo alguma coisa sobre Rembrandt. Rembrandt sofreu muito por causa disso; tentou achar uma saída. Porque essa é uma coisa, na verdade, inumana: você vai viver na total incerteza. E, sobretudo, o centro de interesse começa a ser você mesmo. Isso foi uma das forças que geraram esse interesse anormal pelo eu subjetivo. É um problema que aparece também no próprio Descartes. Não podemos esquecer que Descartes viveu muito tempo em ambiente protestante e chegou a batizar a filha na Igreja Protestante, que é uma coisa que, para um sujeito que se dizia tão católico, é muito estranho.

Na aula passada eu expliquei aquele sentimento terrorífico que Descartes tinha de não saber se ele estava sendo levado por Deus ou pelo diabo ― embora ele não afirme nesse sentido. Ele afirma que aquela tempestade era o diabo mesmo e que, ao contrário, a luz que aparece dentro do seu quarto ― quer dizer: dentro do seu pensamento ― é uma inspiração divina; o que me parece ser uma coisa invertida. Essa incerteza profunda da alma protestante que, por incrível que pareça, eles chamam de fé, faz com que o indivíduo se torne um problema para ele mesmo.

Por exemplo: eu pensar o que devo fazer; qual é o certo, qual é o errado; não adianta pensar porque já está tudo predeterminado. Se eu tiver que ir para o inferno, eu vou, mesmo que eu fique rezando o dia inteiro. Então não há o que fazer. Só sobra um problema: Deus me acha bom ou mau? Eu acho que isto aí é um problema. Pensar nisso não leva a parte alguma. Eu penso ao contrário: é claro que Deus nos acha maus. Por quê? Porque há o pecado original. Então, a priori, ninguém presta. Porém, o curso desta vida pode mudar isso, e pode mudar na medida em que você peça e queira, e aja em consequência. Isso é uma questão de senso comum; não é nem de religião.

Parece-me que foi isso que o Kant tentou salvar: salvar certo coeficiente de livre-arbítrio. Eu não posso ter certeza: eu não estudei Kant sob este aspecto. Mas é muito interessante esse negócio que você levantou. Continue estudando isto. O livre-arbítrio em Kant. É um tema muito bom.

Aluno: Estou fazendo mestrado em jornalismo, e vejo ali um predomínio de ideias pós-modernas em detrimento daquelas ideias modernistas e do Iluminismo. Será que essa crítica ao Iluminismo não poderia ser usada como meio de destruir as certezas da ciência moderna e trazer com isso o retorno do Cristianismo ao mundo das ciências humanas? Tenho feito críticas a esta crença cega na razão iluminista e apontado suas relações místicas, e tenho visto aceitação relativamente boa enquanto eu não relacionar as minhas ideias com o Cristianismo. Mas, assim, será que o pensamento pós-moderno não seria um tiro no pé para o pensamento revolucionário materialista-mecanicista?

Olavo: Sim e não. Porque esse negócio do pós-modernismo de fato destrói as certezas pretensamente universais do Iluminismo, mas, por outro lado, ele consagra uma espécie de voluntarismo. Quer dizer: se não há verdades universais, só sobra o quê? A política, no sentido do Carl Schmidt. Carl Schmidt dizia: "Quando uma questão não pode ser arbitrada racionalmente, então só resta você juntar os seus amigos contra os inimigos". É isto que ele chama de política.

O pós-modernismo resulta na politização de tudo o que existe; então, agrava, de certo modo, o movimento revolucionário, na medida em que o tira da praça pública e o leva para dentro do coração humano. Quer dizer que todo mundo agora está fazendo revolução o tempo todo, em todas as áreas do conhecimento. A politização do sexo, por exemplo, é um resultado direto disto aqui. Se bem que começa numa fase anterior ao pós-modernismo explícito. Mas quem pode negar que foi [02:20] depois do advento do Pós-Modernismo que coisas como, por exemplo, o movimento gay, ou o atual movimento pela pedofilia, começaram? E amanhã pode ter qualquer movimento em favor de qualquer outra arbitrariedade desta. Quer dizer: este negócio dissolve a forma da ideologia revolucionária; mas, na medida em que a dissolve, a espalha por toda parte. É como se fosse um vírus que antes estava localizado, e agora invadiu todos os setores da vida humana.

Aluno: A recusa do mapa da ignorância, eu digo, dos temas que desapareceram do horizonte de consciência que possibilitariam o diálogo, seriam os três sensos a que se refere Gustavo Corção em seu livro A Descoberta do Outro*, no capítulo nomeado como "O objeto procura os três sensos"?*

Olavo: Eu vou ter de reler isso. Sinceramente, eu não lembro no momento. Mas eu vou ler e prometo que a semana que vem eu volto a isso.

Aluno: Estou lendo o filósofo Michel Henry, o texto "O começo cartesiano e a ideia da fenomenologia", e fiquei bastante intrigado com esta colocação abaixo.

Olavo: Nossa! Ele bota um texto imenso do Michel Henry aqui. Eu vou ter de ler isto aqui durante a semana e responder na semana que vem. Não dá para ler tudo agora porque já está muito tarde.

Michel Henry tem muita razão na crítica que ele faz a essa concepção científica, mas no momento em que ele apela para o negócio das emoções, eu acho que isso não é suficientemente profundo. O cartesianismo, o que ele faz é pegar o eu pensante, colocá-lo como substância, isolá-lo da consciência e, portanto, isolá-lo do mundo, e daí declarar que esse eu pensante tem um contato direto com Deus, tem acesso às verdades universais e que, portanto, pode ser tudo deduzido dentro da sua cachola. É claro que isso fez um malefício desgraçado.

O mundo das emoções não é suficientemente profundo para se opor a isso. A esse eu pensante isolado do cartesianismo, nós temos de opor, não o mundo das emoções ― que ainda é um mundo psíquico-subjetivo ―, mas o mundo do eu substancial, em relação ao qual as próprias emoções são superficiais. As emoções, afinal de contas, vão e vêm, como o pensamento, mas por baixo de tudo isso eu sou alguém, eu tenho uma identidade que escapa ao meu próprio pensamento, mas que sustenta o meu pensamento e que eu vislumbro, às vezes, no instante em que consigo me enxergar à luz da eternidade. Ou seja, que me coloco diante de Deus e aceito aquilo que Deus me informa de mim mesmo. Para Ele me informar de mim mesmo coisas que eu não sei, é preciso que eu seja algo por baixo do que eu sei. Então é uma forma de existência; é uma noção ontológica, e não psicológica.

Não me parece que a crítica do Michel Henry --- eu conheço pouquíssimo Michel Henry --- vai muito profundamente. Mas, de qualquer modo, ontem alguém me falou a respeito do Michel Henry e eu falei: é, eu devia prestar um pouco mais de atenção nesse homem; ele tem uma obra vasta. Do pouco que o conheço, eu sei o seguinte: ele coloca aí o mundo das emoções, o mundo do subjetivo, como sendo um mundo que existe efetivamente e que é separado, é cortado, do universo das ciências. A coisa está certa, mas para mim está longe de ser suficiente.

Por hoje é só. Até a semana que vem. Muito obrigado.

Transcrição: Jussara Reis

Revisão: Eduardo Garcia de Queiroz