Curso Online de Filosofia
[Olavo de Carvalho]{.smallcaps}
Aula 116
30 de julho de 2011
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
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Por favor não cite nem divulgue este material.
Boa noite a todos, sejam bem-vindos. Obrigado por terem comparecido a este lançamento durante o qual a Vide Editorial está fazendo uma oferta para os alunos do Seminário e para todas as pessoas aqui presentes: há uma redução no preço do livro de R$ 20,00 para R$ 18,00 para os que comprarem o livro na Livraria do Seminário durante esta palestra.
Queria agradecer muito aos editores, este casal esplêndido: Adelice e Cesar Kyn, ao Silvio Camargo e a todos os que ajudaram para que essa edição fosse possível, sobretudo à Isabela, ao Alessandro, ao Moreno e a todos os que têm colaborado conosco.
Para não repetir o que já está escrito no livro, vou dizer o que veio antes dele, isto é, aquilo que me levou a fazer este estudo sobre Maquiavel. Concebi este livro não tendo em vista só o assunto, mas também com a ideia de formar uma espécie de modelo em miniatura daquilo que os alunos poderiam fazer em matéria de estudos de autores e problemas determinados. Na redação do livro, procurei seguir o máximo possível a ideia desse tipo de estudo, tal como a havia exposto nas aulas, de maneira que o livro fosse uma ilustração de certos métodos de análise que estive explicando durante o curso de filosofia.
Desde logo, existe a formulação da pergunta. Um estudo filosófico destinado a ser escrito deve partir de uma pergunta. Em primeiro lugar é preciso provar que essa pergunta tem alguma importância efetiva, não só na esfera objetiva, mas que também há um motivo pessoal pelo qual você se interessa pela pergunta. Note bem: quando digo "um motivo" não quero dizer "um pretexto" ou "uma explicação a posteriori". Não quero dizer que uma pergunta apareça arbitrariamente e que depois você vá inventar uma justificativa. Tem de ser algo com uma raiz existencial muito forte em você, ou seja, você tem de ter um motivo para se interessar pelo problema. Já dizia Ortega y Gasset que os problemas filosóficos têm a estrita obrigação de provar que são mesmo problemas. Você não vai se interessar por qualquer pergunta que lhe apresentem, nem dedicará anos de sua vida a algo apenas porque lhe foi perguntado.
Acredito que uma das maiores causas de corrupção intelectual é esta maldita mania de estudar filosofia por problemas filosóficos gerais que estão consagrados nos manuais de filosofia e nos programas de universidades. Por exemplo, o problema do determinismo e do livre arbítrio, do idealismo e do realismo, e assim por diante. Esses temas gerais, pelo simples fato de serem gerais, não têm nenhuma raiz na alma individual, sendo apenas problemas padronizados que, naturalmente, serão tratados também de maneira padronizada. Embora esses problemas tenham importância em si e, em sua origem, fossem problemas autênticos e genuínos, na repetição que se faz deles ao longo da transmissão da cultura filosófica, vão se cristalizando como se fossem perguntas de programa de auditório. Logo, uma educação filosófica baseada nisso nunca poderá levar a nada.
Por incrível que pareça, muitas pessoas esperam que num curso de filosofia respondamos precisamente a esses tipos de perguntas. Esperam que apresentemos as perguntas filosóficas clássicas e tratemos de cada uma. Isso aí eu nunca fiz e espero nunca fazer.
Toda atividade intelectual exige que, além do conhecimento dos assuntos gerais e especiais que são necessários para o entendimento da matéria, se tenha também a percepção correta da situação real onde o estudo está sendo desenvolvido. Você não está estudando filosofia no ar, no planeta Marte ou na estrela Vega. Você está estudando filosofia num determinado lugar e dentro de sua situação existencial concreta. Se o seu estudo de filosofia não tiver uma raiz clara nessa situação, tornar-se-á uma forma de alienação em si mesmo.
É claro que a filosofia pode dar um alívio para uma pessoa que esteja vivendo em uma situação mesquinha, deprimente e pobre do ponto de vista intelectual. Nesse caso, a pessoa se refugiará na filosofia mais ou menos como o próprio Maquiavel, que dizia refugiar-se de sua vida miserável trancando-se na biblioteca e lendo os autores da antiguidade. Ou então será como Boécio, que na prisão tinha a visão de uma mulher que representava a filosofia, com a qual conversava. Todos nós temos esta tentação de nos evadirmos do mundo real para o reino encantado da filosofia. Acontece que nada de bom se obtém por esses meios.
Nas aulas anteriores, a que a maioria aqui não assistiu, quando analisamos a Apologia de Sócrates e o diálogo Fédon, vimos que o aspecto mais característico e eloquente do Fédon era o fato de que o homem condenado à morte desenvolvia um diálogo filosófico sobre a morte no mesmo dia em que ia morrer. A situação real imediata era a raiz do interesse filosófico. Ortega y Gasset diz que só são importantes as perguntas dos náufragos. Na hora em que o sujeito está afogando-se, em que ele ainda pensa? Será que ele vai pensar em questões filosóficas gerais que estavam no programa da universidade? Certamente não. Mas pode haver alguma coisa que naquele momento ainda seja importante para ele. Como diz o próprio Sócrates, a filosofia é um aprendizado da morte. A filosofia é aprender a morrer. Isso quer dizer que as perguntas filosóficas só valem alguma coisa quando persistem em face da morte.
Lembro-me de uma conferência maravilhosa do Julián Marías em São Paulo --- ele ia muito a São Paulo, à Livraria Duas Cidades, e o vi várias vezes por lá, mas como conferencista só o ouvi uma vez e fiquei impressionadíssimo ---. Eu nunca tinha ouvido alguém se explicar tão bem, tão claramente e com uma presença humana tão intensa. Naquele momento havia uma discussão sobre a pena de morte no Brasil e ele tomou isso como ponto de partida, dizendo que era contra a pena de morte pelo simples fato de que não sabia o que era a morte e, por isso, não podia condenar uma pessoa a uma coisa que ele não sabia o que era; algo que poderia inclusive vir a ser um prêmio como, aliás, diz também o próprio Sócrates. E continuando o raciocínio sobre a morte, ele entrava no tema da vida eterna e perguntava o que poderia sobreviver da alma humana. Ele dizia: "também não sei, mas se estivesse em meu poder escolher o que deveria sobrar de mim, das minhas memórias, da minha vida, eu escolheria precisamente aquelas coisas que com ou sem morte continuariam valendo a mesma coisa". Dito de outro modo: aquilo que pode transcender a morte é aquilo que, de algum modo, já a transcendeu; aquilo que a morte não pode abolir ou desvalorizar. E é justamente disso que Sócrates está falando no dia em que vai morrer1.
Paul Friedländer, autor de altíssima erudição filosófica, no livro que escreveu sobre Platão, que é um dos maiores estudos filosóficos da história da humanidade, mostra sempre a circunstância concreta em que os temas surgiram em cada diálogo de Platão. Vê-se que nada ao longo da vida de Sócrates e Platão foi discutido por mero interesse acadêmico. Havia sempre um motivo existencial e moral sério para que aquelas pessoas se dedicassem àquelas investigações.
Desde muito jovem, tive a sorte de ler Julián Marías e Ortega y Gasset. Apesar de não aderir a suas filosofias no todo, pelo menos esta lição eu aprendi: o homem que usa a filosofia como um refúgio contra a miséria do dia-a-dia é apenas um diletante, que está se divertindo com a filosofia ou buscando nela um anestésico, mas não é um filósofo de verdade. Este, em vez de se refugiar da situação mesquinha no mundo encantado da filosofia, partirá da situação imediata, por mais mesquinha e deprimente que seja, e tentará descobrir o caminho que leva dessa situação até os mundos sublimes da filosofia, assim como o caminho de volta. É necessário unificar as várias esferas da existência, como acontece no poema de William Blake, O Céu e o Inferno --- onde se vai do inferno para o céu ---, ou na Divina Comédia. A filosofia, como demonstra Dante, está no trajeto inteiro. Não adianta querer se refugiar do inferno no céu, mas é preciso subir de uma coisa até a outra, conservando esse senso da unidade do real o tempo todo.
É curioso como muitas vezes bons amigos e bons leitores reclamam que fico tratando de assuntos miúdos e mesquinhos. Dizem que fico discutindo com idiotas etc. Eles não entendem o espírito da coisa: jamais vou parar de discutir com idiotas. E por quê? Porque a idiotice é a situação em que vivemos. O Brasil é um país que já não tem cultura superior e onde se observa o tempo todo a decomposição da inteligência. As pessoas vão se tornando cada vez mais burras até o ponto em que se chega à inumanidade. Mas essa é a situação. Embora eu esteja aqui nos Estados Unidos, meu centro de referência ainda é a situação brasileira da qual parti e à qual estou ligado também pela minha língua, pela presença de inumeráveis amigos meus no Brasil e por um resto de patriotismo que sobrevive até a morte do país. Se essa é a situação concreta que nos rodeia, é dela que temos de partir. Não temos de ter medo de examinar em profundidade a situação mais deprimente e amesquinhante que exista porque ela é o nosso ponto de partida. É nela que estamos e foi nela que nascemos --- na realidade, eu nasci um pouco antes, mas vocês já nasceram dentro dela ---. Se não compreendemos essa situação em todos os seus detalhes e em vez disso tentamos saltar direto para o mundo das ideias, estamos buscando apenas um refúgio ou um descanso, e não o conhecimento da realidade. Se fizermos isso, estaremos brincando de filosofia e fazendo um teatro filosófico como se faz em qualquer faculdade. Não será uma verdadeira filosofia.
Quando às vezes eu gasto meses examinando a cabeça de um Rodrigo Constantino, de um Sidney Silveira, de um camarada assim, sei o que estou fazendo. Não é que eu esteja dando importância a coisa que não tem, é que isso é a atmosfera cultural brasileira e não há outra. Se estivéssemos dentro de uma situação onde há um debate intelectual rico e poderoso como aqui nos Estados Unidos, não perderíamos tempo com autores de décima quinta categoria. Mas quando só temos autores de décima quinta categoria, quando eles são nosso ambiente e nossa situação sociocultural, é essa a situação que temos de compreender.
Sei que isso é muito difícil, porque quando o nível intelectual é muito baixo, os fatores intelectuais e cognitivos mesclam-se com os fatores da psicologia grupal e individual. Dessa forma, a simples compreensão das ideias não adianta, e teremos de compreender o que realmente aconteceu com as pessoas não só na escala individual, mas na escala social. Temos de tentar ver, em primeiro lugar, em que medida essa manifestação específica de imbecilidade, de ignorância e de mesquinharia reflete um fenômeno social mais geral, e tentar compreender esse fenômeno. É essa a nossa obrigação. Nunca se trata de discutir com imbecis, mas simplesmente de analisar a situação e tentar compreender por que isso acontece. Como é que o ser humano, feito para ser imagem e semelhança de Deus, consegue descer tanto? E tendo descido tanto, como é que faz para voltar?
Este, na verdade, é o grande problema da filosofia: se a filosofia é definida como amor à sabedoria, significa que não estamos identificados à sabedoria, mas, ao contrário, estamos identificados à ignorância, e a ignorância tem muitos graus que descem até uma profundidade infernal. O problema não é procedermos como se tivéssemos a posse atual da sabedoria e pudéssemos desfrutar dela, mas precisamente o contrário: estamos numa profundidade abissal, numa treva densa e compacta e, desde essa treva, aspiramos a uma sabedoria e vamos aprendendo gradativamente o trajeto que nos aproxima dela.
Então a pergunta foi: Por que Maquiavel? E por que formular a pergunta sobre Maquiavel exatamente como a formulei? O primeiro motivo para estudar Maquiavel no Brasil é porque o mesmo é uma referência constante para todos os nossos políticos e intelectuais. O conceito que se tem de Maquiavel é o de um realista, de um homem que abandonou os raciocínios idealísticos e a esfera dos valores e decidiu mergulhar no conhecimento da realidade. Aparentemente Maquiavel fez a mesma coisa que estou fazendo. Ele não se deixou enganar por valores elevadíssimos e símbolos sublimes, mas quis o conhecimento da realidade. É assim que se entende Maquiavel.
Na mesma medida, compreende-se Maquiavel como uma espécie de mestre da arte da política: alguém que deu algumas receitas práticas que, se seguidas, colocar-nos-ão no caminho certo para a conquista do poder. Por isso o número de admiradores de Maquiavel é muito grande. Eu nunca vi, em décadas de experiência no Brasil, alguém que desprezasse Maquiavel. Todo mundo o admira de uma maneira ou de outra, especialmente no meio político. Algumas máximas ou receitas de Maquiavel entraram tão profundamente na consciência ou inconsciência brasileira que se tornaram a chave explicativa de muitas condutas políticas. Por que o sujeito fez assim ou assado? É porque ele leu tal receita em Maquiavel e está tentando repeti-la.
Uma dessas receitas é aquela famosa máxima: "Se você não pode vencer, você deve aderir". Se você encontra um adversário mais forte e não consegue vencê-lo, então você adere a ele na expectativa de manipulá-lo ou de converter a política dele em sua própria vantagem ou, ainda, de mais tarde traí-lo e derrubá-lo. Isso no Brasil é norma geral. Vejam, por exemplo, nos últimos anos, após o PT ter conquistado todo os meios de poder que poderia desejar, como seus inimigos aderiram-lhe em massa. Aquelas pessoas que o PT mais condenava, a quem mais perseguiu, a quem mais acusou de todos os crimes, de repente apareceram como aliados do PT. Os exemplos extremos são Paulo Salim Maluf, Antônio Carlos Magalhães, José Sarney e Fernando Collor de Mello, que seriam a direita brasileira. Vejam a pressa com que a direita brasileira aderiu a um estado de coisas que ela mesma condenava e àqueles que por sua vez a condenavam. Esse comportamento é inspirado, sem dúvida, nessa máxima de Maquiavel, que não precisa nem ser lembrada como tal, pois já está impregnada na consciência e virou quase uma reação automática. Foi por coisas desse tipo que achei necessário esclarecer quem é realmente Maquiavel.
Não menciono no livro essas motivações socioculturais que me levaram ao estudo. Não estou repetindo nada do que está livro, estou fazendo uma espécie de prefácio.
A ideia da mentira e do fingimento também é muito prezada no Brasil. Dar uma boa impressão que seduza a platéia ou o público é considerado um sinal de enorme realismo, maturidade e domínio da situação política. Só que todas as pessoas que seguiram essa receita não conseguiram domínio de coisíssima nenhuma, apenas a pior derrota. Quando recordamos que Fernando Collor de Mello foi presidente da República e hoje é uma espécie de office-boy do PT, lembramos aquilo que se diz no Nordeste: saída de leão, chegada de cão.
Parece que as coisas não estão dando muito certo para esse pessoal que está seguindo Maquiavel. Desde logo parece haver alguma coisa errada em Maquiavel, e não estou falando do ponto de vista moral. Mesmo fazendo abstração do fator moral e lendo Maquiavel só como se fosse um tratado de técnica política, parece que a técnica não está funcionando. Daí me surgiu esta hipótese: e se houver um engano geral com relação a Maquiavel? Para responder a isso era preciso estudar Maquiavel desde um ponto de vista muito singular, a partir do qual me parecia --- e hoje eu sei --- que ele nunca tinha sido estudado.
Em geral, quando se estuda Maquiavel o ponto de vista mais comum é aquele adotado por Sir Isaiah Berlin num famoso ensaio: o da influência de Maquiavel sobre o pensamento político posterior. Maquiavel é avaliado pelo legado que deixou ou por aquilo que os outros entenderam a respeito dele. Dessa forma, Maquiavel é apontado como precursor do fascismo, do comunismo, da democracia moderna, do nacionalismo e de milhões de outras coisas. No estudo de Sir Isaiah aparece uma resenha dessas influências deixadas.
Por uma coincidência feliz só li o ensaio de Sir Isaiah depois de ter terminado este livro, e vi que o interesse que movia o autor era simetricamente oposto ao meu. O que eu queria saber não era o que Maquiavel tinha deixado para os outros, ou seja, como as diferentes épocas haviam entendido e absorvido Maquiavel. O que me interessava era o horizonte de consciência do próprio Maquiavel, isto é, o que Maquiavel enxergava e o que não enxergava. Isso é uma coisa fácil de investigar uma vez que se formula o problema corretamente. Eu queria saber o que era o pensamento de Maquiavel, sua concepção considerada em si mesma, em sua origem, e tomando como extremo limite o momento em que Maquiavel morreu. Durante sua vida, a pessoa fica sabendo de algumas coisas, entende algumas coisas e outras não enxerga e não entende. Era importante investigar isso para descascar as sucessivas camadas lendárias construídas em cima de Maquiavel e saber quem era o próprio Maquiavel no fim das contas, não no sentido de fazer uma interpretação pura do seu pensamento --- o que na verdade só ele mesmo poderia fazer ---, mas no sentido de mapear o horizonte de consciência, ou seja, quais fatos ou dimensões da realidade Maquiavel enxergava com clareza e quais, embora estivessem na frente do seu nariz, ele não estava enxergando.
Já expliquei muitas vezes esse problema do horizonte de consciência, até no curso de Filosofia Política que dei na Universidade Católica do Paraná --- evidentemente é um conceito fundamental da ciência política ---. O horizonte de consciência é o conjunto das informações disponíveis e de suas articulações mútuas. Em cada momento da sua vida, há um conjunto de coisas que você sabe e nas quais pode basear suas decisões e há outras coisas que você ignora, mas que, de algum modo, exercem uma influência sobre suas decisões na medida que a ignorância de um dado faz parte do seu horizonte de consciência, ou da forma da sua mente.
Cito como exemplo o famoso caso da Batalha de Waterloo, em que uma fração do exército austríaco bateu em retirada e Napoleão ordenou a um de seus generais que perseguisse aquele exército e, se possível, matasse todos. Aconteceu que o exército austríaco deu a volta no campo de batalha e juntou-se ao exército da Prússia, que estava do outro lado, para fazer um ataque maciço a Napoleão. O general a quem Napoleão deu a ordem seguiu-a literalmente até o fim. Quando viu que, em vez de os camaradas baterem realmente em retirada, estavam dando a volta, normalmente seria de se esperar que ele voltasse e dissesse: "Até aqui a perseguição faz sentido, mas daqui para adiante não faz. Tenho de voltar e reforçar o exército de Napoleão, porque ele vai sofrer um ataque maciço da Áustria e da Prússia ao mesmo tempo". Mas essa ideia não ocorreu ao sujeito e ele continuou indo atrás dos austríacos. Evidentemente, os austríacos chegaram e se juntaram aos exércitos prussianos antes que seus perseguidores os alcançassem. Quando os perseguidores os alcançaram, eles já tinham feito o ataque frontal às tropas de Napoleão causando um estrago dos diabos. E essa foi realmente a causa fundamental da derrota de Napoleão. Então o que vemos aí? A influência de um dado ignorado. Napoleão não sabia o que aquele general ia fazer. Ele não levou em conta ou talvez realmente não soubesse que aquele general, embora fosse um bravo soldado, era um homem sem muita imaginação, e que se você mandasse fazer uma coisa, ele a faria até o fim e não saberia modificar a ordem de acordo com as circunstâncias. Esse é um exemplo de como o fator ignorado tem uma força determinante no seu horizonte de consciência e, consequentemente, nas suas decisões, no círculo das suas ações possíveis e na sua capacidade de ação.
Então esta foi a minha pergunta: Qual o horizonte de consciência de Maquiavel? O que Maquiavel realmente sabia, compreendia e o que ele radicalmente não enxergava? É claro que para isso tive de ler as obras de Maquiavel extensamente e tentar refazer o status quaestionis. Sem o status quaestionis nada se pode estudar no mundo da história da filosofia ou da história das ideias, porque é absolutamente impossível que todas as perguntas e perspectivas necessárias apareçam numa só cabeça. "A verdade é filha do tempo", dizia Santo Tomás de Aquino. Antes de atacar diretamente um assunto, você precisa saber o que as outras pessoas já descobriram anteriormente.
Tratei de fazer uma história das interpretações de Maquiavel mais ou menos como Sir Isaiah, só que com um método completamente diferente. Ele estava perguntando o que sobrou de Maquiavel na cabeça das sucessivas gerações, e eu estava justamente querendo retirar aquilo que tinha sobrado para ver onde estava o próprio Maquiavel no começo da história. Essas sucessivas interpretações de Maquiavel são muito desencontradas e tão contraditórias que um dos grandes intérpretes de Maquiavel, Benedetto Croce, disse: "Maquiavel é um enigma que jamais será resolvido". Mas veja que interessante! Se o sujeito é um enigma que jamais será resolvido, isso quer dizer que radicalmente não o estamos entendendo. E se não o estamos entendendo, por que o seguimos? Por que um autor que reconhecidamente não entendemos tem tanta influência prática? Isso parecia refletir um profundo desejo de autoengano da parte de líderes políticos e intelectuais que se proclamavam discípulos ou admiradores de Maquiavel.
Quando, por exemplo, Antonio Gramsci, ao mesmo tempo seguindo e modificando a proposta política de Maquiavel, troca o personagem individual de O Príncipe por um personagem coletivo, que é o partido comunista, dizendo que só quem pode aplicar aquela estratégia de Maquiavel para a conquista do poder é uma organização de massas --- não um indivíduo, como na Renascença --- e cria toda a estratégia do que ele chama a "revolução cultural", há uma reflexão que nenhum gramscista jamais fez: o conjunto da revolução cultural é uma técnica de engodo; é um engano. Você vai fazer uma coisa parecendo que está fazendo outra. Quando Gramsci diz que o partido deve chegar a ter o poder onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino, quer dizer que o partido deve estar no comando de toda a vida cultural, social e política sem que ninguém o saiba. Isso é uma engenharia da inconsciência e quer dizer que a revolução cultural é, na verdade, uma revolução incultural. A revolução cultural só pode dar certo se ninguém entender o que está acontecendo, a não ser aqueles dois ou três engenheiros sociais do partido que estão comandando o processo. Nem os próprios agentes envolvidos precisam ou podem compreender, porque se o agente --- digamos, o militante --- está compreendendo o processo inteiro, então o poder do partido já não é mais invisível e começa a ser objeto de discussão. E é exatamente disso que se trata na estratégia de Gramsci.
Diante disso, eu me perguntava: será que Antonio Gramsci estava consciente de que, com sua estratégia, ele não criaria uma cultura superior, mas uma situação de imbecilidade coletiva absolutamente desastrosa, e que uma vez consumado o processo, talvez não tivesse volta? E vejam que quando me fiz essa pergunta, há muitos anos atrás, a aplicação da estratégia gramsciana no Brasil não estava em um estado tão avançado quanto está atualmente. Hoje sabemos que a resposta a essa pergunta é simplesmente "sim". A aplicação maciça da estratégia gramsciana destrói completamente a cultura superior sem poder colocar outra no seu lugar. Jamais! Então, entendemos que o horizonte de consciência de Antonio Gramsci terminava na formulação da estratégia. Ele não era nem capaz de conceber as consequências do que ia fazer, o que já mostra que, por engenhoso que fosse enquanto estrategista --- era, por exemplo, considerado um filósofo da história ---, na verdade era muito superficial, uma mente pequena no fim das contas.
No livro que publiquei em 1993, A Nova Era e a Revolução Cultural, eu mencionava o fato de que Antonio Gramsci, de certo modo, aplicava a estratégia em sua própria família. Ele pegava os contos de fadas, dava-lhes um sentido político-ideológico e contava para sua filha. Ele estava doutrinando a sua filha através de contos de fadas. Ora, os contos de fadas são depósitos de conhecimentos simbólicos e místicos de uma importância extraordinária. Neles estão depositados, às vezes, alguns dos dados psicológicos e espirituais mais relevantes para a humanidade. Isso é uma coisa que todo mundo sabe. No mesmo instante em que Antonio Gramsci estava estudando essas coisas, Carl Jung estava cavando o depósito desses mitos, lendas e contos de fadas e descobrindo ali as coisas mais extraordinárias sobre as estruturas profundas da psique humana. Isso não quer dizer que Jung acertasse em tudo, muito pelo contrário, mas ele estava fazendo com esse material exatamente o contrário do que Antonio Gramsci estava fazendo. Jung estava tentando descobrir a riqueza interna e Antonio Gramsci estava tentando trocar essa riqueza por um objetivo meramente pragmático, que era a doutrinação da cabecinha de sua própria filha. Em suma, ele estava destruindo a inteligência dela e não tinha a menor consciência disso.
Por esses dados, você vai aos poucos mapeando o horizonte de consciência do indivíduo, traçando a linha entre o que ele enxerga, o que ele entende, e o que ele nem enxerga nem entende. Foi exatamente isso que tentei fazer com Maquiavel. Para fazer isso, precisei do auxílio de todos os grandes estudiosos de Maquiavel ao longo do tempo. O único que faltou foi Sir Isaiah. Veja como são as coisas: embora eu tivesse esse livro na prateleira, estava com medo de lê-lo --- é que tenho horror de ler traduções brasileiras do que quer que seja, porque é sempre um risco formidável que se corre. Lembro-me, por exemplo, que quando li a tradução brasileira da Nova Ciência da Política, de Eric Voegelin, feita pelo ministro Viegas, tinha de tentar retraduzir mentalmente aquilo para o inglês para ver se entendia alguma coisa ---. Eu tinha a edição de Sir Isaiah em português e não sabia que havia ali coisas tão importantes sobre Maquiavel. Só que, quando li, percebi que para o estudo que fiz aquilo já não influía nem contribuía porque a pergunta que ele lançava era completamente alheia à minha. A leitura só valeu depois como superfície de contraste.
Ao longo desses estudos percebi que as versões de Maquiavel que tinham sido desencavadas por esses vários estudiosos eram totalmente contrastantes, totalmente contraditórias, chegando a uma oposição de 180 graus. Onde alguns viam Maquiavel como o mais desprezível imoralista da história humana, outros, ao contrário, viam-no como autor de elevadíssima moralidade, como um pedagogo. Não era possível que essas duas pessoas fossem a mesma. Tinha algum problema aí. Mas cada um desses estudos, feitos por autores como Lord Macaulay, Leo Strauss, Benedetto Croce, descobria alguma coisa importante sobre Maquiavel. Descontando as contradições que apareciam entre eles, cada um deles, tomado isoladamente, fornecia um dado importante que podia ser incorporado, então, à minha imagem de Maquiavel, formando aos poucos, pelo contraste entre as diferentes linhas contraditórias, uma espécie de figura no espaço. Você projeta uma linha daqui, outra dali, outra de cá etc., de repente se forma uma figura. E essa figura era o que havia em comum entre todas aquelas visões contrastantes. Claro que nenhuma delas apreendia essa figura no todo. Cada uma só destacava uma linha. Mas a confrontação dessas contradições era a equação do problema. Então, praticamente, do simples status quaestionis já emergia a figura de Maquiavel que eu estava procurando. Se você pega o que cada um viu em Maquiavel e traça essas várias linhas, o que aparece no meio das linhas? O próprio Maquiavel. O que me restava fazer era confrontar esse Maquiavel, que aparecia pela articulação das contradições, com o que estava no texto de Maquiavel e com o que se sabia da biografia dele.
Não posso dizer que esse método seja absolutamente infalível, mas não há outro. Você tem de fazer assim com qualquer autor que vá estudar seriamente. Em primeiro lugar, você tem de estar consciente da pergunta que fez, ou seja, você não vai estudar o autor só porque ele é importante, mas vai fazê-lo em busca de alguma coisa. Você não pode esquecer que, por exemplo, Aristóteles nunca escreveu nada sobre a filosofia de Aristóteles. Aristóteles escreveu sobre a alma, sobre a geração dos animais, sobre a estrutura do Estado, sobre a moral etc., ou seja, sobre realidades e problemas que lhe interessavam. Ele nunca fez um estudo sobre a filosofia de Aristóteles. Logo, se você vai estudar um negócio chamado "a filosofia de Aristóteles", de algum modo estará estudando uma coisa que não existe, porque a filosofia de Aristóteles é constituída de uma série de visões sobre uma coisa que não é a filosofia de Aristóteles. A única maneira de estudar Aristóteles é olhar para os objetos dos quais ele falou. Assim você entenderá as falas dele em relação a esses objetos.
Se você pegasse tudo o que se escreveu no mundo sobre elefantes sem levar em conta que existe uma espécie animal real chamada elefante, que não depende de nada do que se escreveu sobre ela, sua visão final do elefante seria algo puramente verbal. O que se diz de um objeto deve ser compreendido à luz da experiência que você mesmo tem do objeto. À luz da sua experiência, você pode compreender algo da experiência que outras pessoas tiveram, porque esta está subentendida em tudo aquilo que elas disseram a respeito. Por exemplo, quando você lê um romance, não lê somente palavras, mas reinventa uma situação humana segundo a pauta que o romancista lhe fornece. Ao ler Crime e Castigo, você imagina cenas como se estivesse transformando o romance numa peça de teatro ou como se estivesse observando fatos da realidade. Bom, se você não faz isso, o romance será apenas uma estrutura verbal para você. Mas a estrutura verbal do romance não seria possível se o autor da história não tivesse imaginado situações humanas reais, sem as quais o romance não teria importância moral para ele. Do mesmo modo, ao estudar um livro de filosofia, você tem de fazer isso com um olho voltado para um lado e outro voltado para o outro. Um voltado para o texto e o outro voltado para a realidade da coisa da qual se está falando.
O que acabou de ser dito já é uma advertência que todo professor de filosofia deveria levar em conta: não se pode estudar um texto em si mesmo. Não existe texto em si mesmo. Se o texto existisse em si mesmo, apenas como uma estrutura verbal hipotética, não poderia sequer ser impresso, porque o livro, materialmente considerado, é um objeto físico que não faz parte do texto. Se, para o texto chegar a você, foi necessário imprimi-lo num papel, num objeto físico, é porque entre o texto e o seu leitor existe a mediação do mundo físico, que é o mesmo no qual estão os objetos aos quais o texto se refere.
No ensino da filosofia no Brasil, praticamente nunca vi o senso da atenção à realidade dos próprios objetos. Acompanho muito essas discussões que aparecem no Orkut, Facebook etc. porque são um indício importante do estado de coisas na sociedade e na cultura. Essas discussões são uma amostragem até melhor do que se poderia desejar, porque são milhares de pessoas discutindo ali. Pelo que elas estão discutindo vemos o que os estudantes brasileiros sabem. Vemos ali uma atenção quase que obsessiva aos textos e às ideias e pouquíssima atenção aos objetos dos quais essas ideias tratam. Encontramos aí uma doença a que eu chamo "doutrinarismo".
Doutrinarismo consiste em estudar e comparar doutrinas para verificar se uma confere ou não com a outra, isto é, se estão em acordo ou em desacordo, mas sem a mediação da experiência pessoal do objeto. Mas acontece que as várias doutrinas se referem a objetos. Elas foram produzidas no mesmo mundo onde estão disponíveis os objetos dos quais tratam. Por exemplo, se as pessoas escreveram sobre o Estado, suponho que elas viviam em algum país e que ali havia uma organização estatal, ou seja, o Estado não era só um objeto que existia dentro da doutrina delas, mas fora também. Se o Estado não existisse fora da doutrina, para que se faria uma doutrina a respeito de uma coisa não existente?
A realidade é a mediadora entre as doutrinas. Quando consideradas sob o aspecto da realidade, às vezes duas doutrinas que parecem estar dizendo coisas muito diferentes estão na verdade dizendo a mesma coisa a partir de duas experiências diferentes. Mas se você compara apenas as doutrinas, quem será o mediador entre elas? Você mesmo o será, colocando-se como juiz acima delas e julgando-as em si mesmas. Mas esse papel, que você está atribuindo a si mesmo, não lhe cabe; cabe à realidade! O objeto é que deve ser o mediador entre as doutrinas que falam a respeito dele, não o leitor que chega depois. Afinal, você é apenas mais um leitor, e por que o seu ponto de vista haveria de ser tão privilegiado assim em relação aos demais leitores? Nas "discussões filosóficas" que observamos pela internet vindas do Brasil, essa carência de referência à realidade é um negócio muito pronunciado.
Essa doença, que chamamos de doutrinarismo, é característica das culturas subdesenvolvidas. E o que é uma cultura subdesenvolvida? É uma cultura que vive de importação. Quando você importa as coisas, recebe-as tal como chegaram e não como surgiram no seu ponto de origem. Mesmo que as compreenda literalmente, às vezes você não saberá que função desempenhavam na origem e por que apareceram, isto é, em resposta a que problemas. Pode ser que você leia esses produtos importados como se fossem uma resposta direta à sua situação, quando não são. Isso é evidentemente uma causa de alienação. O indivíduo viverá num mundo de ideias que não têm nada a ver com a situação real em que está e muito menos com a situação real dentro da qual as ideias emergiram. Nesse caso, a forma interna das doutrinas, sua ordem intelectual interna, transforma-se numa espécie de "coisa em si". O sujeito passa a comparar doutrinas com doutrinas e entrar em discussões doutrinais infinitas que não vão levar absolutamente a nada.
Por exemplo, no curso dessa discussão com o Sr. Sidney Silveira eu via que muitas vezes ele pegava doutrinas escolásticas e as comparava com filosofias modernas, mas ali faltava alguma coisa --- e não é só ele que faz isso; não estou falando do Sidney Silveira em particular, isso é quase norma geral ---. As doutrinas escolásticas eram expostas em gêneros literários que já estavam bem desenvolvidos e consolidados na época, especialmente as Summas. As Summas dão um tratamento tratadístico muito ordenado às questões, onde se levantam certas perguntas, faz-se o repertório das respostas possíveis, confrontam-se umas com a outras e chega-se a uma conclusão final que se chama "sentença", como um juiz que emite uma sentença no fim de um processo. Entendia-se que essa sentença expressava a realidade, a verdade tal como o autor a tinha enxergado. Nesse sentido, uma sentença que está escrita num livro de filosofia escolástica podia ser confrontada com uma outra sentença num outro livro, independentemente da discussão que havia precedido a produção da sentença, assim como você pode comparar duas sentenças judiciais sem precisar examinar todos os autos do processo. Acontece que, quando veio a modernidade, foram criados inúmeros gêneros literários diferentes nos quais se expressa a filosofia. O preferido na filosofia passou a ser o gênero ensaístico, que foi uma vez definido por um grande estudioso, Pedro Laín Entralgo, como "a teoria menos a prova explícita". Ou seja, há uma prova implícita, que teria de ser desenvolvida e que idealmente pode ser desenvolvida, mas que não está ali. Sendo assim, como comparar uma afirmação que tirei de um gênero ensaístico com outra afirmação que encontrei sob a forma de uma sentença conclusiva numa Summa escolástica? Só há um jeito: tenho de me reportar a uma realidade a que as duas idealmente remetem. Não posso comparar sentença com sentença.
Observe a seguinte comparação: "Santo Tomás de Aquino diz tal coisa e este autor moderno diz tal outra. Isso não confere com o que Santo Tomás de Aquino diz, portanto é heresia". Trata-se de uma ocupação perfeitamente inútil e, na verdade, impossível e utópica, porque gêneros literários diferentes têm valores semânticos diferentes. No caso escolástico, por exemplo, cada termo era definido de uma maneira uniforme, entendida por toda a comunidade dos letrados. Os escolásticos escreviam para outros escolásticos. Aliás, eles se chamavam escolásticos por causa disto: era uma discussão que se dava dentro das escolas, entre profissionais que tinham recebido a mesma formação e que usavam as mesmas técnicas argumentativas altamente formalizadas. Mas de repente eu pego um ensaio escrito por Jean-Paul Sartre, que não recebeu essa formação, que escreveu num estilo altamente individualizado, com uma semântica completamente diferente. Como posso comparar uma coisa com a outra? Tenho de apelar às realidades a que eles estão se referindo e, a partir da minha experiência dessa realidade, calcular o diferente peso semântico de uma sentença formal e de uma frase solta no meio de um ensaio. A coisa é muito mais trabalhosa do que parece. Todavia, dada a propensão doutrinarista que existe no meio subdesenvolvido, as pessoas simplesmente ignoram essa exigência e lêem os filósofos em busca de concordâncias e discordâncias para dizer quem está errado e quem está certo. Digo que essa é uma ocupação altamente ociosa porque o que interessa não é saber quem está certo e quem está errado, mas o que eles podem ensinar a mim?
Por exemplo, na resenha que fiz dos estudos sobre Maquiavel, apresento cada um mostrando também suas diferenças de perspectivas, mas não julgo nenhum. Não estou dizendo que um está mais certo e outro está mais errado. Não estou interessado no que eles pensam de Maquiavel, e sim no que posso saber a respeito de Maquiavel. Não me interessa julgar essas várias perspectivas em si mesmas, mas articulá-las como uma rede de contradições que me faça ver um Maquiavel de verdade no meio. Não vou perder tempo com confrontações doutrinais porque não estou interessado na confrontação de doutrinas e sim na realidade a que elas se referem; e essa realidade era o problema mesmo do horizonte de consciência de Maquiavel.
Muitas dessas contradições surgiam, em primeiro lugar, de contradições que estavam na própria obra de Maquiavel. Em um lugar ele dizia uma coisa, em outro dizia outra e, frequentemente, não dava o menor sinal de ter percebido a contradição. Claro que a contradição é uma coisa que acompanha o pensamento humano desde que ele existe. Nossa mente é essencialmente dialética. Pensamos por confrontações de hipóteses. Temos de discordar de nós mesmos se queremos entender alguma coisa. Temos de experimentar pensar a coisa pelo lado A, depois pelo lado B, pelo lado C, e ao invés de fugir das contradições, temos de alimentá-las até que o seu cruzamento nos mostre alguma coisa. Raymond Abellio dizia que você deve acumular as contradições até chegar a uma tensão intolerável. A coisa ficará cada vez mais enigmática e, na hora em que a tensão ficar intolerável, aí é que aparecerá a forma do objeto na sua frente, às vezes com uma claridade extraordinária.
Notei, por exemplo, aquela famosa cena em que Maquiavel, no exílio, diz que passa o dia jogando baralho com as piores pessoas da cidade, vagabundos que jogam baralho, bebem demais, xingam-se uns aos outros e acusam-se de trapaça no jogo. Ele fica o dia inteiro naquela vida ociosa e, depois, à noite, veste uma roupa elegante e entra na biblioteca, onde estão os clássicos da antiguidade. Aí ele vai para um outro mundo, sublime. E todo mundo acha isso muito bonito. Já vi essa cena citada em muitos lugares com uma ressonância que chega a ser poética. Aí o mundo da filosofia aparece como uma fuga da mesquinharia ambiente. Mas que coisas Maquiavel estava lendo e aprendendo lá? Ele não estava estudando o mundo dos arquétipos platônicos ou a gnoseologia de Aristóteles etc., mas todos os truques mais sórdidos da política: como subir na vida traindo os seus amigos, como às vezes você é obrigado a envenená-los --- convidar o sujeito para um banquete e envenenar o camarada --- e assim por diante. Era isso que ele estava estudando lá. Logo, aquilo que havia entrado, por assim dizer, na tradição das figuras literárias como um símbolo de uma ascensão do mundo mesquinho para um mundo sublime era, na verdade, o contrário. Afinal de contas, se você pensar na escala moral, não há crime algum em dois bêbados que jogam baralho e xingam-se uns aos outros. Há apenas uma falta de educação. Maquiavel subia desse mundo para o mundo do satanismo mais descarado. Ele não estava subindo; estava descendo! Estava afundando-se num mal incomparavelmente maior do que aquela banalidade dos jogadores de baralho.
Vejo que essas inversões aparecem muitas vezes em Maquiavel. Por exemplo, quando ele condena o Cristianismo por ter perdido sua inspiração originária, por se ter afastado da vocação primeira do Cristianismo primitivo e ter-se corrompido. Essa é uma figura de linguagem que atravessa os séculos. Todo mundo observa o estado corrupto da religião cristã e sente a nostalgia de um cristianismo primitivo que, na verdade, ninguém conhece e que foi apenas idealizado. Se você investigar, verá que tinha tanta sacanagem lá quanto em outros tempos. Olhando apenas o número de heresias que apareceram de dentro das primeiras comunidades cristãs, você vê que aquilo foi uma briga de foice. E quando surgiam esses conflitos, as pessoas às vezes partiam para a agressão e matavam umas às outras. Havia inúmeras pessoas enganando o pobre público, apresentando como se fosse doutrina da Igreja Católica uma coisa que era completamente diferente. Logo, o cristianismo primitivo não foi um mundo paradisíaco só de santos. Havia ali tanto santos quanto trapaceiros, como em qualquer outra época da história. Mas, de qualquer modo, a imagem do cristianismo primitivo como uma coisa paradisíaca reaparece até mesmo na teologia da libertação. E é uma imagem --- um topos --- que atravessa a história do ocidente e aparece também em Maquiavel.
Mas vejamos o que ele quer dizer exatamente com essa decadência cristã. O que foi que o cristianismo perdeu? Mais adiante, vemos que ele apresenta a religião como sendo essencialmente um engodo destinado a ludibriar a humanidade mediante a promessa de um outro mundo inexistente, de modo a induzir as pessoas a se comportarem como as autoridades religiosas querem. Então, o que ele quer dizer com a "decadência do cristianismo"? Quer dizer que o cristianismo perdeu seu poder de engodo. Antigamente enganava melhor, agora já não engana tão bem. Isso era o que ele queria dizer com "decadência".
Aqui novamente temos uma visão invertida. No entanto, essa visão invertida é expressa em termos que dão a impressão de que ele está realmente se referindo a uma perda da espiritualidade, quando na realidade está se referindo à perda do espírito de porco. Perda que, por outro lado, ele não acha tão real assim, porque em outros lugares acusa a Igreja de ainda estar enganando as pessoas.
Do que ele está falando? Ele realmente não sabe do que está falando. Afinal de contas a Igreja perdeu essa capacidade de engodo ou a aumentou? Esses tipos de contradições não são contradições lógicas, são contradições de fato. Ele descreve uma situação de fato de duas maneiras que são absolutamente contraditórias. Aos poucos, este amálgama de contradições e de absurdidades começou a me aparecer como único conteúdo da filosofia de Maquiavel. Não havia mais nada, somente isso.
Por exemplo, nenhum dos estudiosos havia levantado este problema, mas foi uma das primeiras coisas que me apareceram: Maquiavel diz que o príncipe, para subir na vida, tem de usar o apoio de todas as pessoas que possa e, depois, quando chegar ao poder, tem de matar essas pessoas ou se livrar delas de alguma maneira. Ele tem de trair e se livrar de seus colaboradores. Mas entre os vários colaboradores, quem é mais importante do que aquele que concebeu o plano para a conquista do poder, ou seja, o próprio Maquiavel? Isso quer dizer que se alguém lesse Maquiavel e aplicasse sua estratégia, o seu maior interesse, tão logo chegasse ao poder, seria matar o tal do Maquiavel e sumir com os seus escritos. Isso é uma consequência óbvia, que está dada ali no próprio texto de Maquiavel.
Mas ninguém seguiu a receita de Maquiavel, em primeiro lugar, por aquilo que já observou Jean Bodin --- este sim era um homem realista --- quando disse que não é possível fazer uma política baseada somente na malícia, na mentira e na sacanagem. Isso não existe. É necessário, digamos, que o bem e o mal se equilibrem de alguma maneira e que mesmo a mentira esteja dentro de um quadro determinado pela verdade. Senão, você mesmo se deixa enganar pela sua mentira e, ao invés de ser o grande espertalhão maquiavélico, transforma-se no primeiro dos trouxas. É exatamente o que acontece com esses políticos brasileiros que querem ser maquiavélicos. O destino desses políticos --- Magalhães, Maluf etc. --- foi para mim uma coisa altamente pedagógica. Vê-se que esta política de querer ser sempre o astuto, o espertalhão, a pessoa que está sempre fingindo, só o leva a terminar mal.
Como termina o próprio Maquiavel? Ele começou mal, passou a sua vida mal e terminou mal. Daí fui vendo quais foram as políticas às quais Maquiavel aderiu durante sua vida. Ele sempre esteve do lado perdedor. Mas se o sujeito era um estrategista tão maravilhoso assim, se ele tem a arte de como chegar ao poder, como é possível que não soubesse discernir qual é o sujeito que tem a perspectiva de chegar ao poder? Ele, de fato, não conseguia discernir. Muitos dos seus escritos foram feitos para agradar determinadas pessoas que, no seu entender, poderiam chegar ao poder e ajudá-lo de alguma maneira. Em geral, essas pessoas não chegavam a lugar algum, como César Bórgia. Maquiavel apostou que César Bórgia queria derrubar o papa e criar um novo sistema no lugar do papado. Essa ideia jamais passou pela cabeça de César Bórgia que, aliás, era um incompetente, um coitado, que terminou também muito mal. Então vemos um coitado apostando em outro coitado que termina muito mal. E as pessoas dizem que ele é um mestre do realismo político? Não é possível; aqui há alguma coisa.
O que há por trás disso não contarei para vocês, porque está no livro. Estou apenas tentando demonstrar o que me motivou a empreender este estudo e qual a linha metodológica seguida. Acho --- e não é por estar em minha presença --- que cheguei a resultados bastante sólidos. Acho que ali está demonstrado que o mundo ideológico de Maquiavel é uma confusão dos diabos que ele mesmo jamais entendeu, nem fez a menor questão de entender, porque a motivação com que escrevia isto ou aquilo não era dar efetivas receitas de política, mas simplesmente agradar, lisonjear certas pessoas, em busca de favores até pequenos: um empreguinho, um subsídio... Não deixa de ser irônico que ele terminasse sua vida, após ter feito mil planos para derrubar o papado, vivendo dos favores do papa, no momento em que parou de dar receitas de política e começou a escrever a história de Florença. E consta que, no final da vida, arrependeu-se, confessou-se e morreu na fé. Isso é um depoimento do filho dele. Não sabemos se é verdade.
O próprio Maquiavel diz: "não acredito em nada do que digo e sempre que encontro uma verdade, trato de encobri-la sob tantas camadas de mentira, que depois nem eu mesmo a reconheço." Vemos que todo o universo de Maquiavel é o de uma imensa psicose, onde a fuga da verdade se apoia num conjunto de estratégias tão variado para mentir para si mesmo, que no fim ele próprio não pode entender o que escreveu, sendo ele mesmo um enigma.
Estudar Maquiavel é estudar uma psicose. Uma psicose pode ser compreendida? Até certo ponto sim. Para compreendê-la totalmente seria preciso que ela tivesse uma inteligibilidade para o próprio psicótico, que é exatamente o que falta. Conseguimos acompanhar Maquiavel até certo ponto e dali para frente, não é que não possamos entendê-lo, é que não há mais o que entender. Já não é mais uma ideia ou uma doutrina sobre a realidade, é um sintoma.
Depois de séculos de discussão sobre Maquiavel, acho que sou o primeiro autor que chegou a esta conclusão: não vale a pena estudar isto. Isto é apenas uma psicose. Não há nada para você aprender aqui, a não ser que você esteja estudando para entender um período histórico que se caracterizava pela mais extrema confusão, onde praticamente ninguém estava entendendo nada. E Maquiavel era só mais um que não estava entendendo nada. Foi essa a ideia do livro.
Queria lembrar mais um detalhe. Estava falando do doutrinarismo como um sintoma característico da cultura subdesenvolvida, mas o doutrinarismo não aparece sozinho. Ele é uma espécie de reação a outro fenômeno patológico, que chamaremos de "localismo bárbaro". Localismo bárbaro é o culto de qualquer coisa que tenha acontecido, pelo simples fato de que aconteceu no lugar onde você nasceu, independentemente de a coisa ter ou não qualquer valor. Se observarmos, as universidades brasileiras estão repletas de colecionadores de miudezas sem nenhuma importância, pelas quais eles só se interessam porque aconteceu perto da casa deles, ou porque lhes lembra alguma coisa da sua porca juventude, e assim por diante. Por exemplo, a bibliografia que existe sobre a história do samba é uma monstruosidade. Cada sambista tem dez, vinte, trinta biografias diferentes, mas se você procurar a biografia do Mário Ferreira dos Santos, não existe.
Quando esse culto folclorístico das miudezas é levado às suas últimas consequências --- por exemplo, na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura chegou-se a proclamar oficialmente o samba do Recôncavo Bahiano como valor universal e, em outro momento, Luís Augusto Fisher chegou a escrever que Chico Buarque de Holanda é um artista das dimensões de Michelangelo Buonarroti --- o amesquinhamento da inteligência provoca uma espécie de reação, um desejo de fugir para o universal e elevar-se. Parte-se em busca de verdades e valores universais, achando-se que se vai saltar diretamente para dentro deles sem passar, por assim dizer, pela absorção da circunstância concreta onde se está. Então, a própria pessoa transforma-se numa espécie de abstração. Vive-se num mundo de ideias gerais que não têm nenhuma conexão com a conduta real de cada um e com os fatos reais da vida. É claro que se trata de um caso de alienação extremamente grave.
A percepção de quais são as categorias com que você está lidando, a que gênero pertencem os fatos que você está analisando, é uma espécie de capacidade humana natural que tem de ser aperfeiçoada pela disciplina. Quando você lança uma pergunta filosófica, a pergunta pode estar imensamente deslocada com relação aos fatos, mas em geral sua percepção espontânea está adequada a eles. A percepção humana não confunde facilmente, por exemplo, uma essência com um acidente, mas seu pensamento, sua doutrina, pode confundir. Quando você olha, por exemplo, um gato, não pensa que aquilo é uma coisa meramente adjetiva. Você sabe que é uma substância real vivente. Todavia, na esfera do pensamento você pode, em seguida, fazer as maiores confusões a respeito. Por causa desses vícios da cultura subdesenvolvida, você pode chegar ao ponto de confundir a sua própria percepção. Isso quer dizer que você pode estar continuamente olhando as coisas sob gêneros ou categorias totalmente inapropriados. Não se trata de erros de lógica ou de raciocínio. É um erro de percepção e de nomeação. Você está dando nomes errados às coisas, olhando-as sob categorias que não são apropriadas. Isso aqui é uma coisa geral. No Brasil de hoje é uma coisa absolutamente impressionante, e depois que passa de um certo ponto, não creio que seja possível corrigir isso pela educação, porque já se transformou em uma espécie de sintoma neurótico. Um dos objetivos deste curso é vacinar as pessoas contra isso.
Quando você adquire alguma cultura, começa a ler livros de filosofia, literatura e tal, cria um certo peso de conhecimentos e esse peso oprime sua alma. A estrutura da sua personalidade não foi feita para aguentar aquilo: ela nasceu e foi desenvolvida dentro desse meio mesquinho, tacanho etc. Você é fruto ou produto da própria educação que você odeia. Quando você começa a adquirir cultura, a primeira coisa que acontece é que o peso do conhecimento adquirido o neurotiza. Você cria inadequações de comportamento. O que fazer? É necessário parar aquele desenvolvimento intelectual e cuidar agora da sua alma, da sua personalidade. É hora de fazer os ajustes necessários para que você possa arcar com os conhecimentos adquiridos. É por isso que neste curso temos um acelerador e um freio. Vamos avançar no conhecimento, mas de vez em quando vamos frear, voltar e pensar: "espera aí, o que estou fazendo aqui, quem sou eu, o que estou realmente querendo, onde está a minha própria voz no meio disso?" e assim por diante. Se você não fizer isso, cai naquela norma que me ensinou o Dr. Juan Alfredo César Müller quando dizia: "crescer e não rever a história da sua própria alma é candidatar-se a uma neurose". Ou seja, simplesmente progredir no mundo do conhecimento não quer dizer nada. Você vai se transformar, por assim dizer, numa alma atrofiada em cima da qual colocou um punhado de ideias eruditas. Você vai ficar, simplesmente, uma pessoa feia.
Por exemplo, considere o indivíduo que está discutindo questões filosóficas mas escreve numa linguagem de mal gosto --- refiro-me a uma linguagem pomposa, professoral, descabida, que às vezes chamo de linguagem cardinalícia ---. Isso é comum no Brasil de hoje, mas há quarenta ou cinquenta anos atrás, as pessoas tinham muita consciência disso. Se uma coisa era escrita numa linguagem literária inapropriada, as pessoas largavam imediatamente, pois ficava na cara que não se tratava de alguém de verdadeira cultura, mas apenas de um imitador. Essa consciência, hoje, se perdeu quase por completo. O pessoal escreve sobre altas filosofias naquele estilo que Bruno Tolentino chamava estilo penteadeira de velha: um negócio pomposo, empoladinho, bonitinho. Que coisa mais feia! As pessoas não percebem que isso é um acinte ao senso estético de quem tem algum? O senso estético reflete sua percepção da realidade.
Vocês no Brasil são criados em um dos meios esteticamente mais feios que existe no universo. Quando você percorre os Estados Unidos de ponta a ponta é claro que encontra algumas monstruosidades arquitetônicas, mas em geral as cidades são muito bonitas, com uma estética coerente. Isso não quer dizer que todas as casas sejam feitas no mesmo estilo, mas há um certo número de estilos onde se vê um diálogo. Por exemplo, aqui tem um estilo X que se confronta com outro estilo e depois tem uma terceira solução e assim por diante. Então, de certo modo, você vê a história da arquitetura americana nas cidades. No Brasil, em qualquer cidade --- sejam capitais, sejam cidades do interior --- há uma coleção de deformidades absolutamente inclassificável. Não se pode dizer a que estilo pertence a maior parte dos edifícios porque não há estilo. De repente, no meio dessa feiúra, o sujeito contrata um arquiteto estrangeiro e faz uma maravilha, uma obra-prima que não tem nada a ver com o restante da rua. Dessa forma, a coisa vai ficando cada vez pior. Essa deformidade estética entra em nós --- já dei aula sobre isso ---. Você vai ter de repovoar seu mundo estético com outros elementos porque, do jeito que está, você tem uma confusão de base no seu próprio mundo perceptivo que vai se traduzir na deformidade de suas ideias ou na deformidade da posição existencial desde a qual você defende as ideias.
Lembro-me do Dr. Meira Pena, que uma vez perguntou aos seus alunos na Universidade de Brasília a que classe social pertenciam. Ninguém sabia. Se você não é capaz nem mesmo de se classificar sociologicamente, então, literalmente, você não sabe onde está. Se você não sabe onde está, todos os seus raciocínios, ainda que sejam formalmente corretos, vão estar deslocados em relação à realidade. Esse deslocamento, esse fenômeno a que Robert Schwarz chamava de "as ideias fora do lugar", é a doença crônica da cultura brasileira, que hoje foi levada às últimas consequências.
Evidentemente, quando comecei a estudar o caso de Maquiavel, pareceu-me --- e acho que tinha razão --- que essas concepções maquiavélicas, tão comuns no mundo da política e dos negócios no Brasil, faziam parte da alienação brasileira. Indivíduos que estavam fazendo todo o possível para se autodestruir politicamente acreditavam estar praticando táticas maquiavélicas de conquista do poder. Isso inclui até mesmo as nossas forças armadas. Se pegarmos como exemplo esses vários centros de discussão nos quais se elabora o pensamento militar, vi esse pessoal se envolver em ilusões alienantes tão incríveis que hoje, quando os vemos humilhados de quatro perante o governo federal, podemos perguntar-lhes se estão vendo em que deu o seu maquiavelismo, eles que eram sujeitos tão espertos.
Existem certas espertezas que são muito ingênuas, chegando até a ser cândidas, e não posso negar que o próprio Maquiavel estava infectado disso até o fundo da alma. Ele não sabia exatamente qual era sua posição na sociedade. Ele atirava a esmo. Fazia tentativas desesperadas, às vezes, de restaurar a situação pelos meios mais inconvenientes possíveis e caminhava sempre de fracasso em fracasso. Esperteza demais dá nisto.
Não haverá tempo para respondermos a muitas perguntas, porque agora já são 22:10h no Brasil. Temos algumas perguntas bastante extensas aqui.
Aluno: Tempos atrás você disse que vivemos numa espécie de provincianismo temporal, por exemplo, quando relegamos os sábios da antiguidade a uma espécie de "museu das ideias" e não utilizamos as resoluções deles para os nossos problemas presentes. Você, inclusive, enfatizou esse pensamento com algo assim: "Devemos procurar saber o que Aristóteles diria do nosso mundo atual" (...)
Olavo: Ou seja, conhecemos a opinião atual sobre Aristóteles, mas não conseguimos imaginar a opinião que Aristóteles teria de nós.
Aluno: (...) Na última aula do curso on-line de filosofia, você disse, rebatendo seus oponentes, que não se pode saber o que Santo Tomás de Aquino pensaria do fascismo. Parece uma contradição. Se possível, pediria para você discorrer um pouco sobre o assunto.
Olavo: Bom, este aqui é um problema que sempre aparece no estudo de qualquer filosofia antiga. Se você não é capaz de imaginar ou conceber uma análise aristotélica de um problema presente e real, você não está realmente entendendo a filosofia de Aristóteles. Se você só entende a filosofia nos termos exatos em que a doutrina se expressou pela primeira vez, e não na sua extensão possível à realidade atual, significa que não há conexão entre a realidade atual e essa filosofia, não sendo possível entendê-la, a não ser como produto do seu tempo e da sua cultura, sem atualidade nenhuma. Mas se ela não tem atualidade nem valor cognitivo nenhum para você, não há como saber de fato o que fazer com essa filosofia. Dessa forma, você terá de fazer algum esforço para analisar as coisas desde o ponto de vista do filósofo que você está estudando, mas isso não quer dizer que em todas as filosofias existam conceitos apropriados para analisar certos dados do presente.
Veja que no tempo de Santo Tomás de Aquino não existia sequer, digamos, o Estado europeu constituído. Como é possível analisar, em termos tomistas, uma corrente política que surge séculos depois, baseada na onipresença e onipotência do Estado? Nesse caso a coisa fica muito difícil. Santo Tomás de Aquino, desde o ponto de vista em que estava situado historicamente, não teria como analisar por si um problema como o fascismo. Mas isso não impede que possamos desenvolver essa filosofia imaginariamente e tentemos pensar, por assim dizer, tomisticamente sobre este fenômeno. Mas será necessário desenvolver essa filosofia. Você precisará criar novos conceitos baseados na filosofia de Santo Tomás --- e idealmente fiéis a ela --- com os quais você possa analisar esses problemas atuais.
Quando apareceu um movimento chamado neo-tomista, a ideia era precisamente essa. Não se trata apenas de repetir e repassar a filosofia de Santo Tomás de Aquino, mas é necessário desenvolvê-la para poder tratar de temas que, para Santo Tomás de Aquino, simplesmente não existiam. É disso que se trata.
É claro que não é possível pensar no fato da ordem atual --- de uma ordem histórica estranha ao filósofo --- partindo literalmente do ensino dele, mas você pode desenvolvê-lo. Estes dois lados sempre existem e são verdadeiros: por um lado é preciso esforçar-se para imaginar o que o filósofo diria disto e daquilo que está acontecendo, e por outro lado você tem de saber que não pode fazer isso de maneira exata com os únicos instrumentos que ele lhe legou. Você vai precisar desenvolver alguma coisa.
Aluno: Aqui em Joinville-SC somos apenas três alunos do curso, mas mesmo assim decidimos montar um grupo de literatura no qual cada um deve contar aos demais um resumo da obra literária que leu ou está lendo. (...)
Olavo: De cara isto aqui é muitíssimo importante: você ter uma idéia do que está nos livros antes de os ler. Isso é fundamental.
Outro dia comprei uma coleção feita por um professor de literatura daqui dos Estados Unidos nos anos 50, que tem o dicionário dos enredos. É um negócio em 18 volumes que tem um resumo de todos os enredos de todas as obras de literatura que o sujeito conseguiu ler --- ele e mais um grupo de professores ---. Se você for esperar para conhecer os enredos só após ter lido todas as obras, terá de esperar uma vida inteira e isso não é possível. Você não conseguiria ter uma ideia da evolução da arte narrativa antes de ter lido todos os livros. Isso vira uma impossibilidade. Por isso esses resumos são instrumentos fundamentais. Isso não quer dizer que você poderá raciocinar só com base no resumo sem ler os livros. Claro que não. Senão você estaria reduzindo os livros ao seus esquemas narrativos, quando eles contém muito mais do que isso. Todavia, essa coleção de resumos é uma coisa fundamental para se ter uma ideia do conjunto do movimento literário, antes de você ter lido todos os livros. Isso é fundamental.
Por exemplo, num grande livro de Ernst Robert Curtius, Literatura Europeia e Idade Média Latina, é dito que a estrutura das disciplinas que estudavam literatura na universidade da época estava deslocada em relação ao material literário disponível. Ele diz que não existe nenhuma disciplina que tente captar a unidade da história literária europeia. No entanto, é claro que existiam intercâmbios entre todos os países --- o pessoal de um país lia a literatura do outro --- e não existia somente literatura alemã, francesa etc. O fenômeno literário tomado no seu conjunto histórico não corresponde à divisão das línguas. Nem sempre o autor que é copiado ou que influencia outro fala a mesma língua daquele que é influenciado. Então ele diz que as disciplinas estão montadas de tal maneira que a unidade da literatura europeia escapa completamente e que a raiz dessa unidade está na literatura europeia latina. Havia uma literatura numa língua internacional e daí foram se desmembrando as literaturas nacionais. Essa descoberta é absolutamente genial.
Esse fenômeno do descompasso entre as estruturas das disciplinas científicas e a estrutura da realidade é um dos grandes problemas da humanidade. Edmundo Husserl dizia que, idealmente, a divisão entre as disciplinas científicas deveria corresponder à divisão do que ele chamava de as várias "ontologias regionais". Você tem diversas ordens de fenômenos, de fatos e de realidades que ocupam lugar na estrutura geral do ser e a divisão das ciências deveria se esforçar para se basear nisso aí. Isto é,você dividiria entre duas ciências onde há um limite objetivo entre dois tipos de seres. Mas, infelizmente, isso não acontece. Não é possível que a estrutura administrativa das universidades se baseie exclusivamente na estrutura do objeto a ser estudado. Ela tem de obedecer a outra ordem de exigências, por exemplo, as verbas disponíveis, os profissionais disponíveis e assim por diante. Você não pode ter um departamento de uma ciência se não tem ninguém que entenda daquela ciência. Também pode acontecer que, de vez em quando, apareça um professor --- como o próprio Curtius, ou como Rosenstock ou Voegelin --- cujo ensino não corresponde nominalmente à ciência da qual ele é professor.
Por exemplo, certa vez Voegelin foi fazer uma conferência na Alemanha sobre ciência política e o pessoal esperava que ele tratasse do temário oficial da ciência política. De repente, ele estava falando dos anabatistas, de símbolos da religião egípcia etc., e os caras ficaram sem saber o que fazer. O pessoal estranhava essa associação muito constante que ele fazia entre religião e política, mas então ele mostrou que todos os pensadores políticos importantes, como Platão, Aristóteles, Jean Bodin etc., faziam essa conexão. Ele estava simplesmente seguindo a tradição, que não correspondia, por assim dizer, à estrutura do ensino tal como estabelecida na Universidade de Munique. Isso quer dizer que a ordem administrativa da Universidade de Munique prevalecia sobre a estrutura do mundo. A ordenação burocrática havia se tornado, ela mesma, uma substituta da realidade. Isso sempre acontece e temos de lutar contra isso continuamente.
Com Eugen Rosenstock aconteceu a mesma coisa. Quando os camaradas o contrataram para a universidade não sabiam onde o colocar. Se o colocassem na ciência política ele falaria de teoria do conhecimento. Se o colocassem na faculdade de filosofia ele começaria a falar dos partidos políticos. Se o colocassem na faculdade de teologia ele falaria de matemática e assim por diante. O que fazer com o sujeito? Ele estava tentando captar a estrutura da realidade, como Voegelin ou qualquer outro filósofo que preste.
A respeito dessa ideia de conhecer o mundo em resumos, vou depois passar o título deste dicionário que tenho aqui, que é uma coisa maravilhosa. Se vocês puderem adquirir vai ser uma coisa boa.
Acho maravilhosa essa ideia de um contar para o outro. Tem muito livro que se eu pudesse não ter lido, se alguém contasse para mim o que estava no livro, ficaria contentíssimo. O pessoal pensa que eu gosto de ler, mas odeio ler; eu gosto de aprender. Se alguém me contasse o que está no livro seria uma maravilha.
Lembro-me de que quando era adolescente, tinha um amigo meu que estudava muito Heidegger. Um dia ele pegou um livro de Heidegger --- que nem era um livro muito comprido ---, O Que é Isso, a Filosofia?2, e me fez uma exposição daquilo de forma que teve um impacto muito maior do que se eu fosse ler o próprio Heidegger. Sou gratíssimo a esse meu colega. Ele despertou em mim o interesse filosófico a partir de uma exposição que fez de Heidegger. Ao contar para os outros você acaba poupando trabalho das pessoas.
Aluno: (...) Nossos objetivos iniciais são: forçar todos a lerem as obras literárias indicadas pelo professor e povoar a imaginação, deixando de lado as discussões mais filosóficas (...)
Olavo: Ah, maravilha! É isso mesmo que tem de fazer. Vocês estão de parabéns. Primeiro, povoar o mundo da imaginação e dos sentimentos, o que vai inclusive habilitar vocês a compreenderem situações humanas reais, que não são formuláveis em termos teóricos. Por exemplo, suponha que você tenha um conflito de família --- um problema qualquer, brigou com a namorada ---, você não vai poder esperar até ter uma compreensão conceitual do problema para lidar com ele. Você vai ter de usar instrumentos muito mais rápidos: formas de pensamento analógico, simbólico, a partir de evocações que você tenha, de leituras que tenha feito e coisas que tenha ouvido.É esse mundo da imaginação e das emoções que, primeiro, você tem de tornar rico, flexível e rápido para entender o mais rapidamente possível as situações humanas, mesmo que não consiga verbalizar o que está acontecendo.
Lembram daquele exemplo que dei no começo do curso, do teste que fizeram com as cartas de baralho, onde você tem dois processos cognitivos funcionando ao mesmo tempo: um que é, de certo modo, pré-verbal e outro que é verbalizado --- muito mais lento, evidentemente, e muito mais complicado ---? Ao se habituar também, por assim dizer, a trabalhar nessa esfera pré-verbal, você poupa muito trabalho do raciocínio verbal, que é mais pesado e complicado.
Aluno: (...) Em segundo lugar, encontrar a própria voz, através da leitura extensa, conversa e auto-observação (...)
Olavo: Isso é perfeito. Vocês estão se autovacinando contra a neurose, contra o doutrinarismo, contra o localismo bárbaro e contra todos os males da cultura subdesenvolvida. Vocês estão fazendo a coisa certíssima.
Aluno: (...) Em terceiro, inibir o isolamento e fortalecer a amizade (...).
Olavo: Bom, é claro. A amizade e o diálogo são absolutamente fundamentais. Pessoas habilitadas a sobreviver na solidão são muito poucas. São como certas plantas que sobrevivem no deserto. Nem toda planta pode sobreviver no deserto, só a planta especializada naquilo. Se você não é uma dessas, não tente! Eu mesmo sou uma dessas plantas: sobrevivo no deserto. Posso ficar trinta anos sem conversar com ninguém sobre nada. Invento meus amigos imaginários e estou lá conversando com Santo Tomás de Aquino e Aristóteles. Mas essa é uma habilidade que não tem nada a ver com talento filosófico. É uma habilidade específica e algumas pessoas nascem com ela. Não adianta forçar. Normalmente, as pessoas precisam do diálogo e da amizade, senão não progridem.
Aluno: (...) Item 4: usufruir de qualquer tipo de tabaco, de preferência o mais "mata-rato" e cancerígeno possível (...)
Olavo: Bom, esse não é obrigatório. Acho que o cigarro ajuda você a pensar, mas posso estar enganado.
Aluno: (...) Por acaso, o senhor tem algo a acrescentar ao método ou aos objetivos deste grupo?
Olavo: De imediato, não. Acho que vocês estão fazendo a coisa certa e que todo mundo deveria fazer. Como é que se começa uma educação? É lendo toda a literatura imaginativa que você possa porque, como eu disse, a percepção humana, geralmente, é muito acertada e dificilmente erra. Mas quando você passa para a esfera da imaginação e memória, já não funciona tão bem quanto a percepção. E quando você pula um grau a mais, para o pensamento conceitual, a possibilidade de erro é enorme. Quanto mais você investir nos andares mais baixos, mais estará reduzindo a possibilidade de erro, ainda que ao preço de muitas vezes perceber coisas que não consegue verbalizar.
Mas quando você entra numa universidade... Suponha que você goste muito de literatura e resolva estudar Letras. Sabe o que os desgraçados vão fazer com você? Vão encher você de teoria literária e não mandarão você ler um único poema! Como resultado, vão secar sua imaginação literária. É melhor você ler um monte de obras literárias sem ter teoria nenhuma, do que ler as teorias sem ter as obras literárias. Afinal de contas, as teorias versam sobre as obras literárias. Dessa forma, a cultura literária é feita lendo as obras de literatura, ainda que você não3 seja capaz de elaborá-las intelectualmente. Não se preocupe com isso. Lembre-se de Leibniz que dizia que o sujeito que tivesse visto mais figurinhas, seria a pessoa mais culta porque teria uma imaginação vasta.
Aluno: Ao ler os diálogos de Platão fiquei impressionado com quanto Sócrates usa a analogia. O senhor pode falar um pouco sobre a importância da analogia para o conhecimento?
Olavo: Toda e qualquer investigação, de qualquer coisa, começa com uma analogia, porque você achou alguma coisa parecida com outra ou diferente da outra. É claro que esse pensamento analógico é somente um começo. Uma única analogia, um único símbolo, contém inumeráveis possibilidades de conceitos diferentes que depois você vai separar. Vai ter de descascar a analogia e ver as várias camadas de significados e as várias afirmações a que aquilo pode corresponder. Mas sempre que você está investigando algo pela primeira vez, sua forma de pensamento é analógica, não tem outro jeito. Você vai começar por notar semelhanças e diferenças, que podem ser fortuitas. Mas isso não tem importância, depois você volta atrás e corrige.
Acho que por hoje podemos parar por aqui. Essa aula foi transmitida para um público muito maior do que aquele que geralmente acompanha as aulas do curso e também serve como uma espécie de amostra do que é o nosso Seminário, pelo qual alguns dos ouvintes podem vir a se interessar. Em todo o caso, se já se interessaram pelo meu livro sobre Maquiavel, muito obrigado a vocês pela atenção e para os outros até semana que vem. Muito Obrigado.
Transcrição realizada por: Jussara Reis, Leonardo Torres, João Plínio Juchem Neto, Rafael Guedes da Silva.
Revisão: Fabiano Rollim, 15/11/2011 [[email protected]]
Footnotes
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N.R.: O professor fala "no dia em que ele é condenado à morte". Todavia, no Fédon, Sócrates dialoga sobre a morte no dia em que a sentença será executada e não no dia em que foi condenado, o que havia ocorrido dias antes. ↩
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N.R.: O professor fala "O Que é Isso, a Metafísica?", mas o título do livro de Martin Heidegger é "O que é Isso, a Filosofia?". ↩
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N.R.: O professor falar "ainda que você seja capaz de elaborá-las intelectualmente", mas o contexto indica que ele quis dizer "ainda que você [não]{.ul} seja capaz...". ↩