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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 114

16 de julho de 2011

Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.

Tínhamos ido até a linha 81-a do Fédon, mas pedirei licença para interromper aquela explicação e dar alguns esclarecimentos sobre altercações que surgiram pela Internet e que, embora não tenham valor em si mesmas, nos dão a oportunidade de explicar alguns pontos filosóficos. Aliás, de fazer até duas séries de explicações: uma para o público em geral, que será colocada em circulação no meu site, no Orkut, no Facebook etc., e outra especificamente para os estudantes deste curso.

Nós dois casos, a discussão de uma polêmica até boba nos dará oportunidade de entrar em alguns assuntos que são muito interessantes e, no mínimo, por servirem para isso, demonstram ter alguma utilidade. Naturalmente, terei de entrar nos detalhes da própria polêmica para que as explicações respectivas se tornem inteligíveis. Escrevi duas séries de observações aqui que não estão completas; a segunda parte eu apresentarei na próxima aula, mas até o ponto onde nós fomos nesta aula permite a abordagem de várias questões realmente filosóficas muito interessantes.

Parti de uma resposta minha, colocada on-line pelo Carlos Nougué - um semi-aluno dos meus cursos no Rio de Janeiro, que não deixa de ser um tipo interessante. A coisa partiu de uma discussão iniciada por Sidney Silveira que extraiu de um parêntese --- que constava de um texto que tratava de outra coisa completamente diferente ---, onde eu mencionava o Tomismo e Neotomismo. Eu afirmei que o primeiro era filosofia autêntica, mas que o segundo é, na verdade, uma ideologia. Silveira concluiu daí que eu só aprovava o tomismo do próprio Santo Tomás de Aquino e era contra todos os demais tomismos. E fez a apologia de oitocentos anos de Tomismo, passando pelo Cardeal Caetano, pelo Ferrariense, por todos os clássicos comentadores de Santo Tomás de Aquino e defendo-os contra a minha pessoa como se eu os tivesse atacado.

Se eu falei de neotomismo, evidentemente, me referi ao que começa com Leão XIII, no final do século XIX, e não abrange nenhum autor anterior. A defesa de todos esses tomistas ao longo dos séculos foi apenas um expediente para fazer de conta que eu estava contra todo o tomismo e que, portanto, era uma espécie de antitomista militante. Como eu reclamei da manobra, ressaltando que não se tratou de uma divergência filosófica, nem doutrinal, mas sim de simples falsificação destinada a me colocar numa posição difícil, comprometedora perante o público católico, o Carlos Nougué assumiu a defesa do senhor Silveira e redigiu uma carta aberta à minha pessoa. Como a carta foi aberta, então naturalmente a resposta será aberta também.

Primeiro vou ler as observações que eu tenho sobre a resposta do Carlos Nougué e, depois, o texto que eu fiz para os alunos deste curso que aborda a coisa com outro nível de profundidade. Evidentemente a coisa abrange vários aspectos miseráveis e deprimentes da polêmica, mas a oportunidade permitirá analisar algumas questões tocadas de raspão. Começa o senhor Carlos Nougué:

"Antes de tudo, não posso deixar de dizer-lhe publicamente que a maneira como você tratou a Sidney Silveira, ofendendo-o com os mais abomináveis palavrões, não se faz com um pai de família nem é digna de um homem que se diz filósofo."

A referência ao estatuto de "pai de família" do Sr. Silveira é descabida e só entra como apelo emocional kitsch: não o critiquei enquanto pai de seus filhos ou esposo da sua digníssima. Ademais, também sou pai e avô de família até mais numerosa que a dele, e este fato não o inibiu de espalhar contra mim, não uma, mas sucessivas insinuações pérfidas e difamatórias, indignas, já não digo de um filósofo --- coisa que ele nunca foi ---, mas de qualquer cidadão comum honrado e cumpridor das leis, mesmo solteiro e sem família.

Desde muito antes deste episódio o Sr. Silveira já vinha fazendo intrigas a meu respeito, procurando por todos os meios indispor contra mim o público católico. Um de meus alunos publicou no Orkut uma breve antologia dessas insinuações perversas, mal camufladas sob a aparência caricatural de elevadíssimas discussões doutrinais. Não preciso, portanto, repeti-las aqui.

A persistência obstinada dessas investidas mostrava que não eram efusões ocasionais e espontâneas, mas lances de uma campanha sistemática, deliberada, firmemente disposta a não cessar enquanto não conseguisse tornar minha imagem odiosa e suspeita aos fiéis e à hierarquia da Igreja. No curso dessa guerrinha malévola e sem razão, fui acusado, entre outras coisas, de heresia e de satanismo, e por fim atirado ao inferno sem remissão como autor de pecado contra o Espírito Santo --- aquele que não será perdoado nem nesta vida nem na próxima.

Tudo meticulosamente calculado para que um fiel católico, ao ler essas coisas sem me conhecer muito bem, sentisse a urgente conveniência de manter distância de mim e confiar-se, em vez disso, ao magistério de Sidney Silveira e Carlos Nougué.

A todas essas provocações agüentei quieto. Cheguei, no máximo, a mencionar uma delas, de passagem, num artigo em que respondia a vários mexeriqueiros da mesma espécie:

"Outro, ainda, sem medir o grotesco do que fazia, macaqueava a estrutura dialética das quaestiones disputatae medievais para discutir, com ares de Santo Tomás na sua cátedra de Paris, esta questão transcendente: 'É lícito ao filósofo usar palavras de baixo calão?' --- concluindo, evidentemente, pela negativa, e deixando inculcada nos seus devotos discípulos imaginários a impressão enganosa de que o filósofo referido usara aquelas palavras em demonstrações filosóficas, como substitutivos da argumentação racional, e não apenas num programa informal de rádio destinado a responder e-mails e comentar, por alto, as notícias da semana..."1

Como qualquer leitor inteligente percebe à primeira vista, é apenas uma anotação vagamente irônica, não um protesto. Muito menos um revide.

Foi o máximo que o Sr. Silveira ouviu de mim ao longo de toda a série de insinuações, ora mais, ora menos, veladas que foi despejando sobre a minha pessoa ao longo de muitos meses.

Ele não pode alegar que sou impulsivo ao reagir, nem pronto a desferir socos e pontapés à mais leve provocação.

Só decidi dar-lhe uma resposta em regra quando ele, encorajado pelo meu longo silêncio, partiu das meras indiretas à falsificação ostensiva de um texto meu, para dar ares de coisa anticatólica a algo que eu escrevera contra inimigos da Igreja.2

Seus propósitos de intrigante malicioso já não podiam mais ser ocultados, ao menos aos olhos de quem houvesse compreendido o sentido das suas anteriores performances. Para os demais, no entanto, aquele artigo difamatório, meticulosamente fabricado para jogar contra mim a opinião católica inteira de uma só vez, parecia à primeira vista não conter nada mais que a elegante e polidíssima correção de um erro doutrinário.

Quando um intrigante astuto faz uso da língua dupla, cavando um abismo de distância enganosa entre o conteúdo peçonhento e o tom de urbanidade respeitosa (quando não de piedade devota), ele coloca sua vítima na difícil contingência de não poder responder ao conteúdo sem romper com o tom, expondo-se assim à pecha de impolido e truculento, nem conservar o tom sem amortecer a virulência do conteúdo, tornando-se assim cúmplice de seu acusador.

A dose de malícia e perversidade necessária para que alguém se dedique a montar esse gênero de armadilha é tamanha, que dispensa explicações. Tudo o que há para dizer a respeito, a Bíblia já resumiu em duas palavras: Bilingüis maledictus --- "maldito o homem de duas línguas".

Quem leia a série inteira dos artigos consagrados por ele à demolição da minha imagem notará que essa tensão entre o conteúdo e o tom não é exclusiva de um deles, mas a regra geral e constante do "estilo" --- chamemo-lo assim --- do Sr. Silveira. Ele não age assim por deliberação malévola, consciente de montar uma arapuca para colocar sua vítima em posição comprometedora. Ele age assim com naturalidade, com inocência até, sem a menor consciência de que pratica o mal. Ele age assim porque ele é assim, porque tal é a sua maneira de ser, a sua personalidade --- a personalidade de um santarrão que, ao deleitar-se na falsificação e na calúnia, acredita piamente praticar as mais elevadas virtudes cristãs.

Note que considero isso muito mais grave do que se fosse uma coisa específica e intencional. Trata-se de um delito permanente, uma maneira de ser que denota, sobretudo, a falta gravíssima de discernimento moral, a incapacidade que o sujeito tem de examinar, julgar os seus próprios atos. O que, num indivíduo que pretende falar em nome do Magistério e ensinar religião, é até perigoso.

A coisa tornava-se ainda mais grave por não ser iniciativa isolada, mas vir em convergência com outras iniciativas do mesmo teor, provenientes de diversos grupos empenhados em revestir-se da aura de defensores da fé para mais facilmente poderem delinqüir em nome da Igreja. Sobre algumas dessas escrevi em 20 de novembro de 2009:

"Não vejo por que me defender de acusações tão francamente imbecis e mal intencionadas. Quem quiser acreditar nelas só fará dano a si mesmo. O único ponto que interessa ressaltar --- por ser um fenômeno sociológico de certa importância --- é que cada um daqueles que as emitem jura não ter-me ofendido jamais e, ao menor revide da minha parte, sai chorando que foi difamado, atacado, vilipendiado etc. Isso é uma regra geral absolutamente infalível em todos os casos."3

Sidney Silveira não constitui exceção. A única diferença é que ele não se contenta em verter suas próprias lágrimas de auto-piedade : as toma emprestadas de seu acólito Carlos Nougué.

Segunda citação do Carlos Nougué:

"Alguém seria capaz de imaginar, já não se diga um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e nem sequer um Sócrates, um Platão, um Aristóteles, mas um Kant ou um Husserl ofendendo a mãe e a honra de um adversário filosófico seu?"

"Adversário filosófico"? Cadê? Não estou vendo nenhum. Só vejo um criminoso, um bandidinho, praticante obstinado da difamação e da calúnia, que deveria ser respondido mediante um processo judicial e considerar-se um afortunado por ter recebido, em vez disso, apenas uns palavrões mais que merecidos.

Foi a esse tipo de gente que S. José Maria Escrivá de Balagüer se referiu ao dizer que, contra ela, não restava outra saída senão recorrer ao que ele chamava "o apostolado dos palavrões", oferecendo-se, ademais, para ensinar alguns a quem não os conhecesse em número e potencial ofensivo suficientes. Mas S. José Maria, com toda a evidência, é apenas um "santo boca suja", indigno de figurar nas páginas de Contra Impugnantes (o site do Sidney Silveira).

Prossegue o Nougué:

"Um milhão de impropérios, Olavo, não fazem um silogismo..."

E um milhão de insinuações maliciosas não tem o valor e a dignidade de um palavrão bem aplicado.

Segue o Nougué. Agora a coisa começa a ficar interessante:

"Como, porém, em meio a tais palavrões devemos reconhecer, como quer que seja, um fundo doutrinal seu com respeito ao escrito de Sidney Silveira, venho por meio desta carta aberta fazer-lhe um convite:

Você aceitaria participar comigo de três quaestiones disputatae transmitidas por videoconferência e com direito universal de acesso?

1) A primeira quaestio disputata giraria em torno do seguinte tema: "As relações entre razão e fé e entre filosofia e teologia em Santo Tomás de Aquino."

Você está realmente decidido a posar de meu "adversário filosófico". À noite, ou até de dia, com os olhos abertos, deve sonhar que é Santo Tomás de Aquino pisoteando a cabeça de Averróes.

O debate que você propõe não faz o menor sentido.

Com relação ao primeiro ponto, já expus minha opinião dezenas de vezes. Vou resumi-la aqui:

1. A teologia católica foi, historicamente, a primeira ciência que, fora do domínio estritamente formal, se organizou como um edifício lógico-dedutivo integral, fornecendo assim o modelo para todas as demais ciências, que em vão se esforçam até hoje para copiá-lo (...).

Todas as ciências tendem evidentemente a se constituir como um edifício lógico-dedutivo na medida do possível, porém nenhuma chega até isso. Isso é apenas um ideal do qual ele se aproxima como numa assíntota, mas às vezes, quando vão chegando a completar uma teoria universal, descobre alguma coisa que desmantela aquilo tudo e tem de começar tudo de novo.

(...) É verdade que para isso ela (a teologia católica) contou com o aporte do precedente aristotélico, mas Aristóteles, pelo próprio caráter fragmentário dos seus escritos, antes sugeriu essa possibilidade do que a realizou materialmente, cabendo este mérito, sem sombra de dúvida, à teologia católica.

Se vocês têm alguma dúvida a este respeito (eu vou até botar uma notinha aqui), vocês podem consultar o livro maravilhoso de Alois Dempf, o grande historiador das idéias, alemão. O livro chama A Concepção do Mundo na Idade Média, no qual ele vai mostrando a origem das Sumas e qual foi o espírito que as orientou --- que não tem nada a ver com conciliar a fé e razão, absolutamente nada --- e mostra que é exatamente isso, que o primeiro sistema lógico-dedutivo acabado que houve na história foi a teologia católica.

2. Portanto, essa teologia não pode ser vista como uma tentativa de "conciliar" a fé com uma razão científica que até então não existia e que ela própria estava criando no ato mesmo de constituir-se (...).

A teologia não tinha um modelo externo ao qual copiar. Foi ela que, partindo da lógica aristotélica, foi criando o edifício-lógico dedutivo que dá o modelo de todas as ciências. Então se não existia a razão científica antes, pronta para ser comparada, como é que se faria a comparação? Como é que você conciliaria uma coisa que estava criando naquele momento com outra que não existia e que só começava a aparecer naquele objeto mesmo que você estava criando? É inteiramente absurdo.

(...) Entender a obra dos autores das Sumas medievais como esforços no sentido dessa conciliação é projetar sobre ela, retroativamente, uma visão extemporânea.

3. Uma vez compreendida a identidade de suas estruturas lógico-formais, a única diferença substantiva que pode restar entre a teologia e as demais ciências, sob o ponto de vista da sua respectiva cientificidade, é que a teologia aceita como premissa os dados da fé, enquanto as demais ciências aceitam somente os dados dos sentidos confirmados experimentalmente (...).

Pelo menos é isso que se diz. Essa é a definição nominal do problema de fé e razão.

(...) Mas essa diferença é antes um estereótipo retórico do que um fato da realidade. De um lado, a função dos dados da fé no edifício teológico resume-se à da confiabilidade do testemunho --- o testemunho dos evangelistas, dos Apóstolos e do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo. De outro, não existe nenhuma "demonstração experimental" que também não se baseie, em última análise, em testemunhos convencionalmente admitidos como confiáveis --- o testemunho das máquinas e equipamentos, do técnico que os manipula e de toda uma complexa cadeia de transmissão que inclui até mesmo a variável da subjetividade pessoal. Passou o tempo em que se imaginava o "fato científico" como a própria voz da realidade. Hoje sabe-se, e a nenhum teórico da ciência com um mínimo de idoneidade ocorreria negá-lo, que a "experiência científica" é apenas um elemento ou aspecto da formação do testemunho, e não há nenhuma, absolutamente nenhuma razão para supor que o testemunho de técnicos envolvidos numa constante disputa de posições, verbas e prestígios seja, a priori, mais confiável que o dos autores e personagens dos quatro Evangelhos. Nesse sentido, a diferença de credibilidade entre a teologia e as demais ciências se reduz a zero.

4. Assim sendo, o confronto de "fé" e "razão" é menos um debate proveitoso do que um equívoco retroativo nascido da concepção kantiana, inteiramente gratuita aliás, da fé como ato arbitrário da vontade.

Se você tem alguma objeção séria ao que acabo de dizer, escreva-a e verificarei se há nela substância que baste para alimentar um debate. Se não tem, vamos debater o quê, hein?

"2) A segunda quaestio disputata giraria em torno do seguinte tema: Segundo a doutrina de Santo Tomás de Aquino, deve um teólogo-filósofo católico invocar o Magistério da Igreja?".

Este ponto não é de maneira alguma uma quaestio disputata. Ninguém discute se o filósofo católico deve ou não invocar o Magistério. É claro que deve. E desde os tempos de Santo Tomás já está estabelecido que, caso esteja argumentando apenas como filósofo e não como teólogo, não deve invocá-lo como prova e sim apenas como elemento auxiliar de esclarecimento, mas nada impede e tudo sugere que deva fazê-lo ao dirigir-se a um público de fiéis.

Não vejo, no presente caso, onde poderia se introduzir uma divergência capaz de dar margem a um debate.

Ao propor esse debate, só o que você faz é ocultar, sob o manto de uma divergência doutrinal tão nobre quanto inexistente, o verdadeiro ponto em questão. O que estou contestando afinal não é que o filósofo ou quem quer que seja deva ou possa "invocar o Magistério". O que contesto é a suposta equivalência entre invocar o Magistério e usá-lo como pretexto para a prática de um crime.

Desviar o debate para uma questão geral de princípio é um expediente muito safado para camuflar o mau uso do princípio. Essa é, aliás, outra característica do modus pensandi não só do Sr. Silveira, mas do Nougué. Atendo-se às discussões gerais e de princípio, esquivam-se do exame das finalidades concretas com que o fazem.

Mutatis mutandis, é como se um delinqüente, perguntando se deve usar um crucifixo, visse na resposta positiva uma autorização para usá-lo como gazua para arrombar portas.

"3) E a terceira quaestio disputata giraria em torno do seguinte tema: "É possível conciliar a doutrina ético-política de Santo Tomás com o liberalismo e a democracia liberal?."

Neste ponto seria possível um debate, mas não com quem começa por confundir os termos da questão. Você se refere à democracia liberal como modelo abstrato, tal como concebido por John Locke e similares, ou às democracias liberais reais, historicamente existentes, nascidas não da imitação servil de um modelo e sim de circunstâncias histórico-sociais complexas, praticamente incontroláveis? No primeiro caso, não há o que debater: a resposta é evidentemente "Não", com a ressalva de que esse modelo, por definição, inclui espaço para a luta pelas concepções tomistas e, portanto, para a modificação possível da democracia liberal num sentido adequado à doutrina de Sto. Tomás (...).

Isto quer dizer que a incompatibilidade teórica nem sempre se traduz numa incompatibilidade prática.

(...) No segundo caso, a pergunta é imbecil, porque não se pergunta se uma coisa é compatível com as condições da sua subsistência. Desde o advento dos modernos regimes totalitários, a Igreja buscou abrigo sob as asas das democracias liberais e só graças à proteção destas últimas pôde subsistir e prosperar ao longo de todo o século XX.4 E quando digo "a Igreja", incluo aí a totalidade dos estudiosos do tomismo. Não consigo imaginar Garrigou-Lagrange ou Joseph Maréchal lecionando em Moscou sob Stalin ou em Havana sob Fidel Castro. Desse estado de coisas, puro dado empírico surgido de circunstâncias históricas, nasceu ex post facto, e quase espontaneamente, a tentação de "conciliar" tomismo e democracia liberal no plano doutrinário mediante remendos maritainianos. Embora reconheça nesses arranjos alguma utilidade política, ao menos no sentido de poupar à Igreja a acusação de ingrata e autocontraditória (por viver da compatibilidade prática com aquilo que ela mesma havia declarado incompatível na doutrina), eu seria o último a desejar defendê-los em teoria, que é precisamente o que você pretende que eu faça nesse seu "debate" (...)

Ou seja, ele está querendo que eu assuma a posição de um defensor doutrinário da democracia liberal tal como concebida no seu modelo clássico. Não posso fazer isso porque não sou isso. Agora, como o Sidney Silveira já me carimbou várias vezes de liberal, embora eu viva falando mal do liberalismo e reclamando --- não custa recordar que o meu primeiro contato com o Instituto Liberal foi uma conferência com o título "por que não sou um neoliberal?". Apesar de tudo isso, os liberais, como o Rodrigo Constantino, me odeiam tanto quanto Sidney Silveira. E cada um evidentemente quer me jogar do outro lado para fazer de mim o inimigo ideal que tem na cabeça, o fantasma que o persegue durante a noite. Para o Rodrigo Constantino, eu sou um fundamentalista religioso, um representante do Magistério e assim por diante. E para o representante do Magistério, o Sidney Silveira, eu sou um herético liberal lockiano que aceita a liberdade da consciência como a referência última da realidade.

Há evidentemente nessa coisa uma sutileza que o sujeito nem pode chegar a perceber. O raciocínio tradicional do Magistério é o seguinte: não pode haver total liberdade de opinião porque existe uma lei objetiva, a lei divina que governa o mundo, e que ninguém tem o direito de ignorar. Esta é a posição teórica, doutrinal. Ao passo que, pelo lado liberal --- chamando de liberal aqui apenas o modelo teórico concebido por John Locke --- nada pode estar acima da liberdade da consciência individual. É uma proposta humanista evidentemente, quer dizer o ser humano é o topo da realidade e não tem de prestar satisfação a nada, ele tem de exercer a sua liberdade.

Como propostas puramente doutrinais, são absolutamente inconciliáveis. Acontece que nenhuma delas toca no problema da substância da realidade histórica, são apenas posições doutrinais teoréticas, por assim dizer, atemporais. Na realidade das culturas existentes, a pergunta é a seguinte: quem vai impor às consciências individuais o primado da lei divina? Teoricamente, seria a Igreja. Mas a Igreja não tem poder para isso, então ela recorre à autoridade temporal. A autoridade temporal seria o governo cristão que pela força impõe a lei divina a seus súditos ou cidadãos. Eu digo: esta é a teoria, mas na prática não houve nenhum cidadão imbuído de liberdade individual que fizesse tanto para destruir a Igreja quanto à própria autoridade temporal, o próprio poder temporal.

O grande problema da Igreja, ao longo dos tempos, na Europa, não foi a desobediência de consciência, individuais anárquicas e rebeldes, foi o próprio poder temporal, foi o próprio Estado, foi o próprio Império. Quando começa a Reforma, no que Lutero se apóia? Nos príncipes, no poder temporal. Tem início uma série de rebeliões do poder temporal contra a Igreja, e ocorre uma espécie de desmembramento da Igreja: cada aristocracia local quer criar uma Igreja à sua própria imagem e semelhança. Isso foi um abacaxi muito maior do que qualquer rebeldia da consciência individual.

Por outro lado, se alguém diz que a consciência individual deve ter a liberdade, deve ter o domínio de suas próprias ações sem que ninguém lhe imponha uma versão da realidade por cima --- prestem atenção ---, se a consciência individual é o agente legítimo da ação social no meio democrático, isto não quer dizer que ela seja o seu próprio conteúdo. A consciência individual então tem o direito de sondar a verdade do jeito que entenda, mas qual é a verdade que ela vai encontrar? A verdade da sua própria liberdade? Não, isso seria inteiramente redundante. Você tem a liberdade de sondar a verdade, mas qual você encontra? A sua própria liberdade? Não, a sua própria liberdade não é conteúdo da sua descoberta, mas a premissa dela, então ela não pode descobrir só isso.

O fato é que a consciência individual pode e deve ser orientada à descoberta da lei divina, da lei universalmente válida. Só que quem deve fazer isso não pode ser o Estado, deve ser a Igreja. A Igreja não precisa necessariamente atuar através de um Estado que seja o seu braço armado, porque esta experiência já se revelou catastrófica: o braço armado se voltou contra a Igreja e a feriu mortalmente. Ao passo que, na experiência americana, o Estado não é um agente da Igreja, o Estado é laico, porém a força da Igreja é tamanha que aqui, numa pesquisa recente, 79% dos americanos, perguntados sobre quem é Jesus Cristo, disseram: "Jesus Cristo é o Verbo encarnado, é o Filho de Deus Vivo que veio ao mundo para nos salvar". Quando o Estado, como braço armado da Igreja, conseguiu convencer tantas pessoas da veracidade da lei divina universal? Nunca. E isso foi obtido sem que o Estado as forçasse, foi obtido pela livre influência da Igreja na sociedade.

Isto quer dizer que, embora em teoria a democracia liberal não seja compatível com a idéia da sociedade cristã, na verdade ela gera uma sociedade mais cristã do que qualquer outra sociedade que já existiu antes. Na verdade, os EUA são o único país do mundo que tem uma Constituição e leis de inspiração bíblica, como demonstrou Benjamin Morris no livro O Caráter e Vida Cristãs das Instituições Civis Americanas --- um livro que eu já citei muitas vezes. Nem toda incompatibilidade teórica se traduz numa incompatibilidade prática, o mundo às vezes é mais complexo do que a nossa doutrina imagina.

Pessoas como Carlos Nougué e Sidney Silveira são absolutamente incapazes de examinar a realidade das coisas, eles gostam de examinar textos. Eles tomam uma doutrina, a comparam com a outra e observam se logicamente elas batem. Isto é o que fazem, na melhor das hipóteses. É um serviço que um até computador pode fazer no lugar deles. O próprio Santo Tomás de Aquino já dizia que o grande problema da conduta não é você conhecer os princípios da moralidade, é você compreender a situação real e saber quais e como os princípios se aplicam, nunca é uma questão de mera dedução.

Os fatos da vida não são meras aplicações de um princípio, ao contrário, qualquer fato, por mais simples que seja, coloca em jogo vários princípios ao mesmo tempo. É preciso conseguir destrinchar a substância da situação real para saber quais os princípios se aplicam, e como se aplicam, e se requerem alguma adaptação ou se é possível uma aplicação literal e assim por diante. Nada vai substituir o conhecimento da situação concreta. Santo Tomás de Aquino dizia que o problema era exatamente esse. Conhecer os Mandamentos qualquer imbecil pode conhecer e desejar cumprí-los, já está muito bem.

A linguagem doutrinal é uma linguagem abstrata, geral e universal, incapaz, de apreender a substância do fato concreto. Entre o mundo da teoria e o mundo do fato concreto existe um abismo que só a inteligência humana, atuando na situação real, pode preencher. Nunca é uma questão apenas de dedução mecânica. Se fosse isto, não haveria problema nenhum da moral. Seria preciso apenas programar as pessoas para que agissem de uma maneira constante e, pronto, acabaria o problema. Seria mais ou menos como você adestrar um bicho. Mas isso, automaticamente, eliminaria o problema da liberdade moral, da liberdade de escolha, não haveria livre-arbítrio.

Esse pessoal me chamou de filósofo liberal, dando ao termo "liberal" o sentido que tem no contexto católico, não no sentido que possui em ciência política. No contexto católico, liberalismo é o nome de uma heresia, é uma corrente teológica liberal católica que se formou a partir do século XIX. E quando você fala "liberal" no meio católico, eles entendem que se trata de uma corrente que foi condenada várias vezes pelos Papas. Quando você chama o cara de filósofo liberal num contexto católico, está usando de novo a língua dupla.

Liberalismo político é uma coisa, pode até ser incompatível em teoria com a doutrina da Igreja, mas na prática tem se compatibilizado muito bem, como se, pelo fato de a Igreja sobreviver melhor na democracia liberal do que em qualquer outro lugar, não houvesse terceira alternativa. Aliás, ela até existe porque a Igreja sobreviveu bem em Portugal de Salazar e na Espanha de Franco. Mas estes são dois países pequenos, não são a regra geral e, ademais, isso suscitaria o problema não de discutir a incompatibilidade entre catolicismo e democracia liberal, mas explicaria levantar a questão: é possível conciliar a doutrina de Santo Tomás com o fascismo? Seria um problema completamente diferente, e não é isto que ele está propondo. Mas com exceção da Espanha e Portugal, a Igreja sobreviveu bem apenas nas democracias liberais, no resto foi perseguida.

Ao me convidar para o debate, ele quer que eu assuma a defesa da democracia liberal de modo que eu possa parecer um liberal no sentido herético da coisa. Ele vai triunfalmente, em seguida, mostrar que ele representa o puro ensinamento da Igreja, ao passo que eu sou um herético. Mas eu não posso fazer isso, assumir uma posição que eu não tenho, só para agradar o Carlos Nougué. Primeiro, não sou um defensor doutrinário da democracia liberal. Aceito a democracia liberal como uma alternativa empírica, por assim dizer, a um estado de coisas que nós não conseguimos melhorar até o momento. Em segundo lugar, eu não vejo qual é a relação intrínseca entre o liberalismo como forma da democracia e o liberalismo no sentido doutrinal da heresia católica, as relações são bastante ambíguas. Ele quer que eu assuma não só um, mas dois papéis que não me cabem: o de defensor teórico da democracia liberal, do liberalismo --- coisa eu realmente não sou, os liberais brasileiros são os primeiros que sabem disso --- e, em segundo lugar, o papel do liberal no sentido herético católico. Mas eu também não sou nada disso. Para que eu vou vestir essa camiseta, só para agradar o Carlos Nougué e o Sidney Silveira? Quer dizer, é uma coisa totalmente forçada.

(...) Como as três questões sugeridas são extemporâneas e despropositadas, é evidente que o seu convite não tem outra finalidade senão dar ares de alta divergência teológica àquilo que não passa, em substância, do confronto moral entre vítima e difamador.

Note, por favor, que nas observações com que respondi ao Sr. Silveira não levantei nenhuma objeção de ordem teológica ou filosófica; apenas denunciei a falsificação patente que ele fizera de um texto meu. É uma questão de fato, não de doutrina. Como é fato vergonhoso, torna-se bem compreensível que o Sr. Silveira e seu paladino estejam ansiosos para fugir de tão desagradável assunto para as alturas do debate doutrinal, exatamente como um ladrão que, pego em flagrante, tentasse camuflar o vexame provocando uma discussão erudita de Direito Penal.

Um debate não serve de nada se não parte de divergências sinceras, pertinentes e arraigadas na situação real. Fora disso, é puro teatro.

Na semana que vem, eu leio mais um pedaço disso. Mas agora tem algumas observações que eu redigi especialmente para vocês, aproveitando também essa situação como um pretexto, um estímulo para esclarecer uma infinidade de pontos. Este também não está completo, eu vou ler uma primeira parte, na semana que vem lemos a segunda parte:

Se for verdade que "pelos frutos os conheceis", a conversão maciça ou retorno dos meus alunos a fé católica já deveria bastar para tornar evidente que nas suas conclusões formais e resultados práticos minha filosofia não pode estar em desacordo com o Magistério da Igreja embora, na mesma medida e por evidente impossibilidade técnica, não tenha assumido jamais nenhum compromisso de repetir servilmente o ensinamento tradicional dos filósofos católicos em todos e cada um dos passos da escalada dialética não só intelectual mas existencial que para aí conduz. Toda filosofia tem o direito de ser julgada segundo os seus próprios princípios fundantes que, por sua vez, podem ser julgados em si mesmos e independentemente dos resultados concretos nela obtidos, e não desde uma outra filosofia, seja esta a pior das filosofias ou a própria filosofia perene.

Como toda filosofia digna do nome começa com uma definição ou redefinição da filosofia em geral, não será demais exigir que toda a análise séria do meu pensamento e da minha obra tome como referência central esta definição, mil vezes repetidas ao longo dos meus escritos e cursos: filosofia é a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. O corolário imediato desta definição é a identidade profunda de filosofia e educação, identidade da qual decorre a conseqüência incontornável, também mil vezes repetida, de que o objeto formal terminativo da prática filosófica não é uma doutrina, uma exposição teorética, um sistema de argumentos e provas, mas sim a pessoa do filósofo como a consciência capaz de reencontrar, na máxima medida das suas possibilidades pessoais sua própria unidade na unidade dos conhecimentos adquiridos ao longo da vida e de contribuir, também na medida das suas possibilidades pessoais e de sua época, para dar ao universo dos conhecimentos a unidade de um todo inteligível.

Unidade que terá de permanecer necessariamente provisória porque senão o filósofo seria o último. Quando você fala unidade do conhecimento, eu ressalto unidade dos conhecimentos disponíveis. Esta unidade, pelo simples fato de ser um dos conhecimentos disponíveis e não de todo o conhecimento possível, só pode ser uma unidade provisória e altamente problemática. Unidade que se integra por sua vez na unidade da própria consciência do filósofo.

Unidade de consciência não é uma coisa difícil de explicar. Todos nós nascemos e desenvolvemos ao longo da vida tendências, impulsos, necessidades contraditórias. Existe uma tensão em nós. Queremos, como dizia Shakespeare, this man's gifted, that man's goals --- os talentos deste mas os objetivos daquele. Vivemos nessa contradição: nós vivemos querendo o quadrado redondo, a terra do nunca e assim por diante. Eu não conheço uma pessoa que não seja assim.

Também é fato que nós não nascemos com um eu consciente pronto e acabado, nós nascemos com a capacidade para o eu, esta potencialidade para o eu já existe desde que o indivíduo nasce. Porém este eu, como é uma referência do indivíduo a si mesmo, só pode se formar historicamente ao longo do tempo na medida em que ele tenta unificar a sua experiência e se compreender a si próprio como sujeito agente. Então a formação do eu é um negócio altamente problemático.

Eu me referi a isto naquela apostila "O que é a Psique?", mostrando como o eu surge a partir de uma história da psique. E a história não pode existir antes que aconteça alguma coisa, ou seja, você já precisa ter uma série de vivências, uma série de experiências para que você possa começar a distinguir nessa massa de coisas o que é você como sujeito agente e o que são os fatores externos, as ações das outras pessoas, as circunstâncias, etc. e etc.

Se perguntarem de onde tirei esta definição --- a filosofia é a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa ---, eu respondo que foi do material histórico disponível. Examinei o máximo de filosofias que eu pude e perguntei: o que toda essa gente está fazendo? Existe uma estrutura comum por baixo de atividades tão diversas como aquelas desempenhadas por Sócrates, Platão, Wittgenstein, Husserl, Karl Marx etc. ? Encontrar o núcleo comum que permitisse uma definição objetiva da filosofia parecia impossível pelo simples fato de que, como eu mesmo disse, cada filosofia começa por redefinir as finalidades da filosofia --- o Xavier Zubiri, no livro Cinco lecciones de Filosofia mostra exatamente isto: como cada nova concepção filosófica do universo vem junto com uma nova concepção da própria filosofia. Também o Julián Marías, no livro maravilhoso A Biografia da Filosofia, mostra a mesma coisa ---, então em princípio parecia impossível encontrar uma estrutura comum.

Para que essa estrutura pudesse ser encontrada, não poderia ser buscada no nível do conteúdo das filosofias, mas no nível puramente formal. Em outras palavras: designar a filosofia não como um conteúdo, mas como uma atividade, que pode produzir os conteúdos mais disparatados. Se esta atividade não tivesse uma estrutura comum, não justificaria sequer eu continuar usando a mesma palavra "filosofia" para designar coisas muito diferentes. De fato, no meu estudo sobre a história da filosofia, que está na série a História Essencial da Filosofia, verifiquei que há muitas coisas que levam o nome de filosofia, mas que não deveriam.

Por exemplo, duvido que a filosofia de Nietzsche seja realmente uma filosofia, porque ele é contra a filosofia. Ele ataca toda a tradição filosófica como uma coisa que simplesmente não deveria ter sido feita. Ele a ataca não no seu conteúdo, mas difamando os motivos que induzem o indivíduo a filosofar, evidentemente sem base nenhuma. Por que chamar de "filosofia" uma obra que se levanta contra a existência da própria filosofia e pretende impugná-la e substituí-la por uma espécie de decisionismo?

A filosofia de Nietzsche, como bem frisa o historiador John Carroll no livro O Naufrágio da Cultura Ocidental, é último suspiro do Humanismo. O Humanismo surge na Renascença, exatamente com a proposta vagamente associada depois à democracia liberal, como a idéia da autonomia do indivíduo, ou seja, o indivíduo é a sua própria lei. Não há uma lei a que o indivíduo deva se curvar, ele se torna o seu próprio senhor e o formulador de sua própria lei. Está implícito que o ser humano pode se tornar o que ele quiser. E quando surge o Humanismo, aparecem para exemplificá-lo as biografias de grandes homens que conquistaram um poder extraordinário e que, seguindo mais ou menos a instrução de Maquiavel, faziam o que bem entendiam e se inventavam, por assim dizer, a si mesmos, sem ter qualquer lei superior como referência.

Tão logo apareceu, o Humanismo já mostrou a sua autocontradição e a sua imensa fragilidade interna, pelo simples fato de que se um homem --- por exemplo, aqueles condottieri, aqueles comandantes militares da Renascença --- conseguia se formar a si mesmo e se impor como lei de si próprio, e como isso podia condensar um poder extraordinário, ele exerceria este poder sobre quem? Sobre minhocas, sobre lagartixas, sobre macacos? Não, ele o exerceria sobre outros seres humanos que assim eram automaticamente desprovidos da possibilidade de fazer o que queriam porque eram obrigados a fazer o que o chefe queria.

O "homem" do qual falava o Humanismo renascentista, equivalia na verdade a meia dúzia de homens. A capacidade de autonomia, de impor a sua vontade ou a vontade de poder, como dirá mais tarde Nietzsche, não podia ser usada jamais como uma verdade geral da espécie humana, porque ela só se aplicava a determinados indivíduos, em determinadas circunstâncias, e com a condição de que ela não se aplicasse a mais ninguém. É claro que esse Humanismo era uma filosofia absolutamente idiota, baseada numa impressão momentânea, na qual onde se viam aqueles governantes, Lourenzo de Médici e outros, e ficava-se encantado. Havia a famosa estátua esculpida por Donatello de um condottiere, Gattamelata, que mostra a firmeza da sua deliberação. É um indivíduo que governa não pela força física, mas pelo poder organizador da sua inteligência. Mas quem estava sob o domínio dele exercia também a mesma liberdade de consciência e se modelava e se inventava a si mesmo como queria? Claro que não, você tem que obedecer ao governo.

Então a famosa idéia da grandeza da liberdade absoluta do homem não serve jamais como descrição da estrutura humana, porque ela é não um princípio universal, mas um simples dado empírico baseado em fatos de ordem muito limitada. Um sujeito fez isso, outro fez isso, e para isso foi preciso que ninguém mais o fizesse. É exatamente o contrário de uma definição. Seria como se você definisse um leão pela sua capacidade de comer todos os demais leões, o que condicionaria a espécie à própria extinção. É uma coisa tão imbecil que é o caso de perguntar: por que eles pensaram nisso? Leiam o meu livro sobre o Maquiavel e vocês entenderão como aquela época era confusa e como circulavam idéias idiotas. Essa foi uma delas.

Quando Nietzsche escreve os seus livros, o Humanismo já está no fim, porque a suposta liberdade absoluta do ser humano já tinha sido esmagada por revoluções, golpes de Estado, epidemias, etc. Na época, já havia teorias como o darwinismo que reduziam o homem ao joguete de forças naturais que ele não podia controlar de maneira alguma. E teorias que, se não eram verdadeiras em si mesmas, apenas refletiam um estado de espírito que era real, que era o estado de espírito de impotência do ser humano perante o seu destino. Da potência absoluta do condottiere renascentista, tínhamos chegado à impotência absoluta das massas famintas. E das massas russas e francesas esmagadas pela guerra e assim por diante, ou por epidemias. O século XIX foi o século da sífilis e da tuberculose: morria muita gente e ninguém podia fazer nada. Como é que você proclama a grandeza da liberdade, da autonomia humana, se enquanto você está contando vantagem, pega uma sífilis, fica louco e morre? Como aconteceu com o próprio Nietzsche. Então evidentemente era uma saída de leão e chegada de cão.

Toda obra de Nietzsche pode ser explicada --- e John Carroll efetivamente a explica assim --- como um último canto de guerra do Humanismo. Canto de guerra de um moribundo, evidentemente, porque o próprio Nietzsche acaba então enlouquecido pela sífilis e tem como seu último lance um acesso do sentimento que ele mais desprezava, que era a piedade: quando ele vê o sujeito espancando um burro, e o animal morrendo, ele se agarra ao burro, chorando, com piedade. Percebeu-se que o homem estava louco, depois ele foi para o hospício e acabou a história. Esse foi o fim do Humanismo, a expressão de um estado de espírito coletivo, por assim dizer, e não uma filosofia autêntica.

Não posso aceitar a filosofia de Nietzsche como uma filosofia verdadeira por quê? Ela não se enquadra nesta definição, não é uma busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa, ela é apenas a proclamação de um sentimento. É uma obra literária de imenso valor, é um testemunho de época, mas não é filosofia, ainda que lide com assuntos filosóficos. Se eu estou dizendo que a unidade da filosofia não está no conteúdo delas, mas sim na sua forma, então é evidente que o fato de uma obra tratar como matéria filosófica não a torna filosófica. A obra só será filosófica se tratar essa matéria filosoficamente. E se a tratar assim, não importa que a matéria em si não seja filosófica. Você pode falar de qualquer coisa, você pode falar de economia, de biologia, de educação, do que você quiser, desde que você a trate filosoficamente.

Descobri que todos os capítulos notáveis da história da filosofia revelavam que os camaradas estavam tentando fazer exatamente isto: se defrontar com uma espécie de caos cultural, uma multiplicidade de conhecimentos que tinham dentro de si um potencial de contradição, de tensão, de confusão e tentar colocar uma ordem naquele universo de conhecimentos, que era só o disponível em cada época, por meio da reflexão interior que exigia responsabilidade pessoal perante todos esses conhecimentos. Ou seja, o indivíduo tentava adquirir um senso de orientação no conjunto do conhecimento disponível, porém para isto ele tinha de se unificar para ser responsável por suas atitudes intelectuais.

Aos poucos fui chegando à conclusão de que a filosofia era realmente isto, que ela sempre tinha sido isso. Não é uma definição minha, é uma descrição do que os caras estavam fazendo mesmo. Pior: essa definição que eu estou dando é compatível com todas as diferentes definições de filosofia dadas ao longo do tempo. Quer dizer, pouco importa como o sujeito defina a filosofia, o que ele estará fazendo é isto aqui em todos os casos, porque esta definição não se refere ao conteúdo da sua filosofia e sim a forma da sua atividade.

Tanto a definição quanto o seu corolário derivam do exame histórico da origem da filosofia como projeto existencial, tal como se exemplifica paradigmaticamente na pessoa de Sócrates. Expliquei isto extensivamente no capítulo I da minha História Essencial da Filosofia (...).

Vocês devem lembrar do projeto socrático. A filosofia não surge como um conjunto pronto de conhecimentos, nem como uma proposta de doutrina, mas ela surge como um projeto. Projeto que estava incompleto, e que deveria permanecer incompleto, e que iria sendo completado infindavelmente ao longo dos séculos. Como um exemplo disso eu mencionei, por exemplo, o livro de Aristóteles chamado por ele de Questões, ou Perguntas, que é uma lista de milhares de perguntas às quais a maior parte não foi respondida até hoje. Essas perguntas são, por assim dizer, o hormônio que alimenta a mente filosófica, são perguntas que se recusam a seu esforço integrador e ordenador, ou seja, mostram o limite deste esforço. Eu consegui unificar até aqui, mas para além desse limite sobraram abacaxis sem fim que legarei para outros filósofos das próximas gerações.

(...) E voltei ao assunto vezes sem conta ao longo de meus cursos e conferências, jamais tendo encontrado a mais mínima razão para voltar atrás no meu conceito do projeto socrático.

Como defini a filosofia como projeto, ele aceita somente como filósofos os camaradas que tinham aceitado participar do mesmo projeto, ainda que com as concepções mais diferentes. Se o indivíduo rejeita o próprio projeto, então ele quer dizer "eu não quero ser filósofo" --- foi exatamente o que Nietzsche fez. Dificilmente encontramos um escritor com maior cultura filosófica do que Goethe e, no entanto, podemos chamar Goethe de filósofo? Nunca, jamais. Ele nunca quis participar desse projeto. Não há esforço unificador em Goethe, ao contrário, há até um esforço de curtir as impressões do momento independentemente da sua ausência de conexão. Goethe é eminentemente um poeta lírico, um dos maiores da humanidade. E a poesia lírica consiste apenas em registrar impressões, não articulá-las umas com as outras.

Até mesmo entre as diferentes áreas de atuação de Goethe, há abismos difíceis de suprir, de modo que nós percebemos esse homem como fosse vários, desempenhando vários papéis, em momentos diferentes, e demonstrando destreza enorme em todos eles. É possível ver, claro, a unificação da sua personalidade, mas não baseada na unificação do conhecimento.

Se a filosofia fosse essencialmente a construção de uma doutrina, não se poderia falar propriamente de filosofia socrática já que o ensinamento deste pai-fundador da filosofia ocidental não passa de uma conjecturação histórica ex post facto baseada na distinção nebulosa e difícil entre as falas dele e a do discípulo que as registrou por escrito (...).

Até hoje é um abacaxi conseguir separar aquilo que, nos diálogos socráticos de Platão, é o pensamento de Platão e aquilo que é o pensamento de Sócrates. Como um desses pensamentos prossegue e é desenvolvido no outro, não há um limite preciso, então não sabemos exatamente qual é o círculo delimitador do pensamento do próprio Sócrates porque ele não escreveu nada. Como o pensamento dele só é conhecido a partir do registro meio histórico meio ficcional inventado por outro, eu digo: ora, se nós vamos definir a filosofia como uma doutrina, cadê a doutrina de Sócrates? Não sabemos se é de Sócrates, se é de Platão ou se é de um terceiro. Então não existiria.

(...) No entanto, é claro que existe uma filosofia socrática sob a forma da influência educacional e do exemplo transmitido aos discípulos (...)

Neste caso, podemos sim delimitar uma fronteira entre o que é Sócrates e o que é Platão, porque sabemos que foi este influxo de Sócrates que construiu a personalidade intelectual de Platão e não o contrário. Você tem uma seqüência histórica definida. (8)

Se é por vezes inviável distinguir nas doutrinas de Platão o que vem dele e o que vem do seu mestre, é auto-evidente que a inspiração pedagógica vem deste último e não ao contrário. E é nela que consiste eminentemente a filosofia socrática. Paul Friedländer demonstrou extensamente que é impossível separar nessa filosofia, bem como na do próprio Platão, o conteúdo tético (as afirmações) e a irradiação da personalidade no contato direto com os discípulos.

Quanto tomei como objetivo de meus esforços filosóficos o retorno à tradição socrática, aceitei como uma de suas decorrências inevitáveis a dificuldade extremo ou mesmo a impossibilidade total de dar aos meus pensamentos algum dia uma formulação doutrinal acabada, organizada e definitiva. Handicap voluntário que deveria ser compensado, tal como no caso do próprio Sócrates, pela evidência patente dos resultados pedagógicos contidos.

Neste sentido, vejo que a minha carreira de filósofo só começou efetivamente a partir do momento em que eu pude obter alguns resultados pedagógicos e antes houve uma série de tentativas falhadas. Marco esse início na minha ida para Curitiba, em 2001, porque foi a partir dali que comecei a obter resultados e ver a inteligência dos alunos começar a florescer. Pensei: "Opa! Agora acertei a mão". Até então eu costumava dizer para Roxane: "Eu sou o maior fracasso pedagógico da América Latina. Porque os caras vêm aqui nas minhas aulas, assistem, gostam, mas você não vê a pessoa florescer. Você vê às vezes o sujeito pegar duas ou três frases, quando não dois ou três cacoetes, e sair repetindo e imitando aquilo, mas sem florescer efetivamente". Não em todos os casos, evidentemente, havia dois ou três alunos que eu tive em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul que de fato floresceram, mas eram exceções, com a maioria isto não acontecia. Mas, no Paraná, porque é uma sociedade diferente do resto do Brasil - tem até o livro do Wilson Martins, Paraná, um Brasil Diferente - e de fato o Paraná é diferente, tem alguma coisa ---, eu notava o seguinte: aqui as pessoas estudam. Os livros que eu mandava ler, as pessoas liam, levavam a coisa muito a sério, queriam realmente aprender, tinham persistência e humildade muito mais do que em qualquer outra capital brasileira.

Os cariocas: tinham muitas pessoas inteligentes, mas muito falantes, muito superficiais, no dia seguinte esqueciam tudo. Uns até dizem: "Eu venho aqui na aula para recarregar as baterias". Eu digo: "Ah, quer dizer que esvaziou? A carga que eu pus a semana passada já se esvaziou, você veio aqui para se recarregar? Quer dizer, você não é capaz de se auto-recarregar?". Então não está realmente aprendendo. O pessoal de São Paulo é um pouco mais esforçado, mas o paulista é o bicho mais cansado do universo, as pessoas chegavam às aulas destruídas, derrotadas, em parte por causa da poluição ou da quantidade de chumbo no ar, que deixa essa impressão de peso. Você precisava empurrar o bicho, você tinha de fazer massagem cardíaca como numa UTI. No Paraná, o negócio começou a andar. Eu falei: "Opa, agora o carro pegou, depois de vinte anos de tentativa". Então pude rever as minhas experiências anteriores, fazer uma série de correções nos meus métodos pedagógicos e consolidar alguns resultados. A própria existência do Instituto Olavo de Carvalho é sinal de alguma coisa está se consolidando, então não foi tudo em vão.

Eu estava dizendo que tinha praticamente desistido de chegar a dar aos meus pensamentos uma formulação doutrinal definitiva. O conjunto ficaria fragmentário de qualquer jeito, mas o sentido desses esforços revelaria a sua unidade nos seus efeitos pedagógicos. Não só efeitos pedagógicos já obtidos, mas efeitos pedagógicos virtuais, que estão acumulados dentro do material escrito e gravado, e que podem se estender a outras pessoas depois. Tenho certeza que este curso, tal como o concebi e como estou realizando, tem um potencial educacional enorme: ninguém assiste a isso sem que as luzinhas que têm na cabeça comecem a acender, ninguém. No caso do Carlos Nougué ou do Sidney Silveira talvez fosse diferente, pois eles já viriam para recusar: "não quero, não quero aprender". Se você tiver um pouquinho de confiança em mim --- não é devoção do discípulo, não é isso ---, mas basta aquele pouquinho de confiança que você tem num chofer de taxi.

Uma vez, meu pai tomou um taxi e disse: "Vamos para a Penha", o motorista começou a reclamar: "Mas a Penha tem congestionamento...". Meu pai perguntou: "Você não quer me levar para a Penha, então você me leva para a Lapa". A Lapa é o bairro simetricamente oposto. O cara chegou na Lapa e meu pai perguntou para ele: "Muito bem, agora você já veio onde você queria, agora me leva onde eu quero". O velho era original.

Se o sujeito vem firmemente disposto a não aprender, eu não posso impedi-lo de não aprender. Mas o contrário acontecerá, caso você tenha aquele mínimo de confiança que você deposita num chofer de taxi, no homem do posto de combustível quando pede para ele encher o tanque e sabe que ele vai pôr gasolina e não nitroglicerina. E assim por diante.

Eu entendi: não haverá tempo para uma formulação doutrinal acabada, mas existe a unidade de um impulso pedagógico que está sendo dado, cujos sentidos, estilo e tom são perfeitamente reconhecíveis e, pior, funcionam. Vocês mesmos são testemunhas de que funciona.

Levou-me a essa decisão também a consideração do estado de coisas na cultura brasileira a qual, levada ao estado de paciente terminal pela prática contínua e generalizada da delinqüência intelectual ao longo de três gerações, não precisava de uma nova doutrina por bela e respeitável que fosse, mas sim de um vigorosa influência pedagógica apta a reergue-la da abjeta depressão que se afundava.

Um terceiro fator veio a reforçar a minha confiança no caminho que escolhera. Ao estudar a filosofia de René Descartes, que me manteve prisioneiro no seu labirinto por vários anos, acabei descobrindo que a porta de saída da armadilha solipsística aí montada já havia sido aberta com mais de um milênio de antecedência nas Confissões de Santo Agostinho. Se para Descartes "Deus" resumia-se a uma exigência lógica garantida pelo primado do eu, invertendo-se assim na ordem da razão a ordem natural das coisas, Agostinho exatamente ao contrário descobria Deus como fundamento ontológico objetivo encravado no mais fundo da consciência que o eu tem de si mesmo. Exatamente no sentido em que séculos mais tarde Paul Claudel o resumiria na fórmula "Deus é aquele que em mim é mais eu do que eu mesmo".

Esta constatação pode ter até conseqüências na discussão da tal democracia liberal, não no sentido desejado pelo Carlos Nougué - que eu pelo menos não posso atendê-lo - mas num outro, em que a liberdade da consciência individual só existe porque o Deus de Agostinho está lá dentro. O ser humano considerado enquanto ente puramente naturalístico não tem liberdade alguma, a parte naturalística do homem é exatamente aquela que está sujeita ao condicionamento genético, social etc., todos os condicionamentos possíveis. É a parte naturalística que está dividida por fatores inconscientes que o indivíduo não controla de maneira alguma.

E se existe por cima disso uma capacidade para unificação e, portanto, para o exercício da liberdade, é por causa desse fator descoberto por Agostinho. Quando Agostinho diz "Eu sei que sou, mas não sei por que sou" --- ou seja, eu sei que existo, mas não sei por que eu existo ---, então tenho que procurar em mim o fundamento da minha existência. E quando começo a procurar, vejo que eu não poderia me dar jamais este fundamento da minha existência, nem poderia recebê-lo de um treco chamado natureza, que é fundamento da minha existência enquanto corporalidade sujeita aos condicionamentos e não enquanto portador da liberdade de consciência. Isto quer dizer que o livre exercício da liberdade de consciência, se orientado no sentido correto, deve descobrir o que Agostinho descobriu: existe dentro de mim, no fundo de mim, um fundamento, um chão, uma espécie de pedra fundamental que me constituiu. Eu não sei o que é, mas certamente a origem e fundamento da minha liberdade de consciência devem ser mais livres e mais conscientes do que eu.

Este é o sentido de que Deus é o fundamento não só da sua existência, mas da sua personalização. Você mesmo não pode se dar uma personalidade, seria como o Barão de Münchhausen que se puxa para fora da água pelos cabelos. Isso aí não é possível, a liberdade do eu não pode ser criação do próprio eu, é impossível! Tem de haver dentro dela algo que a fundamenta enquanto liberdade e não enquanto ente material condicionado.

Quase simultaneamente o estudo da metafísica hindu a que fora levado pela influência ocasional de Swami Dayanand Saraswati - oh, horror, as fontes heréticas do pensamento de Olavo de Carvalho - me persuadiu que, à luz da imensurabilidade do Absoluto com o Relativo, só Deus é propriamente um eu, uma pessoa em sentido pleno, o único e genuíno "Eu Sou" da narrativa bíblica. O eu humano era apenas uma possibilidade, uma promessa vaga que devia realizar-se parcialmente e à duras penas no confronto e na absorção diária das tremendas forças despersonalizantes de dentro e de fora, que ao mesmo tempo o oprimem e lhe dão a matéria-prima de que ele se irá constituindo aos trancos e barrancos.

Ajudou-me também a entender isso a grandiosa noção do psiquiatra húngaro, Lipot Szondi, um judeu - oh, céus, outro infiel - , do eu que se constrói a si mesmo lançando pontes entre as paixões contraditórias, as vozes dos antepassados mortos que, do fundo do poço genético, o repuxam de um lado e de outro, impelindo-o a repetir os seus destinos trágicos ou patéticos.

Na antropologia de Szondi, a consciência humana se estrutura como uma pirâmide onde numa primeira faixa você tem os impulsos, as pulsões como ele chama, numa segunda faixa você tem o universo psíquico em torno --- sua família, todo mundo ---, numa terceira faixa você tem o ambiente cultural, em cima disso você tem o eu e em cima do eu tem um negócio que ele chama o espírito, que já não está dentro do eu. Só está dentro no sentido de Santo Agostinho: está dentro, mas está tão profundo que eu mesmo já não pego. E eu mesmo não posso apreendê-lo como objeto. Por quê? Porque se ele me origina, ele é aquilo que existe de mais pessoal em mim. Nessa perspectiva, é absolutamente tolo você criar um antagonismo entre a liberdade de consciência e a lei divina, porque se você escapa da lei divina acabou a sua liberdade de consciência. Ela se funda nele, Deus o constituiu como pessoa e não como coisa. Pessoa, portanto, dotada de liberdade de consciência. Quando você vê a fonte da qual jorra a sua própria liberdade não pode apreendê-la como coisa porque seria dominá-la como objeto. É a mesma coisa que matar a galinha dos ovos de ouro.

A consciência individual não precisa de uma autoridade externa que lhe imponha pela força a lei divina, precisa apenas do Magistério que indique o caminho. Pior: se você impõe a coisa pela força, ou seja, o Estado se torna o braço armado da Igreja e impõe a ordem cristã às próprias pessoas, essa ordem cristã se torna um fator materializado e externo que não pode assegurar a liberdade porque começa por estrangular a liberdade. Você entra, então, na dialética que foi a do pensamento revolucionário da França, onde se dizia "nós temos de forçar as pessoas a serem livres". É o mesmo que forçar um quadrado a ser redondo, não é possível; ou forçar um gato a ser uma lagartixa. Quando Cristo disse --- isto é uma coisa fundamental, uma frase que as pessoas esquecem --- "meu jugo é suave", isto quer dizer que ele não pode ser imposto de maneira alguma, porque neste caso se transforma exatamente no contrário.

Claro que a Igreja deve ter uma função ativa e importante na sociedade, deve possuir a hegemonia cultural, mas não pode ter o poder do Estado na mão. Veja no livro maravilhoso de Jacob Burckhardt, Reflexões sobre a História Universal: ele mostra ali a cultura e o Estado como forças antagônicas, uma é força ordenadora, porém limitadora, e a outra é uma força vivificante. A Igreja tem de ter a hegemonia da cultura, não o domínio do Estado porque senão ela se converte no seu contrário e o Estado que ela cria acaba por estrangulá-la, como historicamente aconteceu. Então é perda de tempo discutir se a doutrina de Santo Tomás de Aquino ou o Magistério da Igreja é compatível com a democracia liberal.

Teoricamente não é compatível, são concepções diferentes. Porém, a concepção da democracia liberal não existe enquanto tal, ela não tem substância em si mesma. Ela fala da liberdade individual, porém qual é o conteúdo da liberdade individual? Não pode ser a própria liberdade, tem de ser algo que a transcende. Essa liberdade só existe na medida em que, como no exemplo de Agostinho, ela se move na direção da sua fonte e se deixa vivificar por esta fonte que é Deus. Nem pode vigorar na sociedade a liberdade abstrata de consciência na qual o indivíduo se torna a força suprema e é o centro decisório supremo, não aceitando nada acima dele, nem pode vigorar uma ordem cristã imposta de cima para baixo pelo Estado. Essas duas coisas são apenas noções abstratas que, como dizia Hegel --- ele era um charlatão sob certos aspectos, mas um gênio sob outros ---, quando uma noção abstrata tenta se realizar na realidade histórica, ela se converte na sua contrária.

A forma abstrata, perfeitinha etc. vai se preencher de um conteúdo caótico que são os dados materiais em torno. Quando este material caótico se insere dentro do modelo, ele se estoura e vira o seu contrário. Temos, então, a sociedade cristã de Santo Tomás de Aquino. Ela o Estado cristão armado que vai lá e corta a cabeça do Papa. Exemplo: o caso que eu comentei no livro O Jardim das Aflições, a luta entre o rei da França, Filipe o Belo, e o Papa. Filipe, o Belo, tinha sido constituído pela própria Igreja, sagrado pela própria Igreja e, em seguida, se voltou contra ela, como já aparece no mito antigo, de que fala o estudo do René Guénon sobre o javali e a ursa --- o javali representa a autoridade sacerdotal e a ursa, o poder temporal. A experiência histórica mostra que todo poder temporal constituído por uma autoridade espiritual se volta contra ela inevitavelmente.

Se tomarmos a democracia liberal como império absoluto da autonomia individual acima do qual ou abaixo do qual não há nenhuma lei reguladora, não há uma autoridade divina, então a democracia liberal se esgota, se esvazia, porque se trata justamente da liberdade oca. E dentro da liberdade oca cabe qualquer coisa. Então em nome da liberdade você acaba fazendo o contrário dela, como aconteceu exatamente na Revolução Francesa.

A humanidade tem vivido e obtido os seus resultados melhores tensão que existe entre a democracia liberal e o ensinamento da Igreja. Quando se diz "tensão", estou querendo dizer que uma conciliação doutrinal é impossível, mas a coexistência prática tem sido fecunda e benéfica. Por que isso acontece? Não sei. Não tem explicação para isso, eu estou apenas constatando uma coisa que existe.

Se a filosofia era a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa, como toda a evidência ela era a mesma coisa que a luta do eu para transformar a experiência em conhecimento, o conhecimento em autoconhecimento e o autoconhecimento em medida de aferição da importância e valor dos conhecimentos. A filosofia era, portanto, a conquista da responsabilidade cognitiva pessoal na máxima medida acessível ao ser humano. Mas se era assim, tornava-se claro de que não havia para isso outro método adequado senão aquele anunciado pelo próprio Agostinho.

A confissão como método essencial da filosofia é outro tema abundantemente passado e repassado nos meus cursos. Esse método já havia sido esboçado nas conversações de Sócrates, mas foi Agostinho que lhe deu a consagração formal e definitiva. A confissão agostiniana não é somente uma narrativa, muito menos uma narrativa só de pecados. É o ato no qual a alma se abre a um ouvinte observador onisciente ao qual não pode ocultar ou revelar nada que ele já não saiba (...)

Note: não é a mesma coisa que contar a sua vida para uma pessoa, para um grupo de pessoas ou para si mesmo e você "contá-la" para um ouvinte observador onisciente que já o conhece melhor do que você. Faça essa hipótese por cinco minutos: vou meditar sobre mim mesmo, vou lembrar a minha vida, lembrar os meus atos, meus pensamentos, meus estados interiores etc., o encadeamento temporal de tudo isso. Porém, dentro de mim, no fundo de mim, desconhecido e invisível para mim, está alguém que sabe tudo isso e tem a chave da minha vida inteira não só passada, como futura. Só de você fazer essa experiência, os dados da sua vida começam a aparecer com uma clareza que você não tem e não pode obter por nenhum outro meio. Falar para o observador onisciente é, pela primeira vez na sua vida, você obter a escala da sinceridade perfeita: só para Deus você pode ser totalmente sincero. Qualquer outro ouvinte tem as suas limitações pessoais e naturalmente você sabe mais do que ele.

Eu posso inventar completamente a minha vida para um desconhecido e ele não vai saber se eu estou falando a verdade ou mentira. Eu digo que nasci na Zâmbia, daí fui sequestrado por piratas que me venderam em Cuba, de onde fugi para os EUA, e estou aqui agora como imigrante ilegal. Conto essa história e quem vai dizer que não? Se eu falo para uma pessoa que me conhece mais ou menos, não posso mentir totalmente, mas tem um monte de coisa sobre a qual posso mentir. Se eu falo para uma pessoa que me conhece bem, ela só conhece uma parte, as minhas idéias, os meus sentimentos profundos ela não conhece, eu posso mentir também, e tudo o que ela não viu, eu posso inventar. Está aqui ao meu lado minha mulher Roxane. Eu vivo mentindo para ela, engano a mulher que é uma coisa horrorosa, ela acredita em tudo.

Perante qualquer observador ouvinte humano você tem o poder de falsificar. Mas, de repente, estou eu aqui falando com o observador onisciente. Até as palavras que vou usar são falsas perante Ele, porque Ele sabe palavras melhores para dizer o que eu sei a meu respeito. Por quê? Porque dentro de mim Ele é mais eu do que eu mesmo, é a fonte da minha autenticidade, a raiz da minha sinceridade. Essa experiência descoberta por Agostinho partiu de um Sacramento da Igreja, mas deu a ele uma riqueza filosófica, uma riqueza cognitiva que as pessoas não suspeitavam antes. E já tinham se passado quatro séculos de Cristianismo e ninguém percebera que as coisas eram assim. O que Agostinho deu à humanidade não tem preço. Ele é o primeiro sujeito que ensinou ao ser humano: como é que você pode ser você mesmo, o que é ser sincero, o que é viver na verdade. Viver na verdade não é aderir a uma doutrina, nem mesmo à católica; viver na verdade é isso o que Agostinho ensinou. Nem mesmo a confissão enquanto sacramento o substitui. Por quê? Porque esse Sacramento só vale se você tiver feito esta confissão perante Deus antes.

Se você confessar: "Fiz esse pecado, esse pecado...", pode se questionar em seguida: por que cometeu esses pecados? Será que não tem outro pecado mais profundo dentro? Não tem uma mentira terrível que existe dentro de você? Será que você não é feito até de uma substância genética falsificante? Será que você não é inteiramente uma farsa? Se você nunca parou para pensar nisso, então você não sabe quais são os seus pecados. Você vai chegar lá no padre: "roubei uma bolinha de gude, colei na prova, toquei uma punheta", é isso que você vai falar? Não seja ridículo, meu filho, isso não é uma confissão. Confissão é o que Agostinho ensinou a fazer. Se você faz essa meditação antes, então é claro que não vai dar para você reproduzir tudo para o padre. Faça um resuminho --- fiz isso, mais isso, mais isso ---, mas a intenção com que você confessa é a intenção do seu coração em sentido pleno, e não somente preencher um formulário: fiz isso, mais isso e mais isso.

Aluno: É um exame de consciência.

Olavo: Um exame de consciência, exatamente. É você quem fará o exame de consciência? Você o fará sozinho, escondido no seu quarto? Deus não está vendo, não? Fazer o exame de consciência é o que o Agostinho chama de confissão. Quer dizer, a confissão sacramental só vale se tiver sido precedida desta pelo menos em intenção. Eu tive essa experiência muitas vezes: começo a pensar os pecados que vou confessar, mas os pecados isolados não existiriam simplesmente se não houvesse um outro pecado mais profundo, ou seja, eu menti para Deus, eu me escondi Dele como Caim, e por isso cometi os outros pecados. Este é o pecado principal. Se eu me escondi de Deus, eu me escondi de mim mesmo, então eu sou um farsante.

Quem não confessa diariamente que é um farsante, não tem idéia do que é sinceridade. Quer dizer, a necessidade da farsa está colocada na própria constituição humana pelo Pecado Original. Qual é o pecado de Eva? Eva acredita na mentira. O que é o demônio? Mentiroso e pai da mentira. Então isto quer dizer que a mentira está encrustada em nós pelo Pecado Original. É a mentira, não são os pecados do sexo, não é a cobiça de dinheiro, não é a violência, a ira, não é nada disso. Isto e tudo secundário, isso são os efeitos, a raiz da coisa é a mentira. E daí a mentira piora. Quando Deus cobra de Caim, ele responde: "Não estou sabendo de nada", é como o Lula, "eu não sabia de nada". Nós fazemos isto todo dia e temos de desfazer. Esse autodesmascaramento profundo que começa evidentemente com uma constatação deprimente, mas prossegue numa libertação maravilhosa, é a essência da confissão agostiniana. Se você quer saber, eu acho que isso é o maior presente que o filósofo deu à humanidade: ensinar a arte da confissão.

(...) [A confissão] é o ato no qual a alma se abre a um ouvinte observador onisciente ao qual não pode ocultar ou revelar nada que ele já não saiba. Não é preciso dizer que a eficácia deste ato é algo que depende inteiramente da fé, é algo que não pode ser simulado. A simulação encerraria a alma nos limites do seu próprio domínio (...)

Se faço uma simulação, algo que eu mesmo inventei, então tudo o que estou mostrando para mim é um teatrinho que eu mesmo montei, deixando de fora aquilo que eu não quero ver.

(...) é algo que não pode ser simulado. A simulação encerraria a alma nos limites do seu próprio domínio na redundância do já sabido. A autenticidade da fé, ao contrário, determina a sinceridade da abertura em que a alma, confessando o que sabe, recebe em resposta a revelação do que não sabia.

Tão logo você começa a se confessar para Deus, você descobre coisas de você mesmo. Descobre, por baixo de um pecado, outro pecado mais grave, e outro, e outro, e outro, e você descobre que você está lá enrolando Deus como Eva fez ou Caim fez, de novo. Enrolando Deus e a você mesmo. Então a descoberta e desmantelamento da farsa interior é condição básica. E é claro que isso não acontece sem que no mesmo ato se fortaleça a sua sinceridade, a sua autenticidade e, portanto, a sua aproximação com a sua própria voz. Você aprende a falar na sua própria voz. No seu tom, na medida certa, aquele tom no qual você fala ao próprio Deus. E daí você começa a falar para as pessoas como se estivesse falando com Deus: Ele está lhe ouvindo e você está abrindo o seu coração inteiramente naquele mesmo momento. Você está acertando a mão, achou o seu estilo. É como aqueles jogos de quebra-cabeça que uma pecinha encaixa na outra, na outra e na outra e formou uma linha.

Já na Anamnese socrático-platônica, a alma, ao admitir que sabe aquilo que sabe (...)

Note bem, na confissão você começa por admitir o que você já sabe, e daí você descobre por baixo dela uma coisa que você não sabia, mas que é verdadeira substância do que você sabia.

(...) a alma, ao admitir que sabe aquilo que sabe, descobria saber mais do que imaginava (...)

É o que nós vemos no diálogo Mênon onde Sócrates interroga o escravo e mostra que ele conhece os princípios da geometria sem saber que conhece, porque esses princípios estão implícitos no raciocínio que ele faz. Existe um raciocínio de superfície que ele está fazendo, por baixo tem um outro raciocínio mais profundo que ele não sabe que está operando mas que é que o verdadeiro fundamento daquele.

(...) Platão simboliza esse fenômeno pelo mito da preexistência. Você não precisa aceitar literalmente o mito para entender do que ele está falando, mas sem alguma experiência viva da anamnese platônica ou da confissão agostiniana você se arrisca a cair numa discussão estéril da preexistência como tese literal, (...)

Ou seja, você passa para a maldita discussão doutrinal. Você sai do exame da realidade, da sua própria realidade, para a comparação de teses. Ou seja, a atividade mental prioritária e única das cabeças como o sr. Nogué, o sr. Silveira e outros tantos.

(...) cair numa discussão estéril da preexistência como tese literal, alegando, por exemplo, que ela contraria a doutrina cristã da criação da alma (...).

Não podemos ter uma preexistência porque Deus nos criou como uma novidade absoluta. Eu abordei isso na outra aula, mostrando que de fato não há contradição prática entre a doutrina da preexistência e a doutrina da criação da alma como novidade absoluta. Não vamos repetir isso agora, mas você lembram.

(...) [você vai] cair numa discussão estéril (...), alegando, por exemplo, que ela contraria a doutrina cristã da criação da alma. Como suponho que você é inteligente, dispenso-me de explicar por que você não deve fazer isso.

Agostinho dá a essa experiência um upgrade monumental, substituindo o interrogador filosófico pelo próprio Deus (...)

No diálogo Mênon quem observa o raciocínio do escravo e o completa é Sócrates. Um ser humano apenas mais inteligente do que o outro que o vai guiando.

(...) Quando Agostinho substitui o interrogador filosófico pelo próprio Deus, o que acontece? A anamnese deixa de ser uma lenta e trabalhosa escalada dialética para se tornar a abertura instantânea da alma à experiência direta das suas próprias dimensões interiores de profundidade e altura (...).

Então a sua dimensão de inferno e de céu aparece não como uma conclusão dialética mas como algo que você está vivenciando naquele mesmo momento. Por exemplo, quando por trás de um pecado material que eu cometi, eu descubro o caráter farsesco das minhas relações com Deus e vejo que estou novamente agindo como Eva e Caim, me escondendo de Deus. Na hora, descubro que estou me escondendo Dele, e paro de me ocultar na mesma hora: "opa, Ele já me pegou, Ele já viu, Ele sabe de tudo". Pior: eu também sabia de tudo. Então aparece a dimensão do abissal e do celeste, como elementos que constituem a realidade da sua alma, não como doutrinas sobre a vida após a morte ou sobre a punição e a recompensa --- nada. Aparece como experiência real, você está vendo essa dimensão dentro de você.

(...) De algum modo já está dada aí a visão dantesca que num relance percorre a distância do inferno ao céu, a escala inteira das possibilidades humanas (...)

Quem não teve essa experiência repetidas vezes não tem profundidade. Não tem profundidade, não tem autenticidade, não sabe quem é, vive num estado de alienação, vive num teatrinho mental da sua própria invenção.

(...) A confissão evidentemente jamais acaba. Uma vez que você a experimentou, vai retornar a ela de novo e de novo e de novo, até aprender a viver em permanente estado de confissão. O estado de confissão por sua vez é a preparação (...)

Isto quer dizer que, por exemplo, o que estou falando aqui para vocês é exatamente o que falo para Deus. Eu estou falando no mesmo tom, no mesmo sentido e com a consciência do observador onisciente que está presente não só em mim, mas em todos vocês.

(...) O estado de confissão por sua vez é a preparação para a confissão final em que a alma, diante da morte, já nada tem a esconder de si mesmo e pode se entregar a Deus na sua inteireza (...).

É claro que nós, em cada confissão, em cada meditação agostiniana, devemos falar como se estivéssemos às portas da morte. Mas o fato é que não estamos, ainda vamos fazer alguma coisinha. Pelo menos você espera terminar a confissão, não espera? Você não sabe o que vai ser o seu futuro, você não tem controle dele, não pode saber os seus pecados futuros e não adianta tentar confessá-los agora, seria uma palhaçada. Mas chegará um dia em que você vai estar realmente diante da morte. Ou pelo menos você acreditará piamente que está diante da morte, pode estar num estado terminar e depois voltar à vida. Mas é preciso que você creia que está realmente diante da morte, e aí você vai fazer a confissão final. Esta é a sua confissão de vida inteira, e daí você está pronto para o encontro final, para ser reabsorvido na eternidade e estar com Deus por toda a eternidade.

(...) o método agostiniano da confissão é assim a via prática pela qual se realiza o ideal platônico da filosofia como um aprender a morrer (...).

Platão dizia que a filosofia é um aprender a morrer. Só que ele não diz como é que se faz isso. Quem disse? Agostinho disse e é assim que se faz.

(...) É só desse posto privilegiado de observação que a expressão unidade do conhecimento passa a fazer algum sentido. Uma unidade material, uma organização enciclopédica do conhecimento disponível, sabemos que não existe. Não existe também a unidade formal de uma doutrina superabrangente de cujos princípios universais se deduzem hierarquicamente todas as ciências, todas as artes, todos os conhecimentos especiais.

Isso não existe. Nem a doutrina da Igreja é isso. Se a doutrina da Igreja fosse isso, seria preciso que ela já tivesse explicado todas as coisas. O simples fato da existência de uma história da doutrina da Igreja, do desenvolvimento do dogma, mostra que ela não é isso, senão ela estaria pronta desde o primeiro dia.

O método agostiniano da confissão é a técnica prática pela qual se realiza o aprendizado platônico da morte. E é neste aprendizado que o conjunto dos conhecimentos disponíveis adquire um sentido como totalidade que compõe a substância cognitiva da minha alma, onde tudo o que sei se torna importante para a minha confissão. E aquilo que não é importante para a minha confissão não tem importância nenhuma.

Essas explicações aqui foram, não digo inspiradas, mas estimuladas por esta outra discussão com esses dois idiotas, Sidney Silveira e Carlos Nougué, aos quais portanto estamos muito gratos por isto.

Transcrição realizada por Jussara Reis de Abreu

Revisão: Fernando José da Silva

Footnotes

  1. V. http://www.olavodecarvalho.org/textos/091120tanquerey.html. O trecho referia-se aos artigos "Filósofo boca-suja?" (http://contraimpugnantes.blogspot.com/2009/09/filosofo-boca-suja.html) e "Ainda o filósofo boca-suja" (http://contraimpugnantes.blogspot.com/2009/09/ainda-sobre-o-filosofo-boca-suja.html). Note-se que, ao retornar ao assunto neste segundo texto, o autor nem em sonhos tentava retificar a falsa impressão de que o filósofo acusado usara de palavrões contra "adversários filosóficos" e não contra políticos ladrões, líderes genocidas, seqüestradores, traficantes de drogas e tipos similares, que são os alvos costumeiros das minhas investidas radiofônicas. Fazendo-se novamente de humilde servidor da Igreja, reincidia na difamação com os ares mais inocentes do mundo. Também aí nada respondi, esperando que o episódio não voltasse a repetir-se, poupando-me assim o enfrentamento público com alguém que, malgrado tudo, era um católico.

  2. Diga ele o que disser, não há desculpa para quem, ao ler uma crítica a algo chamado "neotomismo", tente dar a impressão de que a crítica se refere a autores que viveram dois, três ou sete séculos antes da eclosão desse movimento. Foi mediante esse truque sórdido, impossível de ser praticado por erro inocente, que o Sr. Silveira, para me tornar abominável aos olhos da Igreja, tentou fazer de mim um inimigo de todos filósofos tomistas. Se isso não é difamação, a palavra "difamação" mudou de sentido.

  3. Id.

  4. Os casos da Espanha e de Portugal sob Salazar e Franco merecem um estudo em separado, mas aí a pergunta teria de ser: "É possível conciliar as doutrinas de Sto. Tomás com o fascismo?"