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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 93

05 de fevereiro de 2011

Boa noite, sejam bem-vindos.

A partir desta aula eu queria começar um trabalho, do qual já tenho alguma experiência dos cursos anteriores e que sempre deu os melhores resultados, é o que nós chamamos "aula de repetição". Funciona assim: nós nomeamos um monitor voluntário (ou obrigatório), e ele repete a aula de memória --- podendo tomar notas, evidentemente --- para um determinado grupo. Quando eu digo que "ele deve dar a mesma aula", ele deve interpretar esse "a mesma" no melhor sentido que possa e que deseje, na verdade. Mas isso supõe que os alunos estejam reunidos em grupos.

Eu sei que em alguns lugares há grupos que se reúnem, como, por exemplo, no Paraná, em Santos. Eu desejaria saber quais desses grupos existem. Por favor, me avisem pelo próprio site do Seminário -- ou escrevam para o Silvio Grimaldo -- quais os grupos que existem, quantas pessoas têm e se poderiam se reunir em um dia da semana, (fora do sábado), para a aula de repetição. Para os que não participam de grupo algum, seria necessário encontramos outra solução (outra transmissão, num outro dia, para a aula de repetição). Mas aulas de repetição devem entrar em vigor já esta semana para aqueles que participam de algum grupo, os outros nós vamos pensar numa outra solução.

Para esta aula, nós temos um texto do Félix Ravaisson. Ravaisson é um dos meus heróis filosóficos. Para mim, as obras dele são verdadeiros modelos de análise filosófica, especialmente a grande obra que ele consagrou a Aristóteles em dois volumes [Ensaio sobre a metafísica de Aristóteles, 1837 e acréscimos em 1846]. Embora tenha vivido uma longa vida, Ravaisson não escreveu muito, ele é mais conhecido pelo trabalho sobre Aristóteles e por dois livros bastante curtos: um que se chama Do Hábito e este Testamento Filosófico que é um texto que ele deixou sem título. Esse título foi dado pelo editor do texto, Xavier Léon, na primeira edição em 1901.

No texto há vários trechos entre colchetes que se encontram nas notas do autor depois da primeira edição e que foram acrescentadas na segunda edição, em 1933. Por agora esqueçam os colchetes, nós vamos ler continuamente porque esses trechos se integram perfeitamente nos lugares devidos e foram marcados pelo autor para serem enxertados precisamente nesses lugares.

Eu vou ler o texto inteiro uma vez --- vocês lêem comigo ---, depois nós vamos voltar e comentar. Não temos aqui a tradução inteira, o texto tem aproximadamente 40 a 50 páginas, no total. Eu traduzi até um ponto que me parecia fechar a unidade de uma parte da exposição, e pretendo continuar a tradução, não necessariamente para próxima aula, mas quando me parecer pertinente.

Então vamos começar a leitura:

Bossuet disse: "Quando Deus formou as entranhas do homem, colocou nelas, em primeiro lugar, a bondade." Não é menos verdade que desde os tempos mais antigos o maior número acabou cedendo às tentações do egoísmo, julgando-se, segundo o adágio estóico, como que recomendado a si mesmo pela natureza bem mais que os outros e tomando-se, se não como o único, ao menos como o principal centro de suas próprias ações. Ora, diz Bacon, pobre centro para as ações de um homem é ele próprio.

Mortais de elite permaneceram fiéis ao impulso originário, simpáticos a tudo o que os rodeava, acreditando-se nascidos -- segundo um outro dito estóico -- não para si mesmos, mas para o mundo inteiro. Foram esses que os gregos acreditaram filhos dos deuses e aos quais chamaram heróis.

A grandeza de alma era o próprio dos heróis. A sorte dos demais tocava-os como a deles próprios. Tinham consciência de uma força, dentro deles, que os punha em condição de elevar-se acima das circunstâncias, que os dispunha a ir em socorro dos fracos. Acreditavam-se chamados, por sua origem, a libertar a terra dos monstros que a infestavam.

Tal havia sido, sobretudo, o filho de Júpiter, Hércules, tão valente quanto compassivo, sempre prestativo aos oprimidos, e que encerrou sua gloriosa carreira subindo ao Olimpo. Tocado de compaixão por um velho a quem um leão temível devorara o filho, Hércules foi combater esse leão e revestiu-se de seus despojos para sempre. De outra feita, sua compaixão por Alceste levou-o aos infernos para tirá-lo de lá.

Um outro, Teseu, o Hércules ateniense, após ter descido ao labirinto para libertar cativos destinados a tornar-se a presa de um monstro, ergueu no meio de Atenas um altar à Piedade, honrando nela uma deusa. Da cidade que fundara, ele queria que a Piedade fosse como que a inspiração. Acrescentemos que, verossimilmente, a Piedade não era aí senão outro nome da grande deusa Vênus, a deusa do amor e da paz, à qual parece ter sido consagrada originariamente a Acrópole.

O herói da Ilíada, Aquiles, após ter-se vingado furiosamente em Heitor a morte de seu amigo, deixa-se, no fim do poema, vergar pelas preces do velho Príamo e lhe entrega os restos mortais do filho. O grande poema helênico não celebra tanto a cólera de Aquiles quanto sua compaixão pelo velho pai daquele que matara seu amigo e do qual ele próprio matara o filho. É na sua piedade, sobretudo, que se faz reconhecer aquilo que seu coração tem de grande. Magnânimo -- tal é o epíteto que caracteriza, mais que qualquer outro, os heróis.

Tal como fosse o herói, assim ele concebia os deuses dos quais tudo tinha recebido. Homero, ainda imbuído das máximas heróicas, chama-os doadores de bens. Afrodite, a rainha do céu, deusa da beleza e do amor, é chamada por excelência a doadora (Dorites), numa época em que se acreditava que tudo tinha vindo da terra, mesmo os astros, representava-se o deus que nela reinava como a um tempo opulento e generoso: Plutão, o Rico, era seu nome entre os gregos; Dives, também o Rico, entre os latinos. Plutão, nos antigos monumentos, porta com freqüência um chifre de abundância transbordante de frutos, e Serapis, que assume tardiamente o seu lugar, um alqueire. (...)

Alqueire: hoje, usa-se a palavra só como unidade de medida de terra, mas também era usada como medida de cereais. Não há um termo atual no português que designe isso.

(...) Plutão, também com freqüência, porta aquela espécie de forcado que se tomou como arma colocada pelos pintores, Rafael entre outros, na mão de Satã, mas que, na realidade, era a enxada com que se tiravam da terra os frutos que ela continha, dos quais se acreditava terem vivido os primeiros homens; é por isso que a Odisséia localiza nos infernos uma pradaria de asfódelos, e não, como o acreditou Welcker, por causa do aspecto pretensamente sinistro dessa planta.

O deus hindu Purusha partilha seus membros entre seus adoradores. Ceres, Baco nos mistérios de Elêusis, servem de alimento aos iniciados, pois Ceres é o pão mesmo, e Baco é o vinho. (Nota: E no Cristianismo o Salvador, às vésperas de morrer pelos seus, dá por alimento e bebida sua carne e seu sangue. Foi também o pensamento da Eucaristia cristã que a substância que devia preparar para a imortalidade a vida das criaturas não era outra senão o Criador. E essa substância não é outra coisa, em definitivo, senão o amor, cuja [00:10] natureza mesma é doar-se).

Por toda parte, então, na antiga mitologia, vê-se a crença na beneficência divina. Longe de que reinassem entre os homens e entre suas famílias somente a desconfiança e o ódio --- como o acreditou, depois de Petrônio e Hobbes, o autor da Cidade Antiga, Foustel de Coulange ---, nada ali era mais honrado que a hospitalidade. O estrangeiro, se nada anunciasse nele um inimigo, era acolhido como um enviado do alto. Sacrificava-se, para festejá-lo, o que se tivesse de mais precioso. Certo homem, diz Tácito, após ter recebido um hóspede, ficou reduzido pelo resto de seus dias à mendicância.

Os homens do vulgo, não encontrando em si mesmos nenhuma força e nenhuma grandeza, não viam em torno senão fraqueza e pequenez.

Pequenez é também aquilo a que se reduz toda a sua filosofia, e pouca ofensa se lhe faria ao chamá-la de niilismo. Homens de nada, os homens do vulgo não encontravam dificuldade em admitir que tudo tinha se formado do nada.

Na consciência da sua fraqueza, o homem do vulgo não acreditava ter outro destino senão manter, entre os assaltos das circunstâncias, pelo tempo mais longo possível, uma existência precária; adquirir para viver era quase que a sua única preocupação. Se os fenômenos que se passavam em torno dele o faziam crer em potências invisíveis das quais dependia, era como em seres avarentos e invejosos dos quais devia esperar pouco de bom e muito de mau.

Os heróis faziam das coisas e do destino humano idéias totalmente diferentes.

Para esses homens de elite ou de raça, que Descartes e depois Leibniz chamarão os generosos, cada um tem uma alma cujo caráter é ser simpática a todas as outras, que existe nelas tanto ou mais do que nele próprio, e que é assim o que se poderia chamar uma simplicidade complexa ou uma simplicidade múltipla.

O que ele encontra em si, cada um desses personagens o reconhece de bom grado nos outros. O generoso, segundo Descartes e Leibniz, tem a consciência de portar em si uma força pela qual ele é senhor de si mesmo, que constitui a sua dignidade e constitui igualmente a dignidade de todos os outros. Bem mais, ele está disposto a reconhecer em todos os seres, de qualquer ordem que sejam, algo de análogo. É a crença formal de Leibniz, e talvez seja só em aparência que Descartes não reconhece senão na humanidade a existência da alma. "É difícil, dizia Bossuet, acreditar que naqueles corpos que, para ressaltar a superioridade do espírito, ele reduzia à simples extensão, ele não tenha suposto também alguma coisa de mais profundo."

A crença que portanto deve ter sido no fundo a dos grandes espíritos dos primeiros tempos é que, como disse o mais antigo dos filósofos, Tales, tudo estava cheio de almas e verossimilmente essas almas, por diferentes que fossem, nem por isso deixavam de ser uma só e mesma coisa cuja raiz era a divindade.

Assim formaram-se, desde os tempos mais antigos, duas maneiras diferentes de compreender as coisas: de acordo com uma, elas reduziam-se quase que inteiramente a corpos inertes esparsos, que o acaso cego reunia ou dispersava no vazio; segundo a outra, potências ocultas, almas ou deuses, tinham feito tudo e dirigiam o mundo. Dessas duas maneiras de pensar deviam sair, pouco a pouco, duas filosofias. Uma, que Cícero chama plebéia, que no século XVIII Berkeley chama filosofia pequena e Leibniz paupertina philosophia, é a dos Demócritos e dos Epicuros, cujos principais fatores foram os sentidos e o entendimento, o entendimento sendo o auxiliar natural das matemáticas. A outra, que se poderia chamar real ou aristocrática, é a de Sócrates, de Platão, de Aristóteles e de seus semelhantes. A primeira, buscando princípios nas coisas inferiores, que são para as superiores o que os materiais são para as formas em que aparecem a ordem e a beleza, pode ser denominada o materialismo. A segunda, em oposição, como o sutil e o fino se opõe ao grosseiro, pode ser chamada a filosofia espiritual ou espiritualista.

Segundo a filosofia que, desenvolvida, se tornaria o epicurismo, e que as opiniões do vulgo já continham em germe, nada se conhecia senão aquilo do qual davam testemunho os sentidos, nada que não fosse corpo ou acidente dos corpos. Cada um estava assim encerrado estreitamente em si mesmo, unicamente ocupado dos bens e dos males que o são para os sentidos físicos. Donde somente as sensações, tal como o proclamaram os Sofistas, eram a medida de todas as coisas.

Um homem de espírito heróico, superior às preocupações vulgares, Sócrates, compreendeu que com essa doutrina as sociedades não podiam subsistir. Persuadido de que além das coisas sensíveis havia outras das quais elas dependiam e que não se conheciam senão pela inteligência, ele fez observar que havia regras para o discernimento do bem e do mal, do justo e do injusto, sem as quais nenhum acordo poderia se estabelecer nem subsistir. Ele provou que havia generalidades comuns aos indivíduos e, em conseqüência, uma ciência que devia prevalecer sobre as suas estreitas conveniências.

Platão foi mais longe. Pareceu-lhe que todas as coisas sensíveis deviam ter modelos inteligíveis das suas qualidades, dos quais elas eram semelhanças imperfeitas e que constituíam os únicos seres verdadeiros. Eram as formas ou idéias imutáveis, das quais as coisas da natureza se revestiam passageiramente, como uma matéria dócil. Mas isso era tomar, como causas, simples modos, extratos que faz das coisas o entendimento, e que não têm uma existência real senão nos indivíduos. Era erigir como princípios abstrações criadas pelo entendimento. Era cair no erro assinalado por Tácito com estas palavras, aplicáveis a toda idolatria: forjamos e ao mesmo tempo cremos, fingunt simul creduntque.

[Esse erro desempenhará um grande papel em toda a história da filosofia. O entendimento tem essa faculdade de destacar, umas das outras, coisas que na realidade estão juntas -- é o que se chama a faculdade de abstração. Assim constituem-se as idéias que na realidade são pensamentos, atos de inteligência.]

Aristóteles fez observar que aquilo que assim está em muitas coisas ao mesmo tempo, ou o geral, não existe em si, mas no pensamento que o cria. Só o indivíduo existe dessa maneira e só ele, em conseqüência, pode ser um princípio, uma causa de existência.

[Como admitir que tais abstrações possam explicar o movimento e a vida que é toda a natureza? Elas seriam, antes, causas de imobilidade. Ao sistema todo intelectual e lógico de Platão, Aristóteles vem substituir um outro onde o elemento prático, negligenciado ou desdenhado pelo idealismo platônico, desempenha o papel principal. Em lugar de puras idéias, as causas primeiras aí são almas, fontes de movimento e de vida.]

Platão toma simples atributos como seres. É que há diversos sentidos da palavra ser, e distingui-los deve ser o começo da filosofia, que tem por objeto o ser.

No tempo de Platão, acrescenta Aristóteles, não se podia fazer essa distinção. A dialética não tinha ainda a força de examinar o ser fora dos contrários. [Buscar uma razão para tudo, ao passo que certas coisas e precisamente as mais altas se conhecem imediatamente por intuição e por analogia, é uma fraqueza do entendimento -- fraco, sem dúvida, porque lhe falta a força intuitiva para ir ao princípio.] É o que ele pretendeu fazer ao estabelecer, como que na entrada da filosofia, a distinção das diferentes categorias. Era inaugurar, de encontro a uma teoria de abstrações que não faziam, como ele o diz, senão duplicar os objetos que se tratava de explicar, uma investigação da realidade profunda que eles ocultavam. Empreender essa iniciativa, dirigindo-se à consciência como fonte da verdade profunda, era avançar na via que tinha sido aberta pelo antigo heroísmo. E quem estava melhor preparado para esse empreendimento do que aquele que, versado no conhecimento de todas as realidades, seja físicas, seja humanas, foi o preceptor do último dos heróis gregos, Alexandre?

[O coração forte deseja o ser (Schelling), não se contenta com sombras, ídolos ou fantasmas.

As pessoas de pouca importância contentam-se com pretensos princípios que seriam nadas, quase sem uma quantidade de abstrações de ordem superior aos fenômenos; ou, se a sua inteligência exige mais, como é o caso dos platônicos, lhes bastarão ainda abstrações de ordem superior aos fenômenos, que regulariam o curso [00:20] deles, mas ainda não envolvem realidade.

O coração, contendo vontade e sensibilidade, exigia mais. Era-lhe necessário aquilo que exige Schelling, o ser que existe, isto é, ao qual se dirige uma experiência, tal como o ser que se pensa, que se toca na consciência. Era o voto secreto das almas enérgicas, dos heróis antes de tudo, voto do qual dão testemunho suas ações.]

Aristóteles quer assim voltar da secura e insuficiência lógica ou racional à riqueza fecunda da experiência; da descontinuidade à solidariedade; do artificial ao natural. [Ele foi guiado por um sentimento vivo da realidade. Desse momento data o começo da filosofia positiva. Em lugar de uma noção abstrata e vaga, uma noção precisa. É que, em lugar de servir-se da faculdade de abstração e de generalização que constitui aquela parte da alma chamada o entendimento, ele escutou a faculdade prática, que compreende a sensibilidade e a vontade, e cujo foco é aquilo que se chamou, nos tempos modernos, o coração.]

Que é o ser propriamente dito que pertence à primeira e mais alta das categorias e que é o centro ao qual se reportam todas as outras? É, responde Aristóteles, a ação, que pode explicar a natureza, a qual é toda movimento. [Observador atento da natureza, que Platão desdenhava, ele reconheceu que tudo nela é movimento. Ele reconheceu também, como o diz em algum lugar, que o movimento é uma espécie de vida. Ele reconheceu, enfim, que a causa do movimento é que é a causa verdadeira, que a vida não pode resultar de outra coisa senão da vida. (Por isso, aqueles que pretendem explicá-la pelo movimento invertem a ordem verdadeira das coisas.) O movimento fenômeno pode nascer do movimento. Mas a origem primeira dele é algo de superior, que é a ação. A ação é como um instante que durasse sem sucessão. Assim busca-se conceber o eterno, o positivo da duração, onde a negação introduz a sucessão. (Mais tarde se reconhecerá que o fundo da ação é a vontade e enfim que o fundo da vontade é o amor.)

Ser é portanto agir, a ação é a existência mesma.]

E, com efeito, observa Cícero, intérprete, aqui como por toda a parte, da filosofia grega, aquilo que não faz nada ou não tem nenhuma ação bem parece também não ser nada. Se a pedra mesma existe é que na pedra também há algo de ativo e de movente.

Agora, não somente tudo aquilo que é age, mas tem ademais aquela propriedade de tender naturalmente a se comunicar. É aquela que possuíam no mais alto grau as maiores almas, as almas heróicas.

Na consciência, o pensamento tende a se expandir em idéias onde ela se mira de algum modo e se reconhece. Cada vivente, chegado ao seu ponto de perfeição, tende a se reproduzir como que para tomar naquilo que ele engendra uma posse mais plena do seu ser.

O ser completo é o espírito, cuja natureza é tal que, agindo, ele tem consciência daquilo que ele faz, daquilo que ele é. No fundo, nada pensa sem pensar-se, ainda que de maneira e em graus diferentes. Somente em Deus a consciência perfeita do objeto é inteiramente idêntica ao sujeito. É o ápice ao qual tende de espécie em espécie, pelos diferentes graus da vida, toda a natureza, e do qual esses diferentes graus são imitações mais completas ou menos completas. [Na consciência de si, o espírito, desvencilhado das nuvens da imaginação que lhe velam os outros objetos, se vê a si mesmo na pura luz. É a visão à qual, segundo a teologia cristã, estão ligadas, junto com a admiração que causa a beleza suprema, a alegria e a felicidade.]

Nos diferentes estados de existência, o pensamento, que é também vontade, se reconhece em mais ou em menos nos seus objetos. Ele se reconhece neles dividido, disperso em diversas idéias até que nelas reencontre por fim sua integral unidade.

Toda a natureza é feita como que de esboços mais ou menos bem sucedidos dessa suprema perfeição, completando, antes da integração final, a diferenciação.

Nesse momento supremo, o pensamento, segundo a fórmula aristotélica, é pensamento do pensamento.

Estas páginas aqui são uma das grandes obras-primas da exposição filosófica. Talvez o texto mais denso que eu já li sobre a filosofia antiga. Se bem que não é apenas uma exposição da filosofia antiga, mas é uma análise que tem diversos níveis, todos de algum modo encaixados ou entremesclados que eu vou tentar agora separar.

Ele começa evocando alguns personagens da mitologia mesclando a outros personagens históricos, de modo que, tal como acontece no próprio ambiente greco-latino, não existe muita distinção entre os personagens míticos e os seus correspondentes ou equivalentes históricos. Lembrem-se que Júlio César , com toda a sinceridade, se declara um descendente carnal da deusa Vênus, de maneira que os personagens mitológicos eram, no ambiente greco-latino, como que realidades presentes e referências tal como se fossem personagens históricos. Ravaisson, então, fala desses personagens exatamente como falaria um grego ou latino, ou seja, não distinguindo se são míticos ou históricos, uma distinção que surge milênios depois.

Desses primeiros dados mitológicos --- ele menciona Hércules, Teseu, Aquiles etc. ---, ele tira algumas conclusões de ordem moral. Dessas conclusões, por sua vez, ele puxa certas distinções psicológicas que -- para ele -- vão marcar também dois tipos clássicos de filosofia que se perfilam com máxima clareza já na história do pensamento antigo: por um lado, Epicuro, Demócrito, toda a escola Materialista; por outro lado, Sócrates, Platão, Aristóteles e seus sucessores.

Disto nós chegamos à página três. Isso é o que ele faz até a página três. Aí você tem um sentido moral e psicológico de certas narrativas psicológicas, uma interpretação moral e psicológica de certas narrativas psicológicas da qual o autor extrai uma tipologia filosófica que nós podemos verificar historicamente. Essa distinção que ele está mencionando existe realmente.

Com isso chegamos à página três. Isso é o que ele faz até a página três! Mostra um sentido, dá uma interpretação moral e psicológica de certas narrativas psicológicas extraindo uma tipologia filosófica que podemos verificar historicamente. Essa distinção que ele menciona existe realmente.

Em seguida, ele faz um denso resumo histórico da evolução fundamental da ontologia em Sócrates, Platão e Aristóteles -- isso em uma página -- e então ele vai tirando certos princípios do método filosófico dos quais ele extrai toda uma filosofia da natureza como campo simbólico onde o ser se manifesta sob uma variedade de formas, em escalas diferentes. E, por fim, extrai [também] alguns princípios do conhecimento. Tudo isso, meu filho, em sete páginas.

Eu acho que nunca ninguém conseguiu fazer uma coisa dessas. Quando você pega alguns dos autores tidos como os mais densos e até difíceis, como Kant ou Heidegger, eles levariam pelo menos cinquenta páginas para dizer isso aqui.

Então, nós vamos reler esse texto e fazer um comentário linear. Isso é para dar um exemplo para vocês [de] como é que se faz filosofia. Esse indivíduo sabe o que está fazendo, ele domina o assunto em dez níveis diferentes e percebe a integração e o "fio da meada" que conecta esses vários níveis. [00:30]

Em primeiro lugar, ele diz que, de certo modo, a bondade é natural no homem, mas que, desde os tempos mais antigos, a maioria cedeu à tentação do egoísmo considerando que a natureza havia dado a ele uma carta de recomendação dele próprio e nenhuma carta de recomendação dos outros, ou seja, você tem que cuidar de si próprio e ter como objetivo de suas ações. (ele usa a palavra centro, mas, embora use a mesma palavra em francês, talvez o melhor fosse foco, que é o objetivo das próprias ações porque -- por outro lado -- é evidente que cada sujeito agente é o centro criador, o centro agente de suas próprias ações, então a palavra centro fica um pouco ambígua, por isso foco ou objetivo talvez seja melhor.)

Mas a norma que recomenda a cada um cuidar de si em primeiro lugar -- ou seja, priorizar a si próprio e não ao outro -- não funciona sempre. Em muitos casos uma pessoa pode se sacrificar por outro: uma mãe se sacrifica por seu filho, um irmão por um irmão, um pai por um filho, um filho pelo pai, um amigo por um amigo, e assim por diante. Isso acontece.

À primeira vista, quando exposta sem maior precisão, a idéia de que cada um tem que cuidar de si em primeiro lugar nos parece tão natural que nós não nos perguntamos o por que. Pois, na verdade, se cada um sempre tomasse a si próprio como prioridade máxima as sociedades não poderiam subsistir jamais, sem um certo coeficiente de auto sacrifício e generosidade a sociedade humana é impossível. De fato, certa cota de generosidade se observa, às vezes, até entre os animais, a mãe que se sacrifica para defender o filhote e etc.

Então, aqui ele está dizendo que a idéia de que cada um tem que priorizar a si mesmo é, sobretudo, uma ilusão. Ela não corresponde a estrutura verdadeira da realidade porque -- citando Bossuet, o grande pregador Jacques Bénigne Bossuet -- ele diz que quando Deus fez o homem colocou nele, em primeiro lugar, a bondade. Isso quer dizer que a bondade faz parte da natureza humana. Hoje nós estamos tão acostumados com teorias Hobbesianas da agressão, da "guerra de todos contra todos" -- todo esse discurso sobre a agressão nos parece tão natural --, que não conseguimos fazer a respeito às observações mais óbvias.

Em primeiro lugar: a agressão, o ódio e a maldade são exceções, não são a regra. Veja no seu próprio meio quantas vezes você sofreu agressões de outras pessoas, e quantas vezes elas te ajudaram. A desproporção é enorme. A agressão chama a atenção porque ela é rara, porque ela é uma exceção e porque é anormal. Portanto, se fossemos acreditar que existiu um estado de natureza Hobbesiano no qual todos faziam o mal a todos os outros o tempo todo, então, a existência de qualquer bondade ou qualquer solidariedade só poderia ser introduzida mediante um ato de força, que seria uma agressão maior do que todas as agressões juntas. Ou seja, nós teríamos este milagre da maldade generalizada se converter em bondade generalizada por meio de uma maldade ainda maior. Essa é a teoria de Hobbes e ela é obviamente falha. Esse estado de natureza jamais existiu. O homem foi criado tal como ele é hoje e não houve modificação essencial da sua natureza ao longo dos tempos.

Quando alguns estudiosos, psicólogos, citam como exemplo da maldade, da agressividade humana, as guerras, eu tenho a impressão de que eles jamais conversaram com um ex-combatente, porque se você perguntar a todos os ex-combatentes: "Você tinha raiva dos exércitos adversários? Eles dirão : "Não, eu tinha medo.". E tão logo esse estado de medo era apaziguado momentaneamente por uma trégua, o que se via eram manifestações de solidariedade entre os exércitos dos dois campos, isso aconteceu em todas as guerras. Essas manifestações eram espontâneas, ninguém ordenava que você fosse até a trincheira adversária oferecer um cigarro para o outro, ou oferecer uma lata de sardinha, ou alguma coisa assim, mas esses fenômenos aconteceram em todas as guerras e se tornaram notáveis, sobretudo, na Primeira Guerra Mundial. Ela foi uma guerra de trincheiras em que nenhum dos exércitos conseguia avançar, ficava um numa trincheira aqui e outro numa do lado de lá, trocavam tiros durante certas horas e um não avançava nem o outro recuava, então, por causa disso, houve uma longa convivência dos exércitos e esses casos de solidariedade e de amizade entre os soldados de ambos os lados se tornaram célebres na Primeira Guerra, embora tenham acontecido também em todas as outras.

Então, eu não creio que se possa explicar a conduta de nenhum soldado na guerra pelo ódio. A final de contas, como o sujeito poderia odiar milhões de pessoas que ele não conhece? Isso não faz sentido. Ainda que ele reconheça que o outro está lutando por uma causa que lhe é adversa, ou que é contra os interesses do seu país, isso não cria nem agressividade nem ódio. Josef Stalin, que era um grande psicólogo, quando lhe perguntaram qual é o motor principal das ações humanas, ele disse: o medo. Não o ódio, não a agressividade. São Thomas de Aquino dizia que a diferença entre o ódio e o medo é que, no caso do ódio você sente que o adversário é mais fraco e no caso do medo sente que ele é mais forte que você. Ora, se você tomar cada individuo, a totalidade dos seus adversários possíveis é necessariamente mais forte do que ele. Então, é mais normal que o individuo esteja com medo, mesmo que ele seja um combatente, ou um lutador. Imagine um sujeito que está iniciando numa carreira de lutador e ele pensar a seqüência inteira dos adversários que ele terá de vencer no esporte, é uma coisa realmente assustadora, ele não poderá ter raiva dessa gente toda, mas medo certamente terá. Isso quer dizer que o normal no ser humano é a bondade, isso está na estrutura humana.

Mas existe outro fator, que ele não cita aqui, que faz com que as pessoas se encerrem numa concepção ilusória da realidade segundo a qual cada um deve ser o objetivo principal e o principal beneficiário das suas ações. Mas, como eu disse, isso também não aconteceu com todos os seres humanos, sempre houve pelo menos certo número de pessoas que se conservou fiel ao impulso originário, ou seja, que sentiam o dever da beneficência da bondade e da generosidade como uma coisa que era inerente a sua natureza. Essas pessoas não se tornaram boas ou generosas porque alguém as forçou a ser assim, porque uma cultura repressiva reprimiu nelas o impulso maligno e as forçou a serem boas a contra gosto -- o que seria absolutamente impossível, porque seria novamente o caso de uma maldade maior, quer dizer, a criança é má, mas o pai é mais mal ainda e a força a ser boa, então a bondade nasceria de uma multiplicação do mal o que seria isso seria um verdadeiro milagre, eu nunca vi isso acontecer --. Então, essas pessoas, a quem os gregos chamavam heróis, sentiam os seus semelhantes como se fossem elas mesmas, as necessidades e os sofrimentos dos outros as tocavam como se fossem delas próprias, isso quer dizer que o círculo [0:40] dos objetivos, dos alvos das suas ações eram em princípio o mundo inteiro ou todas e quaisquer pessoas que coincidissem de estar ao seu alcance. Elas eram assim por natureza e essa natureza se expressava mediante um sentimento que tinham da sua própria força, ou seja, o indivíduo se sentia capaz de fazer o bem para um círculo muito grande de pessoas e por isto mesmo se elevavam acima das circunstâncias. O Ravaisson dá aqui vários exemplos, depois podemos voltar a eles.

Mas ele diz que, ao contrário, os homens vulgares não encontrando em si mesmos nenhuma força e nenhuma grandeza, não viam em torno se não fraqueza e pequenez. Isso quer dizer que esses homens vulgares não sentiam em si a força, não apenas de socorrer os outros, mas sequer a de resolver os seus próprios problemas. Sentiam-se acossados por perigos, pressões e necessidades e, automaticamente, livrar-se dessas pressões o quanto possível -- resolver o seu próprio problema -- se tornava o único objetivo da sua vida. Ou seja, enquanto os heróis viviam numa espécie de efusão da sua força criadora que se espalhava para os outros, os homens do vulgo viviam uma vida negativa e uma vida centrada na auto defesa, num instinto de autoproteção acima de tudo. Ora, ninguém busca a autoproteção se não está com medo, então nós vemos que aqui o fator decisivo não a agressividade, também não é a maldade, mas é o medo. A diferença entre a bondade e a maldade é, segundo Ravaisson, a mesma diferença que existe entre a força e a fraqueza.

Se vocês olharem em torno e examinarem as pessoas do seu círculo social, vão ver que um grande número delas vive realmente no sentido que Ravaisson chama : "homens do vulgo". Os chama assim porque estão o tempo todo buscando uma forma de proteção e a buscam porque estão com medo. Uma proteção, por exemplo, é um emprego. Ao tornar-se um empregado você se encaixa numa estrutura que o transcende e acredita que a sua vida -- desde que obedeça, que siga as regras --estará protegida, terá um salário no final do mês, uma aposentadoria, terá assistência médica etc. Outra maneira de buscar proteção é se inserir numa organização religiosa, partido político, ou coisa assim, onde você também acredita que terá a solidariedade da organização e de todos os seus membros e que, portanto, estará defendido. É evidente que todas as pessoas, sem exceção, que buscam isso em primeiro lugar estão levando uma vida negativa, uma vida de autodefesa e uma vida baseada no medo. Ou seja, antes de elas se perguntarem: o que eu posso fazer? O que eu posso criar? O que eu posso dar? Como eu posso deixar um rastro benéfico em torno? Elas se perguntam, como eu devo me proteger?. É evidente que as pessoas que vivem para a autoproteção não estão menos sujeitas a perigos e dificuldades do que os outros. Muito pelo contrário, quanto mais proteção você busca, mais você se sente amedrontado e isto vai fechando você mais e mais numa ilusão de autopiedade. E isto vai tornar você mau no final das contas.

Eu me lembro que o Fritjot Shuon -- contra o qual eu tenho várias objeções, mas que nem por isso deixa de ser um grande homem -- dizia que o pecado tem três etapas: a ignorância a fraqueza e a maldade. a) Primeiro: a ignorância, você não está informado de qual é a verdadeira estrutura da realidade e de qual é a verdadeira constituição do ser humano; b) segundo: a fraqueza, você fica com medo e começa a buscar a proteção e na medida em que você vive para a sua autoproteção recusa a solidariedade aos outros, não corre risco em defesa de quem quer que seja e c) terceiro: você começa com a maldade negativa e termina com a maldade ativa, que muitas vezes será necessário praticar para você se defender , para resguardar a sua posição -- note bem que esse resguardar a posição é, em cem por cento dos casos, totalmente imaginário.

Quando você começa a viver a vida negativa, começa com a autoproteção, você já está perdendo e perderá necessariamente. Mesmo porque, um dos mecanismos essenciais dessa vida -- baseada na autodefesa -- é o próprio medo de enxergar o perigo, se você está acostumado a uma autodefesa física logo se acostumará também com a auto defesa psíquica. Além de não querer que o seu corpo seja ferido, prejudicado, danificado etc., você também não quer que o seu equilíbrio psíquico seja danificado, quer manter-se em um estado chamado homeostase, um estado de equilíbrio, e a obsessão pelo estado de equilíbrio -- que é a obsessão da normalidade -- fará com que você se defenda contra as más notícias. Você não que ver o perigo porque ele -- a simples visão do perigo -- te desequilibra. E quanto mais você vive para a sua autoproteção mais se torna indefeso, porque não tem a coragem nem sequer de ver o perigo e de confessar que ele existe.

Isso é norma geral, sobretudo na sociedade contemporânea que é uma sociedade que há dois séculos vem multiplicando os mecanismos coletivos, sociais e, sobretudo, estatais de proteção ao indivíduo. Quer isso dizer que a busca da proteção para si próprio em primeiro lugar tornou-se, de certo modo, uma obrigação do cidadão em todas as sociedades ditas avançadas, e nessa mesma medida essas pessoas estão solidamente defendidas contra a visão do perigo. Por exemplo, você sabe que se tornou -- nos ambientes ditos civilizados -- um tabu falar da morte, são ambientes onde ninguém morre, todos são imortais. Se uma pessoa começa a falar da sua própria morte: "Quando eu morrer vai ser assim, assim, assim..." as pessoas logo dizem: "Não vamos falar dessas coisas, isso é desagradável, isso é feio". É incrível que uma das dimensões fundamentais da existência, que é a mortalidade, se tornou proibida. Como dizia o Meira Pena, "eliminou-se o tabu do sexo e criou-se o tabu da morte.". Você pode falar do sexo porque é divertido, mas da morte não, porque é feio. Se não pode falar da morte significa que aquilo que constitui realmente a própria medida temporal da sua existência se tornou proibido, e você tem que agir como se fosse eterno, sabendo que não é. Isso já coloca as pessoas numa situação de irrealidade estrutural e permanente. Sobretudo, se elas são movidas pela busca da proteção.

Em tudo isso eu estou interpretando Ravaisson, não estou acrescentando nada, [0:50] estou dizendo o que estava no fundo da imaginação e do sentimento dele quando ele escreveu essas linhas. Quer dizer, eu me identificar com esta maneira de pensar, me evoca uma série de imagens que certamente estavam presentes para ele, embora ele as condensasse em apenas umas poucas palavras eu estou -- por assim dizer -- explicitando estados de imaginação e de sentimento que estavam certamente na mente de Felix Ravaisson quando ele escreveu essas coisas.

Então, como as pessoas vivem para a proteção e como, por outro lado, a proteção não é só proteção física objetiva, mas sobretudo proteção psíquica contra a visão do perigo do mal etc. etc., espalha-se por toda a sociedade uma necessidade absoluta, urgente, premente de acreditar na estabilidade da própria sociedade como um todo. Embora a história dos últimos séculos seja cheia de revoluções, guerras, golpes de estado e o número de nações que simplesmente desapareceram do mapa se conte as dezenas, cada um acredita que no país onde ele vive tudo permanecerá estável e nada de mal acontecerá ao conjunto e muito menos a cada um dos seus membros. E para sustentar essa crença ele precisa formar uma idéia da autoridade. Como, ao mesmo tempo, essa mesma sociedade lisonjeia essas pessoas (esses homens vulgares) mediante a crença de que eles são pessoas livres, de que ninguém manda neles -- ninguém gosta de confessar que segue o outro ou que obedece, ninguém quer ser um súdito, são todos cidadãos --, como você é um cidadão livre, [acredita que] é dono da sua própria cabeça. Você acredita que é livre e dono da própria cabeça, mas ao mesmo tempo é um bichinho assustado que está procurando proteção o tempo todo, o que faz com que conceba a autoridade sob formas impessoais e, por assim dizer, insensíveis. A autoridade é, por exemplo: a ciência, a tecnologia, o conhecimento. Você acredita que para todas as questões que apareçam existe alguém em algum lugar, colocado numa universidade, que sabe as respostas. Então, nada mais é um enigma, tudo se sabe, existe a universidade, os museus, as instituições de pesquisa e lá dentro certamente alguém tem uma explicação de tudo, se não tem a explicação agora vai ter daqui a pouco. Essa crença deprime nas pessoas o desejo de fazer perguntas e de saber o que quer que seja. Com isso se fecha o círculo que começou com a ignorância, passou para a fraqueza, para a maldade, a maldade por sua vez reforça a ignorância e assim por diante. Isso é que são os homens do vulgo.

Mas -- nota Ravaisson -- não se trata apenas de uma pequenez moral, nem psicológica e nem mesmo gnosiológica (cognitiva). É uma pequenez que se traduz em concepções globais do mundo feitas à imagem e semelhança dela mesma, ou seja, há uma filosofia pequena e ela se baseia naquilo que parece aos indivíduos ser o seu interesse ou a sua necessidade mais imediata -- que são as necessidades sensíveis --, a realidade do indivíduo (a seus próprios olhos) está limitada a sua corporalidade. Ora, a corporalidade não é comunicável. Eu não posso fazer com que outro corpo sinta o que eu estou sentindo, aquilo que acontece ao meu corpo acontece somente a mim, tanto as sensações prazerosas como as dolorosas não são comunicáveis, exceto através da linguagem. Isso quer dizer que, daí por diante, cada individualidade está rigorosamente encerrada no seu corpo e não há comunicação exceto simbólica e indireta. Por exemplo, se eu estou sentindo dor e eu grito, uma pessoa interpreta o meu grito como sinal de que talvez eu esteja sentindo alguma dor. Veja que, o próprio Renê Descartes olhava pela janela e via as pessoas andando na rua e uma vez ele disse que tinha alguma dificuldade em conceber que aquelas máquinas que se moviam tinham alguma alma -- note bem que Descartes não era materialista, mas estava raciocinando como se fosse.

Mas se a sensorialidade e o corpo são colocados como a realidade primordial então a separação entre os seres humanos é absoluta e eterna e a comunicação simbólica através da linguagem não é a verdadeira comunicação, não há coparticipação e em coisíssima nenhuma, a coparticipação é necessariamente ilusória. Veja que fechando-se no círculo das suas sensações corporais o homem perde efetivamente o contato com os outros seres humanos, porque todo o contato que se estabeleça é apenas no nível lingüístico , simbólico e portanto fingido. Não há coparticipação, não há compaixão possível. Não havendo compaixão possível, é natural que essas criaturas se tornem ainda mais amedrontadas, porque é uma sensação de isolamento total e absoluto. Havendo a sensação de isolamento total e absoluto significa que cada ente corporalmente definido é uma realidade em si mesma, essa realidade não se comunica a outros e de certo modo cada indivíduo se considera, por assim dizer, um todo fechado.

No momento em que ele se considera um todo fechado, surge a pergunta -- que assumirá mais tarde ares de um problema filosófico -, "como eu posso acreditar na existência do mundo exterior?". Esse problema só surge, historicamente, depois de muitos milênios e foi necessário que o número de pessoas imbuídas dessa concepção corporalista da realidade se multiplicasse muito para que chegasse ao ponto em que tais pessoas acreditam que elas mesmas são reais, mas que talvez o mundo não seja. É claro que ai nós estamos em plena psicose. Quer dizer, um individuo que sabe que corporalmente ele proveio de outro corpo, que ele não é eterno, teve um começo, antes dele ter a sua independência de movimentos ele existia dentro de um outro corpo, teve que ser gerado por um terceiro e assim por diante. Ele se esquece de tudo isso e se considera uma espécie de realidade fechada em si mesma e auto constituída que tem o direito de colocar entre parênteses e em dúvida todo o restante do universo.

O fato de você dizer "mundo exterior" já é uma coisa fantástica, porque significa que o eu considera que o mundo está fora dele e que, portanto, ele está fora do mundo, quando na realidade isso jamais acontece. Não posso colocar em dúvida um mundo que não me esta presente psicologicamente. Se eu nada sei do mundo, nunca recebi notícia do mundo, ele não existe entre os meus dados de consciência e não posso questioná-lo. Portanto, necessariamente, para que eu questione o mundo ele tem de estar dentro de mim. Por outro lado, se eu estivesse totalmente fora do mundo, teria notícia de mim mesmo existindo independentemente desse mundo e a presença do mundo seria uma coisa realmente evanescente e intermitente. Mas qual de nós pôde viver um único dia fora do mundo? Vamos supor que você é um monge, um asceta, que diz: "eu me retiro do mundo" -- mas eu pergunto -- "Você se retira para onde meu filho, para um templo? para uma caverna? [Se retira] para algum lugar do mundo, você só se retira do mundo indo a outra parte do mundo, mesmo que você seja um asceta. [01:00] Existe um asceta que foi praticar os seus exercícios ascéticos em lugar nenhum? Num não-lugar? Não, nunca existiu. Então significa o seguinte: o mundo jamais esteve fora de mim e eu jamais estive fora do mundo, por um único instante sequer; e a separação entre o eu e o mundo - ou seja, eu me tornar a mim mesmo como uma entidade existente em si mesma e o mundo como uma mera hipótese formada nos meus pensamentos, isto tudo, é uma coisa que só existe nos meus pensamentos. Eu estou tomando um pensamento que eu mesmo criei como se fosse uma realidade que me foi imposta desde fora, estou invertendo tudo. Mais adiante, Ravaisson se referirá, justamente, a este tipo de inversão dizendo que isto -- é claro -- é um uso errôneo da faculdade de abstração. Quando um indivíduo faz uma abstração ele separa uma coisa da outra - que na verdade estão juntas -, depois esquece que separou e começa a tomar estas partes como se fossem todas existentes por si mesmas.

Então, diz o Ravaisson que o atributo fundamental desta filosofia é a pequenez. É um indivíduo que concebe o universo inteiro à medida do tamanhinho do seu próprio ser corporal. É claro que a pessoa que pensa assim -- que hoje é a maioria -- está completamente fora da realidade e, estando fora da realidade, não pode agir -- evidentemente -- só pode entrar em seqüências de ações concebidas por outras pessoas e são dirigidas por outras.

Quando você entra num emprego é exatamente isso que você faz. Você não vai entrar lá para conceber a sua empresa toda de novo. Não, a sua empresa já existe: têm os regulamentos, os objetivos, as seqüências de ações já planificadas inteiramente. Você vai entrar ali e se encaixar. Então, você não está propriamente agindo, você é o instrumento de uma ação que o transcende e que vem de fora. E, curiosamente, é isto o que se chama hoje uma pessoa normal. Uma pessoa normal é uma pessoa que nunca fez nada por sua própria iniciativa; é uma pessoa que se deixou agir desde fora, ao longo de toda a sua vida, em troca de uma proteção que é totalmente imaginária. Sobretudo, porque nenhuma proteção vai livrá-lo da morte no fim das contas.

Então observe que a diferença entre a pequenez e a grandeza moral tem conseqüências de ordem cognitiva que modificam completamente a sua visão da realidade e podem levá-lo a uma existência totalmente fictícia. E este fenômeno não acontece somente na escala da psicologia dos indivíduos, mas acontece historicamente também e uma das suas expressões históricas é a criação de filosofias. Isto quer dizer que existem filosofias que nascem dessas respectivas experiências existenciais e as traduzem sob a forma de teoria. O indivíduo que têm grandeza vai criar uma imagem do universo que expressa -- O quê? A grandeza dele? Não, ao contrário - a grandeza do próprio universo, do qual ele se considera apenas um receptor. E a outra filosofia vai refletir a pequenez da alma que vive de ilusões, no inicio reconfortantes, mas que depois se tornam cada vez mais temíveis. O exemplo máximo dessa filosofia é a de Epicuro -- que eu não preciso expor aqui, porque eu já expus nos capítulos iniciais do meu livro O Jardim das Aflições --, onde a realidade é vista como um aglomerado de átomos que se movem a esmo em todas as direções, conforme as suas inclinações das mais arbitrárias. Se átomos agindo ou movendo-se a esmo são a base da realidade, então cada indivíduo constituído por estes átomos também é, ele próprio, uma unidade que se move a esmo, segundo Epicuro, levado por apenas duas motivações: fugir da dor e buscar o prazer. Mas a busca do prazer, por sua vez, causa novas dores e novas fugas, e assim por diante, indefinidamente. Isto é toda uma cosmovisão criada à imagem da própria pequenez de alma de Epicuro. Esta pequenez se traduz, evidentemente, em deficiências de inteligência que são absolutamente notáveis - eu expus algumas no livro Jardim das Aflições, onde se vê no fim das contas que a filosofia de Epicuro termina sendo uma comédia, um caso de humorismo involuntário. Em praticamente cada linha da sua filosofia Epicuro está rindo de si mesmo sem perceber.

Neste texto, Ravaisson faz uma síntese de elementos mitológicos, morais, psicológicos e históricos, mostrando a origem de dois tipos de filosofias que ainda disputam espaço no mundo - tudo isto o homem fez em três paginas.

Outro dia abri, a esmo, as conferências de Richard Feynman -- que foi Prêmio Nobel de Física, ele tem um livro em três volumes, chamado The Feynman Lectures, talvez o livro de física mais famoso dos últimos trinta anos -- e lá tinha uma frase assim: "Formou-se o consenso científico de que as coisas são feitas de átomos". Eu digo: "Ah, tá bom. Mas só tem um pequeno problema: o que significa feito de?". A frase é absolutamente nonsense. Se você disser composto de, o que isso quer dizer? Como é que você compõe alguma coisa de átomos? Note bem, os átomos que compõe o nosso corpo não são muito diferentes dos que compõe todo o resto. Então se somos, realmente, feitos de átomos, temos todas as mesmas propriedades físico-químicas e não nos distinguimos uns dos outros pelo que quer que seja. Na verdade, nós só distinguimos porque nós temos uma forma diferente. Ou seja, aquela suposta matéria que nos compõe -- que são átomos e partículas subatômicas -- não estão montadas da mesma maneira numa pedra, numa tartaruga, numa lagartixa ou na pessoa do professor Richard Feynman, caso contrário, não se conseguiria distinguir o professor de uma lagartixa, porque os átomos não se distinguem muito. Então, dizer que as coisas são feitas de átomos, é não dizer absolutamente nada. É a frase mais vazia que existe. É a mesma coisa de que você dissesse: "A lua é feita de queijo". Eu digo: "E o queijo é feito do que? Da lua?".

A pergunta pela matéria ou substancia material que compõe o universo é uma das primeiras perguntas filosóficas que surgiram. E logo depois a filosofia grega percebeu que essa pergunta não é suficiente e que essa pergunta isolada não quer dizer absolutamente nada, porque se você perguntar "De que é feito esta mesa?", você verá que é de madeira, e se você olhar lá fora verá que a árvore é feita de madeira também. Então, qual é a diferença? A simples matéria não basta para você distinguir, não só uma árvore de uma mesa, mas uma lagartixa do professor Richard Feynman. Então, nós temos a introdução de outro elemento que é a forma.

A forma determina a diferença entre os seres, é o que Aristóteles chamava de "a causa formal". A causa formal é o que uma coisa é. Se você não sabe o que uma coisa é, a pergunta sobre a matéria da qual ela se forma não faz sentido, porque a palavra "formar-se" já introduz a noção de forma; ou "composto" introduz a noção de composição; "ser feito" introduz a noção do fazer. É aí que está a diferença e não na matéria. A própria estrutura da frase mostra a sua radical insuficiência e sua falta de sentido, no fim das contas. Ora, com tantos anos de evolução científica nós ainda temos este problema, de que o máximo que a física pode nos dizer é que as coisas são feitas de, compostas de, ou formadas de átomos e partículas subatômicas. Em tudo isso, nada me explica a diferença entre uma lagartixa, uma catedral, uma composição musical ou um ser humano. Ou seja, não explica exatamente nada; e as pessoas que se voltam para a física, esperando que ela nos dê uma resposta sobre o segredo dos cosmos, simplesmente não sabem o que estão fazendo. A ciência e a física se destina a nos dizer de que as coisas são feitas, e não o que elas são. E o de que, unifica num mesmo conceito a mesa, a árvore e a madeira que você joga no fogo para queimar. Fisicamente, tudo isto é a mesma coisa. A física só poderia nos dizer algo se você criasse uma super-física, que nos explicasse a diferença entre as formas das coisas. Esta ciência não existe ainda. Talvez ela exista em cerca quatro mil, cinco mil ou dez mil anos. É claro que qualquer forma que você observe, simples ou complexa, pode, em última análise, ser expressa mediante uma equação matemática. Há uma fórmula equivalente a forma de cada ente. Podemos saber esta fórmula? Não, porque o número de fórmulas é infinito. Por exemplo, em relação às diferenças individuais: aqui temos uma pedra e aqui tem outra pedra do mesmo tipo - vamos supor que são dois pedaços de granitos -, até um certo ponto a fórmula deles é igual -- no que se refere a matéria que as compõe --, mas elas tem formas diferentes e estão em lugares diferentes do espaço e não se interpenetram; portanto, há também uma fórmula individual de cada uma. Somente a ciência que fosse capaz de encontrar as fórmulas de todos os entes individuais poderia nos dar uma explicação física do universo. Está ciência não existe e, digo eu, jamais existirá.

Pitágoras e Platão a concebiam idealmente, ao acreditar que existem as formas que criam todos os seres e que estas fórmulas se expressam matematicamente. Mas para chegar nisso Platão desviava os olhos dos seres individuais e buscava as formas das espécies. Ora, as formas das espécies só explicam aqueles elementos formais que são comuns a muitos entes, não explicam a sua diferença individual. É a isto que se referirá, mais tarde, Ravaisson, quando ele disser que os materialistas antigos -- pelo menos Demócrito, Epicuro etc. -- nem sequer chegaram a fazer abstrações de tipo superior -- como era o caso dos platônicos --, mas se contentavam com abstrações genéricas, que podiam até refletir algo do funcionamento dos objetos, mas das quais faltava algo: a realidade. Não coincidiam com o mundo da experiência, exceto de maneira muito esquemática e genérica.

[Pausa] [01:14:58] à [01:15:07]

Então, vamos continuar. Em vez de prosseguir com a análise do texto do Ravaisson, eu desejaria responder a algumas perguntas, puxando pelo que elas possam ter de relativo ao assunto que nós estamos expondo até aqui. Todas elas têm isso de algum modo.

Aqui têm uma pergunta longa do Bruno Magalhães. Eu não vou poder ler a pergunta inteira; eu vou ter de resumi-la de algum modo.

Aluno: O senhor diz que a inteligência não trabalha sobre as coisas ou sobre as emoções primárias, mas sobre as imagens que nos ficam de tudo isso. O ideal é que as experiências sejam revividas e trabalhadas como obras de arte. Conheço pessoas que conseguem transformar o caso mais banal numa história fantástica e emocionante. Percebo que ainda não tenho essa capacidade. Não compreendi bem como se faz essa personalização das lembranças. Trata-se de meditar sobre o significado da experiência para mim, enfatizando frases ouvidas, emoções vividas, objetos e pensamentos que me vieram?

Olavo: Muito bem. Eu não vou ler a pergunta inteira, mas vocês já entenderam qual é o espírito da coisa.

Antes de você se perguntar -- digamos -- pelas suas memórias do passado, você tem de ver como a sua memória está funcionando agora. E neste sentido, convém lembrar, primeiramente, que Aristóteles dizia que memória e imaginação são a mesma faculdade, apenas funcionando sobre objetos diferentes. Mas a tentativa de recordar agora uma coisa que já se passou é você criar, agora, uma imagem dela e que haja algo que está depositado na sua memória ou no seu cérebro que você vai puxar de lá -- isso são imagens que nós usamos --, na verdade você está produzindo as imagens agora. Isto levanta o problema de como funciona a memória.

Veja que o que os neurologistas têm a dizer a respeito é muito pouco interessante, comparado com o depoimento de um sujeito que foi -- durante sete anos -- o campeão mundial de memória, Dominic O'Brien. [O Olavo fala sete vezes ,mas na verdade foram oito http://www.peakperformancetraining.org/sitefiles/index.htm\]. O'Brien diz que a memória funciona com base em três operações fundamentais, que ele chama: associação, imaginação e localização. Ou seja, qualquer dado que você queira recordar para o resto da sua vida, você vai ter de associar a algum outro dado por meio da imaginação e localizá-lo em algum lugar do espaço que você conheça. Isto nos mostra claramente que há uma ligação entre a memória e o espaço. Os antigos oradores greco-romanos já sabiam disso, quando eles criaram aqueles famosos modelos de memória -- que eram edifícios ou uma praças -- onde em cada lugar da praça colocavam certos argumentos padronizados e na hora do discurso os puxavam daqueles lugares, conforme as associações que lhe ocorriam entre o que estava sendo falado e os argumentos guardados entre as várias partes das praças -- vários lados da praça, ou os vários compartimentos dos edifícios imaginários. Isso nos mostra que há uma relação entre memória e espaço. Se você quiser fazer um experimento contrário para você ver como é que esquece alguma coisa, como é que você nunca mais consegue se recordar daquilo,tente imaginar, visualize o seu cérebro e imagine as sinapses, os neurônios. Segundo a neurologia, é isto o que acontece quando você pensa; mas tente pensar em algo e visualizar ao mesmo tempo as sinapses. A recordação desaparece por completo. Isto significa que não há nenhuma recordação no cérebro, nada [disso] está no cérebro (isso é uma coisa de uma estupidez formidável). Nós conseguimos recordar as coisas porque quando elas passam e cessam no tempo, elas só se tornaram irreais numa determinada dimensão da realidade, mas não se tornaram irreais de maneira absoluta. É a famosa pergunta de François Villon **[1:19:57] *"***Où sont les neiges d'antan" - "Onde estão as neves de ontem?" [1:20] . Se elas não estivessem em lugar nenhum, você não poderia se recordar delas, elas teriam simplesmente desaparecido; mas elas não desapareceram no espaço, elas desapareceram apenas no tempo. Espacialmente, elas não estão aqui na Terra, mas não nesta Terra que você está vendo. Aquilo que aconteceu, que entrou na esfera da existência, na esfera do ser, não pode voltar ao nada nunca mais; porque do nada não sai nada e nada retorna nada.O nada não é um lugar do qual você possa retornar ou de onde possa vir.

Toda a operação da nossa memória -- que é a função humana principal -- é baseada na permanência do ser, na eternidade, ou seja, tudo o que aconteceu não desacontece mais. Desaparece desta esfera temporal na qual você está vivendo, mas não pode voltar ao nada. Então, aquilo está no ser, está na realidade para sempre, e sempre pode ser resgatada. Você pode perguntar: "Ah, então, porque nós não resgatamos tudo?". Por que, eu não disse que qualquer pessoa pode resgatar tudo; eu disse que pode ser resgatada quando for pertinente e quando houver alguma ligação essencial entre uma coisa e outra. Se você quer desenvolver uma boa memória, acredite que tudo aquilo que quer recordar existe. Você não sabe onde -- não é sob uma forma sensível --, mas não quer dizer que não seja espacial. Por exemplo, as figuras geométricas são espaciais e não são sensíveis.

Lembre-se de que tudo que passou continua existindo -- passou na esfera temporal, mas não pode ter voltado ao nada --, é uma parte do ser, é uma realidade de uma vez para sempre. Talvez não possa ser revivida nesta esfera corporal, mas existe. Você pode imaginar isso como sendo a mente de Deus - a memória d'Ele. E quem é que vai fazer você lembrar as coisas? É o Espírito Santo. É Deus. E é por isto mesmo que este método do Dominic O'Brien funciona. A base dele esta em que quando você fala em associação e localização, você está apelando à noção de unidade do real. Não existem coisas separadas. Tudo o que é separado só é separado relativamente, sob certo aspecto, porque os aspectos em si mesmos também são separados, ou distintos pelo menos. Então, rememorar é reintegrar num todo -- que é o conjunto do mundo tal como você o experimenta -- certos aspectos que aparentemente tinham desaparecido dele. É como você completar pedaços de uma história. É por isso que recordar coisas totalmente isoladas é difícil. Por exemplo, se eu quero recordar o rosto de um amigo meu que eu não vejo há muito tempo, como o Dr. Muller -- que já morreu há muito tempo --, eu fecho os olhos e vejo que só consigo recriar uma recordação esquemática. Mas então eu coloco o Dr. Müller aonde eu o conheci - no consultório dele, que era na Avenida Santo Amaro, em São Paulo -- e me lembro claramente de eu caminhando pela av. Santo Amaro, para ir ao escritório do Dr. Müller. Mais ainda, eu me lembro da primeira vez que fiz isso, e então consigo ver o homem sentado ali na sua escrivaninha, conversando comigo -- a figura começou a se completar --; penso também no que o Dr. Müller disse, e a figura fica mais densa. Na medida em que eu vou conectando uma coisa com a outra a lembrança vai adquirindo densidade. Quer dizer que a memória tem a ver com a unidade e a permanência do real. Agora, se eu partir do princípio de que a coisa de que eu estou tentando recordar só existe na minha "mente", eu não consigo recordar nunca mais, porque eu não posso ver a minha mente.

Como é que um negócio que não ocupa lugar no espaço poderia criar uma imagem espacial? A mente não pode fazer isso. E o cérebro, pode? Não, porque o cérebro é apenas o nome de uma percepção sensível, entre outras que você teve. Todo o funcionamento da memória atesta a continuidade e unidade do real e, inclusive, a permanência de tudo o que se passou, porque na verdade só há duas hipóteses: ou tudo o que existiu -- que entrou no ser -- volta ao nada, então significa que o ser é apenas um instante entre dois nadas -- é claro que isto não é concebível, porque este instante já está durando faz tanto tempo; ou, então, o nada não existe e só existe o ser, e o velho Parmênides tinha razão; e se somente existe o ser e se o ser é eterno, significa que tudo que nós chamamos temporal é apenas uma imagem seccionada, cortada, uma imagem abstraída do eterno - como diz Ravaisson [neste texto]:

"A ação é como um instante que durasse sem sucessão".

Isto é a imagem do eterno.

"Assim busca-se conceber o eterno, o positivo da duração, onde a negação introduz a sucessão."

Que é a eternidade? Segundo Boécio, é a posse plena e simultânea de todos os seus momentos. O que é o tempo? É a subdivisão desses momentos de maneira que se excluam um ao outro. Se está transcorrendo esse momento é porque não está transcorrendo o seguinte e nem o passado. Isto é, naturalmente, um elemento negativo e separativo, não uma realidade em si mesma. A única realidade é a eternidade. O tempo é um aspecto, é uma aparência da eternidade. E esta aparência se faz por abstração, por separação de um aspecto da realidade, que é uma coleção de momentos de outro aspecto importante que é a simultaneidade. Separa-se simultaneidade e momento, e pronto: você tem a sucessão, que é o tempo.

Então, você quer melhorar a sua memória, acredite na eternidade do ser e veja que nada do que aconteceu jamais voltou ao nada. Ou, então, você vai ter que me dizer como é que algo saiu do nada. Se uma única coisa saiu do nada, ou seja -- foi produzida do nada e pelo nada -- então, evidentemente, eu estou errado. Mas se do nada, nada sai, então, ao nada, nada volta. As coisas vêm da eternidade, isto quer dizer, estão na eternidade, aparecem como refração na escala do tempo por alguns momentos e depois voltam à realidade. Então, é na eternidade que está a raiz da nossa memória, e não no cérebro. O cérebro é apenas um pobre receptor de informações. O cérebro não é produtor da consciência, ele é receptor da consciência. E as pessoas quando ficam com o pensamento de que está tudo dentro do cérebro eu pergunto: "onde?", abra o cérebro e ache lá um ato de consciência, por mais mínimo que seja, por mais simples que seja. Ache uma conta de dois mais dois no seu cérebro. Quer dizer que a distância entre sinapses e o conteúdo informativo de qualquer pensamento é uma distancia do tamanho do universo. Pergunto: como é [1:30] que o cérebro cria processos simbólicos? Como é que uma comunicação entre dois neurônios pode criar o símbolo de alguma coisa que não é neurônio? De alguma coisa que existe fora e independentemente do cérebro?

Se você me disser: existe consciência fora do cérebro. Eu digo: eu sei! Essas experiências de pessoas clinicamente mortas mostram isso da maneira inegável -- não me refiro àquelas experiências de túnel, de luz, etc.; esqueça tudo isso, essas experiências bem podem ser refeitas pelo próprio cérebro no instante que a pessoa desperta --, a percepção de coisas reais, físicas, que estavam no ambiente em torno, enquanto a pessoa estava sem atividade cerebral é prova cabal e definitiva. Sobretudo quando a pessoa viu coisas que não estavam ao alcance de seus sentidos físicos, por exemplo, o que se passava no quarto vizinho, ou na rua. Existem milhares de caso desse tipo.

Estava vendo um documentário da BBC sobre esse caso e, curiosamente, eles enfatizam demais, perdem muito tempo com essas narrativas do túnel, da luz, etc. Meu Deus! é claro que tudo isso pode ser obra da imaginação; no instante em que o sujeito acorda ele concebe tudo aquilo. Porém, se ele vê uma coisa que estava acontecendo do outro lado da rua, o cérebro dele não pode ter apreendido isso, porque o corpo dele não apreendeu isto. São essas experiências que me interessam. Então, se você me disser que a consciência opera fora do cérebro, eu concordo, é claro que opera, e todos os dados nos quais você pensa estão fora do cérebro, a não ser quando você pensa em cérebro. Ou seja, só os dados da neurofisiologia cerebral ou neuroanotomia cerebral estão dentro do cérebro, porque aí você está falando de cérebro. Mesmo assim, a imagem que você faz do seu cérebro está dentro do seu cérebro? Por que milagre isso acontece? "O cérebro é órgão que se conhece a si mesmo?" Mas que coisa estúpida. Aí você está fazendo a abstração do objeto, existe somente o sujeito. Isso é o extremo do extremo do isolamento físico a que se refere Ravaisson. Cria-se toda uma ciência para incentivar a estupidez. Sabe qual é a diferença entre o ato sexual e a masturbação? Neurofisiologicamente são indistinguíveis, o mecanismo fisiológico é o mesmo nos dois casos, só que num caso tem alguém ali e noutro caso não tem, meu filho.

Esse exemplo tão elementar nos basta para dizer o seguinte: o processo cognitivo não pode ser um processo cerebral, porque ele envolve uma coisa que se chama o objeto do conhecimento. O conhecimento não é uma coisa que se passa na nossa mente, e muito menos no nosso cérebro. É algo que se passa entre nós e alguma coisa que não somos nós mesmos. Quando eu vejo um elefante, ele se passa no meu cérebro? Você diz: não, é nos meus olhos. O elefante está nos meus olhos? Como? Pode procurar, que não acha nenhum. Isso é um erro filosófico elementar, no entanto há ciências inteiras que se desenvolvem com base nisso. Se você fizer abstração do elemento chamado realidade, que é o que diz aqui o Ravaisson, você pode fazer esquemas abstratos que conferem mais ou menos com o modus operandi dos fenômenos, e que podem corresponder aos fenômenos até exatamente, só que não tem realidade.

Realidade é aquilo que é objeto de experiência e que coloca o eu -- a consciência -- em face que ele não é , mas que também não é totalmente separado dele. A existência do objeto do conhecimento é o que vem sendo esquecido em todos os estudos sobre cérebro. Não que conhecer a fisiologia do cérebro seja inútil, pelo contrário, é ótimo, desde que você entenda que a fisiologia do cérebro não está no cérebro, e que o próprio cérebro não está no cérebro. A imagem que você tem do seu próprio cérebro não pode estar no cérebro. Senão você estaria proclamando a coexistência espacial de sujeito e objeto. O que é absolutamente impossível. Aquilo que co-existe espacialmente com você é você mesmo. Aquilo que coexiste espacialmente com sujeito é o sujeito, e não o objeto.

Por exemplo, você, enquanto sujeito humano, tem uma existência contínua desde quando nasce até quando morre. Você é a mesma pessoa. Se tenta se lembrar de si só consegue em determinada idade. Faça uma imagem de você agora com todas as idades ao mesmo tempo. Você não pode. A sua forma de existência é uma continuidade temporal que transcende a sua própria percepção física, se você não tivesse continuidade temporal, a suas percepções seriam completamente separadas umas das outras, e sua própria existência de sujeito cognoscente seria mais uma ilusão. Gozado, no documentário da BBC aparece uma neurofisiologista dizendo: "Vocês pensam que em algum lugar do cérebro tem um eu lá dentro? Não. Isso é uma ilusão que nós criamos." Ah é! E a senhora não é uma ilusão? Como? O meu eu está presente a mim faz muitos anos, eu já me acostumei, mas a senhora acabei de ver agora. Se eu não posso acreditar na continuidade do meu eu como sujeito cognoscente, não posso acreditar que a senhora exista. Pois, afinal de contas, a senhora é apenas uma percepção sensível que eu estou tendo, como tive tantas outras. Isso é de uma burrice filosófica elementar, é uma coisa auto-contraditória. O eu cognoscente é uma ilusão? Então todos nossos conhecimentos são ilusões, inclusive esse. Me diga como é que a senhora conseguiu sair de fora do mundo da ilusão para dizer que o conhecimento é uma ilusão. Se todo o conhecimento é uma ilusão, então quando a senhora sai da ilusão não sabe mais nada. Como é possível pessoas tão burras sejam professores universitários, e sejam entrevistados pela BBC? É claro que o repórter da BBC é outro burro.

Aluno: Essa é parte mais fácil de entender.

Olavo: Qual?

Aluno: Como um sujeito desses é entrevistado pela BBC...

Olavo: Claro, asinum asinus fricat, um asno afaga outro asno. Não há montanha, não há acumulo de conhecimentos científicos que possam suprir a falta da inteligência elementar e da auto-consciência raciocinante, que é o sujeito ser responsável pelo que ele está pensando. Quem levantou a dúvida do eu pensante foi David Hume, mas ele não disse que o eu como sujeito cognoscente não existe, disse que não podia provar isso, mas que ele acreditava nisso. Foi de uma modéstia gnosiológica muito maior. Agora as pessoas lêem David Hume e acreditam realmente que o eu cognoscente não existe, é apenas uma ilusão. Mas como é que a ilusão tomou consciência do seu próprio caráter ilusório sem se desfazer e desaparecer no ar imediatamente? Se eu tomo a consciência de que não existo, eu tenho que desaparecer, cessar de existir imediatamente. Como um personagem de sonho que descobre que ele é apenas um personagem de sonho. Quando isto acontece você acorda. Mas quando você acorda não está mais no sonho. Mas essa senhora descobriu que o eu cognoscente é uma ilusão, e ela continua lá dentro afirmando que a ilusão é uma ilusão.

Aluno: É uma ilusão de quem?

Olavo: Pois é, isso é uma ilusão de quem está iludido. A ilusão torna-se o sujeito e o eu torna-se apenas o objeto. Quem me garante que a pessoa que está falando não é ,ela própria, uma ilusão e que [1:40] é apenas a ilusão que está falando pela boca dela? São aqueles problemas filosóficos elementares, que surgiram na aurora da filosofia grega -- aquelas aporias --, aparentemente insolúveis, que os primeiros filósofos, antes de existir dialética, antes de existir lógica, já tinham percebidos todos. E quando você estuda história da filosofia, você passa por todos esses erros de raciocínio um atrás dos outros, até perceber que as coisas não são assim. Mas tem pessoas, que embora tendo tirado um diploma universitário de neurofisiologia, não superaram ainda aqueles primeiros erros de raciocínio que apareceram na aurora da filosofia grega.

O problema da memória nos coloca questões de ordem ontológica fundamentais. O simples processo de você tentar aprimorar a sua memória implica uma mudança de atitude gnosiológica. Se você quiser acreditar que os dados da memória estão dentro da sua mente, eles vão desaparecer rapidamente, porque sua mente não está em parte alguma. Esta regra prática da associação e localização que sugere o Dominic O'Brien [é importante], se eu tenho de localizar os dados para poder recordá-los é porque é da natureza da memória ter uma referência ao espaço. O espaço é o símbolo mais perfeito -- isso aí acho que Leibniz já dizia --, o espaço é o símbolo vivente e sensível da eternidade. Ao passo que o tempo é a ordem da sucessão.

Aluno: Se a validade dos tratados de metafísica é simbólica simplesmente, não é mais interessante se empenhar em escrever uma obra de literatura que um tratado de metafísica?

Olavo: Não, são duas coisas completamente diferentes, porque nem todos os simbolismos funcionam da mesma maneira, qualquer obra de arte, qualquer obra de literatura, vai partir de dados que são sensíveis e imediatos: esta percepção, este sentimento, este acontecimento, etc., e você vai transpor aquilo em linguagem, em pedra, em música, etc., de tal modo que isto adquira para outras pessoas um valor simbólico. De modo que elas possam expressar a sua experiência através deste mesmo símbolo que você forneceu por meio de uma analogia que elas fazem. Quando você vai fazer um tratado de metafísica, é exatamente ao contrário. Você não vai partir apenas da sua experiência individual, mas você já vai, imediatamente, tentar extrair dela o que ela tem de universal. Não como eu estou vendo tal ou qual coisa, mas como todos os seres humanos têm de ver. Aquilo que tem exclusivamente individual e acidental não interessa. É claro, nós estamos trabalhando também num plano simbólico, mas em outro nível; que não é simplesmente a exteriorização da experiência individual, mas é o processo de puxar de dentro dela aquilo que ela tem de universal e necessário. Você pode se sair melhor ou pior nessa operação. É mais fácil dar certo uma obra de arte que um tratado de metafísica, por isso existem milhões de poemas e obras de artes narrativas a mais do que tratados de metafísica que são muito mais difíceis de fazer, e cujo objetivo é completamente diferente. A respeito disso tem a apostila "Poesia e Filosofia" que está no meu site. Não é um texto muito bem escrito, mas está tudo explicado lá, direitinho.

Aluno: A respeito do assunto do tema que o senhor aborda na apostila "Contemplação Amorosa", lembrei-me que só consegui ter algum entendimento dela após várias leituras e muitos momentos de suspensão a respeito do tema. O clarão veio quando lendo o Evangelho de São João, vi que ele chama o Espírito Santo de espírito da verdade, então me lembrei que ele é o amor do Pai pelo Filho, e do Filho pelo Pai. Ainda nesse clarão, tive outra evocação, também do Evangelho de João, onde ele diz: "por que Deus amou o mundo de tal maneira que lhe deu Seu filho unigênito, para que todo aquele que nele crer não pereça, mas venha a ter a vida eterna." E ainda a evocação, desta vez de Oscar Wilde, no qual ele diz que: "O mistério do amor é maior que o mistério da morte." Depois que tudo isso veio a minha cabeça, comecei a ter alguma idéia do que o senhor dizia na apostila, e não consegui deixar de fazer um paralelo entre o ato de conhecer e o amor de Cristo na cruz. (...)

Olavo: Mas é obvio!

Aluno: (...) Assim como Cristo se entregou a uma missão maior que o envolvia, da mesma maneira pensei que, para conhecer verdadeiramente algo, deveremos nos lançar ao desconhecido, confiando que Deus nos elucidará a verdade, que só pode ser contemplada.

Olavo: Mas é isso aí, batata! Não sei se vocês entenderam, mas ele matou a charada. O conhecimento é um dom que nós recebemos do Espírito Santo. Se você entra na aventura do conhecimento com a idéia de dominar o campo dos fatos, o campo dos conhecimentos, você não vai chegar a nada. Você tem que estar aberto para perceber uma verdade que pode ser contemplada, ainda que você não consiga expressá-la. Por que se você já entra com a idéia de dizer a verdade, então o dizer predomina sobre o conhecer. Você está a fim de fazer uma tese universitária, de escrever um livro e de parecer bonito perante os outros. Assim não funciona.

Lembra o que disse Schelling ,tal como Ravaisson o citou: "O coração forte quer a verdade." E não ilusões, não fantasmas. Você quer a verdade, mesmo que não consiga dizê-la? Aí você vai obter, porque Deus vai te ajudar. Agora se você só quer ter a verdade que seja dizível nos termos de uma tese acadêmica, então o que você quer é desempenhar um papel social e não conhecer a verdade.

Tudo o que nós aprendemos através de livros, aulas, etc., são símbolos. A verdade você só conhece na realidade, na experiência real -- não que uma aula não seja uma experiência real. Aqui você está tendo duas coisas: 1) o conteúdo que eu estou lhe transmitindo, isto é símbolo; 2) e outra coisa que está acontecendo mesmo, que é a presença de um filósofo na sua frente que está de coração na mão tentando comunicar alguma coisa -- Alguma coisa que é da experiência dele. Fazendo isso, é claro, através de símbolos. Mas aqui você não tem só os símbolos , tem a minha presença efetiva, e a sua presença. O conjunto de símbolos que estão sendo transmitidos devem ser integrados na situação real, e não a situação real no símbolo.

O conhecimento é uma experiência na qual você tem acesso à verdade que está na realidade. Isso só acontece na experiência efetiva e real. O que você pensa depois não é mais verdade, é uma representação da verdade. É um símbolo da verdade, feito de tal modo que as pessoas podem reconhecer. O que é reconhecer? Conhecer de novo ou conhecer a mesma coisa, através de experiência análoga. O propósito de uma aula de filosofia não é transmitir para você um conjunto de conhecimentos, é treinar você nessa evocação da analogia, de novo, de novo e de novo. De modo que, cada vez que eu diga alguma coisa, você puxa de algum lugar os análogos da sua experiência, e aquilo que era apenas um patrimônio meu, se torna um patrimônio nosso através da analogia e da intuição. Isto no meu entender é que é o treinamento filosófico.

Aluno: A transmissão do conteúdo da sua filosofia de forma implícita, nas entrelinhas, é característica realmente presente na vida do professor. Se consegui em apenas dois anos acompanhando o seu trabalho captar alguma [coisa] por essa via, fico imaginando o quando ainda não está passando despercebido por mim. Lembro-me que inicialmente não percebia nada mais do que uma impressão, mas aos poucos esses insights foram se repetindo, ao ponto de compreender que não eram fatos isolados ou meras coincidências, mas fruto de uma técnica bem apurada de transmissão de conhecimento. Que ora o professor deixa explícito que realmente utiliza. [1:50]

Olavo: Eu estou fazendo tudo aqui de caso pensado. Eu não estou falando a esmo sobre um assunto, outro assunto e outro assunto. Não é assim. A unidade do que eu estou transmitindo se dá no processo de aprendizado que é real em vocês. Através dessa sucessão de experiências, de evocação, de reconhecimento de analogias e de comparação entre a experiência narrada e exposta pelo professor e a sua própria experiência vocês vão aos poucos aprendendo como se examinam as questões filosoficamente.

O objetivo do curso -- como acredito que é o objetivo de toda filosofia -- não é produzir tratados de filosofia, mas produzir filósofos. Os tratados de filosofia são apenas testemunhos de uma atividade cognitiva que se desenrolou em certos grupos humanos, e que foi compartilhada por certas pessoas. Como hoje nós temos esse recurso de gravar tudo, então nós não temos só os testemunhos secundários dos textos, mas temos o testemunho direto da gravação para dizer: isto aconteceu, esse círculo de pessoas compartilhou com o professor um conjunto de experiências, que, naturalmente, o professor, por obrigação profissional, conseguia explicar melhor do que vocês. Porque se vocês conseguissem explicar melhor do que eu, então eu é que tinha que tomar aula com vocês. Mas as experiências no fundo são as mesmas, ou pelo menos são análogas.

Vamos parar por aqui, nós vamos voltar ao mesmo texto do Ravaisson. Por favor, leiam o texto de novo. Esse texto é uma maravilha, é uma jóia da escrita filosófica, como tudo que Ravaisson escreveu. Quando eu li o livro De L'habitude, sobre o hábito -- é um livro de trinta páginas --, se eu escrevesse isso aqui eu morria satisfeito. Mas o Ravaisson escreveu aquilo quando era jovem e depois viveu mais 67 anos e escreveu essa outra maravilha no fim, que também é um texto curtinho.

Transcrição: Jussara Reis, Júlio Cézar Ribeiro, Rafael Guedes Silva, Rafael Augusto Salvi

Revisão: Júlio Cézar Ribeiro Jorge