Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula Nº 90
15 de janeiro de 2011
Boa noite a todos, sejam bem-vindos!
Um dos objetivos [ou] ambições que este curso tem é o de equipar todos vocês para participar utilmente de debates públicos em várias matérias diferentes. Que possam ter a perfeita consciência de onde estão entrando quando se metem nestas discussões. Muitas vezes as premissas decisivas que orientam o debate não estão claras e não são visíveis a primeira vista. A sociedade contemporânea tem várias camadas cuja presença não transparece a primeira vista. Na verdade, é uma sociedade mais repleta de segredos do que a gente pode imaginar. Quanto mais eu estudo isso, mais vejo que os fatores decisivos jamais aparecem em debates públicos. Praticamente tudo que se discute em mídia, na universidade, quase tudo é desconversa.
Quando você escava um pouco a coisa você vê que os pontos realmente importantes estão sendo cuidadosamente evitados. Só para dar um exemplo, que não tem nada a ver com a nossa aula de hoje, já há bastante tempo eu observo aqui nos Estados Unidos que as opiniões dominantes na mídia, as atitudes, os símbolos e os valores que são dominantes na grande mídia hoje do tipo New York Times, CNN, MSNBC etc., eles são um traslado literal do que, nos anos 50, era a propaganda soviética. Tudo que a propaganda soviética dizia nos anos 50 hoje é a grande mídia que diz, é assim linha por linha. Não há um só critério de julgamento em nenhuma situação que não seja exatamente o da propaganda soviética. Embora isso seja um fato, isso seja até mesmo quantitativamente verificável basta você dizer isso para uma pessoa para que [ela] ache que você está com a teoria da conspiração. De certo modo, uma transformação cultural que envolve dentre outras coisas uma defesa contra a percepção dela própria. Quando observei este fato, eu me coloquei a seguinte [questão: existe] duas maneiras de criar uma mutação sócio-cultural e psicológica deste tipo.
A primeira é por simples difusão cultural, é o que Willi Münzenberg chamava de "criação de coelhos", um efeito mais ou menos automático, você coloca dois coelhos e eles vão se multiplicando, multiplicando de maneira indefinida. Isso funciona simplesmente pelas leis da imitação, as pessoas simplesmente não sendo capazes de criar seu próprio vocabulário e imaginário, então recebem passivamente aquilo que a sociedade lhes transmite e vão repetindo, repetindo e daqui a pouco aquilo se espalhou por todo o ambiente mental coletivo.
Porém, esse processo espontâneo bastaria para explicar uma transformação tão vasta e profunda ao longo de tanto tempo? Bastaria para explicar, sobretudo a continuidade do processo e a ausência de reações a altura? Não. Então, você precisaria aplicar um outro método, quer dizer, o método da história das ideais, pois a historia cultural não bastaria. Você vê que uma certa idéia, um certo símbolo, certas atitudes, um certo slogan [que] se disseminaram não é suficiente. É preciso partir para um segundo método e lembrar que uma criação de coelhos não existe sem um criador. Então precisaria partir para a micro-história, método completamente diferente, para acompanhar o desenvolvimento de cada organização envolvida neste processo e observar a continuidade da ação ao longo dos tempos. Isto [para mim], no entanto, estava completamente fora de meu alcance, porque precisaria estudar a história de centenas de organizações políticas e culturais que estão agindo [nos EUA] há 50 anos.
Outro dia, eu ouvi um documentário que se chama "Agenda", feito por um deputado do estado de Idaho. Eu percebi que ele me entregou a solução do enigma, mostrando que das organizações criadas pela inteligência soviética nos EUA, nos anos 40 e 50, saíram praticamente todas as organizações americanas que estão em ação hoje. Ele mostra toda a filiação, organização por organização, quer dizer, uma organização criando outra organização de fachada, que cria outra de fachada e assim por diante. [No documentário] você vê a micro-história. Mas note bem, eu que estudo esta coisa há tanto tempo, não teria condição de fazer esta sondagem das organizações. Eu tinha que compreender a coisa somente na base da difusão cultural, isto é, da "criação de coelhos", ainda sabendo que essa explicação era insuficiente. Com isso eu não poderia comprovar a existência do processo. Você tem um começo e tem um fim, [ou seja, você] tem uma causa inicial e depois um estado atual, mas como explicar como se produziu a continuidade deste efeito ao longo do tempo, era uma coisa que me escapava completamente depois de tantos anos de estudo.
Mas me parece óbvio que, se você não está consciente destas duas coisas, primeiro dessa docilidade da opinião pública americana às decisões e escolhas da propaganda soviética e, segundo, não tem consciência de como o processo se desenrolou então a gente não entende nada do que está [acontecendo] aqui [nos EUA]. Agora perguntem para mim: "quantas vezes eu vi este assunto ser discutido em publico?". Rarissimamente. Você vê pessoas que percebem uma parte, um aspecto do fenômeno, mas a coisa está toda junta. Eu só vi [isto] neste documentário desse deputado, acho que se chama Curtis Bowers.
Então, quer dizer, o processo essencial da historia política americana dos últimos 50 anos está praticamente desconhecido. E, no entanto, o pessoal discute muitas outras coisas, discute orçamento, discute política de saúde, discute desvalorização do dólar etc. Quando eu digo: "participar [atualmente] do debate coletivo" significa o seguinte, você não [pode] aceitar os termos da discussão tal como ela aparece em publico, mas [deve] saber tudo o que está por baixo e de onde surgiu tudo aquilo. Então tem que fazer um trabalho arqueológico e isso é muito difícil, principalmente, porque a tendência inata do ser humano é entrar nos debates e tomar posição. No primeiro momento conforme seus valores e sentimentos etc., toma posição e começa a defender certas atitudes. Alias alguém aqui me faz uma pergunta sobre a apologética cristã, depois eu vou responder isso.
Mas quando você assume uma posição e defende uma crença ou ideia etc., você precisa ver em primeiro lugar que você já aceitou a existência da questão, a existência de uma escolha. Por exemplo, vamos supor que você entre em uma discussão a respeito da imortalidade. Eu estava lendo recentemente no livro do Max Scheller, ele faz uma crítica da noção de crença [afirmando que] só existe uma crença se existir uma crença contrária ou descrença. Isso quer dizer que crença é uma atitude intelectual de adesão, mas para quase toda a totalidade da espécie humana até o advento da modernidade no Ocidente, os seus universos religiosos não eram constituído de crenças, era a própria imagem do mundo. Ou seja, era no mundo tal como descrito pelo seu simbolismo religioso que as pessoas viviam. Elas não se colocavam fora daquilo para julgar e dizer: "vou acreditar ou não". [Assim] como hoje, nós vivemos dentro de outro universo de percepção que é diferente das antigas religiões, mas que também, e visto de fora, contém um coeficiente de irracionalidade tão grande quanto aqueles que nós podemos observar em qualquer "religião primitiva".
Scheller [0:10] faz mais uma observação, ele diz: "a ideia de imortalidade sempre foi uma coisa óbvia para todas as civilizações anteriores à Civilização Ocidental Moderna, pelo simples fato de que as pessoas não vivenciavam a sua própria morte como uma ideia, uma mera crença de que todos nós temos que morrer. Crença baseada na experiência de que todo mundo morre, portanto eu devo morrer. Mas ao contrário, pessoas que nunca tinham visto ninguém morrer, não só sabiam que iriam morrer, mas tinham a sua própria morte como uma coisa presente para eles. Podia ser intuído através da imaginação, o indivíduo se imaginava morrendo e isso era normal. E justamente na medida em que se imaginava morrendo, vivenciava antecipadamente a sua própria morte, cada um fazia isto. Automaticamente aparecia a perspectiva da imortalidade, portanto, não como uma crença, mas como uma parte da intuição da própria morte.
Ora, a intuição da morte foi removida da Cultura Ocidental; as pessoas têm horror de pensar na sua própria morte, horror de mencioná-la, quanto mais imaginá-la. Ou seja, a morte de cada um desapareceu de seu universo intuitivo, tornou-se apenas uma crença, no sentido de que se todos morrem, eu devo morrer também algum dia e ponto final, não se fala mais nisso! Ou seja, a morte como uma realidade pessoal se tornou um tabu. Se você começa a falar disso em qualquer ambiente, você vai ver que as pessoas logo cortam [o assunto], mas isto é assim em todo o ocidente. Se você começa a conjecturar algo sobre sua própria morte [ou] a morte de seu vizinho ou da própria morte pessoa com que você está conversando cortam o assunto rapidamente, porque ninguém quer falar disso. Scheler nota que esta é a única civilização onde isso aconteceu.
Ele disse: "A noção da imortalidade desapareceu no momento em que desapareceu a noção da morte. Portanto, não é que a imortalidade fosse uma crença, a noção de imortalidade era uma parte da própria vivência antecipada da morte, como esta vivência antecipada desapareceu, não só diz ele, a imortalidade se tornou impensável, mas a própria morte se tornou impensável. As pessoas simplesmente não podem conceber que são imortais, porque elas não concebem que morrem, elas apenas sabem que morrem. Você tentar imaginativamente vivenciar a sua própria morte, antecipadamente, é uma coisa que hoje seria considerado mórbido e altamente inconveniente, então, é a cultura sem morte. Alias, o Dr. Meira Penna lembrava isso: "eles retiraram o tabu do sexo e colocaram o tabu da morte". O sujeito não pode morrer mais.
Então é evidente que as crenças todas aparecem e desaparecem dentro de um quadro de percepção que não é constituído de crenças, mas que é a própria realidade do mundo onde as pessoas estão vivendo. Para que algo se transforme em crença é preciso que ela possa ser visto de fora, com um certo distanciamento crítico e, portanto, não fazer parte da vivencia imediata do mundo. E como a presença da perspectiva da morte fazia parte dessa vivência imediata, então, por isso mesmo, a ideia de imortalidade parecia óbvia a estas pessoas. Não era uma crença, nem era discutida, mas a simples realidade. Porem, na hora em que você "tampa" a vivencia intuitiva da sua própria morte, então a imortalidade se torna apenas uma crença a qual você pode aderir ou rejeitar. A coisa saiu da dimensão da vivencia imediata para a dimensão das puras idéias, convicções que você pode discutir etc., implicando um distanciamento crítico em relação à idéia. Este distanciamento crítico também significa que, ao rejeitar a ideia você está fazendo com que a sua razão se sobreponha criticamente a ela, e se você aceita e acredita na idéia, isto não vai fazer com que ela se torne elemento de vivência, continua sendo apenas uma crença, que você pode perder amanhã ou depois, se você muda de idéia. Em nenhum destes casos as noções de morte e imortalidade é uma vivência efetiva.
Isto para vocês verem a atmosfera cultural em que vivemos não se compõem só de crenças, mas de atitudes imediatas perante uma imagem do mundo que não é discutida, não pode ser discutida. Na hora que ela começa a ser discutida virou crença. É crença, ou você adere ou rejeita; quaisquer que sejam as suas crenças você está sempre dentro de algo que você considera o mundo real. No caso, a morte e, portanto, a imortalidade saíram do mundo real e se tornaram matéria de opinião. Isso quer dizer que mesmo as pessoas que acreditam, não estão levando a coisa suficientemente a sério, porque ainda continua sendo matéria de crença. Com o advento da ideologia científica moderna, que acredita que existe uma divisão entre o conhecimento, aquilo que a ciência determina e, por outro lado, existe a crenças ou fé, a coisa piorou ainda, porque mesmo que você dê a sua adesão a crença, ela vai continuar sendo para você uma matéria de fé, algo que você decidiu. Do qual você não tem nem a evidência intuitiva imediata, nem a prova científica.
Então, nós temos estas três atitudes: a evidência imediata, a prova científica e a fé. Só que a ideia da evidência imediata desapareceu pelo menos no que concerne à morte e a imortalidade. Se você pensar bem, esta ideia desapareceu na cabeça de todo mundo e, no entanto, todos continuam tendo evidências imediatas. Só que estas evidências imediatas, hoje em dia, são constituídas em grande parte de meras crenças, que foram inoculadas nas pessoas pela mídia, pelo sistema educacional etc. Uma destas crenças, por exemplo, é a de que nós vivemos em um mundo determinado pela ciência e tecnologia. Todo mundo acredita nisso. [Nos] livros de história nós vivemos em um mundo determinado em grande parte pela ciência e tecnologia. Ora, quando nos perguntamos: quanto do Universo foi afetado pela ciência e tecnologia produzida no planeta Terra? Praticamente nada. A ciência alterou a órbita de algum planeta? A ciência mudou alguma coisa da natureza física na qual nós vivemos? Nada. A ciência alterou o nosso passado, quer dizer, modificou as causas, a ação residual ou persistentes de causas históricas desencadeadas há milênios atrás? Não. Ou seja, a ciência alterou muito pouco do panorama onde vivemos. O fato é que ela é um elemento muito falado, ela faz parte de nosso ambiente verbal e imaginário.
Também, qualquer discussão sobre as ciências começa sempre com o reconhecimento da dívida que temos com ela, afinal nós temos computadores, os antibióticos, nós temos isso e aquilo, porém se você perguntar quais foram os avanços científico-tecnológicos que influenciaram o maior número de pessoas no século XX e que tiveram maior impacto social - de cara! -, você verá a bomba atômica. O advento da bomba atômica mudou a história humana mais do que os computadores, os telefones, os antibióticos etc. Desde logo, a fabricação de milhares de bombas atômicas pelos EUA, pela União Soviética, pela China etc., provocou um efeito que foi resumido pelo poeta francês Paul Valéry que disse: "Nós, as civilizações, agora sabemos que somos mortais". Portanto, é curioso que em um ambiente onde ninguém encara seriamente a perspectiva da sua própria morte como um acontecimento real, todo mundo encara a perspectiva da morte da civilização ou do fim da espécie humana. A perspectiva da liquidação da espécie humana por si mesma foi objeto de tantas discussões públicas, livros, artigos, programas de televisão etc., que se tornou [0:20] uma presença.
Desde o começo do século XX, a primeira descoberta científica que teve impacto social considerável foi os gases de mostarda utilizados na Primeira Guerra Mundial e que elevaram a capacidade mortífera dos exércitos a um grau que seria impensável. A Primeira Guerra Mundial quando aconteceu já foi um acontecimento de escala tão grande que não se podia nem classificá-la na categoria guerras como se conhecia antes. Também o advento da aviação militar. Tudo isso não foram avanços científicos? A aviação militar permitiu que acontecesse pela primeira vez na história, o envolvimento sistemático da população civil na guerra.
Até o século XIX existia um negócio chamado campo de batalha. Campo de batalha é um lugar separado da cidade onde os exércitos combatiam. Ainda na guerra de independência americana foi assim. na guerra civil [americana], embora já houvesse uma ampliação do ataque às populações civis, em geral as batalhas se travavam em lugares pré-determinados**.** se você estudar a história das grandes batalhas você vai ver que [as batalhas] se travavam fora das cidades. agora, com o advento da aviação militar, essa brincadeira acabou. Porque em primeiro lugar é impossível mais ou menos controlar onde as bombas iam cair. Então, se você fosse bombardear um alvo militar, você não tinha controle se aquilo ia acertar as cidades em volta.
Depois, veio o advento dos estudos inaugurados por Pavlov sobre o controle da conduta humana. E daí saíram todos os processos de lavagem cerebral, controle mental, manipulação das consciências e por fim, a engenharia social, que hoje é adotada em escala mundial, praticamente nada acontece que não tenha sido planejado por engenheiros sociais e executado por outros engenheiros sociais. Se você soma tudo isto, ora, essas foram as contribuições fundamentais da ciência à sociedade. Uma outra contribuição é a organização burocrática moderna com o avanço da economia, das ciências sociais, do direito etc. Ora, os Estados são constituídos como organizações burocráticas praticamente indestrutíveis. Tudo isso é contribuição da ciência. Agora, quantas pessoas foram afetadas por estes processos que eu estou lhes dizendo e quantas foram beneficiadas pelos antibióticos, por exemplo? Também poderíamos falar dos computadores, contudo não podemos esquecer que o computador é, em primeiro lugar, tecnologia militar.
As chamadas contribuições da ciência, só chegam a beneficiar uma parte da população civil depois que tiveram a sua utilização devastadora no campo militar. No entanto, é curioso que estas realizações da ciência, que são as principais e que tiveram mais impacto sobre um número quase ilimitado de pessoas, nunca estão listadas entre as grandes contribuições da ciência. Não é fantástico? Isso quer dizer que a ciência moderna é um elemento fundamentalmente destrutivo, que de vez enquanto exerce um efeito benéfico aqui ou ali. Mas o fundamental de sua ação tem sido fomentar a tirania e o morticínio. Isso é um fato inegável, no entanto, eu nunca vi isto ser discutido desta maneira. Por quê? Porque quem discute isso são pessoas do mundo acadêmico que, de cara, já estão interessados em justificar a sua existência, mediante o apelo a valores morais que supostamente legitimam suas atividades. Na verdade vou um pouco além disso.
Quero ler para vocês duas sentenças escritas por famosos cientistas acadêmicos. A primeira é de Rom Harré, em 1986: "Ao defender a justa pretensão da comunidade científica ao conhecimento, estou também defendendo a superioridade moral daquela comunidade em relação à qualquer outra associação humana". Mais adiante outro sujeito diz: "Os padrões de honestidade, confiabilidade e bom trabalho da Comunidade Científica são tão elevados que, perto dele os da Civilização Cristã ficam condenados". Ou seja, a Comunidade Científica representa o máximo de confiabilidade, honestidade, veracidade e sinceridade, impondo-se, portanto, como um novo padrão de moralidade perto do qual, não só empalidece, mas é condenada toda a Civilização Cristã.
Ora, a pretensão dessa gente é absolutamente ilimitada e psicótica, principalmente porque essas virtudes de confiabilidade, honestidade, exatidão, autocrítica permanente, essas virtudes [todas] pertencem à comunidade e não aos indivíduos que a compõe. É a comunidade como um conjunto que tem estas virtudes. O indivíduo que participa dela, só precisa exercê-las enquanto cientista, ou seja, enquanto membro da comunidade. Nada impedindo que no restante de sua vida concreta seja um ladrão, mentiroso, assassino, pedófilo etc. Em princípio, nada impede que um pedófilo seja um bom cientista, não há nenhuma objeção. Um pedófilo jamais poderia ser um santo da Igreja Católica, mas pode ser Prêmio Nobel de química ou de física.
Portanto, a ideia de uma virtude coletiva, que não é necessariamente compartilhada pelos seus membros enquanto pessoas concretas se substituem, de um só lance, à busca de perfeição humana individual e concreta. Isso já é uma mutação civilizacional monstruosa. Por quê? Porque essas virtudes existem somente na comunidade e você só participa dela enquanto membro da comunidade. Ora, sua participação na comunidade é um papel social que você exerce na comunidade, então de agora em diante as virtudes estão colocadas no papel social e não na pessoa concreta, ou seja, é evidentemente um teatro. Em segundo lugar, porque esta virtude da sinceridade não é exercida mediante uma história sincera das ciências?
Por que nenhum cientista diz: "Olha o que nós fizemos de destrutivo supera imensamente tudo o que [se] fez de bom e produtivo?" Por que nenhum deles começa confessando isso? É só você fazer esta pequena listinha: gás de mostarda; aviação militar; organização burocrática dos governos tirânicos; métodos de controle social; lavagem cerebral; manipulação das consciências; a bomba atômica; os métodos de desinformação, que são uma obra de engenharia; a própria engenharia social; e por fim, a coisa mais terrível na atualidade, a substituição do antigo Capitalismo Industrial pelo Capitalismo Financeiro.
No momento em que a base da economia deixa de ser a indústria e passa a ser as finanças, você entra em um universo de entidades vagas, indefinidas e incontroláveis; é o que o Jean Fourastié chamou de "La economia del diablo". Ninguém sabe exatamente o que está acontecendo. Eu tenho lido alguns estudos que mostram que, após o advento do Capitalismo Financeiro, como critério mundial de organização, o número de fraudes no capitalismo se tornou absolutamente incontrolável, quer dizer, a fraude é parte intrínseca do sistema. Além disso, a adoção dos métodos de engenharia social [0:30] implica uma multidão de empreendimentos que são fraudulentos em si.
Essa semana estava lendo um livro sobre engenharia social, mais aplicado especificamente ao campo da informação, e o indivíduo faz ali uma lista de truques que ele usa para obter informações das pessoas contra a vontade delas. A definição da engenharia social é como induzir as pessoas a agir de uma maneira que não é necessariamente do interesse nem da vontade delas. Ora, essa disciplina é intrinsecamente desonesta e ela é a base de toda a economia atual, da política, da educação etc. Isto foi criado por quem? Foi algum pintor que criou? Algum místico? Não, isto foi criado pela ciência moderna, meu Deus do céu! No entanto, é tabu, você não se pode cobrar isso deles.
E acontece então com a classe chamada "comunidade científica" a mesma coisa que acontece com a comunidade militante, quanto mais crimes pratica, quanto mais se afunda no mal, mas tem a necessidade de se auto-idealizar como santa e quase divina. é um processo psicótico bastante conhecido [denominado] compensação, isto é, o indivíduo, cada vez que comete um crime, sente que falou com Deus, que recebeu uma mensagem dos anjos etc. Nada do que estou falando é exagero, nada é figura de retórica, tudo isso aqui pode até ser quantificado. Se alguém tiver a paciência de fazer isso, eu não vou ter, mas se alguém se interessar especificamente pelo assunto pode fazer um belo estudo a respeito.
Enquanto isso, vamos pensar um pouco mais sobre os conceitos fundamentais que criaram a ciência moderna cujo uso acabou gerando esta situação que nós estamos descrevendo. A idéia da quantificação aparece como sinônimo de objetividade e confiabilidade, digamos, um ou dois séculos depois que a voga do nominalismo havia deprimido a confiança das pessoas na sua capacidade de apreender a essência dos entes na sua forma substancial. Se não existe forma substancial e tudo que nós conhecemos são entes singulares e se toda noção universal de espécie é apenas uma construção mental, então nós ficamos num estado de incerteza quanto a todo o nosso conhecimento.
Dentro da perspectiva nominalista não dá para saber se as conclusões gerais tiradas a respeito do quer que seja correspondem a uma realidade externa ou é apenas uma construção da sua mente. Se qualquer generalização é apenas uma construção então só o que posso ver é entes singulares. A única certeza que tenho é dizer que aqui tenho um gato, mas quando eu chamo de "gato" já estou classificando uma espécie e, portanto, estou construindo algo e me afastando da realidade. Então surge o expediente da quantificação. Ora, se nós medimos as coisas e temos uma noção da estrutura matemática da realidade isso pode ser verificado por qualquer pessoa que refaça as contas e, portanto, temos aí um novo padrão de confiabilidade.
A quantificação pode funcionar como razão de confiabilidade, como fundamento de uma noção de objetividade pelas seguintes razões: a) em primeiro lugar, ela estabiliza as aparências. Na hora que você obteve uma mensuração de um fenômeno qualquer e aquilo permanece constante, então o mundo deixa de ser aquilo que dizia Heráclito, um mundo de constante fluxo, e se torna um conjunto de equações que permanece estável, pode ser objeto de estudo e que todas as pessoas podem verificar, desde que façam as mesmas contas; b) em segundo lugar, na medida em que os objetos são reduzidos a modelos mensuráveis isso facilita a comparação, ou seja, as fórmulas matemáticas obtidas são mais ou menos as mesmas e as pessoas podem então facilmente comparar aquilo; c) em terceiro lugar, ela contorna as imprecisões da linguagem verbal.
A linguagem verbal sempre vem carregada de conotações culturais, míticas, psicológicas etc., de modo que mesmo o conceito mais rigoroso expresso em linguagem verbal pode evocar conotações imprecisas ou inadequadas na cabeça do senhor fulano e do senhor Beltrano --- isto não acontece com a linguagem matemática porque ela não tem semântica, ela só tem sintaxe e morfologia, isto é, para entender um cálculo não é preciso saber a que o cálculo se refere, é como um conjunto de formas vazias que, não tendo semântica, não tem, portanto, a possibilidade de deslizar para outros significados; d) em quarto lugar, elimina o viés subjetivo (individual), todos têm de encarar as mesmas fórmulas da mesma maneira, operando-as de maneiras padronizadas. Isto imediatamente torna o objeto das ciências um objeto de posse coletiva.
Os objetos do mundo físico não são assim, se eu percebo um gato, nem por isso você percebe o mesmo gato. Você pode perceber outra coisa completamente diferente, porém, na medida em que reduzimos tudo a modelos matemáticos que são os mesmos para todos então a posse do conhecimento deixa de ser individual e se torna imediatamente coletiva (pelo menos para as pessoas que participam daquele estudo); e) finalmente, talvez o mais importante é que o caráter compulsivo dos resultados matemáticos simula o fatalismo da natureza. Se você fizer tal cálculo, fatalmente você vai chegar a tal ou qual resultado. Como a idéia na época era chegar a leis da natureza que tivessem o mesmo caráter compulsivo, que fossem imunes à ação humana, imunes até a intervenção divina e que de certo modo comprometessem o próprio Deus (uma vez determinada uma estrutura matemática Ele não poderia mais mudar de idéia), então este objetivo era mais facilmente alcançado mediante a matematização ou quantificação de todos os objetos, porque fazendo as contas você teria que chegar sempre e fatalmente aos mesmos resultados.
Porém, se pegarmos essas características da quantificação, ela garante a objetividade do conhecimento? Não, ela garante apenas a exatidão da sua estrutura interna. Se isso tem algo a ver com a natureza externa ou não, isto é outro problema completamente diferente. Então, entra o segundo elemento. Num primeiro momento, a formação das ciências modernas deve mais à matematização do que ao experimento. Se você for verificar direitinho, o que houve de experimentação na formação da Física de Galileu e de Newton é mínimo, 99,9% era matemática e 0,01% era experimentação. Isso foi o que se chamou de Racionalismo.
O cume do Racionalismo é alcançado na filosofia de René Descartes, e na filosofia de Descartes o grande problema ou pedra de tropeço é justamente a conexão entre os conhecimentos obtidos por pura dedução racional e o mundo exterior. Quando Descartes chega à certeza do ego pensante e diz: "tudo é duvidoso exceto o fato de que estou duvidando", esta é uma certeza subjetiva, que eu tenho para mim. Mas, como é que eu posso, partindo dessa base obter alguma certeza sobre os acontecimentos do mundo exterior? [0:40] Se a única certeza que eu tenho é puramente subjetiva, racional, não há conexão, por exemplo, entre isso e a Física, partindo do fato de que estou pensando, não posso obter um único conhecimento da natureza.
A conexão da estrutura racional com o mundo exterior se torna um problema e a existência desse problema suscita a segunda voga do pensamento científico moderno, que é o empirismo. Embora Descartes realizasse uma infinidade de experimentos e até sacrificasse a própria vida por um experimento (estava enchendo uma galinha com gelo e pegou uma pneumonia e morreu, ele queria saber alguma coisa sobre a galinha, não sei exatamente o quê, e precisava encher a galinha de gelo). Embora realizasse uma multidão de experimentos, o experimento não é a base da filosofia de Descartes. A base da filosofia dele é o exercício da pura razão. Mas, o mesmo não acontece na segunda geração, com Bacon, Locke e muitos outros.
A partir desses, o experimento torna-se a chave e a base da confiabilidade. Porém, nós temos alguns problemas. Thomas Hobbes, num de seus raros momentos de lucidez, observou que os experimentos científicos são testemunhados por um número ínfimo de pessoas, principalmente porque às vezes requerem equipamentos que são difíceis de construir e são muito caros. Então ele disse, numa discussão com Robert Boyle: "vocês reúnem cinco pessoas, fazem uma maquininha, obtém um experimento e, por causa disso, querem que o resto da humanidade acredite!".
Então, este já é um primeiro ponto estranho: até hoje, os experimentos científicos continuam podendo ser testemunhados só por uma minoria ínfima. E como é que possuem tanta autoridade sobre todo o público? Como é possível isto? Como é que aquela reduzida elite que observou tal ou qual experimento pode com tanta facilidade impor a sua autoridade de portadores de um conhecimento confiável perante toda a espécie humana? Isto é um milagre. É o milagre da retórica, milagre da propaganda! Assim, para que o experimento adquira a autoridade que veio a adquirir sobre milhões ou bilhões de pessoas, que jamais ouviram e que não tem a menor condição de conferir, é necessário que a comunidade científica se imponha como uma autoridade muito mais confiável do que o clero.
Então, desde logo se deu a essa comunidade científica nascente uma credibilidade cega que jamais se deu a clero nenhum no mundo! Aquelas coisas que os padres, pregadores, ensinavam para as pessoas não eram tão inacessíveis assim, alguma experiência da vida religiosa, ou da prece ou até mesmo da magia todo mundo tinha. Era uma coisa que estava presente, disseminada, na sociedade. A diferença de conhecimento que havia, por exemplo, pegue uma tribo de índios: de um lado um pajé e, do outro, um índio qualquer (um "civil" indígena). O pajé sabe alguma coisa a mais, mas ele está vivendo ali no meio dos índios, todo mundo está observando a atividade dele e tem alguma idéia do que ele está fazendo. Ele não está colocado num laboratório a quilômetros de distância, se comunicando com o público apenas de maneiras indiretas!
Em [segundo] lugar, muitos desses experimentos dependem, por sua vez, de uma técnica matemática que é inacessível também a maior parte das pessoas. E que hoje em dia começa a se tornar inacessível aos próprios cientistas. Por exemplo, existem alguns cálculos que são tão complexos que só podem ser feitos por computador e ninguém pode verificar. Assim, se alguém fosse verificar manualmente aquele cálculo levaria vinte, trinta, quarenta anos ou uma vida inteira, ou seja, ou você confia no computador ou você está lascado. Então, um dos elementos principais do chamado método científico que é o controle... O controle acabou! Não há controle nenhum.
A autoridade dessa pequena comunidade científica se impôs à humanidade através dos seguintes instrumentos: primeiro, a retórica e a propaganda; idealizar aquele pessoal como se fosse um grupo de enviados celestes que agora tem o segredo do universo e idealizá-los como portadores de virtudes excelsas, não individualmente, mas como coletividade; segundo, isso se impôs pelo controle social através de mídia e educação, a pessoa é educada desde pequenininho a respeitar um treco chamado ciência e terceiro, isso se impôs através de mecanismos de exclusão, o estudioso que não aceita entrar nos "cânones" da chamada ciência moderna é imediatamente excluído por mais verdadeiro que seja o que ele está dizendo.
Então, nós vemos que, no debate entre Robert Boyle e Thomas Hobbes, este estava montado na razão. O que ele disse é óbvio, os seus experimentos [de Robert Boyle] só são controláveis por meia dúzia de pessoas. É verdade que Hobbes, em oposição ao empirismo, oferecia a dedução matemática que ele chama de geométrica e diz ser acessível a todo mundo. Não precisamos de equipamentos para raciocinar matematicamente, então uma ciência baseada mais em matemática do que em empirismo seria mais acessível à humanidade. Mas ele disse isso numa época em que as matemáticas comparadas com o estágio que atingiram hoje eram rudimentares! Aquele livro, O Sonho de Descartes [de Philip J Davis], calcula que as matemáticas avançaram tanto que para as ciências experimentais precisarem usar todos os recursos desenvolvidos pela matemática hoje precisaria passar pelo menos duzentos anos. Ou seja, a matemática criou muito mais instrumentos do que a ciência experimental precisa. E calcula-se que anualmente são publicados quarenta mil trabalhos matemáticos com descobertas originais.
Assim, a matemática escapou do alcance dos cientistas de laboratório, há muito tempo. E, no mais das vezes, as propostas de pesquisa na área matemática são incompreensíveis aos próprios chefes de departamento. Ou seja, chega um camarada com um projeto e o chefe de departamento não tem conhecimento matemático suficiente para alcançar aquela sutileza, então, o chefe aprova ou desaprova no chute. O uso dos mecanismos de exclusão e, naturalmente, a autodefesa corporativa através de regulamentos, sindicatos, autorização ou desautorização para exercer a profissão etc., tudo isso faz parte da prática real das ciências.
Por que nós devemos conceber a ciência apenas abstrativamente como um mecanismo racional de observação, teste e controle feito por meia dúzia de pessoas no instante e ignorar todo o aparato material, social, econômico, político etc. necessário para que isso exista? Aplique o mesmo raciocínio à religião católica, por exemplo. Nesse caso, a religião católica seria constituída apenas das virtudes evangélicas. E cada vez que você fala da religião católica, está se referindo apenas a isto, como se a totalidade do clero fosse constituída de pessoas como São Francisco de Assis. Nós sabemos que não é assim, sabemos que existe um poder, existe orçamento, existe uma disputa de poder, um corporativismo e tudo isso faz parte [0:50] e a igreja carrega nas costas os seus pecados, e os admite o tempo todo. Agora, a ciência não, a ciência é definida apenas por aquele momento de idoneidade idealizada que se observa entre os membros da equipe.
Outro mecanismo de imposição da autoridade da ciência foi a legitimação estatal, isto é, o poder de Estado que existe por trás disso. Por exemplo, um grupo de cientistas decide que só pessoas que pensam assim ou assado podem praticar aquela profissão. Esta imposição de autoridade não seria eficaz se não tivesse por trás o poder de Estado que a legitima e dá os meios policiais e judiciais de impor a coisa. E, finalmente, a autoridade científica se impôs através do argumento do sucesso tecnológico. Mas, o sucesso tecnológico também é apresentado de maneira abstrativa, só os chamados benefícios da ciência são mostrados, os seus malefícios não fazem parte. Reconhecem que esses malefícios existem, mas aí atribuí isso à pseudociência. Como? A aviação militar é fruto da pseudociência? O gás de mostarda é pseudociência? A bomba atômica é pseudociência? A técnica de engenharia social é pseudociência? Não, tudo isso é ciência efetiva, senão não funcionaria! Os males que a ciência produz não vêm da pseudociência, vêm da própria ciência.
Eles dizem: "Não, mas uma coisa é a ciência, outra coisa é a sua aplicação. Os responsáveis pela aplicação não são cientistas". Como não? Como um não-cientista poderia planejar a aplicação da bomba atômica? Claro, esses são cientistas também, meu Deus do céu! Todos aqueles militares que controlavam o projeto Manhattan eram cientistas também! Não era pessoa totalmente alheia à pesquisa científica, um puro político. O político entra na linha de comando em última instância, no último momento, quando já está tudo decidido. E, além disso, como um político genuíno, um político puro-sangue, como Roosevelt ou Truman, que não tinham capacidade para entender a complexidade científica da coisa, jamais poderiam decidir se os cientistas não lhes provassem a viabilidade e conveniência da decisão, coisa que tem de ser feita em termos científicos. Então, não tem como você inocentar a corporação científica de toda essa obra destrutiva, cujo alcance é infinitamente maior do que todos os benefícios que a ciência possa ter trazido à humanidade.
Então, a autoridade do experimento -- apesar da objeção de Hobbes -- se baseia no pressuposto da repetibilidade. Ou seja, fizemos um experimento que pode ser repetido, teoricamente, por qualquer pessoa. Basta ter uma verba de alguns bilhões para construir um reator atômico na sua casa e poderá conferir tudo o que nós dissemos! Desse modo, a repetibilidade é compartilhada somente por um reduzido círculo de profissionais. Mas vejamos se dentro desse reduzido círculo ela pode funcionar. Vamos supor que você tenha uma teoria e, para comprovar ou desmentir essa teoria, você invente um experimento. Até aí, tudo que você fez foi no papel. Praticamente não custou nada, a não ser o seu tempo, o papel e o lápis. Agora, vamos fazer o experimento. Para fazer o experimento, você tem de desenvolver os equipamentos para isto. E esses equipamentos dependem de uma tecnologia que não tem diretamente nada a ver com a teoria.
Por exemplo, a construção de um reator atômico não é determinada pelas leis da Física atômica, mas por elementos de engenharia cuja conexão intelectual com a Física atômica é muito remota (se é que existe). E o domínio sobre esses equipamentos tem de ser ensinado. Ora, não existe nenhum equipamento dos mais complexos usados na pesquisa em qualquer área científica, cujo aprendizado se possa fazer apenas pela leitura do manual de instruções. Cada um deles exige uma prática. Às vezes de anos! O que significa que você tem de enviar um cientista da sua universidade e mandar para a fábrica que está produzindo o equipamento, ou mandar para outro laboratório que já tem aquele equipamento e, através da prática e do contato pessoal, você vai aprendendo a lidar com o equipamento.
E aí entra o que o filósofo e matemático Michael Polanyi que dizia: "isso requer o que ele chamava de conhecimento pessoal", são truques de profissional que só são transmitidos de pessoa a pessoa. Como numa arte, você precisa ver o sujeito pintando para aprender a pintar. Ou, como neste curso, você precisa ver o filósofo filosofando para você saber o que é filosofia, não basta só ler o que ele escreveu. É preciso ver a coisa sendo feita no dia-a-dia. E isto é um conhecimento que é intransmissível em palavras. São coisas que se incorporam à personalidade do indivíduo e lhe dão uma habilitação que ele mesmo não conseguiria transpor em palavras. Se você perguntar para um sujeito: "Como é que a gente lida com esse reator atômico"? Ele responderá: "É simples, você fica dois anos aqui no laboratório me vendo fazer e vai aprender". Claro que há todo um manual de instruções e toda a parte teórica da coisa, mas sem esta transmissão pessoal nada é possível. Ou seja, qual é o controle externo que alguém pode ter sobre isto? Ninguém pode controlar isto. Este aprendizado depende de fatores tão pessoais e tão subjetivos quanto a arte da pintura ou da música. Veja a que distância fomos parar do controle exato de todos os passos da investigação. Esse controle não existe e não pode existir.
Existe um autor chamado Ian Hacking. Examinando esses fatos ele chega à conclusão:
"A repetibilidade duma experiência é impossível. Você sempre faz outra coisa".
Aí surge também o seguinte problema. Robert Boyle, para fazer um experimento qualquer, construiu uma bomba de ar. E foi justamente essa bomba de ar que suscitou a sua discussão com Thomas Hobbes. Porque a bomba de ar era feita para ser usada em certos experimentos científicos e produzir certos resultados. Imediatamente após a construção da primeira bomba de ar, outras pessoas começaram a construir bombas de ar e vendê-las para outros cientistas interessados. E aconteceu que as bombas de ar que não produziam o resultado esperado eram retiradas do mercado.
Este fato levanta em Thomas Hobbes a suspeita que os experimentos científicos são profecias autorealizáveis. Até certo ponto ele tem razão, pois acontece o seguinte, se você produz equipamentos idênticos para realizar certas experiências e esses equipamentos produzem sempre os mesmos resultados, o que há de estranho nisso? O que há de tão revelador nisso aí? Se o equipamento foi feito para produzir tal resultado, ele produz tal resultado. O quê isto mostra sobre as leis da natureza ou sobre o funcionamento da natureza? Nada! Mostra sobre o funcionamento do equipamento e isso não é necessariamente um avanço do conhecimento sobre as leis da natureza, mas é uma prova da eficácia da tecnologia humana, nós somos capazes de produzir um equipamento que, por sua vez, produz este ou aquele resultado.
Qual é a conexão entre isto e as leis da natureza? Para chegar a essa conclusão você precisa de uma ontologia inteira, que prove a conexão de uma coisa com outra. Ora, a construção dessa ontologia não faz parte das tarefas formais do cientista. Também Ian Hacking observa:
"os experimentos dão certo quando permitem a manipulação confiável de objetos".
Mas pelo menos alguns desses objetos como, por exemplo, os lasers podem jamais existir fora dos laboratórios. Então, se você conseguiu produzir tal ou qual resultado com um laser o que isso lhe demonstra sobre a natureza [1:00], sobre o mundo, sobre o universo? Nada. Demonstra sobre os lasers, que foi uma coisa que você mesmo criou.
Então, isso significa que o resultado da atividade científica em termos de conhecimento é bastante reduzido na medida em que se refere a conhecimento da realidade externa, mas é enorme no que diz respeito à produção de efeitos tecnológicos. Porém, esses efeitos tecnológicos em seguida se incorporam à vida social e passam a fazer parte da dia-a-dia das pessoas. Por exemplo, todo garoto hoje tem uma lanterna laser, que usa para brincar com o cachorro, fazer o cachorro de trouxa; mostra aquela bolinha vermelha e o cachorro vai atrás. Então estes objetos tecnológicos têm uma presença social, eles modificam o ambiente humano e físico. Portanto, modificam o que as pessoas imaginam como natureza.
Mas há uma grande diferença entre você conhecer os processos profundos da natureza, e você criar uma segunda natureza em cima dela. Ora, criar uma segunda natureza é criar uma segunda realidade. A segunda realidade é exatamente o que Robert Musil dizia que as ideologias de massa criam. Elas nada nos explicam sobre a realidade, mas criam outra camada de realidade em cima dela e as pessoas passam a raciocinar apenas em função desta segunda camada. Qual é a diferença, neste sentido, entre a atividade científica e a atividade ideológica? Nenhuma.
Então prossegue o próprio Hacking**:**
"À medida que esses objetos artificiais ou purificados vem a ser mais confiavelmente manipulados, eles começam a ser incorporados em outras experiências e às vezes usados em processos externos ao laboratório. Esse é talvez o sentido mais crucial em que os laboratórios são autoconfirmáveis. Nossas intervenções, (...)",
Que é a intervenção humana no processo,
"(... ) tornaram-se demasiado poderosas para que possamos falar da ciência em termos do apreender o que se passa na natureza, independentemente da atividade humana."
Ou seja, aí houve no mínimo uma confusão, uma mescla, entre o que a natureza é e o que nós fazemos com ela. Essas duas coisas se tornaram praticamente indiscerníveis, e que isso seja um progresso da compreensão, um progresso do entendimento, eu duvido. Mas é um progresso da modificação do cenário. Ou seja, quando o Marx diz "os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, mas nós temos de transformá-lo". Eu digo, este programa foi realizado pela ciência moderna! Nós não conseguimos entender o mundo, mas nós o modificamos de tal modo que ele se torne ainda mais incompreensível.
E também prossegue Hacking:
"O laboratório auto-confirmável depende também da seleção apropriada do pessoal, com exclusão daqueles que se recusam a aceitar essa disciplina."
Então, de um único resultado experimental que você obtenha num laboratório, até a afirmação de que aquilo corresponde a uma lei objetiva da natureza, o caminho é longo e passa pela construção de toda uma ontologia. Isso é tão complicado e tão difícil, que muitos cientistas e filósofos da ciência simplesmente desistiram de falar de leis objetivas da natureza, e desistiram de estabelecer qualquer conexão entre os conhecimentos científicos e a objetividade exterior. Ou seja, aquilo que começou como afirmação do império da objetividade, termina com a renúncia a toda objetividade.
Por exemplo, o Marquês Étienne de Condillac, um dos autores da enciclopédia era um nominalista convicto, e ele achava que era perfeitamente inútil você buscar qualquer coisa a respeito da natureza objetiva das coisas. Ele dizia que tudo o que nós temos de fazer é apresentar descrições matemáticas confiáveis para os fins da própria pesquisa científica. Mais tarde veio Ernest Mach, que propôs o que ele chamava "modéstia metafísica". Ou seja, o que nós estamos fazendo aqui, nós não sabemos se é a realidade ou não e -- quer saber? -- isso não importa. O que importa é que funcione dentro dos parâmetros da própria ciência que nós estamos praticando.
Um exemplo característico disso, talvez o mais notável, é o da eletricidade. Até o século XIX se discutia muito o que era a eletricidade. Depois que a descobriram, começaram a tentar obter um conceito. Nunca conseguiram. Como não conseguiram, então veio um sujeito chamado Heinrich Hertz, ainda hoje tudo é medido em hertz, e disse:
"não, nós não temos o conceito, mas temos uma medida matemática. Nós não sabemos o que é, mas mede tanto".
E até hoje, tudo o que se faz em eletricidade no mundo, é baseado na medição exata de uma coisa que não se tem a menor ideia do que é.
Experimente pegar um cara especialista em engenharia elétrica, ele vai te dar lições, e agora [pergunte a ele]: "me diga o que é uma carga elétrica"? Ele não tem a menor ideia. Mas a medida matemática permite manipular e criar coisas que, por sua vez, modificam o panorama físico onde vive a humanidade e criam a segunda realidade. Assim, você começa a raciocinar como se essa segunda realidade fosse a própria natureza, quando ela não é. Ela é uma presença física criada por seres humanos. Isso quer dizer que a diferença entre objetos naturais e objetos fabricados pelo homem, vai se tornando cada vez mais impossível e inviável. Retroativamente, você aplica essa indistinção a todos os objetos da natureza conhecidos anteriormente. Assim, você faz a confusão retroagir até os primórdios.
Nos EUA houve um importante cientista e metodologista das ciências chamado Karl Pearson e ele dizia:
"a unidade das ciências não tem nada a ver com o seu objeto, elas se baseiam inteiramente no seu método".
Sobre isso, vocês podem ler páginas e páginas que o Eric Voegelin escreveu sobre o império do método. Kant, que era um grande apreciador da mecânica de Newton, dizia claramente que o método cria o seu objeto. E ele diz
"o cientista não se coloca perante a natureza como um observador, mas como um juiz de instrução (...)"
Juiz de instrução é, no sistema judiciário alemão, o sujeito que preside a investigação.
No Brasil não existe isso. O juiz nada investiga, quem investiga é a polícia. Então seria o delegado de polícia. Coloca-se como delegado de polícia [para] que espreme a testemunha e obriga a responder as perguntas que ele quer. Isso quer dizer que o enfoque que o delegado de polícia lança sobre a testemunha ou sobre o acusado, é apenas o enfoque policial. Não tem nada a ver com a realidade pessoal daquela pessoa. Ele só quer saber aquele ponto.
Ora, se você juntar todas as respostas obtidas por todos os delegados de polícia do mundo, você não compõe um ser humano inteiro, porque todas essas perguntas foram feitas sempre dentro de um mesmo ponto de vista. Ou seja, o método não só recortou, mas criou o seu objeto. Aqui o autor, Theodore Porter, observa a respeito de Pearson:
"Embora Pearson duvidasse da utilidade de falar da existência de um mundo independente, ele invocava faculdades perceptivas normais para explicar como as ciências podem chegar a um consenso."
Porque perguntaram a ele:
"Se não existe um mundo externo independente e objetivo, como nós podemos ter a certeza de que na nossa intercomunicação, que é um fato do mundo exterior objetivo, nós estamos falando a mesma coisa ou está cada um falando uma língua, e o outro está entendendo uma coisa completamente diferente [1:10], ou seja, o que é que garante a unidade de percepção entre vários cientistas?"
Essa unidade de percepção, por exemplo, em biologia, não pode derivar da própria biologia; ou em física, não pode derivar da própria física; ela é um fato da realidade humana geral. Então, ele dizia: "existem faculdades perceptivas normais que todos os seres humanos têm". A pergunta é: "como é que você sabe disso?" A existência objetiva dessas faculdades não pode ser provada por uma ciência que não se interessa pela realidade objetiva, mas que só se interessa em descrições funcionais. Como é que você pode dizer que tal ou qual faculdade de percepção é normal ou anormal? Não há como dizer isso. Portanto, no centro mesmo desse edifício metodológico criado por Karl Pearson há um paradoxo, uma incongruência monstruosa.
Se, agora, nós consideramos [não] apenas as ciências da natureza, mas [também] as ciências humanas, a devastação cognitiva se torna imensurável. Eu dei outro dia o exemplo da engenharia florestal na Alemanha, vocês devem se lembrar disso, que não só produziu uma tonelada de pseudoconhecimento, mas produziu um desastre econômico formidável. Muitos desses desastres formidáveis que são narrados por James C. Scott no livro Seeing as a State (Vendo como um Estado), onde ele mostra que essas ciências olham as coisas do ponto de vista do Estado, e recortam a realidade do ponto de vista das informações que o Estado necessita.
Logo depois da Revolução Francesa tentou-se um recenseamento da população francesa. Acontece que o recenseamento esbarrou, em primeiro lugar, na impossibilidade de se coletar dados econômicos uniformes, porque o sistema de pesos e medidas era local. Ter o seu próprio sistema de pesos e medidas era um dos sinais de soberania de uma comunidade, de uma cidade, de uma província etc. Então o sistema de reduções de uma coisa à outra era tão complicado, que só altos matemáticos podiam acompanhar aquilo. Isso quer dizer que a cobrança de impostos no antigo regime era o caos. O governo não tinha o menor controle do que estava acontecendo.
Então as pessoas pagavam praticamente o imposto que queriam -- e mesmo assim achavam alto. Era sempre possível você ludibriar o coletor de imposto mediante um sistema de medida que ele não compreendesse, e isso se fazia realmente. Na hora que se começou a unificar o sistema de pesos e medidas, isso automaticamente criou uma mudança total da estrutura de poder na sociedade, porque imediatamente as soberanias regionais acabaram e tudo ficou centralizado na burocracia federal. Esta é a primeira mudança. Dito de outro modo, o recenseamento modificou a sociedade para o poder medi-la. O que é isso? É o método que cria o seu próprio objeto.
Ora, também quem levava prejuízo com a multiplicidade de pesos e medidas, assim como de unidades monetárias, da alta classificação dos vários grupos e famílias, da autodefinição das regiões, eram os grandes capitalistas, que operavam em toda a Europa. Eles estiveram entre os maiores defensores do novo sistema de pesos e medidas e da uniformização estatística da sociedade, porque isso lhes permitia fazer planos de negócio mais controláveis. Ora, converse hoje com algum defensor do capitalismo, com algum liberal de marca. Ele vai falar horrores contra o controle estatal e contra o sistema de impostos, mas foram eles que impuseram isso! O grande beneficiário do recenseamento, da uniformização do sistema de pesos e medidas, e da utilização maciça das estatísticas foi, evidentemente, o poder estatal.
Mas, em segundo lugar, foram os grandes capitalistas. Isso é uma coisa que tem de ser cobrada dos nossos amigos liberais. Se não fosse o seu maldito liberalismo, também não haveria o centralismo estatal, porque vocês precisam que o Estado lhes dê informações corretas e uniformes sobre a sociedade para que vocês possam fazer os seus planos. Vocês precisam desse centralismo estatal. Por quê? Porque vocês querem o capitalismo de grande escala. Vocês não querem operar só na escala local.
Existe uma diferença entre um capitalismo rudimentar, de livres empresas que operam aqui e ali, e um capitalismo de amplo espectro, que pretende atuar em vários países e vários meios sociais diferentes. Então o crescimento do capitalismo produz, necessariamente, o seu estrangulamento pelo controle estatal crescente. Uma coisa vem junto com a outra. Não é uma questão de se dizer a favor do controle estatal, ou a favor da livre empresa. Uma coisa está exigindo a outra! Aí você tem um problema! Não é uma questão de tomar posição! É uma contradição real que existe, e não apenas uma contradição entre duas ideologias.
Uma outra coisa que foi quantificada a partir daí, foi o tempo. Isso quer dizer que se você olhar quase toda a história humana, em todas as sociedades que existiram até o século XIX, você vê que a medida de tempo está muito condicionada às modificações do panorama físico real. Por exemplo, as quatro estações, a duração diferente do dia no inverno e no verão etc. As pessoas tinham um senso de tempo que acompanhava as modificações cíclicas panorama. Essas modificações criavam uma série de ritos, de instituições, de costumes etc.
Tudo isso foi abolido pela medida uniforme do tempo. Só sobraram dois tipos de tempo, o trabalho e o lazer. Hoje nós podemos medir, por exemplo, a quantidade de horas de lazer que as pessoas precisam em tal ou qual área, confrontando com o tempo de trabalho. E isso foi feito para que pudesse ser medido. Portanto, a introdução da medida não está nos dando uma imagem da realidade, mas está criando uma realidade que, em seguida, é observada e confirma o que você pensava antes.
Por exemplo, agora voltando às ciências da natureza, todos nós usamos remédios comprados em farmácias. Esses remédios têm de ser padronizados. Espera-se que se você comprar um antibiótico X aqui, ou na Rússia, ou na China, você terá mais ou menos o mesmo produto. Pois bem, quando esses produtos são feitos e controlados por meios exclusivamente químicos, é a quantidade das várias substâncias químicas que é medida, o que é fácil. Mas acontece que há muitos remédios que não são assim; remédios que tem de ser testados em criaturas vivas. Mas as criaturas vivas não se comportam da mesma maneira. Não é a mesma coisa você testar o mesmo remédio num elefante e num rato. Então, o que se fez? [Criou-se] o animal padronizado. Padroniza-se uma criação de animais, para obter resultados padronizados nos experimentos.
É claro que isso é indefinidamente auto-confirmável. Quando eu trabalhava como editor de revista médica, fiquei horrorizado com o que se fazia em pesquisa médica. Em geral, pegava-se um produto e testava-se em pacientes que tinham o mesmo quadro clínico, e não se perguntava se esses pacientes tinham [1:20] também outros quadros clínicos concomitantes. Se você tem bicho-de-pé, pega-se trinta ou quarenta pessoas que têm bicho-de-pé e testa-se o remédio neles, dando para alguns o remédio e para outros placebo para que sirvam de grupo controle.
Das duas uma: ou os dois grupos estão informados de quem recebe o placebo e quem recebe o remédio efetivo, ou não estão. Na primeira hipótese o sujeito que recebe o placebo já desiste de ser curado, evidentemente, e na segunda os dois grupos estão abertos à conjecturação. O que impede que um sujeito que recebeu o remédio efetivo fique persuadido de que recebeu um placebo, e vice-versa? Eu nunca vi ninguém levar isso em consideração. O negócio do grupo-controle é considerado um mecanismo infalível. Mas a própria existência do grupo-controle já mete um viés impossível de consertar depois.
Por fim, entre os efeitos da adoção de métodos científicos, como estatística, padronização biológica, etc., você cria um novo tipo humano, que está persuadido de que tudo na sua vida e na sua conduta, e na conduta dos seus semelhantes, é determinado por fatores bioquímicos. Outro dia eu estava comentando com a Roxane sobre um vídeo que ela viu na internet onde se dava como resultado de uma pesquisa que as lágrimas femininas diminuem no homem a produção de testosterona, e então ele se enternece. Mas não pode haver diminuição instantânea na produção de testosterona. Uma diminuição instantânea não seria sequer notada.
O que acontece é que o sujeito se enternece e, por se enternecer, a sua produção de testosterona vai baixando. Mas a coisa é apresentada como se a diminuição da produção de testosterona tivesse provocado o enternecimento. É claro que isto é uma segunda realidade, que isto é o sujeito vestir retroativamente uma fantasia e começar a se julgar pela fantasia. Só que este tipo de mentalidade está se disseminando muito rapidamente.
Uma vez eu vi um filme em que estavam dois homens de meia-idade conversando, e um deles estava indignado porque tinha um sujeito dentro da sua casa conversando com a filha dele. Ele dizia: "eu vou lá dar um jeito naquilo." E o amigo dele fala: "mas eles estão só conversando..." E ele: "é, mas você não viu os espermatozóides dele dizendo: primeiro eu, primeiro eu, primeiro eu!" Ora, isto supõe que a atração entre os sexos seja determinada pelo impulso da ejaculação. Mas a ejaculação só vai acontecer muito tempo depois!
Além disso, suponha o seguinte: o sujeito está conversando com uma moça que ele acaba de conhecer e ele tem uma baita ereção. O que ele vai fazer? Vai ter que se policiar para que isto não aconteça, para não dar um vexame. Isto quer dizer que o suporte biológico das suas reações tem que ser controlado por uma intenção consciente. Todo mundo viu o que aconteceu com o Van Damme na televisão brasileira, o sujeito estava dançando com uma moça e de repente tem uma baita ereção na frente de todo mundo, não deu tempo de disfarçar e ficou assim mesmo -- e todo mundo começou a rir. Mas esse acontecimento é raro.
Eu acredito que esse conjunto de emoções que você tem na convivência humana é prévio ao seu suporte fisiológico e bioquímico. Mas as pessoas estão se acostumando gradativamente a explicar sua própria conduta em termos fisiológicos, biológicos e bioquímicos, e às vezes até físicos. E isto está parecendo para elas que é uma coisa mais realista que o mundo da interação normal humana. Quer dizer, os indivíduos estão se considerando como porquinhos-da-índia, e se vêem assim, e vêem os outros assim.
Ora, isto modifica instantaneamente o próprio mundo das emoções humanas. Não é a mesma coisa eu encarar uma ação qualquer de outra pessoa como uma ação humana expressiva, que significa algo, e eu encará-la apenas como um mecanismo bioquímico. Num dos seus livros, Max Scheler ensina que a nossa reação emotiva, por exemplo, a reação de simpatia que você tem por uma pessoa que está sofrendo, não é imediata, ela pressupõe o conhecimento do que está acontecendo, e este conhecimento em si mesmo não tem nenhum valor emotivo.
Por exemplo, eu vejo uma criança chorando porque está doente. Eu tenho que ter primeiro a percepção física de que isto está acontecendo. Esta percepção física é a mesma em quem se compadece da criança e em quem não se compadece, ela tem que estar presente nos dois casos. Em alguns casos desenvolve-se a reação compassiva e em outros não. Porém, se eu olhar aquilo apenas como um processo bioquímico é evidente que a reação compassiva torna-se não apenas mais complexa, mas problemática, porque o indivíduo sempre terá esta sensação de que está se deixando enganar por um mero processo bioquímico. Isto quer dizer que esta ideia se interpõe no campo inteiro das relações pessoais, e baixa instantaneamente o padrão moral das pessoas.
Some isto com os efeitos de que eu estava falando do capitalismo financeiro e você verá porque nos Estados Unidos, por exemplo, cinqüenta por cento dos casamentos terminam em divórcio. Porque não só a identificação emocional com as pessoas se tornou mais difícil, mas o convite à manipulação e à fraude tornou-se parte integrante da convivência humana. Por exemplo, o indivíduo estuda programação neurolingüística. Ele está conversando com você e está observando a sua posição, a direção do seu olhar, a entonação etc., tudo visando a passar a você uma mensagem que você não vai captar conscientemente, mas que vai afetar a sua conduta. Então a manipulação inconsciente vai se tornando uma coisa natural na sociedade humana.
Tudo isto é uma devastação completa do campo das relações humanas criada pela ciência, e, no entanto nós estamos o tempo todo gratos à ciência. E quando você fala alguma coisa contra a ciência, as pessoas dizem: "ah, mas você não desiste das viagens aéreas, do seu computador, do seu telefone, etc." E eu digo: "não, mas de bom grado eu desistiria do gás de mostarda, da bomba atômica, da lavagem cerebral, da manipulação das consciências, de tudo o mais que vocês fizeram!" Mas vocês não nos dão uma coisa separada das outras, você oferecem tudo junto. Oferecem essa devastação imensa e ao mesmo tempo duas ou três vantagens. Vamos supor que se nós desistíssemos dos nossos computadores não teria havido bomba atômica, nem manipulação das consciências, nem coisa nenhuma. Bom, nós desistiríamos dos computadores de bom grado.
Então esta é a situação a que chegamos depois de quatro ou cinco séculos de ciência moderna. Acontece que a ciência moderna é uma obra comunitária, feita por uma comunidade. Não se trata de descobertas individuais. A antiga idéia do [1:30] cientista isolado na sua montanha, longe da sociedade, incorruptível, que prosseguia as suas pesquisas na busca da verdade incansavelmente, longe do insensato mundo, isto não existe. A ciência é eminentemente uma obra coletiva. E na medida em que é uma obra coletiva, e que esta coletividade tem meios de impor a sua autoridade, tem meios de excluir os inconvenientes, tem o suporte estatal e um suporte financeiro monstruoso, como isto também não seria um convite à fraude? Fatos como esse negócio do aquecimento global -- isto é uma fraude envolvendo pelo menos metade, ou mais, da comunidade científica mundial!
Junto com isso existem inumeráveis certezas científicas que se incorporaram à crença comum da humanidade, o que já não é mais nem crença já viraram até percepção, e são teorias que nunca foram provadas, e que algumas são impossíveis de provar. Outras, que já foram impugnadas no próprio campo científico, mas cujo impacto e cuja autoridade na sociedade continuam inabaláveis. Por exemplo, a mecânica de Newton, todo mundo sabe que ela não vale. Mas quantos raciocínios de tipo causal não são fundamentados nisto? Quando você diz, por exemplo, que a criança está chorando apenas por algum mecanismo bioquímico que tem dentro dela, você está raciocinando estritamente dentro do mecanicismo de Newton, que dada uma causa física tudo mais se seguirá inapelavelmente. A lei do movimento retilíneo uniforme de Galileu, nunca foi provada.
Mas toda criança aprende isto na escola, que se um objeto não for movido por uma força ele continuará ou parado ou em movimento retilíneo uniforme. Ninguém esclarece que Galileu disse que o movimento retilíneo uniforme é apenas um sistema de medidas. Ele mesmo dizia isto. Ou seja, ele quis dizer o seguinte: "Aristóteles estava errado quando disse que um objeto que não é movido por outro permanece parado; eu digo que ele permanece parado ou em movimento retilíneo uniforme, com a ressalva de que o movimento retilíneo uniforme não existe." Ou seja, ele disse a mesma coisa que Aristóteles fingindo que estava dizendo outra coisa!
Uma outra coisa que jamais foi provada e em que todos nós acreditamos, não é que acreditemos, isto não é crença, isto é a imagem do mundo efetivo, o mundo onde nós estamos, é o heliocentrismo. O heliocentrismo jamais foi provado. Não existe nenhum meio possível de provar o heliocentrismo. Tanto que para todos os fins práticos, aviação, navegação, viagens interplanetárias etc., todos os cálculos são geocêntricos até hoje.
Quando Copérnico publicou o livro sobre a circulação dos planetas, ele explicou que aquilo não era necessariamente uma nova imagem da realidade, mas um novo sistema de medidas, que teoricamente facilitaria as coisas. Bom, evidentemente não facilitou, porque o pessoal continua usando o cálculo geocêntrico. E como imagem da realidade, funcionou? Não, nós não temos a menor prova dele, nenhuma prova! Se você descrever o universo como uma terra imóvel em torno da qual giram planetas, estrelas etc., dá exatamente na mesma que se você descrever como um sistema de várias galáxias, cada uma com seu sol etc.
E finalmente nós temos a teoria da evolução, que é um tremendo abacaxi. Eu, do que estudei, cheguei à conclusão de que jamais vai haver uma prova disto e jamais vai haver uma impugnação total. As aparências da natureza são tão variadas e tão enganosas, e mais ainda, todos os raciocínios da teoria da evolução, sem exceção, são baseados em analogias das formas externas. Ora, você pode fazer analogia de qualquer coisa com qualquer coisa. Se você tentar uma linha de semelhanças analógicas você obtém um resultado, se você tentar outra linha obtém outro. Por exemplo, na universidade de Missouri tem um quadro mostrando a evolução das baleias. Têm uns bichos lá que você pode achar que parece uma baleia ou que não parece com uma baleia.
Todos os elementos que estão nesse quadro foram alterados pelo desenhista, ou seja, nenhum daqueles bichos é como está desenhado! Então a semelhança entre desenhos imaginários é oferecida a milhões de patetas como se fosse uma prova científica, e daí elas chegam à conclusão de que as baleias são hienas, ou um bicho parecido com hiena, que evoluiu e entrou dentro da água e foi aprendendo a nadar, e foi se adaptando. Ora, por analogia das formas você pode remontar da baleia até a hiena, até um elefante, até um hipopótamo, e até a um passarinho!
Outro exemplo [é de] que certos lagartos evoluíram até transformar-se em passarinhos. Você pega a estrutura óssea de certos dinossauros e mostra que ela se parece com a estrutura óssea de um passarinho. Sim, mas parece sob certos aspectos, se você olha sob outros já não parece tanto. Então construiu-se toda uma teoria científica, não só uma teoria científica, mas uma explicação geral de tudo, porque existe evolucionismo social, evolucionismo psicológico, evolucionismo cultural, evolucionismo em todas as áreas etc. Criou-se uma interpretação abrangente do cosmos com base em analogias que podem ser vistas de mil maneiras diferentes! É claro que isto é loucura! E você tentar provar que isto não funciona também é loucura, porque não dá para fazer nem uma coisa nem a outra. São penas de amor perdidas.
O que você pode fazer se quiser impugnar a teoria da evolução, é mostrar tantos furos, que a coisa se desmoralize. Mas não vai poder dizer: eu impugnei esta teoria. Porque uma teoria baseada em analogias não é uma teoria, é uma imagem do cosmos, e uma imagem do cosmos não pode ser impugnada. É um produto da imaginação, e é um meio do sujeito se instalar na realidade, dentro de um cenário no qual ele imagina estar vivendo. É por assim dizer uma cosmovisão, uma concepção do mundo. Não dá para impugnar racionalmente uma concepção do mundo. Então muitas pessoas estão entrando dentro da concepção evolucionista, e são estas mesmas que vão explicar a própria conduta e as dos outros por meios bioquímicos, criando um novo tipo de ser humano, que não se parece com aquilo que nós chamávamos de ser humano antes, e que é talvez até mais simples do que um ratinho de laboratório. O ratinho de laboratório ainda tem uma unidade, é quase uma personalidade. Mas se nós nos reduzimos a mecanismos bioquímicos então nós não temos nem isto. Nós nos transformamos em coisas.
Como é que você pode dizer que isto não tem impacto sobre a conduta das pessoas? E como é que você vai isentar a ciência da responsabilidade sobre isto? Como é que você vai dizer: "ah, não, não são os cientistas que são culpados disto, é a divulgação, a mídia etc."? Não faz o menor sentido. Ou seja, a presunção de que a comunidade científica seja, em primeiro lugar, uma comunidade. Não faz sentido falar em comunidade quando um sujeito está aqui e outro está na China. Comunidade supõe a convivência direta, mas eles usam muito a expressão "comunidade científica".
Supor que ela seja: primeiro, o fiscal da objetividade dos nossos conhecimentos, quando a objetividade de qualquer conhecimento científico é um abacaxi, é uma dificuldade que só pode ser resolvida mediante a construção de toda uma ontologia que nenhuma ciência pode construir. Segundo, como aceitá-la como exemplo superior de moralidade, como se pudesse haver uma moralidade comunitária e profissional, que consiste apenas em certas atitudes tomadas por certos papéis sociais em determinados momentos? Se a moralidade é isto, então é claro que a vida moral consiste apenas em obedecer a certos regulamentos profissionais, em certos momentos, estando desobrigada [1:40] nos restantes momentos.
Anos atrás, quando eu li A Gnose de Princeton, do Raymond Ruyer, fiquei muito impressionado com aquilo, e vi que estava se formando uma espécie de clero científico, com a presunção de substituir-se ao clero das antigas religiões como modelo de conhecimento, de virtude etc. Mas eu não tinha ideia de que este espírito de clero e esta presunção ao guiamento da humanidade, tivesse se tornado tão intensa e se disseminado por toda a comunidade científica. Eu achava que era apenas aquele grupo que tinha essa ideia, e hoje, sobretudo lendo esses autores (depois eu vou passar para vocês, vou passar o resumo desta aula e uma bibliografia): James Scott, que eu já citei na aula passada, Theodore Porter, que se chama Trust in Numbers (A Confiança nos Números), o livro do Ian Hacking, que se chama The Taming of Chance (Você Domando o Acaso) e vários outros livros. [O livro] Leviathan and the Air-Pump (O leviatã e a bomba de ar) do Steven Shapin e Simon Schaffer que conta o debate entre Thomas Hobbes e Robert Boyle e assim por diante. Sem esquecer o livro do René Guénon, O Reino da Quantidade e o Signo dos Tempos, e o livro da Escola de Frankfurt, do Marx Horkheimer, Eclipse da Razão, que faz uma boa crítica ao positivismo científico.
Lendo tudo isso, a gente [percebe que] a coisa foi muito além do que se poderia ter imaginado naquele tempo e, perante este espírito de autoridade comunitária nós observamos o seguinte: mesmo aquelas pessoas que têm a visão crítica mais profunda [desta situação], em geral, são membros da própria comunidade e não ousam dizer a verdade inteira. Você lê o livro do Theodor Porter, [quase no fim do livro], depois de ele ter mostrado todas essas coisas horríveis que acontecem, ele justifica e ainda acredita que a ciência moderna é o grande guia da humanidade. Os outros autores [comportam-se da mesma maneira]. Porque para você não fazer isto é preciso se colocar fora desta comunidade, é preciso rejeitar qualquer participação nela, ou se você continuar participando é necessário que você seja, vamos dizer, um barril de pólvora com um pavio curto, pronto a explodir a qualquer momento.
Então, em qualquer desses casos que envolvem responsabilidade de um grupo pela vida de milhões de pessoas, qualquer atitude respeitosa chega a ser criminosa. Veja, o ideal da comunidade científica discutindo polidamente, o corpo de cavalheiros, como eles gostavam muito do século XVIII, gentleman, discutindo muito suas divergências na Royal Society, tudo isso é muito bonito, mas quando nós vemos os efeitos sociais e históricos disso, não é possível apontá-los respeitosamente.
Então, aqui, meu filho, eu acho que seus inventos estão matando pessoas e vão continuar matando. Eu acho que a aliança do poder estatal com o poder econômico é um componente inerente da sua atividade, não é um acaso, porque vocês não estão fazendo uma ciência de indivíduos que podem investigar as coisas com seus próprios recursos, vocês estão fazendo uma ciência de comunidade que só pode ser sustentada com recursos bilionários, porque é toda baseada na construção de equipamentos, onde, aliás, a confiabilidade da sua proposta tem de ser aceita cegamente.
Por exemplo, você não sabe se o experimento vai dar certo ou não. "Olha, aqui precisamos compor um reator atômico, um conjunto inteiro de laboratórios etc., para investigar se tal coisa ou tal outra acontece ou não acontece". Bom, isso pode vai passar 30 anos e você vai ser alimentado com dinheiro o tempo todo para fazer isso. Isso quer dizer que os recursos privados e públicos que são colocados à disposição da ciência fazem parte da estrutura da atividade cientifica, não são alheios a ela.
Mesmo aqueles que observam que estudam essa estrutura de poder e [dos resultados e efeitos] que são inerentes às [atividades da] comunidade científica têm um temor reverencial perante a essa [comunidade]. Este temor reverencial é também uma profecia autorrealizável, porque ninguém ousa cobrar dos cientistas a responsabilidade que se cobra de qualquer um. Sempre [se dá] um estatuto especial [a eles] como se daria, por exemplo, dentro da Igreja Católica a um bispo pedófilo, ou a um bispo comunista, que você tem de tratar de eminência!
Eu vivo dizendo que os membros católicos não devem ter respeito nenhum pelos bispos que fazem essas coisas, então por que eu vou ter respeito perante a comunidade científica? Eu acredito que com o tempo o número de críticos externos do meio científico vai crescer como já tem crescido. E vocês, naturalmente, vão estar nisso. Isso significa que pelo menos em alguns setores da ciência vocês têm de ter o domínio intelectual. Um ou outro, para você tomar como amostra, para você não ser um palpiteiro completamente exterior à coisa. Vamos fazer uma pausa e daqui a pouco nós voltamos.
Então, vamos lá, tem aqui uma série de perguntas muito interessantes que têm muito a ver com o conteúdo da aula.
Aluno: Como poderíamos compatibilizar na prática atitudes de centralizar a educação individual na direção do conhecimento com as exigências de um papel social? Dependendo da pressão do meio social em que vivemos seria interessante mudar de papel ou de profissão?
Olavo: A resposta é muito simples, sim, mas em qualquer profissão você vai encontrar o mesmo problema. Eu acho que a única maneira de lidar com isso é dominar o papel social e manipulá-lo do jeito que você entender. Quer dizer, é a solução por cima, é o que o Julius Evola chamava de "Cavalgar o tigre", você não precisa seguir os ensinamentos do Julius Evola para se aproveitar desta imagem tão oportuna.
Olha, eu posso dar um exemplo para vocês. Existem vários exemplos de pessoas que exercendo um papel social dentro do establishment científico ou político se sobrepuseram a ele, e o obrigaram a fazer o que elas queriam. Se você estudar a vida do Ronald Reagan, você vai ver que ninguém jamais soube o que ele queria fazer. O homem foi moita total, nem a mulher dele sabia dos planos dele e ele executou tudo direitinho do jeito que queria e não do jeito que o partido exigia ou que o establishment pudesse desejar.
Outro exemplo aí no Brasil é o fabuloso doutor Edgard Maffei, foi professor de anatomia patológica na Faculdade de Medicina durante muitos anos, e ele dizia tudo o contrário dos outros médicos e ainda gozava da cara deles e se impunha, porque ele sabia tanto, tanto, que ninguém ousava desafiar o camarada. Inclusive tem alguns vídeos de aulas dele no Youtube.
Se você procurar "Edgard Maffei". Sempre é possível vencer o papel social e você se impor, se você representar efetivamente, pessoalmente os valores de conhecimento, idoneidade, seriedade etc., você vai falar com autoridade, eu acredito que a ideia de transferir esses dons, esses valores para uma comunidade. Isso já é em si uma vigarice, quer dizer não existem virtudes de uma comunidade, existem virtudes do indivíduo humano. As virtudes da comunidade são apenas o resultado de uma somatória de partes de indivíduos. Você pega um pedaço de um, pedaço de outro, pedaço de outro e você compõe com ela um universal abstrato que é a virtude da comunidade.
Agora, nós podemos exemplificar pessoalmente essas virtudes e, portanto, falar com a autoridade que é inerente a elas, nada impede que você faça isso. Agora, para isso você precisa ter a humildade de um longo aprendizado, dominar a área de conhecimento a que você se dedica e ter a certeza de que quando entra em campo, está sabendo do que está falando.
Aluno: O Gómez Dávila disse que a primeira batalha que a esquerda quer vencer é a semântica, ou seja, busca-se alterar o significado das palavras para adequá-las aos objetivos revolucionários. [1:50] Um grande exemplo disso é o vocábulo "família" que está sendo fortemente descaracterizado. Nessa situação o que devemos fazer? Seria o caso de tornar-nos arqueólogos de conceitos? E num debate lembrando às pessoas o significado original da palavra?
Olavo: Não só o significado original, mas a própria mutação que vem sofrendo freqüentemente como obra de engenharia social. Então, como disse um autor francês, o Alain Sokal - não confundir com Alan Sokal, dizendo que nós precisamos fazer aqui a reinformação para contrapor à desinformação, quer dizer, contar a historia como realmente foi e jamais, jamais, jamais aceitar essas mudanças semânticas. Nunca aderir a ela. Aliás, nunca aderir à moda nenhuma.
Eu acho que já está na hora de uma vasta facha de pessoas tome consciência desse fator que são as mudanças sociais forçadas, inclusive e, sobretudo, pela comunidade científica, que, não conseguindo, às vezes, nos oferecer uma explicação razoável daquilo que está estudando, nos oferece em troca uma mudança social, a qual, em seguida, você tem de se adaptar sem que a geração seguinte possa sequer saber a origem dos novos valores, costumes, hábitos etc., que lhes foram impostos.
Quer dizer, a simples existência de uma comunidade que está continuamente empenhada em mudança social é o elemento mais tirânico da história humana. Não há uma coisa que mais mereça o nome de imposição tirânica do que as mudanças que se impõem rapidamente sem que ninguém possa discuti-las, e sem que a geração seguinte possa sequer saber a origem daquilo. Você está tomando decisões humanas como se fossem dados da natureza eternos e indiscutíveis aos quais você tem de se adaptar, se não se adaptar você vai ser mal visto, então, o próprio medo de ser mal visto é uma coisa que rebaixa a dignidade humana.
Você não pode ter esse medo jamais! Nunca na sua vida. Quer dizer, na hora que você tem o medo de ser mal visto você está dando ao outro uma autoridade que ele não tem. Está transformando-o em seu juiz, em medida da sua conduta. Quer dizer, isto aí é um dado de caráter, de personalidade, que você tem de cultivar. Quer dizer, "Eu não vou aceitar que outra pessoa me julgue sem ter autoridade para isto, nunca!" Então, sobretudo, "Não desejo amizade nem afeição de pessoas que estão aí a fim de me julgar de acordo com estereótipos. Não quero ser amigo dessas pessoas, eu desprezo essas pessoas".
Você tem de assumir uma atitude que é, de algum modo, verdadeiramente aristocrática. Nunca, nunca se submeter a isso. Se você puder estourar a coisa e desmoralizar o desmoralizador, faça, e faça da maneira mais veemente, mais contundente e mais cruel que você possa. Senão, você vai acabar caindo em certas armadilhas que são de uma baixeza fora do comum.
[Veja o que aconteceu aqui nos Estados Unidos] essa semana com a Sarah Palin. O camarada deu uns tiros no Arizona, e imediatamente disseram que a culpa era da Sarah Palin, porque ela tinha posto uma gravura, um desenho no seu site, em que o distrito [onde deputada Clifford vivia] e vinte deputados apareciam dentro de um alvo; entenderam que era um apelo subliminar ao homicídio. Quer dizer, é uma interpretação tão remota e tão forçada. Quer dizer que isto provocou imediatamente um sujeito esquerdista a cometer um suicídio? É impossível! Porque o sujeito esquerdista seria tão obediente à Sarah Palin que o simples desenho publicado ali desencadeia a ação do cara? Essa é uma interpretação tão louca, mas isso é baseado na ideia seguinte: você pegar uma pessoa e você dizer coisas tão odiosas sobre ela contra ela, que ela pareça ser uma pessoa odienta. Você adquire a fama de ser odiento não porque você teve expressões de ódio, mas porque as pessoas te odeiam.
Quer dizer, isso é inversão revolucionária, essa técnica é usada aqui o tempo todo, e freqüentemente as pessoas aceitam isso, até elas reclamam um pouco, mas essa semana eu li uma coisa boa, que o Paul Krugman do New York Times, ele foi o primeiro a lançar essa ideia da Sara Palin, e o pessoal conservador disse: "Não, o Paul Krugman passou dos limites e nós vamos ter de agir". Quer dizer aí não é só questão de você reclamar, aí tem de agir, tem de processar o desgraçado, e se possível colocá-lo na cadeia que é o lugar que merece.
Então, se você permite ser julgado por essas pessoas, você está liquidado, você está pegando os mais baixos, os mais vis e está transformando em seus juízes. o pior é quando você quer a afeição dessas pessoas. Veja, você tem de selecionar as pessoas que querem que gostem de você. Não mais de meia dúzia, passou de meia dúzia, você está com sinais de carência afetiva. Se sua mulher gosta de você, seu filho gosta de você, está bom. Se seu cachorro gosta de você, é demais, já. Então, isto aí todo o mundo precisa de um suporte afetivo, isso é normal no ser humano.
Você também não precisa chegar a ser um santo mártir para quem basta o amor divino. A humanidade inteira pode odiá-lo, chutá-lo, jogar na privada, e ele apenas obtém a sua consolação no amor divino, não precisa ser assim, mas escolha, selecione. Se você não tem o princípio de seleção, então não tem nobreza, meu filho! Nobreza consiste justamente na seleção, quais as pessoas que eu quero que gostem de mim, quais outras que eu não estou nem ligando e quais as que eu não quero que gostem. Então certas pessoas vêm oferecer amizade, você diz: "O que eu posso fazer? Para que serve a sua amizade?" Às vezes a amizade serve apenas para o sujeito achar que tem o direito de falar mal de você. "Ah, eu sou amigo dele, então saio criticando, inventando coisas." Daqui a pouco é seu amigo e tem o direito de comer a sua mulher, esse tipo de coisa, quer dizer, para que serve esse tipo de amizade?
Amizade é aqueles que compartilham valores com você. E, sobretudo, qual é a definição de amizade do Cristo? Ele diz: "Uma perfeição da amizade é morrer pelo seu amigo". A pessoa morreria por você? Não, então não é seu amigo. Você vai ver que aí o número reduz bastante, mas você ganha em qualidade, em fidelidade e em tranqüilidade, se você quiser saber. Agora, no Brasil, tem essa coisa de que todo mundo é amigo de todo mundo, quer dizer essa intimidade forçada que é instrumento de chantagem, sobretudo no seu meio profissional. Mantenha distância dos caras: "Olha, para mim você é um inferior". Olhe o cara de cima mesmo. Não tenha dó de fazer isso. Mas faça onde você tem autoridade, e somente aí. Não vá passar do limite do que você realmente sabe e do que você realmente merece. Aí tem de lembrar de que dizia Chesterton: "O cristão deve ser humilde, mas não modesto".
Aluno: Qual seria o papel da apologética no cristianismo? Não seria o caso que o papel dessas disciplinas estaria em mostrar a veracidade dos fatos que fundamentam a fé cristã? Mostrar a origem histórica do cristianismo, a congruência dos relatos primitivos com relação ao Cristo na literatura canônica e extracanônica, bem como mostrar a integridade, veracidade e autenticidade dos evangelhos, das cartas paulinas, não seria um trabalho apologético?
Olavo: Sim, é exatamente isso o que se faz. Porém o efeito global disto é mínimo, porque a diferença específica de você ser um cristão para ser outra coisa qualquer é que o cristianismo não é uma doutrina, o cristianismo é um conjunto de fatos do qual você participa. Conjunto de fatos no qual a intervenção miraculosa é um elemento quase cotidiano, então é mais pelo exemplo de uma comunidade que vive inserida dentro de um campo miraculoso do que através da discussão que nós vamos provar a superioridade; acontece que a ideia mesma do milagre se tornou uma coisa tão diluída desde o século 18.
Outro dia eu estava contando para vocês que a maior parte dos seminários na Europa a partir do século 18 adota como base filosófica o cartesianismo, então o que pode ser uma instrução cristã baseada no cartesianismo? Evidentemente é um cristianismo diminuído e cada vez mais tímido e que compreende menos a natureza do cristianismo como fato real e o compreende cada vez mais como doutrina. Então a única diferença que existe entre o cristianismo e as outras [religiões] é o seguinte: é que o verbo se fez carne, habitou entre nós e está agindo aí até hoje, esta é a diferença. Se ele não está agindo, então é tudo besteira.
É claro que você pode fazer todo esse trabalho, tudo isto é muito meritório, mas não é isto o que realmente funciona. Há duas idéias com que você tem que se acostumar. Primeiro, a ideia da imortalidade, a consciência de imortalidade como uma coisa permanente; e, cada vez que você for rezar, lembre que não é apenas aquele seu eu empírico do momento que está orando, é o seu eu verdadeiro e permanente, é o mesmo que você é desde que era criancinha até agora, por cima dos tempos. É o seu aspecto supratemporal e permanente, é este que está orando. E, segundo, a ideia do milagre. Deus está aí fazendo milagres o tempo todo.
Hoje mesmo eu estava comentando que a mística grega, Vassula Ryden, dez anos antes do "11 de setembro", recebe de Jesus a informação de que os Estados Unidos seriam punidos pelos seus pecados e que duas torres cairiam. Isto aí acontece. Coisas deste tipo acontecem o tempo todo. Agora, se vocês não acompanham os acontecimentos miraculosos e esperam que eles apareçam na mídia. Eles não vão aparecer jamais.
Por exemplo, no livro do James Rutz, ele dá documentados, oito mil casos de ressurreição. Isto nunca vai sair na mídia. Ele diz que não é porque a mídia está querendo mentir. Eles nem sabem disto, a mídia é a periferia da realidade. A mídia só noticia acontecimentos midiáticos. Quer dizer, você tem uma seleção de fatos que interessam caracteristicamente ao jornal, e só aqueles fatos é que entram. Eu não digo que os fatos não aconteçam, mas eles são um recorte minimalista, para dizer o mínimo. Durante algum tempo curas miraculosas até entraram em alguns jornais, depois o pessoal esqueceu completamente, e freqüentemente confunde curas miraculosas com fenômenos paranormais, com magia etc. Faz uma confusão dos diabos.
Outro dia eu vi um site que é feito pelo pessoal do Aleister Crowley, eles põem lá a biografia do Padre Pio como um paranormal. Ah, quer dizer que foi o Padre Pio que fez aquelas coisas todas com sua paranormalidade? O que é isto, meu filho? Se você somar todos os paranormais do mundo eles não conseguem fazer aquilo. Como é que uma paranormalidade vai fazer uma menina sem pupilas enxergar? Não tem jeito. Ali você está lidando realmente com um poder divino que opera a pedido dele. A única função do Padre Pio é pedir, e esta é a diferença entre magia e milagre. Na magia você opera com uma técnica e produz um efeito, na oração você somente pede, você não faz absolutamente nada. Existe um outro agente.
A ação divina no mundo é o que nós temos que mostrar. Se você ler os relatos dos profetas do Antigo Testamento, verá que freqüentemente eles desafiam inimigos mais poderosos e contam com a força divina por trás. Há a intervenção de um elemento invisível, sobre-humano, que modifica o curso das coisas. Se você não acredita nisto, você não pode defender o Cristianismo.
Há certos momentos onde você pode apostar na ação divina. Não sempre. Mas em certos casos extremos, você pode e deve apostar nela. Eu entendo o Cristianismo como uma espécie de círculo separado do restante da humanidade pelo fato de viver dentro da atmosfera do miraculoso. Então não se trata de crença, não se trata de doutrina, não se trata nem de fé no sentido vulgar da coisa, mas se trata de você estar como numa outra faixa de realidade, onde você sabe por que as coisas acontecem, onde a ação divina aparece para você sob o seu aspecto mais brutalmente físico.
A Bíblia inteira está cheia desses relatos. Se Moisés pediu e Deus abriu o Mar Vermelho, por que ele não pode fazer a mesma coisa de novo, e de novo, e de novo? Na verdade Ele tem feito. E Jesus mesmo disse: "tudo o que eu fiz vós o fareis, e mais ainda". Se você não acredita nisso você não é cristão.
Aluno: (...) O trabalho apologético, mais do que o confronto com outras doutrinas, não poderia ser entendido como uma preparação para o ato de fé? Entendo a fé como um modo de conhecer a verdade, não pela percepção direta da realidade conhecida, mas pelo assentimento à autoridade de quem revela. (...)
Olavo: Mas um momentinho. Quem revelou a doutrina cristã para você foi Deus ou foi apenas um padre? E qual é a autoridade, a autoridade do padre, a do clero? Ora, nós estamos numa época em que a autoridade da própria Igreja se tornou um negócio enormemente problemático. Eu não posso jurar para vocês, por exemplo, que o mandato de Papa de João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI seja válido. Eu não posso jurar isto, porque eu não sei. Eu já ouvi tanto argumento pró e contra que, confesso para vocês, eu estou confuso e não consigo resolver esta questão. Então, se não sabemos com certeza quem representa a autoridade da Igreja, como colocar a obediência em primeiro lugar?
Lembrando que Dom Marcel Lefebvre disse que a obediência foi o instrumento usado para corromper tudo. Então nós estamos em uma situação onde somos obrigados, de algum modo, a agir como se fôssemos protestantes. Você vai ter que seguir sua própria consciência muitas vezes, em casos onde não é possível ter uma palavra autorizada. E nós temos que orar dia a dia para que Deus esclareça esta questão e possamos novamente seguir a Igreja como se fazia antes. Eu acho que nos termos sido colocados nesta situação é um desafio fora do comum. Eu não tenho a solução perfeita para isso. Eu tenho apenas um arranjo pragmático, eu acho que é o máximo que se pode fazer para o momento.
Aluno: (...) A apologética mostra as credenciais do Cristianismo como digno da fé para então, pelo assentimento às verdades reveladas, chegar ao conhecimento das verdades como se as tivéssemos percebido diretamente.
Olavo: Bom, teoricamente é isto. Mas você imagine o tamanho do trabalho intelectual preparatório que você teria que fazer para chegar nisto. Quer dizer, se o indivíduo, para chegar à fé, precisar passar por toda essa preparação, ele precisa de um curso universitário para se tornar um cristão. Eu acho que este é o modo mais complicado e mais acadêmico de lidar com a coisa. Eu acho às vezes que você simplesmente desprezar a atitude do ateu militante já tira a segurança dele imediatamente. Por que, quando o cara começa a falar, você não diz: "você é um ignorante, cala a boca!"?
A maior parte das pessoas é mais persuadida por esta simples atitude do que por milhões de explicações didáticas, porque não está persuadida do seu ateísmo por razões intelectuais, mas por um preconceito, por um ódio, por uma estupidez. É uma atitude emocional e irracional. Como é que você vai reconduzir esse sujeito à racionalidade sem antes impor a ele o respeito? Então, primeiro impor o respeito. E como é que se impõe o respeito? Por uma medida disciplinar. Você tem que lembrar que, se você está defendendo o cristianismo, você está fazendo isto com autoridade. Então não tenha medo de ninguém.
Aluno: Quando Francis Bacon concebia a ciência experimental como meio de direção do mundo inteiro por uma comunidade restrita de homens dedicados a ela, já não estava aí formulada essa ciência [2:10] como ideia para fecundar o movimento revolucionário?
Olavo: Com toda certeza. Francis Bacon é um dos santos padroeiros da maçonaria universal e, portanto, também da ala mais revolucionária da maçonaria. Francis Bacon é um dos pais do movimento revolucionário, com o agravante de que ele, sempre arrotando autoridade em nome da ciência, jamais fez descoberta científica nenhuma e escreve cada bobagem primária a respeito de assuntos científicos! Quer dizer, ele não tinha sequer aquele mínimo de autoridade que um cientista de laboratório pode ter.
Aluno: A ciência moderna, executando a purgação da ambigüidade da linguagem, ambigüidade necessária a uma linguagem que busca expressar um mundo com substâncias, e substituindo tal linguagem por essa outra, matemática, pretensamente exata e não-ambígua, na qual o conteúdo não tem qualquer relevância, a ciência moderna, com isso, legou ao mundo como que uma fórmula da mentira?
Olavo: Sem a menor sombra de dúvida, porque, se você adota a linguagem matemática e depura o seu objeto ao ponto de reduzi-lo aos seus elementos matemáticos, você não pode esquecer que está fazendo isto não com um objeto real, mas com um aspecto dele. Você tem aí dois graus de abstração: primeiro você separa quais os aspectos que vai encarar, segundo, do conjunto desses aspectos vão sobrar somente os elementos matemáticos, quando o mesmo objeto poderia ser visto por mil direções diferentes. Então é claro que qualquer observação científica neste sentido tem uma validade muito restrita, somente para um aspecto abstrativo da realidade, nunca para a realidade concreta. A conexão disto com a realidade concreta exigiria toda uma ontologia.
Ora, existe alguma ciência que desenvolva essa ontologia? Não, e eu acho que na verdade é impossível fazer isto. Isto quer dizer que todo e qualquer resultado científico tem uma validade restrita. Muitas vezes as pessoas usam a linguagem do século XIX, dizendo que as ciências têm um campo limitado, mas que há uma infinidade de outros assuntos que ela não abrange... Bom, isso é bobagem, porque qualquer cérebro humano pensante só trata de um aspecto limitado da realidade, a religião também, a filosofia também (não existe uma filosofia que trate de tudo), então essa crítica, para mim, não vale.
O problema não é este, não é que a ciência é limitada pelo seu número de assuntos, e que existem assuntos que estão fora da alçada das ciências. Isto é um raciocínio legalista e burocrático. "Ah, aqui nós temos um negócio chamado ciência, que impera sobre tais ou quais domínios, e ali tem outro negócio chamado religião, que impera sobre tais ou quais domínios..." Bom, isto vale para você organizar uma universidade, mas não para descrever a realidade como ela é. Nós temos que insistir é no seguinte: qualquer resultado científico de qualquer investigação é em si mesmo restrito, só vale sob certos aspectos, e não tem nada a dizer sobre o objeto real do qual está falando, só o tem sobre o aspecto abstrativo.
Muitas aulas atrás eu dei para vocês a definição do que é uma ciência: a ciência é um recorte operado sobre o conjunto da experiência, feito de tal modo que aquele aspecto possa ser estudado por um método previamente escolhido. Então o recorte depende do método, este já vem antes. E em seguida, graças a este recorte, você estabiliza um campo de pesquisas que pode prosseguir uniformemente, de acordo com um protocolo pré-determinado. Isto é que é ciência. Que, partindo disto, você possa construir uma cosmovisão, é a coisa mais ridícula do mundo. Não pode haver uma cosmovisão científica, mas pode haver um arremedo de cosmovisão através da interferência da ciência na sociedade. Ela modifica o panorama físico e social de tal modo que, instintivamente, as pessoas entram dentro de uma outra cosmovisão que não tem fundamento científico algum. De certo modo, é a fórmula da mentira.
Agora, esta mentira, para se fazer valer, tem que se basear num conjunto de realidades, realidades de ordem tecnológica. Quer dizer, você é capaz de construir certos equipamentos para produzir certos efeitos. Isto nada prova contra a natureza da realidade, mas prova contra a eficácia do instrumento, a qual ninguém jamais pôs em dúvida. Por isto é que eu digo que 99% do que o pessoal chama de ciência não é ciência, mas tecnologia, e esta consiste em você fazer certos artefatos para produzir certos resultados. Então, que o objeto construído para produzir um resultado o produza, eu não vejo o que pode haver de tão espantoso nisto!
Quando inventaram o martelo, foi para pregar pregos com mais facilidade do que você pressionando o prego pelo dedo. Se o martelo obtém esse efeito... O primeiro sujeito que domou um cavalo, o que é uma tecnologia, ele o domou para ter um meio de transporte mais rápido do que suas próprias pernas. Agora, se o cavalo fosse mais lento do que as pernas seria espantoso que alguém montasse num cavalo... Qualquer equipamento é feito para desempenhar uma tarefa mais facilmente do que o corpo humano a desempenharia, isto vale para um cavalo como para um reator atômico. Ninguém nega a eficácia da tecnologia. Mas freqüentemente a eficácia da tecnologia se superpõe ao conhecimento da realidade, e produz outras realidades que vão tornando o ambiente tão complexo que a própria pergunta pela realidade desaparece.
Isto é um progresso do poder de ação. Porém também é totalmente falso dizer que a tecnologia aumenta o poder de ação do homem sobre a matéria. Não, a tecnologia aumenta o poder de ação de alguns homens sobre os outros, em primeiro lugar, e um pouquinho também sobre a matéria. Ela é um instrumento de poder, mas esse poder não é distribuído à espécie humana. Ele é necessariamente o poder de uma elite, que, para isto mesmo, também está associada ao grande capital monopolístico e ao estado. Então a coisa foi cercada por todos os lados e criou um poder quase indestrutível.
Ou seja, nós já estamos vivendo dentro de uma ditadura científica faz tempo. Você ajunta um grupo de cientistas, pega uma verba da Organização Mundial da Saúde e agora o Obama quer fazer uma lei que diz que todo cidadão americano é obrigado a comer três frutas por dia. De onde ele tirou isso? De alguma cabeça de cientista. E toca lá você a comer as frutas! E assim por diante.
São intervenções em cima de intervenções, que vão mudando a vida social, o cotidiano das pessoas, o imaginário delas, os sentimentos etc., ao ponto de que o cidadão comum é incapaz de reconstituir o fio da meada e saber de onde saíram as suas crenças, convicções, sentimentos etc. Então, como é que a mudança acelerada, que modifica o ambiente e a cultura das pessoas sem que elas mesmas possam saber o que aconteceu, como isso pode ser um progresso do conhecimento e um progresso da consciência humana? Isto é um progresso da inconsciência, inconsciência planejada.
Agora, dos camaradas que dirigem o processo, alguns o compreendem, os outros, eles mesmos não compreendem. Quer dizer que essa mesma ideia do movimento histórico ser dirigido por uma comunidade de iluminados se contradiz a si mesma, porque os iluminados também não conseguem acompanhar o processo em todos os seus passos. Eles também são arrastados por isso, porque o próprio meio físico deles também mudou, graças à geração anterior de iluminados.
Em suma, a ideia de dirigir a história é a ideia mais monstruosa que já existiu. Você não consegue dirigir a história, você consegue produzir efeitos de grande escala, mas não consegue saber o resultado deles. Nunca consegue! Se você somar toda a engenharia social do mundo, ela sempre dá resultados que não são previsíveis. Ela modifica as coisas efetivamente, mas é uma ação eficaz no sentido quantitativo. São muitas mudanças, e mudanças de grande envergadura. Mas não são eficazes do ponto de vista qualitativo dos resultados obtidos.
Transcrição: Luiz Felippe A. da Rocha, Mário Jorge de Sousa Freire, e Rafael Correa de Melo.
Revisão: José Márcio Carter