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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 86

04 de Dezembro de 2010

Boa noite a todos. Sejam bem-vindos. Desculpem o atraso, mas é sempre uma longa viagem até aqui.

Em primeiro lugar, eu queria anunciar a presença do poeta e filósofo Ângelo Monteiro no Instituto Olavo de Carvalho, em Curitiba, nos os dias 10 e 11 de dezembro, às 3 horas da tarde. Aqueles que, embora inscritos, não possam ir ou não encontrem lugar terão acesso, depois, à gravação.

O que eu queria lhes dizer hoje é o seguinte: embora o nosso curso não vise a preparar pessoas para nenhuma espécie de ação política ou social organizada, mas simplesmente para uma ação na esfera da alta cultura, ainda assim nós estamos agindo dentro de um meio social determinado, concreto, que não é, naturalmente, o da nossa escolha, mas é aquele que nós encontramos na realidade e com o qual teremos de lidar. Em vista disso, às vezes eu fico um pouco alarmado com o desconhecimento geral dos fatores que estão em ação nesse meio no presente momento, desconhecimento esse que se reflete, em parte, no próprio vocabulário com que as pessoas descrevem a situação. Por exemplo, eu vejo na internet muita gente escrevendo contra a "doutrinação" marxista nas escolas. A palavra doutrinação é usada com certa freqüência, demonstrando que a pessoa que está protestando não sabe exatamente contra o quê está protestando. Se você examinar direitinho, não há doutrinação nenhuma; o que há é uma coisa completamente diferente.

Do mesmo modo, todas as mudanças sociais, culturais e morais aceleradas que o Brasil, assim como outros países, está vivendo formam um conjunto tão complexo, que a maior parte das pessoas se sente desorientada no meio disso. No entanto, em vez de haver uma consciência de desorientação, a própria confusão faz com que muitas pessoas tentem criar uma espécie de sentimento de segurança forçado mediante a afirmação de certos valores e mediante certas tomadas de posição muito determinadas quanto a pontos particulares. E tal é a insistência, a veemência com que falam desses assuntos, que isso simula até para elas mesmas uma sensação de que sabem o que está acontecendo. Mas, quando confrontamos essas várias tomadas de posição, nós vemos que, na verdade, elas estão agravando a confusão. O fato é que, no momento, não existe no Brasil nenhum grupo de pessoas empenhado em simplesmente estudar os processos sociais que estão em ação e tentar delinear um quadro de conjunto, e muito menos em rastrear a origem histórica, reconstruir as linhas de ação que produziram o estado de coisas. Na verdade, a maioria tende a achar que tudo é um tecido de curiosas coincidências, quando não a atribuir o estado de coisas aos processos normais de transformação social. As sociedades, de fato, raramente ficam do jeito em que estão -- elas estão continuamente mudando de algum modo --, e o processo de mudança parece a essas pessoas uma coisa normal, como sempre aconteceu, apenas um pouco mais acelerado.

Se nós pretendemos agir dentro desse meio e entramos nele com tamanho desconhecimento do assunto, muito provavelmente não seremos capazes, na melhor das hipóteses, de prever acertadamente as conseqüências das nossas próprias ações -- e a correção desta previsão seria o mínimo exigido. Porém, ainda mais provável é que essas ações escorreguem por cima do meio social e não alcancem resultado algum.

Em vista disso, eu queria lembrar a vocês alguns conceitos fundamentais que raramente aparecem nas discussões públicas -- seja na grande mídia, seja até nos vários sites na internet -- os quais são os conceitos de engenharia social e agentes de transformação. Sem esses dois conceitos, não é possível entender absolutamente nada do que está acontecendo nem na sociedade brasileira nem em qualquer outra, mas principalmente na sociedade brasileira -- daqui a pouco explicarei o porquê desse principalmente.

Engenharia social é uma idéia que remonta mais ou menos à revolução francesa. É a idéia de que um grupo, uma elite revolucionária que tome o poder em uma sociedade, pode remoldá-la à imagem e semelhança das suas convicções ou do que lhe pareça ser o melhor para a humanidade. É inerente à noção mesma de engenharia social a idéia de que o engenheiro social sabe o que é bom para os outros -- para todos os outros -- e de que ele tem, portanto, o direito e o dever de encaminhar a sociedade para onde bem lhe pareça.

Isso não pode, de maneira alguma, ser confundido com praticamente nenhum outro esforço de mudança social e política empreendida antes do século XVIII. Quando vemos, por exemplo, as ações dos grandes tiranos da antiguidade -- um Júlio César, um Átila, o huno, um Gengis Khan, ou qualquer outro --, elas são, em comparação com o que veio depois, de uma superficialidade e de uma brandura a toda prova. A nenhum governante da antigüidade ocorreu a idéia de remoldar toda a vida social, desde as suas bases psicológicas, desde os sentimentos íntimos e das reações espontâneas das pessoas. Ninguém teve essa idéia, isso não apareceu antes do século XIX. E, mesmo no século XIX, mesmo durante a revolução francesa e nos seus inumeráveis subseqüentes e filhotes, ainda se tinha uma noção bastante superficial do que poderia ser a ação social do governante ou de um grupo de elite sobre a sociedade.

Foi só no século XX que, graças aos progressos da psicologia, foi possível conceber mudanças de grande escala e numa profundidade que ultrapassava o próprio círculo de consciência, o próprio horizonte de percepção das multidões sobre as quais essa ação iria incidir. É claro que os grandes experimentos de engenharia social do século XX começaram nos países sob regime totalitário -- na União Soviética, na Alemanha nazista etc., especialmente na China. Porém, logo em seguida, idéias muito similares começaram a entrar em ação no ocidente, nas chamadas democracias ocidentais. E hoje essas várias modalidades de engenharia social estão tão complexamente entremescladas que não é mais possível sustentar a velha distinção que foi feita por Karl Popper -- um dos camaradas a quem esse assunto interessou muito.

Popper escreveu um livro chamado A Miséria do Historicismo, no qual contestava a possibilidade da previsão histórica de longo prazo, previsão que evidentemente está na base de todos os projetos de engenharia social -- ninguém vai tentar modificar a sociedade se já não sabe qual é o curso que a historia está seguindo e qual é o rumo provável das coisas a seguir. Seu argumento é de que, no mundo moderno, o fator decisivo da mudança social são os progressos da ciência e da técnica e que, portanto, para saber o que vai acontecer nos próximos séculos ou décadas, precisaríamos saber quais são as inovações tecnológicas e as descobertas científicas que serão feitas -- o que significa que precisaríamos ter hoje a ciência de amanhã. E como, por definição, isso é impossível, ele negava a possibilidade da previsão histórica e, portanto, o fundamento objetivo dos projetos de engenharia social. Isto não quer dizer que ele não reconhecesse que esses projetos existiam e que exerciam alguma ação, alguma influência sobre a sociedade. Tal influência, porém, não levava jamais aos resultados esperados, mas produzia uma [00:10] série de efeitos colaterais, em geral de natureza catastrófica. Esse era o argumento dele.

Mas Popper distinguia os experimentos de engenharia social em dois tipos: primeiro, existe a engenharia social totalitária, que pretende abranger toda a sociedade e modificá-la rapidamente; por outro lado, existem os projetos de engenharia social limitada, que atuam de uma maneira mais branda, com objetivos mais modestos, e sem precisar prever ou tentar controlar o rumo inteiro da história social.

Embora, então, esses experimentos tenham começado sobretudo nos países totalitários, já no começo do século XX você encontra vários projetos de engenharia social sendo aplicados nos Estados Unidos e na Europa, em nações democráticas. E alguns desses projetos, embora atuassem, segundo a definição do Karl Popper, com um escopo limitado, a longo prazo tinham a ambição de produzir mudanças sociais quase tão profundas quanto aquelas visadas pelos regimes totalitários.

É importante notar que todos os mentores intelectuais desse processo aqui no ocidente eram pessoas que tinham tendências socialistas de algum modo. Embora alguns deles fossem contra o totalitarismo soviético, eram adeptos de algum tipo de socialismo mais brando, socialismo fabiano ou alguma coisa assim. Um deles foi o economista Thorstein Veblen, autor do livro A Teoria da Classe Ociosa. Veblen acreditava na função reformadora e educativa do estado e, portanto, na engenharia social. Outro foi o filósofo e educador John Dewey. Dewey foi o sujeito que introduziu na educação americana toda uma série de modificações que visavam a tornar a educação uma coisa não diretiva e a propiciar que as crianças desenvolvessem sua criatividade, sua capacidade de experimentação -- os resultados a longo prazo foram obviamente desastrosos. Outro camarada importante nisso foi o colunista, comentarista de política, Walter Lippman. O Lippman sempre defendeu grandes projetos estatais e pode-se considerar que ele foi um dos precursores dos grandes programas sociais do governo Kennedy, do governo Johnson e outros. A chamada New Frontier, Great Society etc., são todos programas de inspiração socialista. Também não é de estranhar que por trás de todos esses projetos estivesse sempre a fundação Rockefeller, isso desde a década de 20.

Então, você imagine o que um grupo de estudiosos (de sociólogos, psicólogos, psicólogos sociais etc.) abundantemente financiado pela fundação Rockfeller pode ter descoberto em matéria de técnicas de engenharia social ao longo de 90 anos.

Imagine também a expansão mundial que esses projetos tiveram desde então. Como agentes auto-incumbidos de grandes projetos de engenharia social nós temos, em primeiro lugar, vários governos; em segundo, organismos internacionais -- ONU, UNESCO, Organização Mundial da Saúde etc.; em terceiro lugar, grandes empresas multinacionais e a rede imensurável de ONGs e fundações financiadas por essas empresas. Esses são os principais criadores, mentores e condutores dos processos de engenharia social.

O número dos projetos que foram desencadeados desde então é simplesmente inabarcável. A engenharia social é a presença mais constante na vida social de todas as comunidades humanas desde a década de 20. O número de escolas e centros de treinamento para os profissionais e colaboradores envolvidos nisso também é incontável. Eu vou lhes dar um exemplo de um entre milhares de manuais que circulam a esse respeito: The Change Agents Guide -- isso aqui é um livro didático usado em muitos desses centros de treinamento. Existem milhares de livros como esse.

Os indivíduos encarregados de implementar projetos de engenharia social são chamados agentes de transformação; em inglês, change agents -- às vezes em português também se usa agentes de mudança, mas, mais freqüentemente, agentes de transformação. Quem são os agentes de transformação? Em primeiro lugar, o próprio indivíduo ou grupo que concebeu o projeto também é um agente de transformação, e ele vai ter que criar os primeiros círculos de agentes. Porém, à medida que nos afastamos do centro, do topo da pirâmide, e nos aproximamos mais do agente que está atuando em campo, diretamente em cima dos grupos socais a serem afetados, existe uma multiplicação enorme das entidades que podem ser agentes de transformação. O agente de transformação pode ser, em primeiro lugar, o indivíduo treinado para isso: um profissional que deseja provocar certas mudanças em certos grupos sociais e que, então, entra nesse grupo, declaradamente ou infiltrado (ou chega lá com uma proposta clara ou se infiltra nele de alguma maneira), e trata de organizar as ações necessárias para produzir a modificação desejada. Essas ações podem ser, por exemplo, dinâmica de grupo, treinamento profissional, psicoterapia, pode ser qualquer maneira, qualquer canal de ação que o indivíduo tenha lá. Além dos indivíduos existem, naturalmente, as organizações também incumbidas de projetos de transformação: você pode criar, por exemplo, uma ONG, um sindicato, uma empresa --- esses também são considerados agentes de transformação. E existem alguns agentes abstratos. O terceiro tipo de agente são, naturalmente, os legisladores. O poder legislativo é um tremendo agente de transformação social. Mas o meio de atuação que os legisladores criam, isto é, as leis, elas próprias são agentes de transformação. Promulgar uma nova lei e criar os instrumentos necessários para que essa lei seja aplicada e esteja em vigência é um dos processos preferenciais de transformação social.

O agente de transformação não visa, geralmente, a mudar convicções, idéias. Dificilmente você vai encontrar um agente de transformação fazendo algum tipo de doutrinação ou propaganda política, porque a idéia mesma da engenharia social é saltar por cima da consciência das pessoas e modificar, em primeiro lugar, a sua conduta, as suas reações. As mudanças de convicções, de sentimento etc. vêm depois.

Um exemplo característico de como isso funciona é aquele caso, que até foi discutido na imprensa brasileira pelo Gerald Thomas, o diretor de teatro: na Suécia, um professor universitário reuniu seus alunos e, como estavam discutindo a questão do homossexualismo, ele disse que aqueles que não tinham nenhuma experiência pessoal da coisa não tinham condição de julgar o homossexualismo. Então, ele sugeria uma experiência homossexual na forma de um ato de sexo oral entre os alunos, que devia culminar na deglutição do esperma ejaculado pelo beneficiário desse experimento. Dos alunos que se submeteram ao processo, não me lembro se 82 ou 85% [00:20] escreveram, em seguida, eloqüentes justificativas para o que tinham feito e aderiram à prática. Agora, imagine se fizéssemos esse experimento aqui. Muita gente não iria gostar da idéia, iria rejeitar; mas como é uma prática pedagógica, um experimento científico, as pessoas por um escrúpulo de objetividade diriam "Não, não posso me furtar a essa experiência, senão todos saberão do que estão falando e só eu vou ficar por fora", e então se submeteriam àquilo. E quantos teriam a coragem de dizer depois: "Fui feito de trouxa, submeti-me a essa humilhação e estou profundamente revoltado com isso"? Pouquíssimos diriam. Todos terão de achar uma desculpa retroativa elegante. Isso quer dizer que a mudança de convicções, a mudança de sentimentos, a mudança de reações, é posterior à mudança de comportamento. Então, não há a menor necessidade de doutrinar quem quer que seja, porque você vai levar o sujeito a pensar o que você quer que ele pense, sem que tenha passado a ele nenhuma opinião, nenhuma sugestão, nem nada: a mudança interior é efeito da mudança exterior.

A velocidade com que isso opera é impressionante. E o número de projetos desse tipo que estão em ação no mundo é tão grande que eu posso dizer, sem a menor sombra de dúvida: praticamente nada acontece em um país como o Brasil a não ser por via de algum projeto de engenharia social. Não há nenhuma mudança social espontânea. O coeficiente de espontaneidade que pode existir nessa coisa é mais ou menos o seguinte: quando está andando de bicicleta, você pedala e imprime na roda, através do pedal e da correia, um certo movimento; evidentemente, esse movimento é multiplicado pelo fato de que a engrenagem maior impele uma engrenagem menor, e existe ali um resíduo, um efeito de inércia -- há uma energia acumulada, o que significa que você não vai ter de pedalar o tempo todo. Existe um efeito inercial: você pedala bastante e depois você pára, o resto é espontâneo. Mas é o espontâneo gerado por um movimento intencional.

Uma das formas de aproveitamento desse tipo de energia residual "espontânea" é o uso do próprio grupo social como instrumento de pressão sobre os indivíduos que o compõem. Por exemplo: em uma escola, você, tão logo se certifica de que 50% do grupo já adotou a mudança esperada, usa esses 50% como instrumento de pressão sobre os demais, e então não precisa atuar -- há uma espécie de inércia, um resíduo de energia que continua funcionando por si. Também é evidente que o efeito multiplicador dessa energia inercial cresce em proporção geométrica, porque, à medida que aquilo se espalha pela sociedade, a pressão no sentido da mudança já está disseminada por todo lado e, mesmo que as pessoas não estejam intimamente convictas daquilo que estão fazendo, elas vão repassar a outro a pressão porque têm a sensação de que, se não o fizerem, elas mesmas serão pressionadas. Pode acontecer que você atinja milhões de pessoas, das quais nenhuma está convicta do que está fazendo, e que todas ajam como se estivessem convictas. E uma das maneiras mais eficientes de introjetar essa sensação de convicção, de certeza, é pressionar os outros. Digamos que haja algo do qual você não está perfeitamente convicto, mas você quer acreditar que está convicto [e, ao mesmo tempo, manter sua saúde psicológica. Tal esforço há de criar em você um] estado de dissonância cognitiva por ter agido contra as suas próprias convicções, contra seus próprios hábitos. Para compensar [este desequilíbrio], você pressiona os outros, ou critica aqueles que não aderiram ao movimento. E, evidentemente, quando uma dessas pessoas é desafiada a justificar aquilo que está fazendo, aí se observa uma criação espontânea de argumentos e justificativas que é uma verdadeira maravilha. O indivíduo, imediatamente, dá à luz vinte, trinta argumentos que ele inventou naquele momento mesmo, só para não reconhecer o estado de divisão e de dilema no qual se encontra.

Eu digo dilema porque todas essas modificações, todas essas ações profundas exercidas sobre a sociedade por esses agentes de transformação, todas elas, inevitavelmente, colocam as pessoas em uma posição de desconforto moral profundo. Este desconforto é gerado pelo seguinte fator: para podermos dizer que há uma crise ou uma confusão na esfera dos valores que determinam a conduta humana, não podemos nos fundamentar na observação de que as pessoas estão conscientemente preocupadas com a sua confusão. Quando elas sabem que não sabem o que fazer, não é aí que você tem uma crise. Saber que não sabe o que fazer é o estado normal de perplexidade, precisamente aquele estado a que Aristóteles chamaria espanto, que é um estado extremamente favorável à reflexão. O estado de dúvida, o estado de perplexidade é mais ou menos inerente à condição humana -- quem quer que não tenha nascido sabendo tudo, mais dia menos dia, terá dúvidas, problemas etc. Então, nós vemos que existe um estado de confusão na esfera dos valores não quando existe uma consciência de confusão, uma consciência de incerteza, mas, precisamente ao contrário, quando inúmeras pessoas emitem opiniões ou julgam casos particulares, tomando posição contra casos particulares, segundo regras que contrariam os princípios mesmos nos quais essas tomadas de posição dizem se basear. Ou seja, quando a conclusão particular desmente o princípio geral que a fundamenta, e é afirmada com tanto mais certeza e tanto mais vigor quanto mais desmente esse princípio lógico, aí há realmente uma confusão na esfera dos valores, porque significa que aqueles valores que são mobilizados para julgar casos particulares desmentem a ordem total dos valores na qual, apesar disso, eles continuam se baseando para fundamentar o julgamento desses casos particulares.

Podemos dar um exemplo com aquilo que acontece, por exemplo, no movimento gay. Sem nenhum parti pris contra os gays, nós temos que observar o seguinte: a luta universal pela implantação do casamento gay é diretamente contraditada pelos modos de ação que o movimento gay põe em movimento para alcançar as suas reivindicações. Por exemplo, ao observar uma parada gay, você pode se perguntar "espera aí, mas isso aí não é o contrário de um casamento?" Um casamento é uma relação privilegiada entre duas pessoas, que exclui a presença de terceiros e exclui, sobretudo, a intromissão deles na vida sexual do casal. Agora, se você faz uma parada gay, na qual todos estão bolinando todo mundo, onde todo mundo está pelado, alguns estão até simulando -- simulando ou até exercendo efetivamente -- relações sexuais em público, é claro que isso é um movimento contra o casamento e não a favor do casamento. Por exemplo, no Brasil, o líder do movimento gay, o senhor Luiz Mott, gaba-se de ter ido para a cama com quinhentos homens. [00:30] Ora, que interesse pode ter ele em casamento, se o casamento teria de excluir quatrocentos e noventa e nove dos seus parceiros? É notável que aí o meio de ação colocado em movimento para atingir um objetivo é contraditório com esse objetivo. Porém, ninguém levanta a pergunta: será que todos gays do universo, que tanto lutam pela legitimação do casamento gay, querem se recluir a uma existência monogâmica, a uma relação monogâmica, desistindo de todo esse festival de sexo grupal que se vê em saunas gay, cinemas gay etc.? Então, qualquer indivíduo que dê a sua adesão a esse movimento está imediatamente dividido em dois, está lutando por duas coisas contraditórias: ele quer a institucionalização do casamento e quer o sexo livre ao mesmo tempo.

Praticamente todas as reivindicações que estão por trás desses movimentos são desse tipo: colocam o indivíduo em um estado de dissonância cognitiva já no primeiro momento. Por que isso acontece? Justamente porque o estado de dissonância cognitiva, quando passa de certo limite, torna o indivíduo ainda mais vulnerável e submisso às pressões do grupo, pois o centro de gravidade das suas decisões morais já não está mais na sua racionalidade interior, no seu pensamento, na sua consciência, mas foi transferido para uma entidade externa -- você não pode mais tomar suas decisões porque está dividido; então você necessita de uma autoridade externa. É por isso que muitos desses movimentos lutam por coisas que contradizem os seus próprios interesses proclamados.

Vou dar outro exemplo: recentemente o movimento dos sem-terra lançou uma campanha pela limitação do tamanho das propriedades agrícolas, de maneira que cessem de existir essas grandes fazendas do agronegócio e a agricultura brasileira passe a funcionar na base da agricultura familiar, que cada um tenha a sua pequena propriedade. Bom, se a agricultura fosse subdividida em milhões de pequenas propriedades, das duas uma: ou a produção dessas pequenas propriedades teria de alimentar o mercado interno, ou uma parte dela teria de ser escoada para exportação. Para o mercado interno não é possível, porque a produção agrícola do Brasil já é superabundante, ou seja, não há mais lugar para ninguém produzir para o mercado interno; e, para concorrer no mercado externo, como é que pequenas propriedades poderiam entrar no neste mercado? Não poderiam de maneira alguma. Então, é claro que essa reivindicação vai, de certo modo, contra os interesses do próprio agricultor individual. O agricultor individual hoje pode sobreviver na base de vender a sua pequena produção no mercado interno, que simplesmente complementa a produção das grandes fazendas. Caso houvesse essa limitação, toda a concorrência do Brasil no mercado internacional passaria a depender de pequenas empresas, de pequenos negócios familiares geridos por pessoas que não têm a menor idéia de como funciona o mercado externo e que, então, precisariam associar-se a grandes empresas de exportação, que os explorariam à vontade. Elimina-se o monopolismo na propriedade agrícola e se o transfere para as companhias de exportação. É claro que isso é uma contradição. Mas não tem importância, porque todas essas contradições são aceitas e são desejadas pelos engenheiros sociais.

Um efeito geral que a onipresença dos projetos de engenharia social desencadeou no século XX é que os critérios de decisão que se usam em uma atividade econômica --- os critérios de racionalidade econômica --- invadiram todos os setores da existência, e hoje praticamente não se pode tomar nenhuma decisão sem a interferência do cálculo econômico. Vou lhe dar um exemplo: uma mãe de família está em casa cuidando dos filhinhos, mas percebe que a família está pobre, que seria melhor elevar o padrão de vida, e então ela pensa em arrumar um emprego. Na mesma hora em que arruma um emprego para elevar o padrão de vida da sua família, ela diminui a qualidade da educação doméstica que suas crianças estão recebendo. E não escapatória. Ou ela vai se conformar em continuar fazendo companhia aos filhos, educando em casa e sendo pobre --- e, então, olhando o futuro e dizendo "mas o que será dessas minhas crianças, não têm nem o que comer" etc. ---, ou então vai ter de abandonar os filhos em uma creche, para serem educados sabe-se lá como, e tentar uma elevação do padrão de vida. O tempo todo nós somos levados a tomar decisões como essa. Por exemplo, o seu filho quer um cachorro e você pensa "o cachorro vai faze cocô na sala, vai bagunçar a casa etc.", e então você priva o seu filho dessa ligação afetiva ao mesmo tempo em que, vejam vocês, existem ONGs hoje em dia que reúnem cachorros para levar aos asilos, aos hospitais, às creches, para propiciar aos internos dessas entidades uma ligação afetiva com os bichinhos. Eu creio que ninguém que tenha um filho esteja imune a esse dilema, onde a decisão será tomada por um confronto entre a afeição moral que você tem pela criança e o cálculo econômico do rendimento.

Pelo menos até o começo do século XIX, a quase totalidade das pessoas não tinha de fazer cálculo econômico algum. Porque, como a sociedade era bastante estratificada e ninguém tinha a esperança de melhorar de padrão de vida (todos estavam mais ou menos conformados em ficar onde estavam), o critério orientador das suas ações era, basicamente, a moral religiosa -- eles estavam livres desses dilemas. A partir do momento em que existe a promessa geral de uma ascensão social, o cálculo econômico invade todos os setores da vida social. E onde entra, ele evidentemente se opõe aos sentimentos elementares humanos, às normas de moral tradicional, à autenticidade das relações pessoais etc.

O sociólogo Ralph Febvre (Febvre é um sobrenome francês, eu não sei como eles pronunciam isso aqui; talvez pronunciem 'Fever', mas chama-se Ralph Febvre) conta uma historinha muito engraçada. Ele diz: você imagina que o Bill Gates está caminhando pela rua, cai uma nota de cem dólares do seu bolso e ele se volta para pegar a nota de cem dólares. Mas acontece o seguinte: 30 segundos do trabalho do Bill Gates valem muito mais do que cem dólares. Então seria mais negócio ele deixar a nota de cem dólares e ir embora. Agora, suponha que o que caiu [00:40] não foi uma nota de cem dólares, mas foi, digamos, um chaveirinho que foi dado por um amigo dele, ou uma coisinha qualquer que foi dada por um amigo ou por uma namorada, alguma coisa assim. E o Bill Gates diz: "olha, não vale a pena eu voltar e pegar isso, porque meu tempo de trabalho vale muito mais do que isso". Em nome do cálculo econômico, ele teria arruinado uma relação afetiva. Agora, por que o cálculo econômico, que era cabível no caso da nota de cem dólares, entra também nesse caso? O que ele tem a fazer aí?

É claro que a hipótese é totalmente inventada, é fictícia. Mas imagine quantas vezes na vida um homem de recursos não é obrigado a tomar decisões segundo um cálculo econômico que desmente os seus mais elementares interesses humanos --- ligações de família, amizade etc. A presença do cálculo econômico, que é uma coisa absolutamente inevitável hoje, ela corrói, por si, todo o campo da moralidade, e o cálculo econômico se transforma, imediatamente, no novo padrão de moralidade. Mesmo quando continuam acreditando na velha moralidade, as pessoas já não podem agir segundo a velha moralidade porque ela não inclui o cálculo econômico, e sem o cálculo da racionalidade econômica não há como sobreviver no novo ambiente. Quando acontece a simples profissionalização de massas e massas de pessoas --- por exemplo, quando as donas de casa saem de casa e arrumam emprego --- elas automaticamente entram no reino do cálculo econômico, e é claro que a maior parte das suas ações passarão a refletir a racionalidade econômica e não a velha moral.

É claro que, se você tomar os velhos códigos de moral religiosa, eles dão um certo atenuante para as situações em que se é forçado a tomar certas decisões em função de uma necessidade externa que se impõe. Mas acontece que quando essa necessidade externa passa de certo limite ela mesma se torna o novo padrão de moralidade. Por exemplo, imagine um casal de classe média baixa que gosta de crianças e que decida ter, então, oito, nove, dez filhos. Aqui, a gente vai a uma igreja que é cheia de irlandeses. E o irlandês chega com a mulher e doze filhos atrás --- todos eles são assim. Essas pessoas serão facilmente criticadas por seus amigos por terem gerado necessidades, em vez de gerar recursos. Porque não estamos mais em uma situação rural onde o trato da propriedade exija mais filhos --- na qual a falta de dinheiro para pagar empregados torna necessário criar filhos para que eles cuidem da propriedade ---, a situação já não é essa. No meio urbano, um filho dificilmente será um recurso econômico; ao contrário, ele é um gerador de necessidades: todas as necessidades que você terá de atender e toda a despesa que terá para criar doze filhos jamais voltará para o seu bolso --- nunca mais, foi perdido de uma vez para sempre. Os filhos então terão novos filhos, e assim por diante. Foi em vista disso que o próprio pessoal da fundação Rockefeller, décadas atrás --- muitas décadas, desde o começo do século XX ---, começou a se preocupar com explosão populacional e lançou as campanhas de controle de natalidade. Essas campanhas visavam a atingir, sobretudo, os países do terceiro mundo e impedir a proliferação de pobres. Acontece que, por sua própria natureza, os pobres têm menos acesso aos meios de comunicação social do que as pessoas de classe média e alta. Então, as campanhas acabaram surtindo efeito justamente nas camadas de classe média e alta, sobretudo na Europa ocidental, e, em vez de diminuir a população da Ásia ou da África, diminuiu a população da Europa, criando um déficit de mão-de-obra que foi suprido através do quê? Da imigração. A imigração, então, cria um novo problema, que é o problema da ocupação cultural. A própria campanha de controle populacional já tinha dentro de si essa contradição.

Praticamente, podemos dizer que não existe nenhum empreendimento de engenharia social que não traga dentro de si mais e mais contradições, ao ponto que a simples idéia de coerência no julgamento moral já desapareceu por completo. Pela própria natureza do instinto moral humano, existe a necessidade de que os julgamentos sobre questões determinadas, particulares e concretas, tenham algo a ver com certos princípios gerais que permitirão fazer julgamento em outras questões similares. A própria idéia de moral, a própria idéia de justiça, implica a idéia de proporcionalidade: partindo de uma igualdade elementar 1=1, você vai fazendo proporções, 1/1=2/2 e assim por diante. A proporcionalidade é a estrutura mesma da idéia de moral e da idéia de justiça. Porém, no instante em que a tomada de posição quanto a determinados fatos particulares e concretos é forçada por um projeto de engenharia social (que, por exemplo, deseja eliminar certos hábitos), quando o esforço de intensificar essa tomada de posição passa além do que seria justificável pelos princípios gerais, então esses princípios são sacrificados em nome daquela tomada de posição particular. Um exemplo característico é que os mesmos órgãos de mídia que promovem a liberação sexual, o casamento gay etc., usam os argumentos da velha moral para destruir a reputação de certos políticos que eles descubram, por exemplo, em um bordel ou em um clube gay, ou alguma coisa assim. Isso acontece o tempo todo: por um lado, você tem um apelo total à imoralidade; e, por outro, você tem o uso dos princípios da moralidade como ferramenta de destruição de reputações. Isso é tão constante que já se tornou normal. Entidades, pessoas e grupos que façam, por exemplo, uma campanha para a liberação das drogas, não deixarão de usar a condição de drogado como um argumento contra uma pessoa que desejem destruir.

Quando se chega a esse ponto, significa que a simples noção de uma hierarquia e de uma coerência do sistema moral já foi embora, já desapareceu. O que quer dizer que as pessoas podem criar qualquer opinião, qualquer sentimento, qualquer reação contra qualquer coisa, sem ter de prestar satisfações perante o tribunal da sua própria moral. Nessa altura, qualquer defesa que se faça de qualquer atitude moral com relação a determinado ponto particular arrisca piorar a situação. Porque o que podemos chamar de confusão na esfera dos valores não passa da revolta das partes contra o todo [00:50] --- a reação a certos fatos particulares torna-se mais importante do que os princípios que a fundamentam e passa por cima desses princípios. Eu vou dar um exemplo. Recentemente, no Brasil, a companhia Souza Cruz foi proibida, por uma sentença judicial, de contratar provadores de tabaco. Na defesa, a Souza Cruz alegou que não havia nenhuma prova de que o fato de trabalhar como provador de tabaco tivesse causado dano à saúde de quem quer que fosse. A sentença simplesmente não respondeu a essa objeção. Ela partiu do princípio de que havia o dano, e a prova do dano se tornou absolutamente desnecessária. Isso quer dizer que o terror que certas pessoas e grupos têm do tabagismo, terror que foi insuflado na sociedade por campanhas de engenharia social, tornou-se mais importante que o simples direito de defesa. O sistema judiciário desmente a sua própria razão de ser, para poder impor uma sentença particular, e isso já virou norma geral. O número de sentenças judiciais que são, elas próprias, um desmentido da integridade do próprio sistema judiciário já se alastrou tanto que podemos dizer que hoje o sistema judiciário está à mercê do capricho de juízes, promotores etc. que agem movidos por certas tomadas de posição emocionais a respeito de certos pontos particulares que os irritam, atemorizam etc. É nessa condição social que estamos vivendo. Note bem que isso não configura apenas uma irracionalidade; você falar de irracionalidade nisso é eufemismo. O sujeito age irracionalmente quando ele simplesmente desmente os princípios da lógica, os princípios da razão. Mas quando ele passa a desmentir pelas suas ações os fundamentos da sua própria existência, então já não se trata mais de irracionalidade, é algo que já foi muito além disso. Não se trata de um erro de lógica, de contradições lógicas, mas de contradições existenciais. Na antiga retórica, chamava-se de argumento suicida o argumento que se voltava não contra as idéias do indivíduo, mas contra a sua própria existência. Por exemplo: um judeu que, na Alemanha nazista, fizesse propaganda anti-semita, não estaria desmentindo um princípio da lógica, mas estaria desmentindo seu próprio direito à existência, e aquilo, mais cedo ou mais tarde, poderia se voltar contra ele. É como se fosse um raciocínio circular às avessas -- é um raciocínio circular que desmente a possibilidade existencial de ele mesmo ser emitido. E isso se tornou o modus ratiocinandi geral em algumas sociedades, especialmente a brasileira.

Se vocês lerem o livro do Pascal Bernardin, Maquiavel Pédagogue, que é um livro que deveria ser traduzido em todas as línguas, vocês verão que todas as técnicas de educação que estão sendo usadas em todas as escolas do mundo por indução da ONU são manipulação de comportamento; elas não têm nada a ver com aprendizado. Todas são itens de engenharia social que visam a produzir mudanças de comportamento em escala de massas. Por exemplo, todo esse código politicamente correto que hoje está sendo implantado não é um sistema de idéias. Experimente um dia fazer o código do politicamente correto: tal coisa é feia, tal outra é proibida, tal outra é abominável etc. Tente colocar isso em uma ordem e extrair dali algum princípio geral. Não tem. São tomadas de posição soltas que, no todo, contradizem-se completamente. E, na medida em que as pessoas vão aderindo a isso, o resultado efetivo é a destruição total da sua capacidade de julgamento moral e, portanto, o deslocamento do eixo das suas decisões da sua consciência para algum agente externo, que passa a ser o símbolo da racionalidade.

Alguns de vocês, que são meus alunos mais antigos, devem se lembrar de aulas que dei sobre um assunto que eu chamava 'o trauma de emergência da razão', e que a coisa era colocada mais ou menos assim: nós definimos a razão como o senso da totalidade e da articulação entre as partes -- em ultima análise, o senso da proporcionalidade. Todo ser humano nasce com a capacidade para o desenvolvimento do pensamento racional e das atitudes racionais e, portanto, para um mínimo de coerência nas suas ações. Porém, esta capacidade é meramente potencial quando o indivíduo nasce. Isso quer dizer que, para chegar a tomar posse da sua capacidade racional, ele terá de aprender a linguagem, algumas noções de cálculo, alguns códigos que existem na sua sociedade, e terá de acumular certa quantidade de experiência. No entanto, os problemas e as necessidades que se colocam para ele exigindo uma solução racional altamente complexa não esperam que ele se desenvolva. Por exemplo, uma criança que viva em uma família onde há um conflito, onde o pai e a mãe estão brigando por algum motivo. É evidente que a criança não pode entender o que está se passando e não tem a menor condição de tomar uma posição racional nem em seu próprio interesse, nem em interesse da família, ou seja, a questão transcende infinitamente sua capacidade de elaboração racional. No entanto, a questão já tem impacto total sobre ela. Isso quer dizer que, desde que nascemos, o simples desenrolar dos acontecimentos nos coloca problemas que estão infinitamente acima da nossa capacidade de elaboração racional.

Razão também significa ordem, significa segurança. O indivíduo que está colocado dentro de problemas e de pressões, cercado por pressões que ultrapassam a sua capacidade de elaboração racional, não pode procurar em si mesmo, isto é, no seu próprio pensamento, um princípio ordenador que o tranqüilize ou que o defenda. Então ele se apega a um símbolo exterior da ordem. Esse símbolo exterior da ordem é o pai, a figura de autoridade --- o pai ou quem represente para ele a autoridade. Isso quer dizer que, seguindo o que o pai diz, ele acredita estar dentro de uma organização racional da vida, por assim dizer, embora não tenha nenhuma prova disso, e embora o princípio articulador dessa defesa racional lhe escape por completo. Todos nós, absolutamente todos nós, vivemos essa dificuldade desde o início da nossa vida. Por exemplo, suponha que uma criança tenha uma doença cuja cura escape do horizonte de consciência da comunidade onde ela está. É claro que se estivesse em outro meio [01:00] ela poderia se beneficiar de um tratamento, mas seu meio social ignora esse tratamento. Tem-se o problema do indivíduo que não apenas está sofrendo as conseqüências de uma situação que ultrapassa sua capacidade de elaboração, mas o próprio meio também não tem essa capacidade de elaboração. Nesse caso, o próprio apelo à autoridade simbólica, racional substitutiva, vai falhar. E aí você tem um caso de desespero total.

Esses fatores fazem com que ao longo da vida, sempre que a nossa capacidade de articulação racionais das situações seja superada pela complexidade das situações, nós nos apeguemos a uma autoridade. Ou seja, a autoridade simboliza a razão: porque simboliza a ordem, a proteção, e cria uma espécie de círculo de claridade ou círculo de segurança em torno da pessoa. Mas é, evidentemente, apenas um símbolo. Às vezes, esta proteção simbólica funciona: você não sabe o que fazer, mas acredita que seu pai sabe, e às vezes ele realmente sabe. Mas às vezes ele também não sabe. Então, ao longo da vida, nós dificilmente escapamos desse apego à autoridade quando a razão nos falha. E quem é essa autoridade? Bom, no início da sua vida é o pai, mas aos cinqüenta anos de idade você não vai se apegar ao seu pai, não é? Então você se apega aos símbolos de ordem que existam no meio em torno: a universidade, o estado, a mídia etc. Porém, essas entidades não têm mais controle do processo racional do que seu pai tinha da vida integral da família quando você era pequeno. Isso quer dizer que o apego a essas autoridades é tão pouco fundamentado quanto era o apego à autoridade do pai quando você era criança.

Vejam que, por exemplo, quando se levanta uma discussão a respeito de algum ponto científico (vamos supor que você queira discutir a teoria da evolução), sempre haverá pessoas que apelarão à autoridade de uma ciência que elas desconhecem por completo. O sujeito diz "não, mas isso é um fato científico...", e eu digo: mas cadê o fato? Cadê a prova? E as pessoas não são capazes de fornecer. Claro que sempre haverá alguém que, por ser um profissional da ciência, por si próprio produza um, dois ou três argumentos cientificamente defensáveis. Mas isso não acontece com a quase totalidade das pessoas. Por exemplo, uma classe que eu conheço bem, que é a dos jornalistas brasileiros: quantos jornalistas brasileiros conhecem o problema de teoria da evolução ao ponto de poder pessoalmente oferecer algum argumento substantivo? Praticamente nenhum. E, no entanto, todos têm certeza absoluta daquilo que estão dizendo. Uma certeza fundamentada no apego à autoridade: o problema, a discussão da teoria da evolução, ultrapassa a sua capacidade de elaboração racional, então a pessoa automaticamente transfere o centro decisório do pensamento racional para o de algum outro para ela que simbolize o pensamento racional.

Aqueles dentre nós que querem se tornar intelectuais dignos do nome, as pessoas que se incumbem pessoalmente de levar a elaboração racional do problema até o último limite do que elas sejam capazes, têm a obrigação de dispensar esse apego simbólico à autoridade desde o início dos seus estudos. Ou seja, toda vez que estivermos desorientados, teremos de confessar que estamos desorientados e que não sabemos. Por isso, eu digo que a melhor resposta a todos os problemas se constitui de duas palavras: "não sei". Então, onde o cidadão comum se apegar a uma autoridade externa, onde ele transferir o centro decisório do seu pensamento racional para um símbolo de autoridade, nós transferiremos o nosso centro decisório para essas duas palavras mágicas: "não sei". Isso quer dizer que o número de questões que você terá que responder com essas duas palavras é enorme. Mas, qual é a vantagem de fazer isso? A vantagem é a de que você vai estar na realidade. E na realidade ninguém sabe, e você também não. Ou seja, você vai admitir um coeficiente de ignorância muito grande. A frase socrática "só sei que nada sei" está em todas as bocas, todo mundo diz isso. Todo mundo chega para você e diz: "Não, eu não tenho a resposta definitiva para os problemas etc.". Mas eles só falam isso genericamente, é só da boca para fora. Quando chegam às questões particulares que lhes interessam, jamais admitem que não sabem. Então, o "só sei que nada sei" virou uma camuflagem do "eu sei tudo". E o "eu sei tudo" é baseado na idéia de que, bom, eu não sei propriamente, mas tem alguém lá em cima que sabe. O governo sabe, o ministério da saúde sabe, a ONU sabe, ou a Igreja Católica sabe --- também a Igreja Católica serve para isso. O sujeito acredita que na doutrina católica tem solução para todos os problemas. Mas, se fizer a lista dos problemas que foram discutidos nos concílios e na doutrina católica, você vai ver que falta muito para chegar ao tudo.

Então, é preciso desenvolver esta capacidade de viver na consciência de ignorância, não na mera proclamação genérica, vazia, oca, mas de ter uma ignorância determinada -- quer dizer, aqui está determinada questão e eu não sei quais são os fundamentos dela, não sei como resolvê-la, não tenho a menor idéia de como se trata isso e, se fosse procurar as supostas autoridades que concederam tempo a este problema e que tentaram elaborá-lo, muito provavelmente elas também não sabem. Porque, como dizia aquele velho ditado russo "um só idiota é capaz de produzir mais perguntas do que sessenta sábios conseguiriam responder". O fato é que a maior parte das perguntas não tem resposta certa, nós não sabemos. E admitir que se vive em um círculo de ignorância em que se pode lançar luz apenas sobre um número limitadíssimo de questões, por maior que seja sua esfera de interesses e por maior que seja seu horizonte de estudos, isto é a condição fundamental para uma vida intelectual sólida. Isso eu digo desde o começo: a convivência com o estado de dúvida é coisa absolutamente necessária para a vida intelectual.

Mais ainda, somente a admissão desse estado de dúvida pode despertar em você a percepção clara da diferença entre dúvida e certeza. O que nos leva de volta ao famoso tema da teoria dos quatro discursos, dos quatro níveis de credibilidade: assim como você pode classificar os seus conhecimentos e as suas crenças nos quatro níveis, averiguando se as suas idéias são absolutamente certas, provadas e acima de qualquer de dúvida; se são apenas idéias razoáveis, ou seja, que não estão absolutamente provadas mas, por lei das probabilidades, parece que você está certo; se são idéias apenas verossímeis, isto é, das quais você não tem prova nenhuma, mas que coincidem com o que a maioria está pensando; ou se são idéias meramente possíveis, frutos da sua imaginação. Assim como você pode fazer essa classificação com relação aos seus conhecimentos (e, aliás, eu sugiro que faça, até como um exercício: pegue as idéias e as crenças fundamentais nas quais você tenha baseado a sua vida e classifique-as de acordo com o seu grau de certeza), você poder fazer isso também com relação àquilo que você ignora: quanto você ignora do problema? A sua ignorância é total? Você não pode dizer absolutamente nada? Ou o pouquinho que você sabe já limita o coeficiente de ignorância e especifica, ou esclarece o sentido da pergunta? Muitas vezes nós não sabemos nada a respeito de alguma coisa, porém sabemos quais são [1:10] as perguntas decisivas que teriam de ser respondidas para que chegássemos a uma certeza. Então, a sua ignorância já não é total: é total no que diz respeito ao conteúdo da questão, mas não em relação ao meio de alcançar uma resposta. Porém, às vezes você não tem nem isso, mas tem apenas tomadas de posição contraditórias: "pode ser assim ou pode ser o contrário disto", e você não sabe sequer se essa primeira articulação do problema em duas alternativas opostas é adequada à verdadeira natureza do problema. Em outros casos, a sua situação é ainda mais precária: você tem apenas uma confusão multicolorida com relação àquele negócio. Este exame do seu próprio coeficiente de ignorância é um elemento fundamental da vida intelectual.

Agora, apliquem isso àquilo que eu acabei de dizer. Veja todas as questões que estão em discussão na sociedade do momento. Por exemplo, impostos, bolsa de valores, crise econômica, casamento gay, criminalidade, aborto etc., e pergunte o seguinte: eu sei a origem social e histórica de cada uma dessas questões? Ou seja, eu conheço os projetos de engenharia social que transformaram esses problemas em focos de interesse público, ou não tenho a menor idéia de quem foi que trouxe o problema e por que o trouxe?

Por exemplo, eu vi no último número da Foreign Affairs, a revista do CFR (Council on Foreign Relations), um artigo com o título "O Primado da Economia". Ora, eu acho que hoje, praticamente, não existe nenhum analista político na grande mídia mundial que não acredite que a economia determina tudo e que não comece suas análises sempre sobre a base dos dados econômicos que estão em questão. Você acha que isso é assim naturalmente, que as pessoas começarem a raciocinar sobre isto por que é natural raciocinar assim? Se fosse natural raciocinar assim, seriam todos marxistas. No entanto, quando apareceu o marxismo, entre 1844 e 1880 mais ou menos, que foi o período de publicação das obras de Marx, a reação geral do Ocidente foi negar o primado da economia. Mesmo porque o próprio Marx, que por um lado afirmava o primado da economia, por outro lado nunca soube dizer qual era realmente a extensão, o peso efetivo desse primado na produção dos acontecimentos. O máximo que ele disse foi o seguinte: o curso da história é determinado em última instância pelo fator econômico. Quer dizer, existem outros fatores. Mas onde é a última instância? Ele jamais disse. Ou seja, Marx não forneceu um critério para distinguir quando o fator econômico é o que pesa decisivamente e quando ele é um elemento secundário e existem outros elementos que o antecedem.

Eu, pessoalmente, estou convicto -- e outro dia eu até posso dar uma aula sobre isso -- de que o fator econômico jamais é o principal. Nunca pode ser. Porque a economia é um fruto da ação humana: tudo o que se produz foi produzido por alguém. Mesmo aquilo que nos é dado pela natureza precisa ser colhido. E a ação humana jamais pode ser determinada diretamente por um fator econômico, porque só se pode agir perante uma situação econômica que seja compreendida, da qual se saiba alguma coisa. Então, qualquer ação na esfera da economia passa pela consciência humana: você reage não à situação econômica objetiva, mas àquilo que você entende dela. E o seu modo de entendê-la, por sua vez, não pode ser determinado pela própria economia, porque senão todos os pensamentos humanos seriam um traslado direto da situação econômica, ou seja, todos nós seriamos analistas econômicos perfeitos, e todas as decisões econômicas seriam acertadas. Note bem: se a ação humana refletisse o estado objetivo da economia, ela se adaptaria a esse estado perfeitamente, e se tornaria uma ação eficaz, sempre. Por que isso não acontece? Porque o conteúdo das nossas representações do estado de coisas na economia não reflete só a própria economia, mas milhões de outros fatores que estão em jogo na nossa mente -- esperanças, valores, temores, regras morais etc. Até a linguagem. Isso quer dizer que nunca a situação econômica, por si, causa nada.

Por exemplo, o pessoal aí do Brasil todo está convencido de que a miséria causa o banditismo. Mas, é possível que o simples fato do sujeito estar pobre o transforme num criminoso? Isto é absolutamente impossível. Porque, se fosse assim, todos os pobres seriam criminosos automaticamente. E como todos não são, isso significa que não é a situação econômica que está determinando suas ações diretamente. Para que a pobreza se transforme em uma causa de criminalidade, é necessário que o indivíduo interprete essa situação econômica como um bom motivo para se tornar um criminoso -- ou seja, da situação econômica até a ação humana existe uma série de filtros. E como a maioria dos pobres não é criminosa de maneira alguma, entendemos que a situação econômica não foi o que determinou as ações do criminoso. Isso me parece a coisa mais óbvia do mundo. Mais ainda: a pobreza coloca nas mãos do pobre todos os instrumentos necessários à prática do crime? Por exemplo, a pobreza pode lhe dar um revólver carregado de balas? Você imagine, por exemplo, um sujeito que viva no nível da miséria; quanto tempo ele precisaria economizar para comprar um revólver no mercado negro? Dois ou três anos! Economizando aí, sei lá, dez reais por mês, se conseguisse, para depois comprar uma arma por trezentos, quatrocentos, quinhentos reais. Então: a pobreza nem lhe sugere o crime, e nem lhe dá os instrumentos para praticá-lo. É evidente que existe a interferência de outros fatores que são muito mais decisivos. Acontece que a explicação econômica surge tão naturalmente na cabeça das pessoas que praticamente todos os analistas políticos do mundo começam pela avaliação do estado econômico das nações para saber o que elas vão fazer em seguida.

Como foi possível que esta chave mágica de todos os problemas, que é a economia, dominasse todas as consciências ao ponto de todo mundo estar, de uma maneira ou de outra, convicta do primado da economia, quando existem tantos outros fatores que o desmentem? Isso é efeito da engenharia social. Ela desvia as atenções de outros fatores para concentrar na economia. Por exemplo, as vantagens econômicas do aborto. Elas não são alegadas o tempo todo? Minha mulher está tendo uma discussão na internet com uma amiga nossa, uma pessoa muito querida, mas que acredita nas vantagens econômicas e sociais do aborto. A Roxane colocou o seguinte argumento: todo o problema consiste em saber se o ato do aborto é um homicídio ou não, ou seja, o aborto se tornaria legítimo se houvesse razões suficientes para crer que o feto não é um ser humano. Pode-se perguntar a um abortista: você tem certeza absoluta de que o feto não é um ser humano e de que, portanto, matá-lo não é um homicídio? [1:20] Dificilmente um abortista dirá: "Tenho certeza absoluta!" Porque, se disser, ele precisará oferecer provas que não possui, então será apenas uma matéria de decisão arbitrária e não uma certeza -- no próprio ato de afirmar a certeza, ele mostraria que não tem certeza nenhuma. Então, todas as vezes que a Roxane repete esse argumento, a pessoa responde outras coisas: "não, mas o aborto diminui a criminalidade; o aborto é necessário porque coitadas das mulherzinhas que acabam fazendo o aborto ilegal, etc.". São argumentos de racionalidade econômico-social, que fogem à discussão do problema moral central. A naturalidade com que hoje se passa da discussão moral para a discussão econômico-social, ela mesma foi resultado de imensos empreendimentos de engenharia social feitos, no caso, sobretudo através da mídia, que vai deslocando as discussões para o campo econômico cada vez mais, ao ponto de as pessoas acharem natural entrar com argumentos de racionalidade econômico-social, encobrindo o significado moral das questões.

Isso tudo resulta em um processo que o grande sociólogo russo-americano Pitirim Sorokin denominou "desmoralização da sociedade". Desmoralização significa neutralização da moral: eliminar a moral da lista dos fatores que presidem a conduta humana e a representação que os seres humanos têm da realidade. Isso quer dizer que na análise de todos os problemas e de todas as tomadas de posição, o fator que vem primeiro é econômico-social. E os argumentos de ordem moral acabam se tornando tão deslocados, que o simples fato de alegá-los pode ser tomado como uma irresponsabilidade. Por exemplo, o sujeito pode mostrar que as vantagens sociais do aborto são tão majestosas que é uma irresponsabilidade alegar a condição humana do feto. "Você está prejudicando a vida de milhões de pessoas." Este tipo de alegação encobre não somente o fator moral em jogo, mas o próprio princípio de racionalidade que deve presidir a ordem dos argumentos. Porque, se você aceita que as vantagens econômico-sociais devem prevalecer sobre as considerações no caso do aborto, então elas deveriam prevalecer em outros casos também. Então, poderíamos alegar as imensas vantagens sociais do narcotráfico como, aliás, se alega realmente, para justificar a sua legalização. Em última análise, pode-se até alegar o crime como um fator de controle populacional, e assim por diante. Nestes casos, o fator moral desapareceu completamente da órbita dos fatores em discussão. Porém, o apelo ao sentimento moral continua por baixo de toda essa discussão, porque o indivíduo que alega que apelar ao argumento moral contra o aborto é proclamar uma tese que é socialmente prejudicial, ele está apelando ao sentimento moral. Sentimento moral que ele manifestará ao dizer que a vantagem para o maior número é mais importante do que a preservação da vida de meia dúzia de fetos.

Isto exemplifica aquilo que eu disse no começo: dizemos que existe uma confusão letal na esfera dos valores quando os argumentos usados com relação a casos particulares desmentem os próprios princípios que os fundamentam e, portanto, raciocinar contra o próprio raciocínio, raciocinar contra a própria racionalidade se transformou em uma obrigação.

Ora, de onde surge a concentração das discussões no fator econômico-social e na racionalidade utilitária para o conjunto da sociedade? É evidente que isso tem a ver com o desenvolvimento da ciência e da técnica e com a idéia de que, através da ciência e da técnica, nós dominamos o meio terrestre para a consecução dos objetivos que nos sejam vantajosos. Algumas aulas atrás, estudamos o René Descartes e vimos que a base de toda essa revolução científica que houve na entrada da modernidade não foi propriamente a proclamação de um novo paradigma cognitivo, mas uma transferência do eixo de discussão desde o aspecto cognitivo para o aspecto do domínio técnico e das vantagens práticas. Ou seja, o argumento fundamental em favor das novas ciências não era a sua racionalidade, o seu fundamento cognitivo, mas a sua utilidade para a ciência técnica e, portanto, para toda a sociedade.

Mais tarde, essa transferência seria assumida conscientemente no pragmatismo. Para o pragmatismo o conceito de verdade e de falsidade não se aplica à descrição objetiva dos fatos, mas às vantagens a ser obtidas mediante a idéia proposta: ela não tem de provar que é verdadeira, ela tem de provar que é útil. Podemos usar aqui a terminologia do Benedetto Croce, que diz que as quatro grandes dimensões do espírito humano são a estética, a ética, a economia e a lógica, as quais dizem respeito à apreensão dos valores do belo, do bem, do útil e do verdadeiro. Usando os termos do Croce, e sem precisar discutir particularmente a sua filosofia para estes fins, o que vemos é que a discussão é progressivamente retirada do âmbito da ética e da lógica para o âmbito da "econômica", como ele chama. Ele usa o termo "econômica" para se referir não somente à economia stricto sensu, mas a todo raciocínio de utilidade prática.

Como essa transformação foi facilitada, incentivada e provocada pelo papel cada vez maior que a ciência e a técnica foram desempenhando na sociedade, aí se introduz uma nuance que, na verdade, é a coisa fundamental: o âmbito no qual a ciência e a técnica podem atuar é, com toda a evidência, apenas o âmbito da experiência sensível humana, experiência terrestre, e tudo o mais que fique fora disso é relegado ao âmbito da crença e da imaginação. Ou seja, o que quer que esteja para além da experiência terrestre, corporal, acessível aos sentidos, não é objeto de conhecimento, mas pode ser objeto de imaginação, de crença e até de afeição -- todos têm o direito de imaginar a existência de um deus, de céu e inferno, de anjos e demônios etc., mas isso faz parte apenas da imaginação. Então, todos esses elementos saem da esfera cognitiva e, portanto, da esfera daquilo que pode ser discutido publicamente com base na razão. [1:30]

Embora toda essa modalidade que está em discussão desminta completamente a própria estrutura da razão humana, a razão como o valor socialmente acreditado continua sendo uma autoridade à qual você apela. Ou seja, você apela à autoridade da razão no momento mesmo em que você está demolindo os fundamentos da razão. Então, quer dizer, a razão deixar de ser a ordem do pensamento e a ordem do conhecimento e se torna um símbolo de prestígio e de autoridade social, apenas.

É claro que nesse momento, entre outras coisas, a ciência se destrói a si mesma, e a partir daí vem desde os anos 50 e 60 uma epidemia de fraudes científicas como jamais se viu no mundo. Então, isso significa que o próprio apelo à ciência vai perdendo credibilidade na medida em que a classe científica que representa o valor da ciência se revela às vezes um bando de vigaristas. Ainda assim, as pessoas acreditam no valor da ciência como ideal científico. Ou seja, embora a classe científica não mereça credibilidade, ainda acreditamos na ciência como ideal cognitivo. Mas durante quanto tempo nós conseguiremos acreditar num ideal que não tem representação terrestre? A ciência como ideal se torna aí tão etérea quanto a idéia de Deus mesmo! Podemos considerar: uma coisa é a ciência que se pratica efetivamente nos laboratórios, nas universidades etc., e outra coisa é o ideal de ciência. Mas como esse ideal de ciência não se encarna terrestremente nas ações daqueles que a representam, então continua sendo apenas um ideal, é uma forma platônica.

Muito bem. Mas a limitação das discussões publicamente legítimas à esfera do terrestre e do imediato tem como conseqüência a proibição social de levar em conta a imortalidade humana. No entanto, esta imortalidade humana é a única alternativa viável diante daquelas descobertas científicas que eu mesmo mostrei a vocês há uns anos atrás. Existem provas da imortalidade? Não. Provas positivas da imortalidade? Não. Mas existem provas cabais de que a consciência humana, incluindo consciência não apenas como órgão pensante, mas o próprio senso de identidade das pessoas, não depende absolutamente do corpo, e não pode ser extinta com a morte do corpo. Quando tempo nós vamos durar depois disso? Eu não sei. De fato, não há meios de provar isso cientificamente.

Porém, se nós temos a certeza cabal de que a consciência e a identidade humana são independentes do corpo, existem fora dele, existem para além da duração dele, então tudo o que a ciência poderia dizer a respeito, ela já disse. A partir daí, nós podemos continuar raciocinando e tirar desse fato algumas conseqüências incontornáveis. O fato já está tão abundantemente comprovado que eu me recuso a discuti-lo. Os casos são tantos, que não cabe mais discussão. Ao racionar sobre as conseqüências incontornáveis, nós vamos estar raciocinando dentro de uma esfera de certeza absoluta ou pelo menos de elevadíssima probabilidade, contra a qual ninguém poderá alegar nada de racional.

Parênteses: eu já disse para vocês que nesses casos de relatos de experiências em estado semelhante à morte, de cessação de atividade cerebral e cardíaca, existem dois tipos de narrativas: existem narrativas sobre o que o sujeito viu no além -- aquela história de que toda a vida dele passa rapidamente pela sua consciência, de que ele entende a totalidade do rumo da sua vida, de que encontra pessoas, e depois tem uma luz que ficou atrás --, tudo isso são relatos sobre o estado em que o indivíduo entra depois da morte.

Porém, existem outros tipos de relatos. Existe o relato sobre o que ele viu no próprio ambiente terrestre imediatamente assistível. E nesses casos, o indivíduo vê não apenas tudo o que está se passando no ambiente em que ele está, como o que está se passando para além do que ele poderia perceber com seus olhos, ouvidos e tato, se estivesse acordado e vivo. Ele enxerga o que se passa na casa vizinha, no quarto do vizinho, na outra rua, e tudo isto é verificável. Os relatos sobre o além não são verificáveis. A mera coincidência de que quase todos os relatos são esquematicamente a mesma coisa, indica apenas que todos eles viram a mesma coisa. Mas não há meio de conferir. Porém, os dados sensíveis que o indivíduo apreendeu para além do círculo do que ele poderia perceber se estivesse vivo e acordado, esses são todos verificáveis e a massa desses fatos é tão grande, tão grande,que o simples fato de presumir que a consciência está ligada ao corpo já é algo indefensável sob todos os aspectos.

Então, vamos partir deste fato sabendo que nós não temos como escapar dele. A consciência não é produzida pelo corpo, não depende dele, e sobrevive para além dele. Ponto final. Vamos tirar algumas conseqüências deste fato raciocinando apenas na base das conseqüências que são absolutamente incontornáveis. Como o indivíduo nessas condições enxerga o seu próprio corpo desde fora e desde cima, e como, por outro lado, já sabemos que a consciência não está o corpo, nós podemos concluir que a consciência não está no corpo, mas o corpo está na consciência. O corpo é um dos inumeráveis dados de consciência que nós temos. Portanto, longe de você poder explicar a totalidade de seus estados de consciência pelo estudo do corpo, é o corpo que passa a ser um dentre inúmeros dados de consciência.

Claro que quando nós falamos de consciência após a morte, não estamos nos referindo apenas ao uso que nós fazemos da palavra consciência normalmente na esfera corporal, mas estamos nos referindo à própria identidade, à autoconsciência, ao senso de individualidade substantiva do indivíduo. Se ela pervive após a morte, então nós podemos comparar isto com outro fato que nos é conhecido e no qual eu já insisti algumas aulas atrás: na nossa vida terrestre, todas as percepções que nós temos são transitórias, intermitentes e de curtíssima duração. Absolutamente todas. Ou seja, se nós tivéssemos somente o material dos sentidos, nós não apenas não teríamos noção nenhuma de conjunto da realidade, mas nós não teríamos noção do conjunto das nossas próprias pessoas. Não seria possível criar, a partir de tantos indícios fragmentários, um senso de identidade pessoal. Ou seja, todas as tentativas de explicar a consciência de identidade pessoal como síntese de impressões particulares, elas falham miseravelmente.

Eu, no curso que proferi sobre a imortalidade, distingui o que nós chamamos de "eu" em quatro faixas: temos o eu presencial, ou seja, aquele eu que está tendo essas sensações agora. Temos o eu social, que é aquilo que nós sabemos que os outros sabem a nosso respeito e que nos serve de referência na nossa convivência social (por exemplo, se eu tenho uma convivência íntima com certa pessoa e ela sabe a meu respeito coisas que os outros não sabem e, portanto, não adianta falar dessas coisas para um terceiro que ele não vai saber do que é que eu estou falando. Esse é o eu social). Embaixo, temos o eu histórico, que é aquele da sua autobiografia, é aquilo que você recorda. [1:40] Mas tudo isso seria impossível se não haveria por debaixo dele um eu substancial, uma entidade real, que você pode inclusive desconhecer por completo, mas que ela tem de estar presente para que os outros "eus" sejam possíveis.

Com toda evidência, é este eu substancial que sobrevive após a morte, tanto que após a morte, o indivíduo fica sabendo muitas coisas que ele não sabia em vida, até a respeito dele mesmo e muito mais ainda a respeito do ambiente físico. Enquanto nós estamos vivos, nós só podemos ver aquilo que está ao alcance dos nossos sentidos no ambiente imediato. Por exemplo, nós não temos visão de raio-X para saber o que se passa no quarto vizinho, mas uma vez que o sujeito morre, ela passa a saber o que se passa no quarto vizinho, na outra casa e assim por diante, de tal modo que não seria arriscado dizer que para onde este indivíduo após a morte dirija a sua atenção, ele ali obterá a informação objetiva necessária, mesmo que os objetos aos quais ele dirigiu a atenção estejam totalmente fora do seu alcance corporal. Nós sabemos que no estado terrestre corporal, nós podemos dirigir a nossa atenção aos elementos que estão fisicamente presentes, mas se dirigirmos a atenção a um elemento ausente, nós não teremos mais percepção, teremos apenas imaginação. Neste estado após a morte, o abismo entre imaginação e percepção fica anulado. É como se nós disséssemos que o indivíduo não está limitado mais à sua esfera subjetiva. Ele tem um senso de identidade ainda, portanto ele é uma pessoa e não as outras. Ele não se transforma magicamente em Deus tendo, portanto, uma visão universal e abrangente. Ele não tem consciência de tudo ao mesmo tempo. Ele continua vivendo dentro de alguma temporalidade. Ele tem ainda uma história, que ele pode contar. E ele está limitado de certo modo a essa história, porém não há mais a limitação espaço-temporal.

Ora, as condições que definem a vida terrestre são o espaço, o tempo e a quantidade. Ora, dessas três só sobram no estado de vida após a morte, a quantidade. Você continua sendo um e não dois. Mas porque não há mais o limite de espaço e de tempo, é possível transitar no espaço e no tempo livremente. Isto é confirmado pelas milhares e milhares de experiências. Então, se não há mais o limite do espaço e do tempo, embora o indivíduo continue limitado à sua individualidade, e continue sendo apenas ele mesmo, isso significa que se abre dentro dele uma esfera de conhecimento absolutamente ilimitado, que depende apenas da direção para onde vele coloca a sua atenção. Para onde você olha, você fica sabendo de alguma coisa. Ou seja, você vê que fica sabendo tudo o que quer saber, mas não tudo ao mesmo tempo. É por isso que nós podemos falar de uma vida após a morte, uma vida humana, não uma vida divina. Você não se transformou em Deus, você não é eterno.

Existem três tipos de coisas: as coisas temporais, que têm um começo e um fim; existem as coisas eternas, que não têm começo nem fim; e existe um terceiro tipo de coisa que é o ser humano, que tem começo, mas não tem fim. É uma espécie sui generis, evidentemente, que não está limitada às condições do espaço-tempo terrestre, mas também não tem aquela onipotência divina, aquela onipresença acima de todos os tempos e lugares. Então, tudo isso é o estado no qual você entra tão logo você morre.

Ora, é fácil perceber que a totalidade da experiência humana terrestre se tornou acessível a você. Não somente a sua experiência, mas também a dos outros. O indivíduo vê as coisas não somente no lugar onde seu corpo está, ele vê que o seu corpo está deitado ali na cama do hospital, ou talvez já enterrado. Ele está sabendo daquilo e está sabendo milhares de outras coisas ao mesmo tempo. Então, se a consciência não está no corpo, mas o corpo é um elemento da consciência, note bem que é um elemento muito pequeno dentro dessa consciência. Você vê o corpo e vê a totalidade daquilo que é acessível àquela consciência. O conjunto do que é acessível é o conteúdo dessa consciência. Esse conteúdo se incorpora naturalmente à sua identidade. Quando eu sei alguma coisa, sou eu que sei. Pelo fato de eu saber, o vizinho não fica sabendo necessariamente. E embora nós possamos conjeturar que nesse estado de vida após a morte, haja uma série de interpenetração dessas consciências, essa interpenetração não é total, porque nós sabemos que o indivíduo tem seu senso de identidade. Ele sabe que ele é ele e não o outro. O outro não pode saber que ele é eu porque ele de fato não é eu, ele é apenas ele.

Então, neste sentido nós sabemos que todo o mundo da corporalidade é apenas um elemento dentro da consciência de um indivíduo. E é este mundo da corporalidade que após a morte parece tão pequeno que constitui na nossa vida o universo das chamadas ciências e técnicas e o âmbito por excelência do cálculo de racionalidade econômica. Isso quer dizer que todo este cálculo está baseado nos dados que nós sabemos sobre um pequeno fragmento da vida humana. E baseado também na ignorância da totalidade da verdadeira estrutura humana. Então, vocês entendem que todo este imenso esforço de engenharia social centralizada na pessoa para fechá-las dentro de um ambiente terrestre é uma mutilação cognitiva monstruosa. E é uma espécie de compromisso de vida e morte com a ignorância. E é dentro disto que nós estamos vivendo.

Eu afirmei no começo que isto é mais visível no Brasil do que em outros lugares, pelo fato de que a história mental do Brasil é muito descontínua, aquilo que se faz numa geração é completamente ignorada na outra. Então, você não tem uma tradição cultural, não tem elementos tradicionais aos quais se apegar, o que torna todo o mundo muito vulnerável a qualquer nova campanha de engenharia social que se lance. No Brasil, pode-se criar uma moda em cinco minutos. Não há resistência. As pessoas aceitam tudo. Aquilo que foi inventado ontem, do dia para a noite se torna certeza absoluta, como se estivesse sido assim desde a aurora dos tempos! E em outros países a coisa não pega tão fácil assim. Veja a resistência obstinada que os americanos oferecem a essas coisas. Podem vir quantas campanhas de engenharia social que você queira, os caras não vão se convencer nunca, ao passo que, no Brasil, mesmo as pessoas que são seguidoras de alguma religião, por exemplo, elas aceitam essas coisas com uma facilidade impressionante. Não aceitam como crença consciente, mas como reação espontânea, reação que às vezes se expressa não ativamente, mas se expressa pela passividade, pela ausência de resposta a certas situações.

Vejam, outro dia o Ministério Público Federal lançou um processo contra esse apresentador de televisão, o tal do Datena, porque o Datena disse que o ateísmo é uma causa de maldade e criminalidade sem fim. Então, ele foi processado por estar ofendendo os ateus. Ora, a coisa mais evidente do mundo é que o ateísmo militante no século XX matou mais gente do que todas as guerras de religião no universo inteiro desde a aurora dos tempos até hoje. Isso está mais do que comprovado, então o que o Datena disse é a coisa mais óbvia. Mas, por que o Ministério Público processa o indivíduo por ofensa ao ateísmo, que não é sequer uma entidade organizada, que não [1:50] tem existência jurídica, e não processa ninguém por ofensa à religião, que é uma entidade e que tem uma existência? Por quê? Porque se supõe que se a religião é uma entidade organizada, ela é que deveria reagir. O Ministério Público não vai assumir a defesa de quem pode se defender a si mesmo. Então, quantas vezes, nos últimos anos, vocês não viram ofensas brutais à religião? Milhares e milhares, e isso nunca dá um processo. Por quê? Porque as pessoas que representam a religião, elas estão intimidadas. Intimidadas pelo quê? O que aconteceria a elas de mal se elas processassem quem ofendeu sua religião? Não aconteceria absolutamente nada, o máximo que poderia acontecer é elas ganharem uma indenização do outro. Ou seja, não há risco nenhum. Mas há um temor psicológico profundo que já foi introjetado. É o medo que as pessoas têm de estar fora do círculo daquilo que é considerado decente e admissível. Curioso é que embora a maioria da população seja ainda religiosa, o religioso teme que, se ele reagir em defesa de sua religião, ele vai estar deslocado do meio. Por que uma minoria tão pequena de repente aparece na consciência da maioria como se fosse ela a maioria? Isto é a mágica da engenharia social.

E, da engenharia social faz parte uma regra fundamental: não se trata de lançar uma discussão; trata-se de impor uma mudança de comportamento do dia para a noite. E todos os trouxas caem nisso. A sociedade é constituída eminentemente de trouxas. Agora, nós que somos estudiosos, nós que queremos ter consciência do ambiente histórico-social em que estamos, para poder inclusive atuar criticamente nele e restaurar o mínimo de sanidade, nós não temos o direito de cair nisso! Nós temos de saber que a minoria é a minoria, e temos de saber que um blefe é um blefe e o blefe talvez seja um instrumento mais poderoso da engenharia social. Porque do dia para a noite ele leva as pessoas a acreditarem que todo o mundo pensa assim ou assado, quando na verdade todo o mundo continua pensando o contrário daquilo.

Sobretudo na hora em que estamos conscientes de toda essa questão da imortalidade, e embora saibamos muito pouco a respeito da imortalidade, nós sabemos que somente ela dá a verdadeira escala da existência humana, e que isso não é uma matéria de crença de maneira alguma. Se existe algo que pode ser dito um fato é este fato da pervivência da consciência após a morte do corpo. Nós que estamos conscientes disso, nós nunca podemos consentir que a nossa mente, que a nossa inteligência seja presa dentro desta redoma do pensamento terrestre realizado. Nós temos de quebrar isso o tempo todo. Mais ainda, a simples descoberta da imortalidade é suficiente para libertar a pessoa de 90% desses medos, temores e preconceitos. Porque tudo isso de repente fica tão pequeno! Eu creio que a maior ameaça às forças que hoje dominam as consciências na base da engenharia social e dos agentes de transformação é a consciência de imortalidade. Eu acredito que esta é a verdade mais subversiva do mundo. Por isso, eu tenho insistido tanto em associar uma coisa com a outra. Esses fenômenos de história social e cultural que a gente analisa têm de ser vistos na escala da imortalidade; caso contrário, cairemos no mesmo truque de se aprisionar dentro de uma escala onde a mentira passa a ser verdade, e a verdade passa a ser mentira.

[intervalo]

Eu quero primeiro retificar o que eu disse sobre a conferência do Ângelo Monteiro. Ninguém precisa estar em Curitiba para assistir: dá para assistir pela internet, mas é necessário que se inscrevam antes. Eu acho que pouca gente está sabendo disso. Eu mesmo soube agora. Eu anunciei várias vezes as conferências pelo True Outspeak, mas nunca avisei sobre esta possibilidade de assistir pela internet. Então, as pessoas que estão fora de Curitiba, naturalmente elas estão achando que estão fora do páreo, mas não estão. Vocês podem assistir ao vivo e em tempo real pela internet, mas precisam se inscrever. Por favor, aqueles que estão fora de Curitiba, inscrevam-se.

Eu também queria dar o aviso do falecimento de um colega nosso, Carlos Correia. O André me manda esta mensagem:

Aluno: Ao chegar ontem de viagem, recebi a triste notícia do falecimento do meu grande amigo Carlos Correia, integrante do grupo de estudos sobre assuntos estratégicos. Conheci o Carlos em 1996 no Rio de Janeiro, quanto tivemos a oportunidade de trabalhar juntos. Nesses quase quinze anos de amizade, Carlos se mostrou uma daquelas poucas pessoas insubstituíveis que conhecemos ao longo de nossas vidas. De fortes convicções e valores morais, Carlos nunca procurou os atalhos, sempre trilhou os caminhos pelos quais ele acreditava de forma exemplar. Foi o Carlos que me abriu os olhos, assim como os de outros amigos para a forma como a nossa sociedade estava sendo manipulada e corroída em seus mais importantes valores morais de forma deliberada pelos agentes da esquerda ao longo dos últimos anos. Foi ele quem me indicou as notas do True Outspeak assim como insistiu para eu ingressasse no Seminário de Filosofia. Tínhamos planos conjuntos de estudo que lamentavelmente foram interrompidos. Carlos foi um grande admirador do professor Olavo de Carvalho. Seguramente as leituras e aulas do Seminário ofereceram enorme conforto ao longo de seus últimos anos. Sem dúvida nenhuma, posso afirmar que Carlos foi uma das pessoas mais íntegras que já conheci. Nos nossos almoços quase semanais, tínhamos oportunidade de debater diversos temas que a maioria das pessoas simplesmente ignora seja por terem uma visão egoísta de curto prazo seja por ignorância mesma. Carlos saiu para caminhar no domingo e perto de sua casa foi vítima de um infarto fulminante aos 38 anos de idade. Deixou sua esposa Márcia e uma legião de amigos fiéis inconformados. Tenho certeza que neste momento está descansando na paz eterna junto a Deus e aos justos.

Olavo: Então, não fiquem inconformados. Vocês orem pela alma dele, porque seguramente ele também está orando pela nossa neste momento. Como já ficou muito tarde, hoje eu vou me esquivar de responder a várias perguntas. Só queria dar aqui mais alguns avisos que me foram enviados. Por exemplo, o Jayme Neto informa:

Aluno: Na Biblioteca da Universidade Federal de Juiz de Fora, há um exemplar em espanhol do Tratado de Psicologia Geral de Maurice Pradines. Num primeiro momento, enviarei a cópia disso para quem pedir. No entanto, devido à grande demanda que deve ocorrer, pensei melhor em disponibilizar em pdf.

Perfeito.

Aluno: Para isso peço que o senhor avise que o pdf ainda não está pronto e quando estiver divulgarei no site do Seminário.

Olavo: Muito obrigado, Jayme. Este é um livro absolutamente indispensável, um dos grandes livros de psicologia do século XX. Aqui também há outro aviso do Adriano Leite:

Aluno: Quem não conseguiu comprar a coleção História da Literatura Ocidental do Carpeaux por R$ 200,00 no site do Senado Federal terá nova chance, pois o site acaba de abrir para compras com número limitado de exemplares.

Olavo: Também o Adriano pergunta se os livros do Junito Brandão são uma fonte confiável sobre mitologia greco-romana. São uma fonte confiável, independente das interpretações que ele faça, mas em geral o pessoal gosta. Mais usada ainda é o livro do Thomas Bulfinch, Mitologia Geral, que também é uma fonte confiável. Eu acho que não há problema com as interpretações freudianas e junguianas que o Junito faz. Esqueça. Pegue apenas os relatos e interprete à sua maneira. Vou responder mais uma pergunta do próprio Adriano Leite.

Aluno: Baseado na aula de hoje sobre a inclinação do centro próprio de autoridade intelectual e racional para uma entidade exterior, queria dizer: penso que para podermos ouvir o senhor, temos de acreditar antes de saber, ou não ocorrerá o aprendizado, certo?

Olavo: Não, errado. Você tem de acreditar na minha integridade e honestidade, porque senão, não precisa me ouvir. Você não tem de acreditar previamente no conteúdo do quer que eu vá dizer. Senão, não haveria nenhuma possibilidade de desenvolver o seu esforço racional próprio. Na verdade, toda relação educativa, seja de professor para aluno, seja de pai para filho é no sentido de dar os elementos para que você prossiga independentemente. [2:00] Nenhum pai cria o filho no sentido de mantê-lo amarrado à sua autoridade pelo resto dos dias. Isso aí seria uma monstruosidade. O coeficiente de obediência no começo é baseado apenas na confiança pessoal, mas gradativamente isso tem de ser convertido em razões e convicção pessoal. Eu creio que tudo o que eu expliquei aqui até agora, eu jamais apelei à fé de quem quer que fosse, nem mesmo à fé religiosa, quanto mais à fé na minha pessoa, a qual me falha constantemente. Toda vez que eu acredito em mim, eu acabo me dando mal. Não tem de acreditar em mim, você tem de buscar a verdade.

Agora, a confiabilidade moral é outra coisa. Se o sujeito está achando que o professor é um vigarista, batedor de carteira, então não se inscreva no curso dele. Mas se você acha que o sujeito é honesto, nem por isso tudo o que o professor disser será absolutamente verdadeiro. Não: em primeiro lugar, existem as gradações de credibilidade das que eu mesmo acabei de falar. Eu sempre procuro expor qual é a gradação de credibilidade do que eu estou falando e diferenciar. Às vezes, nós podemos falar uma obviedade universal; às vezes, podemos falar uma simples verdade científica razoável; às vezes, podemos dar uma mera opinião e às vezes podemos especular imaginativamente. Todo mundo pode fazer isso. A verdade é que eu estou ensinando vocês a transitar entre esses quatro níveis. Esta é a única pretensão que eu tenho.

Aluno: Todas as experiências similares à morte não têm a característica fundamental da mesma, a sua irreversibilidade. Todos voltaram para contar as suas experiências. O que garante que esse estado de consciência seja estável e durável quando a morte de fato se estabelecer?

Olavo: Nada garante. Eu tirei as minhas conclusões apenas da existência deste estado, senão eu teria dito que existem provas da imortalidade. Isto não prova a imortalidade, mas prova que a objeção materialista é totalmente inválida. Isto prova a independência entre consciência e identidade pessoal e o corpo. Isso aí nós podemos tomar como fato estabelecido e raciocinamos a partir daí. Não precisei realmente apelar à ideia da duração ilimitada da vida após a morte. Não entrei nesta cogitação. Podemos abordar isso numa outra aula. Mas, em princípio, me parece o seguinte: como toda a concepção técnico-científica é baseada na terrestrealização, ela não tem nada a dizer sobre a vida após a morte. Acontece que, pelo próprio desenvolvimento das pesquisas, ela chega até uma conclusão que estoura o seu próprio referencial inteirinho. O que ela pode fazer a partir daí? Pode varrer o fato para debaixo do tapete, reconhecê-lo em privado e silenciar sobre ele em público. Negá-lo em público não pode. Então, é mais do que justo que, não havendo na literatura científica nada que possa nos esclarecer quanto a este ponto, a gente busque outras fontes. Os escritos sacros das mensagens dos santos e profetas são material valiosíssimo.

E há o simples fato de que praticamente todas as culturas humanas acreditaram em alguma imortalidade. Se nós temos, por um lado, a prova cabal de que a consciência não depende do corpo e, por outro lado, existe uma experiência universal que fala a respeito da imortalidade, então a tese da imortalidade deixa de ser apenas uma opinião e passa a ter uma razoabilidade tão grande quanto qualquer verificação científica.

Nós estamos no campo do razoável. Não temos a prova, mas temos a razoabilidade. Agora, com relação à mera independência de consciência e corpo, temos não a razoabilidade, mas a certeza. Basta um fenômeno acontecer uma única vez para provar que sua impossibilidade é falsa. É a questão do exemplum in contrarium. Toda regra ou afirmativa que se pretenda universal que se pretenda universal é derrubada automaticamente com a exibição de um único exemplo em contrário. Mas, no caso, nós temos milhares e milhares de exemplos. Então, esta tese de que a consciência está no corpo ou é produto do corpo, isto acabou. Não é mais para ser levado em conta. Ou seja, isso não é algo que nós achamos; é algo que nós sabemos. Se esta vida se prolonga depois, não temos a menor ideia. Como é que eu poderia ter a prova da duração ilimitada de alguma coisa? A prova experimental da duração ilimitada? Só eu mesmo sendo ilimitado. Parece que aí esbarramos num limite.

O nosso conhecimento experimental esbarra num limite, mas o fim do conhecimento experimental não é o fim do conhecimento racional. Vocês não aprenderam aritmética elementar? Quando o professor disse para vocês que um mais um é igual a dois, quantos testes experimentais vocês fizeram? Nenhum. Pois estão no campo da racionalidade pura e não no campo da experiência. Então, as análises que eu fiz aqui a partir desse dado fazem parte do campo da racionalidade, isto é, são exigências lógicas intrínsecas ao próprio fato que foi colocado, e elas não dependem de verificação experimental.

Então, vamos por hoje parar por aqui. Eu tenho algumas perguntas muitas boas aqui, mas eu vou responder na próxima, está bem? Então, até a semana que vem. Muito obrigado.

Transcrição: Gabriela Marotta Vidigal, Alessandro Vieira Braga, Antonia Javiera Cabrera Muñoz.

Revisão: Leonardo da Costa Ribeiro Torres