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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 84

20 de novembro de 2010

Boa noite a todos! Sejam bem-vindos. Queria lembrar a vocês que do dia 10 a 11 de Dezembro o poeta e filósofo Ângelo Monteiro estará no Instituto Olavo de Carvalho para proferir duas conferências as 15h00.

O tema de hoje remete-nos um pouco ao livro do Dardo Scavino, quando eu expliquei o fenômeno do movimento interno, a história interna das ideias em que se observa "cada nova ideia", "cada nova doutrina", "cada novo sistema", como se fosse uma resposta ou um prolongamento do anterior, criando-se a visão de um processo dialético como se fosse uma mesma pessoa a pensar ao longo dos tempos e a levantar objeções e dificuldades a si próprio, e a tentar de algum modo completar um raciocínio que em si mesmo é impossível de se completar. Eu disse-lhes que este modelo de história da filosofia havia surgido com Hegel. Antes, praticamente não se encontra nenhuma história da filosofia que tenha uma narrativa contínua. A história da filosofia anterior limitava-se a autores particulares e descrevia o sistema de cada um, mas não havia um fio de continuidade. A partir de Hegel, este modelo evidentemente torna-se moda e hoje é quase natural, é quase espontâneo que as pessoas esperem que uma história da filosofia mostre o desenvolvimento temporal das ideias, das doutrinas correntes, como se fossem saindo umas das outras. A tentativa de relacionar este movimento interno das ideias com o panorama mais amplo das condições culturais, sociais, econômicas, etc, já é um assunto bem mais complexo. Embora hoje também se espere que um historiador da filosofia mostre qual é o panorama mais amplo do qual emergiram "as ideias", em geral as pessoas não percebem a dificuldade desta tarefa, o quão problemático pode ser a tarefa de descobrir qual é a relação precisa entre uma ideia e o panorama sócio-econômico, cultural, etc. Estabelecer esta relação com uma única ideia é impossível; no entanto, em qualquer cursinho de filosofia no ginásio, o professor fará isso. Ou seja, apresenta ideias e o panorama sócio-cultural do qual elas emergiram. Imaginem a relação entre o cogito cartesiano e a economia mercantilista da época. Pode-se somente fazer uma relação analógica, muito longínqua e forçada. Eu pessoalmente acho que é quase impossível de relacioná-los. De qualquer modo, a curiosidade é legítima e a pergunta permanece. Qual é a relação entre esta e aquela ideia filosófica e o panorama cultural do tempo? Esta ligação estabelece-se através de uma série de mediações, em que quanto mais se afasta do campo preciso das ideias filosóficas para abranger outras dimensões, as ligações ficam cada vez mais sutis, mais problemáticas e mais ambíguas. Em suma, esta expectativa de que uma história da filosofia ou um curso de história da filosofia deva apresentar as relações entre a evolução das ideias e a evolução histórica, embora seja quase um lugar comum, é uma expectativa totalmente utópica. Quando as pessoas propõem-se -- como se fosse uma obviedade -- a apresentar um panorama da evolução das ideias e relacioná-las com o panorama histórico, é sinal de que elas nunca tentaram fazer isto pessoalmente. Elas se baseiam em algum material que encontraram em livros e simplesmente o repassam. Eu creio que não há um único caso em que se possa mostrar a relação óbvia e indiscutível entre uma ideia que um filósofo pensou e o seu panorama histórico. Experimentem fazer isto com vocês mesmos. Imagine uma crença ou uma ideia e diga para si qual é a relação dela com o panorama social em torno. Se você não consegue fazer isso consigo mesmo, menos ainda quanto aos outros. No entanto essas figuras de linguagem propagam-se de tal maneira que acabamos por crer que são exigências óbvias e elas nos parecem óbvias precisamente porque jamais tentamos realizá-las. Na primeira tentativa você veria como é difícil, problemática, e em última análise, impossível. Nós poderíamos questionar as origens desta ideia de Hegel, de um processo histórico que se manifesta sobretudo no reino das ideias, ou seja, de que há em cima um fio, uma continuidade das ideias, e embaixo, outras linhas de continuidade cultural, religiosa, política, etc.. Qual é a sua origem remota? Como a ideia de um processo histórico surgiu na mente humana? Nós estamos tão acostumados com isto, inclusive com a expressão "processo histórico" que aparece com frequência em nossa linguagem, que nos parece uma coisa óbvia e não problemática. No entanto, se recuarmos um pouco no tempo histórico, dois mil anos -- que na escala total é só um pouco -- veremos que quase a totalidade dos povos não teve a menor ideia de processo histórico. Absolutamente! Das civilizações antigas, a única que apresenta algum registro histórico dos quais se consegue obter uma narrativa contínua é a civilização chinesa. Nos palácios chineses, a classe real mantinha um cronologista incumbido de anotar os fatos importantes relacionados aos reis, acrescentando outros dados, como o estado da economia, da sociedade, etc. Então há ali registros suficientes. Mas não há registros desta natureza em nenhuma outra civilização, ou seja, a China é uma exceção. Nas outras civilizações encontra-se registros muito fragmentários ou então apenas a cronologia dos reis: o fulano reinou por tal tempo, foi sucedido por beltrano, etc.. Não há nada além disso. Quer dizer que a própria preocupação histórica é uma coisa muito tardia na história humana. Como estas civilizações antigas consideravam-se o centro do mundo, ou a única parte interessante do mundo, e o resto aparecia como um círculo caótico em torno, as civilizações antigas não poderiam ter uma ideia de uma história universal, pois para elas o universo era apenas a sua própria civilização e o resto em volta era caos. Eric Voegelin dá o exemplo da civilização mongol, que considerava que existia apenas o império mongol, e todas as demais regiões do mundo ou eram regiões que ainda não haviam sido ocupadas ou eram regiões que se consideravam em estado de rebelião. Quem não estivesse submetido ao Império mongol ou era um bárbaro ou era um rebelde. Não havia outros impérios, não havia outros estados que fossem reconhecidos como legítimos. O mundo é o império mongol e em volta deste mundo existe o que? O caos, as trevas exteriores. Praticamente todas as civilizações antigas tinham alguma ideia desse tipo. Como poderiam ter se elevado à ideia de uma história universal? A história é a história daquele império e ponto final. Quem não entrou na história é apenas uma sombra em volta daquela zona iluminada. Quando se lê, por exemplo, a Bíblia, vê-se ali a história de Israel. A história de Israel é uma história significativa, quer dizer, é um povo que tem uma relação direta com Deus, e isto é a coisa mais importante que está acontecendo. [00:10] E o resto? E a história do Império romano? E a história da Babilônia? Só entra como um cenário longínquo dentro do qual está se desenvolvendo a história de Israel. Então a história de Israel passa a ser para os judeus a história da humanidade. Mas quando se vê o tamanho do povo judeu e o tamanho dos impérios onde se desenrolaram a história deles, vê-se que é uma coisa completamente desproporcional. Para nós também, a história de Israel tem uma importância grande por ser o início da história do cristianismo e pelo fato de a civilização cristã ter alcançado uma expansão mais universal. Mas é a ideia da continuidade de uma história, da história exclusiva de um povo, que se torna então a única narrativa que interessa, e o resto tudo se desfaz em sombras, como se fosse a sombra dos personagens que estão se movendo. Os personagens da história bíblica se movem, Abrão, Moisés, etc., tendo em volta o Faraó e outras pessoas que aparecem apenas como coadjuvantes da história, como personagens secundários. Já na Bíblia aparece uma certa ideia de continuidade e de coerência interna da história. Os profetas judeus contam a história do seu povo como se fosse um contínuo diálogo e um confronto com Deus, em que às vezes eles aceitam as instruções divinas e as seguem, e outras vezes eles se esquecem, eles se rebelam, e sofrem as consequências. Assim obtém-se uma chave da história judaica. Esta chave o que é? É o mandamento divino. Ele é o padrão pelo qual pode-se explicar o que aconteceu. A história de Israel é um constante sobe-e-desce, com momentos de triunfo e momentos de miséria, desgraça, sofrimento, num contraste às vezes extremo. Mas este contraste não é fortuito, existe um princípio explicativo. É a própria ordem divina. Tudo o que acontece, a totalidade do real, está submetida ao mandamento divino e a conformidade com o mandamento divino ou o afastamento dele traz consequências que configuram o conteúdo da história. É neste momento somente que se tem a ideia de uma chave histórica. Mas note bem, não é a chave da história universal, é a chave apenas da história do povo de Israel. E os outros povos? É como se os outros povos não tivessem história, eles entram apenas como capítulos da história de Israel. Quando aparece o faraó, o leitor não sabe de onde ele saiu. A história toda do império egípcio que resultou no reinado daquele faraó não interessa absolutamente. Não interessa de onde saiu o faraó. Nós não sabemos também se a história do império egípcio estava submetida à mesma regra formadora da história de Israel. Se estivesse, nós deveríamos dizer que era uma espécie de regra inconsciente, porque os egípcios não tinham recebido a mensagem divina e não sabiam qual era a chave da sua própria história (isto ocorre quando observamos os egípicios desde o ponto de vista de um profeta judaico). Ou seja, nós judeus, nós sabemos a chave e a coerência interna da nossa história, que é dada pelo mandamento divino. Os outros também estão submetidos ao mandamento divino, mas eles não têm consciência disso. Então a história deles não faz sentido e, não fazendo sentido, não pode ser contada. É como se somente os judeus tivessem uma história durante este período. Somente os judeus tinham uma história porque somente eles tinham uma consciência histórica e a tinham graças à ideia de um princípio orientador do fio da meada, que era justamente a ideia da revelação divina. Ou seja, Deus baixou os Dez Mandamentos, e de acordo com o comportamento do povo seguiam-se as consequências que são compreensíveis somente à luz do princípio estruturador do conjunto. Pergunto eu: como esta ideia que aparece apenas dentro da esfera judaica universaliza-se? Como surge a ideia de que a história da humanidade inteira pode ter um fio da meada? Esta ideia só surge, evidentemente, com o cristianismo. Com a revelação cristã estabelece-se o seguinte: o princípio estruturante que dá o fio da meada não foi anunciado somente a um povo em particular, mas urbe et orbi (para cidade e para o mundo), ou seja, a mensagem cristã é para todos. Então, em princípio, tendo ou não consciência, os demais povos também estão submetidos à mesma regra, e portanto a sua história deve ter uma coerência por trás de todas as modificações, de todos os percalços, exatamente como a história dos cristãos. Este fio da meada no caso cristão deve aparecer de uma maneira bastante evidente. Por exemplo, quando os cristãos perderam a primeira cruzada, São Bernardo disse que a derrota era um escândalo tão grande, que a sentença que Deus baixou sobre eles era tão incompreensível, que o simples fato de uma pessoa não se escandalizar bastaria para fazer dela um santo. O que ele quer dizer? Que a história tem um sentido e que naquele momento o sentido apareceu obscurecido por um fenômeno estranho. Teoricamente os cristãos deveriam vencer a primeira cruzada porque eles estavam obedecendo a voz de Deus. Se apesar de obedecerem eles foram derrotados é porque Deus tem algum motivo secreto, e isto escapa da nossa compreensão. Mas isto não desmente a existência de um fio da meada e de uma racionalidade da história. É a racionalidade divina e nós não estamos conseguindo captá-la neste momento. E quanto à história dos outros povos? Eles também estavam sendo regidos pelo mesmo princípio, mas de uma maneira inconsciente. Outros povos, sem terem recebido a mensagem cristã, podiam se aproximar dela, ou se afastar dela, sem nem mesmo saber que ela existia. Existe aquela expressão anima naturaliter christiana -- uma alma que é naturalmente cristã. Esta expressão, salvo engano meu, Santo Agostinho aplicou a Platão. Ele certamente não conhecia a revelação cristã porque esta ocorre quatrocentos anos depois. Mas naturalmente ele tendia naquela direção. Este princípio pode ser aplicado à história de vários povos. Os povos não tinham recebido a mensagem cristã, mas podiam estar agindo de uma maneira que fosse pelo menos parcialmente harmônica com ela, ou que fosse parcialmente antagônica com ela, e isto seria então a chave explicadora do seu destino. É daí que surge a ideia de que toda a história humana pode ser remetida a um conjunto de princípios explicativos, evidentemente numa perspectiva escatológica. Escathon não é aquilo que se refere ao fim do mundo, refere-se às últimas coisas que vão acontecer. Sem as últimas coisas não é possível ter a ideia de um percurso racionalmente compreensível da história. Se a história está em aberto, se nós não sabemos onde ela vai terminar, nem quando ela vai terminar, então evidentemente o percurso histórico não chega a adquirir uma forma. Se está em aberto, ele não tem forma. Ignorando se a história vai continuar por mais dez anos, ou por mais dez bilhões de anos, por mais dez trilhões de anos, é absolutamente impossível de se traçar uma figura do percurso histórico. O processo histórico é impensável nessas condições. Existe apenas a história, ou seja, a sucessão dos acontecimentos, ou mais ainda, uma coexistência de linhas de sucessão, umas articuladas com as outras, outras totalmente desarticuladas e separadas. Há o acontecer apenas, em toda a sua variedade inabarcável, irredutível a uma figura racionalmente compreensível. [00:20] É a ideia do escathon, do fim do mundo, que permite pela primeira vez conceber a história do mundo como um percurso identificável. Mais ainda, a forma desse percurso não podia ser alterada pela duração do processo. Não importa se o apocalipse virá amanhã ou daqui dez bilhões de anos, pois nós já sabemos o que será o apocalipse. Nós sabemos que no apocalipse o tempo é absorvido dentro da eternidade e tudo aquilo que aconteceu em sucessão aparece de maneira simultânea como se fosse num quadro. Todas as relações de causa e efeito que o tempo e o esquecimento encobriram aparecem novamente de maneira clara. Façamos uma imagem disso no plano individual, das ações que desencadearam consequências sobre a nossa vida ou sobre a vida de terceiros. Façamos a seguinte pergunta: em que as minhas ações desencadearam consequências na vida de outras pessoas? Vê-se logo que isto é inabarcável. Mesmo que uma pessoa aborde-me e diga-me que falei algo que foi lhe decisivo, e que lhe mudou a vida, eu talvez nem me lembre de ter mencionado aquilo. Seja no sentido bom ou no mal, a coisa desencadeou consequências que escapam totalmente da minha percepção. O esquecimento vai apagando a unidade da sua história. Quando o tempo é reabsorvido na eternidade, todas estas conexões que o tempo e o esquecimento apagaram aparecem de novo, já que da eternidade nada se perde. Tudo o que sucede no tempo, por mais fugaz e transitório que seja, tudo o que acontece, não desacontece. Ou seja, o acontecimento não pode ser reabsorvido no nada. Não pode voltar a ser um nada. Desde que a coisa entrou na esfera do ser, ela está ali eternamente. Ela não aparece porque o tempo é uma contínua destruição de si mesmo. O tempo vai passando e apagando a si mesmo. Mas na esfera da eternidade tudo aquilo está lá gravado para sempre. Eis o que é o apocalipse. Ocorre quando o tempo terrestre acaba e o conjunto das conexões, das causas e consequências aparece tudo de uma vez e torna-se visível para todos os seres humanos. Se a figura do fim dos tempos é esta, pouco importa se a história dure um pouco mais ou um pouco menos, pois a duração total da história é um nada em face da eternidade. Pouco importa se a história dure mais dez anos, mais vinte anos, mais cem anos ou cem trilhões de anos. Somando tudo isto, é um nada em face da eternidade e tanto faz se na eternidade estejam gravadas as conexões de dez mil anos ou de dez milhões de anos. A diferença é relativamente pouca quando se compara o finito com o infinito. Dentro desta ideia de uma passagem do tempo para a eternidade, a concepção de um percurso histórico torna-se pensável, pouco importando a duração do percurso. Aconteça o que acontecer, vai terminar assim, o tempo cessará e tudo se transporá para a eternidade, e tudo o que estava oculto aparecerá, tudo o que foi esquecido será relembrado. Tudo o que era incompreensível se tornará compreensível, tudo aquilo que foi perdido estará reconquistado. Note bem que isso aí permitia formar uma ideia da história humana como unidade, sem prejulgar qual é o curso exato que as coisas vão tomar aqui. O fato de saber como tudo vai terminar não significa que se vai chegar neste término. Esta concepção que aparece com a revelação cristã torna pensável a figura do processo histórico apenas como um símbolo. Não como um conceito científico. Há a ideia de que a história é um processo fechado, pouco importando a imensidão humanamente inabarcável dos fatos que a compõem, de que ela tem uma forma e um fecho, por assim dizer. Pode-se pensar mais ou menos como uma assíntota, ou seja, uma curva que vai se aproximando de uma reta, mas quanto mais se aproxima, vira um pouco mais e nunca se sabe quando se emenda ou se vai emendar um dia. Quanto mais perto chega, mais se desvia. Esta figura hiperbólica da totalidade do processo histórico, tal como aparece no pensamento cristão, e que surge de maneira muito consciente, é apenas uma imagem ou um símbolo. Ou seja, nós conseguimos conceber a história humana como uma totalidade fechada, e que tem uma forma, mas nós não sabemos precisamente qual é essa forma, e jamais saberemos. Sabemos como vai terminar, mas não sabemos o que vai acontecer. O próprio Cristo, quando lhe perguntam quando virá o fim do mundo, diz: "Isso só Deus Pai sabe". Veja, Ele está dizendo: "Eu não sei". Nós sabemos que Jesus Cristo é o logos, é a inteligência divina. E Deus Pai é o poder divino, a vontade divina. Isto significa que o fim do mundo é uma livre decisão da vontade divina e não algo que possa ser racionalmente justificado. Não é uma imposição da inteligência divina, mas é um ato livre da vontade divina. É isto que Cristo quer dizer quando ele diz "Só Deus Pai sabe". É um ato da vontade divina e não da inteligência divina, do logos, que é ele mesmo. O fim do mundo depende da liberdade divina, da liberdade que Deus tem de escolher. É o mesmo que dizer que isso não é racionalmente compreensível. Não um fundamento lógico que possa ser exposto, pois se houvesse um fundamento lógico, dele poderia se deduzir mais ou menos a duração dos tempos e assinalar aproximadamente o fim. Sem contar o fato de que esse fim é precedido de muitos outros fins que o simbolizam. Por exemplo, o fim de uma civilização, a morte de uma pessoa, etc. simbolizam o fim do mundo. Este fim do mundo tem vários significados analógicos que se empilham uns em cima dos outros sem um limite previsível.

Eu estou dizendo que com o cristianismo torna-se pela primeira vez acessível ao ser humano a ideia muito vaga de um percurso total da humanidade. Mas este percurso só torna-se total e adquire uma forma porque tem um fim. Isso não quer dizer de maneira alguma que no seu conteúdo, nos vários processos que o compõem, o percurso e o processo histórico humano tenham uma unidade substantiva. A tentativa de recompor esta unidade do ponto de vista substantivo, quer dizer, quantitativo, fracassa. Existem inúmeras linhas de desenvolvimento histórico que não tem nada a ver umas com as outras, e que se desenrolaram de maneira totalmente independente sem que se tivesse a notícia de como as outras desenrolaram-se. O conjunto tem uma unidade e um término porque esta história desenrola-se em um lugar determinado que é o planeta Terra, e porque tem um término. O que nós podemos apreender da forma total do percurso humano é apenas isso. Substantivamente qual é essa forma? [00:30] Como se desenrolou esse processo histórico e quais são as "leis" que o determinam? Isto não é possível de se saber, isso é absolutamente inacessível. Porém, quando a partir do século XVI ou XVII, o domínio que o cristianismo exercia sobre a imaginação das pessoas na Europa vai se dissolvendo, na mesma medida a ideia do processo histórico vai perdendo a sua referência à infinitude e à eternidade e vai se tornando uma ideia substantiva e materializada. Começa-se a entender o processo histórico como algo cuja forma e cuja figura pode ser conhecida materialmente, por assim dizer. Ou seja, nós podemos recompor todos os processos causais na sua interconexão, e chegar a apreender a figura substantiva do processo histórico. Esta noção de processo histórico surge de uma transposição de uma ideia ou de um símbolo escatológico para o plano da realidade histórica material e concreta. É como se fosse uma figura de linguagem mal interpretada. Quando nós chegamos em Hegel, vemos claramente que ele tem a ideia de que ele pode, não só ele como outras pessoas também, dominar materialmente a figura inteira do processo histórico e explicá-lo. Note que na concepção bíblica, o que conferia o fechamento da figura do processo histórico era somente o seu término, o fato de que vai terminar. Nós sabemos que não é infinito porque termina, e se termina, então tem uma forma. Mas esta forma, considerada em si mesma é tão complexa e tão inabarcável que nós jamais conseguiríamos conhecê-la. Jamais poderemos explicar tudo o que aconteceu e remeter todos os fatos a um princípio explicativo. Se só Deus sabe o término do processo histórico, então só Deus sabe a forma substantiva do processo histórico. Nós sabemos apenas que existe a forma, mas não podemos conhecê-la.

Acontece que, depois de Hegel, a ideia de encontrar princípios explicativos para o processo histórico dissemina-se e torna-se quase uma obrigação. Todo pensador tem de ter uma filosofia da história e tem de tentar descobrir o fio da meada. O fio da meada pode, por exemplo, ser as constantes do processo histórico. As constantes e os padrões de mudança. As coisas mudam, mas mudam dentro de um padrão mais ou menos identificável. Apareceram inúmeras teorias explicativas a partir daí, como por exemplo, a lei dos três estados, de Comte, a teoria da luta de classes de Karl Marx e assim por diante. E apareceram tantas, que a ideia de que nós podemos ter um controle intelectual do processo histórico disseminou-se ao ponto de todo garoto de escola hoje imaginar que sabe a forma do processo histórico e para onde o mundo está indo. É claro que esta ideia é incorreta. Quando um expectativa desta natureza dissemina-se culturalmente e torna-se quase uma obrigação cultural, ninguém mais vai parar para pensar se isso é de fato exeqüivel. Claro que também sempre há reações, como a dos céticos, que negam a possibilidade deste conhecimento e enfatizam a irracionalidade e a inabarcabilidade do processo. Mas a simples existência dos céticos prova também a existência daquilo que eles estão contestando. De um lado há milhares de pessoas, milhares de cérebros tentando, uns após os outros, mostrar alguma unidade do processo histórico, e do outro lado, outros tantos milhares de cérebros negando que essa unidade exista ou que ela seja cognoscível. É claro que neste caso, a razão, substantivamente falando, está com os céticos. O processo histórico não é de fato redutível a uma forma identificável. Porém, o desejo, o impulso de buscar esta forma, esta explicação, ainda que sabendo que não é possível encontrá-la, já se tornou um dado cultural permanente. Por que? Cada indivíduo que pode tomar alguma decisão, que pode interferir de alguma maneira no curso das coisas, sente-se impelido a se orientar não apenas no quadro da situação imediata, mas no quadro que ele imagina ser o conjunto. Por exemplo, um estadista, ciente de que os atos presentes podem afetar não apenas os próximos acontecimentos, mas o curso inteiro da história, não resiste à tentação de encaixar racionalmente as suas ações ou os acontecimentos da atualidade no quadro geral do processo histórico. Mais ainda, o político, o estadista, ou o líder que tome as suas decisões sem considerar esta totalidade do processo histórico será considerado um irresponsável, pois ele não está medindo as consequências dos seus atos. Então, de certo modo, todos estão obrigados ao impossível. Todos estão obrigados a tentar compreender o significado das suas ações e o significado dos fatos presentes dentro de uma totalidade que nós sabemos ser inabarcável e incognoscível. É claro que esta é uma situação bastante desconfortável, mas a mentalidade contemporânea já se acostumou tanto a ela que sempre se espera de qualquer intelectual, formador de opinião, líder político, tenha alguma visão do processo histórico. Mesmo as pessoas mais modestas intelectualmente são de algum modo obrigados a tomar uma posição. Na última campanha eleitoral brasileira, por exemplo, as pessoas prometem transformar o Brasil em uma grande potência. O que significa a expressão "grande potência"? Significa um poder decisório, que dentro do quadro total da história vai deixar alguma marca e não vai passar como se fosse uma fumaça que se desfez no ar. Nós vamos afetar o processo histórico, não apenas o nosso processo, mas o curso inteiro da história da humanidade. Esta é a promessa. É claro que a promessa nesse caso é totalmente descabida. Mas o simples fato de que ela existe já é significativo. Também é normal que no curso das discussões políticas e culturais, os porta-vozes das distintas correntes de ideias se sintam obrigados a colocar as suas ideias e propostas à luz de uma interpretação total da história. Nos últimos dois séculos, a versão do processo histórico que se tornou a mais conhecida foi evidentemente a de Karl Marx. Mas quando vemos a pretensão totalizante do marxismo e comparamos com a estreiteza dos dados que ele leva em conta, vemos que é totalmente desproporcional. Como pode um indivíduo tentar traçar a figura total do processo histórico apenas a partir de dados sobre aquilo que ele chama de sistema de produção? Dentro da história acontecem tantos fenômenos, e alguns dos mais espetaculares tem pouco ou nada a ver com o sistema de produção. O que uma epidemia tem a ver com o sistema de produção? [00:40] Como remeter ou tentar criar um elo causal ou um princípio comum que explique ao mesmo tempo o sistema de produção feudal e a peste negra? Nós sabemos que essas duas coisas emergem de causas totalmente heterogêneas. De um lado há decisões humanas que criaram o sistema feudal e por outro lado há um dado da natureza que veio duma direção completamente diferente e interferiu no processo. Por exemplo, as grandes mudanças climáticas. Como se pode relacionar uma guerra a um sistema de produção? Mesmo que uma determinada guerra tenha começado com algum intuito econômico, é evidente que as guerras escapam do controle dos supostos interesses econômicos que as determinaram. Mesmo porque numa guerra, a chance de ganhar ou perder é sempre 50%. É claro que as decisões que geraram a guerra não são da mesma natureza daquelas tomadas em vista da realização de um objetivo econômico cognoscível. Quando decide-se, por exemplo, plantar um tomate, as chances de que o tomate venha de fato a germinar e crescer para a colheita são enormes. É claro que o plantio pode falhar, pode ocorrer uma geada, mas 98% das chances é de que o tomate realmente nasça. Mas quando ocorre uma guerra perde-se esta capacidade de previsão. Sabe-se que pode-se ganhar muito ou perder tudo. É claro que as decisões de ordem militar não obedecem ao mesmos princípios de realidade econômica. Isto é óbvio. Isto quer dizer que em princípio, nenhuma guerra pode ter sido determinada por motivos econômicos exclusivamente. Qualquer cálculo econômico que se faça, por mais tosco que seja, é mais seguro que o raciocínio de um estrategista militar. O plantio de batatas ou tomates, ou a construção de um carro não se faz contra ninguém, não há um antagonismo, não existe nenhuma força da natureza e nenhuma força histórica que se oponha ao ato de plantar batata ou construir automóveis. Mas uma guerra, por definição, só se faz porque existe o inimigo, e o plano do inimigo é contrário ao da outra parte beligerante. O simples fato de se querer explicar o processo histórico pelo sistema de produção é tão desproporcional que teria de ser rejeitada in limine. Não é possível explicar os fatos da ordem militar pelo processo de produção. O contrário é possível, pois os fatos da ordem militar têm efeitos monumentais sobre o sistema de produção. Por exemplo, hoje está claro que a classe feudal que dominou a Europa constituiu-se somente em parte da velha nobreza romana que se espalhou pelo território quando da dissolução do Império Romano. Quando da queda do Império Romano, os nobres que moravam na cidade e tinham propriedades rurais mudam-se para o campo e ali instalam um poder autônomo para poder sobreviver. Hoje nós sabemos que só uma parte ínfima dos proprietários feudais originou-se desta nobreza romana. A maioria é composta de pessoas que se destacaram no campo militar, quando das invasões bárbaras, e tendo conquistado um prestígio militar, adquiriram propriedades. Há aí um fator militar que determina a criação de uma nova classe de proprietários. São pessoas que comandaram a resistência aos invasores bárbaros, adquiriram um prestígio e foram premiados pela coletividade com terras e bens, tornando-se então proprietários feudais. Não houve uma causa econômica nisto. Foi um fato de ordem puramente militar que erige de um indivíduo um proprietário de terras. O fator militar não se explica pela propriedade da terra, mas exatamente o contrário. No entanto, quando considerado internamente, isto é, somente no universo dos dados com que Marx lidou, o marxismo parece bastante coerente. Então o marxismo impregna-se facilmente sobre a cabeça de milhões de pessoas, e mesmo aqueles que não gostam ou tenham objeções, começam a raciocinar segundo o mesmo padrão, ou seja, procurando outras explicações para o processo histórico ou pelo menos para certos capítulos desse processo histórico. Por exemplo, a obra do Max Weber tenta relacionar a ética religiosa com a economia, e estende a investigação à China, à Índia, ao Israel Antigo, etc. Em geral lê-se somente A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo e não ocorre de ver o que Weber escreveu sobre outras civilizações. É monumental. Ele estava tentando esboçar uma constante da história humana, que é a relação entre a ética religiosa e a conduta econômica. E estava tentando verificar se isso se confirmava no estudo comparado de várias civilizações. A quantidade de dados que ele reuniu é monstruosa. Ele era mais comedido e mais honesto do que Karl Marx e não chegou a enunciar uma conclusão, ficando apenas uma interrogação. Ao passo que Karl Marx afirma que o processo histórico dá-se por determinadas causas. De qualquer modo, Weber empenha-se para chegar a uma explicação universal como Karl Marx. Quando Freud explica a origem das civilizações pela repressão sexual, trata-se de uma ambição igual à de Karl Marx, ou seja, empenha-se para identificar um princípio que indique (ao menos idealmente) as causas profundas, totais e constantes por trás do processo histórico. Hoje nós sabemos o quanto estes empreendimentos são utópicos. Mas mesmo assim nós não podemos permanecer alheios a isto, porque parece-nos que toda a esperança de uma compreensão racional dos acontecimentos humanos repousa nisto. Nós só podemos compreender o que aconteceu se nós tivermos uma ideia da forma total do processo histórico e das causas, das forças fundamentais que o determinam. Dito de outro modo, compreender alguma coisa sobre o processo histórico é relacioná-la a uma interpretação de conjunto. Eu não creio que seja possível nenhuma interpretação de conjunto. A inteligibilidade de cada fato consiste na possibilidade de relacioná-la com o conjunto. Como do conjunto nós não sabemos nada além da perspectiva escatológica cristã, então das duas uma: ou dá-se uma interpretação escatológica, ou seja, relaciona-se o fato com o juízo final, e notem bem que isto não é tão difícil de se fazer, ou então tenta-se relacionar com uma visão substantiva do processo histórico. Há a visão escatológica e a visão substantiva. A visão escatológica é, por assim dizer, vazia, pois só se sabe que há um começo e haverá um fim. E neste fim as coisas adquirirão o seu verdadeiro sentido. Mas nós nada sabemos do conteúdo do processo. E a outra visão é chamada de substantiva porque tenta identificar forças positivas ou reais que estão em ação no processo histórico. [00:50] Pode-se facilmente compreender que fenômenos como o holocausto, a matança na União Soviética tem um significado no Juízo Final. Nós podemos sem muita margem de erro acreditar que o inferno está cheio destas pessoas e que dificilmente os indivíduos que contribuíram para tais matanças terão alguma explicação suficiente para apresentar diante do Trono do Altíssimo.

Então nós podemos entender que isto tem um significado escatológico relativamente acessível. Há uma encarnação manifesta do mal, do pecado, tomado no seu sentido mais extremo. O significado disto em termos escatológicos é perfeitamente pensável. Mas e em termos de uma interpretação substantiva do processo histórico? Na verdade, nós nada sabemos. Acontece que a explicação escatológica não satisfaz a maioria das pessoas. Embora ela nos forneça antecipadamente e independentemente da duração do processo uma visão suficiente do seu significado total, ela não satisfaz a mentalidade moderna. Por que? Porque a mentalidade moderna quer fazer da história um conhecimento científico. Ou seja, quer encontrar explicações causais, constantes, etc., pelas quais ela possa explicar o que acontece. Ora, considerando a totalidade do que nós sabemos da história humana, nós sabemos que as únicas constantes observadas até agora são as chamadas constantes de Huntington. Não é o Huntington autor do livro O Choque das Civilizações, mas o seu avô ou tio, Ellsworth Huntington, o geógrafo. Ele diz o seguinte: na totalidade do processo histórico, nós só notamos as seguintes constantes: (1) O crescimento da população, e o fato de a população jamais ter parado de crescer; (2) Os vários núcleos civilizacionais que se aproximam cada vez mais uns dos outros pelo simples fato do crescimento, que proporciona os contatos civilizacionais; (3) Há uma tentativa cada vez maior de organizar e de dar forma ao conjunto. Estas são as três únicas constantes que existem. Mesmo essas constantes não são tão constantes assim. A progressiva aproximação dos núcleos civilizacionais tem hiatos, e tem momentos de separação, como o próprio fim do Império Romano e a própria origem do feudalismo. Havia uma civilização integrada, organizada, onde tudo estava conectado a um centro. Com o desmantelamento do centro, os seus vários componentes espalham-se por toda a parte e não têm mais contato nenhum. Isto quer dizer que esta aproximação dos núcleos é uma constante no sentido total, mas não é uma constante linear, por assim dizer. Além disso, nós não temos mais nada. Mas no debate de ideias que se processa diante dos nossos olhos, tanto na esfera cultural, acadêmica, quanto na esfera política, as tentativas de justificar esta ou aquela política em função de uma noção do processo são muitas, e são frequentes. Recentemente eu estava lendo o livro do Malachi Martin, que se chama The Windswept House (A casa varrida pelo vento). Trata-se de um roman à clef, um romance que tem uma chave que permite ao leitor identificar pelos personagens ficcionais os correspondentes históricos reais. Um dos personagens principais aqui é o Cardeal Mastroiani, que na verdade é o Cardeal Agostino Casaroli. Eu estava lendo isto justamente no momento em que apareceu a entrevista do Mohemed Ali Agca, que cometeu o atentado contra o Papa em 1981. Na televisão turca ele declarou que quem o mandou cometer o atentado foi o Cardeal Casaroli. Eu não sei se é verdade ou não, mas pelo retrato que o Malachi Martin traça do Cardeal Casaroli, faz sentido. Eu vou ler um trecho para que vocês tenham um ideia de como foi a mudança de mentalidade nos altos círculos do Vaticano que determinou o Concílio Vaticano II e todas as modificações que ocorreram posteriormente. Vocês verão qual é a origem de tudo isto. O Cardeal Mastroiani tinha uma grande admiração pelas pessoas que eram os engenheiros, os chefes do projeto mundial. Ele mesmo não tinha se tornado um engenheiro-chefe, mas não foi por falta de desejo. "Como clérigo, como sacerdote, como arcebispo, como homem de carreira na Igreja e diplomata, ele tinha progressivamente abandonado todas as imagens e conceitos da sua fé original que vieram a criar tanta oposição entre ele e o Papa eslavo". Papa eslavo é evidentemente João Paulo II, que nunca é referido pelo nome, mas sempre como o Papa eslavo, ou como Papa. "Todas aquelas imagens do Reino de Cristo e do reino mariano, e da Igreja como corpo místico de Cristo..." O cardeal tinha abandonado progressivamente. "Para o Arcebispo Mastroiani, a força por trás das forças da história cessava de ser a mão de Cristo como Senhor da história humana. Para ele, como para Bunt Hack..." O Bunt Hack é uma espécie de capitalista, como George Soros. "...a força por trás das forças retirava-se como imagem para dentro de um misterioso desconhecido. Ela se tornava não mais coerente do que todo o inindentificável fator x por trás de todos os assuntos humanos. Toda a atividade do arcebispo emergia da sua compreensão profunda do Processo e da sua cada vez mais profunda reverência por este misterioso fator x, a força por trás das forças. Tudo para ele juntava-se e coeria-se muito bem. A única maneira lógica de servir àquela força primordial era através do Processo". Ou seja, havia uma força misteriosa por trás de tudo que colaborava no Processo, e havia então de se servir a esta força. "A ideia era de ajudar o Processo em direção ao objetivo último da força, a homogeneização cultural, política e social de todas as nações da terra".

Esse Cardeal tinha se afastado cada vez mais da noção da providência. Quer dizer, dentro da perspectiva escatológica, nós podemos entender que, ainda que nós não consigamos estabelecer relações lógicas entre todos os inumeráveis processos particulares históricos, nós sabemos que a mão de Deus está por trás de tudo. Ou seja, na mente de Deus isto faz sentido, ainda que para nós seja inacessível. Esta é a noção tradicional escatológica. Ainda que se possa procurar às vezes uma explicação racional, sabe-se que não se vai alcançá-la, e que em última análise, o que está determinando o conjunto é a vontade de Deus. A vontade de Deus às vezes abre-se para o ser humano e torna-se compreensível, mas outras vezes, não. Ou seja, nós não temos um domínio intelectual do processo, embora ele não seja totalmente opaco. Ex post-facto, depois que as coisas aconteceram, percebe-se por vezes o dedo de Deus, a intencionalidade divina. [1:00] Assim como na nossa própria vida, não podemos prever o que Deus fará, mas às vezes identificamos uma intenção de Deus por trás de um ou outro acontecimento. Já no caso deste Arcebispo, que era o Mastroiani ou o Casaroli, a força por trás das forças tornava-se ou manifestava-se através do processo histórico, e esse processo histórico adquiria forma e sentido na ideia da unificação e homogeneização planetária. É o que nós chamamos hoje de projeto globalístico. Um dos livros ou uma das contribuições fundamentais do Brasil à compreensão deste processo foi o livro do José Guilherme Merchior, que se chama justamente A Natureza do Processo. Neste livro, o autor, em discussão com marxistas que têm uma determinada visão do processo histórico, primeiro critica todas as teorias unificantes, como o marxismo, o positivismo, que pretendem ter uma explicação. Ele diz que é preciso opor a estas grandes construções teorizantes e ao estudo científico experimental, pois temos de partir da validade dos fatos e quando extraimos alguma generalização, esta generalização tem de ter uma base empírica suficiente. Mesmo assim sabemos que não vamos obter uma filosofia da história no sentido total. Não vamos compreender o sentido da história total, mas empiricamente podemos, do desenrolar dos fatos tal como nós os conhecemos, tirar algumas constantes, ainda que parciais e momentâneas. Ou seja, não há uma explicação metafísica do todo, e não há uma teoria unificante, mas há certas constantes que são empiricamente constatáveis. Ele anota algumas destas constantes. Vamos ver o que acontece então. Ele diz que "ao longo dos últimos séculos, nós observamos em escala planetária a expansão progressiva de alguns fatores que aos poucos vão se tornando dominantes". Um dos fatores -- ele diz -- é a rapidez dos meios de transporte, a mobilidade humana, que nos últimos dois ou três séculos, aumentou de uma maneira formidável e portanto ampliou as possibilidades de ação de milhões de pessoas em toda a Terra. Um segundo fator seria os progressos da biologia e da medicina, que então, diz ele, "com as primeiras revoluções na biologia, quebrou-se a maldição milenar que ceifava a vida de tantos recém-nascidos e crianças, e deixava as populações expostas às chacinas dos contágios fatais. As pestes, flagelo crônico da sociedade tradicional, impressão inelutável do castigo divino, passaram a ser encaradas como fenômenos naturais e controláveis; a peste virou epidemia". Evidentemente, diz ele, ouve um aumento enorme do conforto físico para milhões de pessoas. Ele constata que hoje qualquer família de classe média obtém mais conforto físico do que um faraó. Tudo isto é verdade, isto é, a presença constante da ciência e da técnica em todos os domínios da vida humana também introduz modificações. Ele analisa certas modificações econômicas e diz: "o que a industrialização trouxe e continua trazendo à sociedade foi uma ampliação sem precedentes do acesso à riqueza e ao status por parte de gente nascida fora de uma e do outro. No universo tradicional, o privilégio era hereditário. Somente a Igreja era uma hierarquia parcialmente aberta aos filhos das classes inferiores. Mas na sociedade moderna a posição do indivíduo não é pré-determinada. A desigualdade deixou de ser um destino". O fato de um indivíduo pertencer à classe rica ou à classe pobre, já não é mais uma questão de hereditariedade. Há a interferência de outros fatores que ampliam consideravelmente a margem de manobra. O que ele está tentando dizer é que nos últimos séculos o processo histórico total está indo no sentido da democracia liberal. Haverá uma economia de livre mercado no mundo inteiro, e esta economia de livre mercado por sua vez vai corresponder à democratização progressiva da vida social. Em suma, a democracia liberal parece ser o ponto de desembocadura de todo o processo histórico, pelo menos dentro de um prazo previsível. Ele não tenta fazer uma filosofia total da história, diz ele que está apenas tirando conclusões de certos fatos empiricamente verificáveis e tentando ver para onde estes fatos estão levando. Este mesmo empreendimento, intelectualmente tão mais modesto e comedido que ele está tentando realizar aqui, é realizável? Pode-se fazer uma única generalização, mesmo parcial, com base nisso? Vamos ver. Ele diz que o coeficiente de livre arbítrio das pessoas na produção do seu destino aumentou formidavelmente graças à democratização da economia, da política, etc. Mas há um outro fator que está completamente esquecido, e que geralmente todos os analistas influenciados de algum modo por este ideal democrático-liberal também se esquecem. É que os meios de ação da classe dominante sobre os seus dominados aumentaram numa proporção que era impensável para qualquer governantes da antiguidade, da idade média ou da renascença. Por exemplo, hoje um governante pode ter acesso às conversações privadas de qualquer cidadão. Isto seria considerado na Idade Média e na antiguidade como um poder divino. O que as pessoas estão conversando dentro da casa delas? Isso só Deus sabe. Mas hoje em dia há meios de, à distância, saber. Fixando um microfone unidirecional é possível de se gravar tudo o que as pessoas estão falando. É uma facilidade. Em segundo lugar, há o processo do qual o Miguel Reale chama jurisfação. O que é jurisfação? O sistema legal vai abrangendo dimensões cada vez maiores e mais variadas da existência social. Tudo o que não era regulamentado passa a ser regulamentado. A criação de uma nova regulamentação exige a criação de agências que vão implementar o cumprimento dessas leis. Então ocorre inevitavelmente a expansão ilimitada da burocracia estatal. Isso não depende de se ter feito uma opção socialista ou uma opção democrático-liberal. No mundo democrático-liberal, a burocracia expande da mesma maneira. Em terceiro lugar, aumentou o fator mais terrível de todos, que é o fator da secretude. No início da Idade Moderna, a vida privada, por exemplo, de um governante como o Luis XIV, era totalmente transparente. [1:10] Todos sabiam quem eram as amantes de Luis XIV, onde ele tinha passado a noite, e assim por diante. E as fofocas a respeito podiam se propagar por toda a sociedade. Não havia muitos meios de ocultação. Por outro lado, as atividades secretas do Estado eram de escala muito pequena. Os Estados Unidos somente tiveram um serviço secreto para atuar em tempo de paz depois da Segunda Guerra. Antigamente só havia o serviço secreto militar, que só entrava em ação em tempos de guerra. Luís XIV tinha os seus espiões, é claro, mas a atividade de espionagem era centrada no campo militar e só entrava em ação quando havia algum risco de guerra. No século XX, a expansão dos serviços secretos foi tal que em algumas sociedades como a União Soviética, o serviço secreto chegou a ser o coração de toda a administração. A KGB, por exemplo, fazia atividade de espionagem? Não. A KGB controlava a atividade bancária, a educação, o movimento editorial, o que se fazia nos consultórios psiquiátricos, etc. Emerge pela primeira vez na história o governo secreto. O governo que sabe tudo e onde o cidadão não pode saber de nada. A quantidade de informações que foi armazenada na KGB pode ser avaliada por um dado que nos é fornecido pelo Mitrokin, que era um funcionário da KGB encarregado de fiscalizar a mudança da sede da KGB para um novo prédio. Ele tinha de examinar as pastas, os dossiês que eram transportados de um arquivo para outro. Graças à complexidade e ao tamanho dos arquivos, a mudança levou doze anos, e passaram pelas mãos dele oito bilhões de dossiês. Uma massa de informações como essa é inacessível a qualquer ser humano individual. Somente governos podem ter. Isso então coloca na mão desses governos poderes que, para qualquer governante da humanidade anterior, são absolutamente inimagináveis. Isso quer dizer também que estes governos podem empreender ações que permanecem totalmente desconhecidas a toda população. E não são ações militares ou ações no tempo de guerra. É planejamento social, engenharia social, etc. Um governo pode planejar uma modificação de comportamento que vai abranger todos os membros da sociedade sem exceção, sem que nenhum deles saiba que esta ação está sendo empreendida no momento. De modo que, na medida que as coisas vão modificando, as pessoas aceitam estas modificações de comportamento como se fossem coisa naturais, ou como se fosse a vontade dos céus, sendo que por trás há uma ação humana muito bem planejada e racionalmente executada. Esta possibilidade nunca existiu. Dizer que a posição do indivíduo não é pré-determinada e que a desigualdade deixou de ser um destino é uma inversão inexata da realidade. O aumento da importância e o volume do elemento secreto no governo e na sociedade simplesmente não fazem parte do repertório dos assuntos acadêmicos discutidos pelos esquerdistas ou pelos liberais democratas. Isso se tornou de certo modo um tabu. E foi feito para ser um tabu, pois estas entidades incumbidas de administrar toda a sociedade por meio de operações discretas ou secretas têm uma influência tremenda nas universidades. Então, quer dizer, eles delimitam o que se pode discutir ali e simplesmente ninguém se lembra de fazer as perguntas contrárias. Curiosamente lendo nosso amigo José Guilherme Merchior, eu noto o seguinte: ele leu muito, estava muito bem informado sobre todos os autores. Mas ele só lia autores que tinham prestígio acadêmico, ou seja, um prestígio acadêmico já formado, isto é, importante. Um prestígio acadêmico leva trinta, quarenta anos para se formar. O sujeito pode ter publicado um livro genial ontem, só que ninguém na academia sabe. Daqui cinqüenta anos ele vai ter um tremendo prestígio acadêmico, mas hoje não tem. Eu li muita coisa do José Guilherme Merchior, e eu vi que ele nunca cita autores que fizeram uma descoberta genial, mas são desconhecidos. Ele só comenta autores que já têm um prestígio acadêmico consolidado. Isto dá a ele um senso de segurança, porque ele está sempre falando de algo que será confirmado pelo consenso dos seus pares. Eu estava comentando um famoso debate entre ele e o embaixador Mário Vieira de Melo, no qual o Mário Vieira de Melo cita o Eric Voegelin. Eric Voegelin na época era um obscuro professor da Universidade de Louisiana -- uma universidade que está fora do circuito do Evy League ou das grandes universidades -- e que tinha publicado Ordem e História, a obra mais original de filosofia de história dos últimos cem anos. Só que Voegelin ainda não era conhecido no meio acadêmico. E o Merchior reclama ao Mário Viera de Melo por ter citado um autor menor.

Claro que Eric Voegelin não era um autor menor. Provavelmente era o maior de todos, mas não tinha ainda o prestígio acadêmico. Hoje tem, mas na época não tinha. A confiança que o José Guilherme, como outros intelectuais, depositam no prestígio acadêmico, considerando este como um seletor qualificado do que é importante e do que não é, leva-o a ignorar continentes inteiros do assunto que ele está estudando. Quando se discute as mudanças fundamentais do século XX ou a modificação na vida das pessoas neste século, lembra-se da ciência, da técnica, da indústria, mas não do fator secretude. Que é a maior diferença entre o século XX e tudo o que aconteceu antes? Observe o fenômeno do tamanho da KGB, a maior organização de qualquer tipo que já existiu, com quinhentos mil funcionários só dentro da Rússia e mais cinco milhões de colaboradores pelo mundo, no mínimo. Não houve nenhuma organização deste tamanho no mundo. Tudo aquilo que acontece pela primeira vez e que não há termos de comparação com o que aconteceu antes é uma diferença específica de uma determinada época. Além disso, a expansão das atividades deste serviço secreto, vai para muito além, infinitamente além, daquilo que se considera espionagem. Para o cidadão comum, desinformado, a KGB é espionagem tipo James Bond, mas espionagem é 1% das atividades de uma entidade destas. Não é possível de se explicar nada do movimento das ideias na Europa sem o recurso à KGB, pois praticamente todos os movimentos culturais sempre tiveram a KGB por trás. Hoje temos acesso a estes fatos, os congressos culturais, editoras, publicações, universidades, rodas culturais que vieram por exigência e foram financiados pela KGB. Nós imaginamos a história e o movimento das ideias entre os grandes intelectuais como sendo uma conversa criativa entre pessoas que raciocinam livremente, e não é nada disso. Como podemos entender algo da sociedade moderna sem isto aqui? Quando começamos a levar isto em conta, nós vemos que a distância entre as camadas dominantes e os dominados, mesmo nas democracias, aumentou de uma maneira que seria impensável para todos os governantes da antiguidade. [1:20] Ou seja, o homem poderoso está colocado em relação ao cidadão comum a uma distância quase divina. E o homem poderoso é inacessível, há uma nuvem de invisibilidade em torno dele. Eu me lembro, por exemplo, que numa das reuniões do grupo Bilderberg, o David Rockfeller, se dirigindo aos jornalistas presentes, agradeceu a imprensa que, por durante quarenta anos, manteve silêncio sobre as atividades do grupo. Quarenta anos! Claro que o segredo não foi perfeito. Houve muitas pessoas que escreveram livros, fizeram conferências, mas nada disso saiu na grande mídia. Livros sobre a atividade destes movimentos globalistas podem ser encontrados em centenas ou milhares. Ou seja, o segredo não foi perfeito. Nos círculos intelectuais, havia pessoas informadas do que estava acontecendo, mas não chegava até o povo. A divulgação não chegava a oferecer perigo ou incomodidade para os homens poderosos. Quantas empresas jornalísticas estavam ali representadas? Digamos umas cinquenta. E durante cinquenta anos elas têm um consenso de não tocar em certos assuntos. Eu creio que, por exemplo, a expressão Bilderberg apareceu na mídia cinco ou seis anos atrás, quando nem era mais necessário manter o segredo. Na verdade não se trata nem de segredo, trata-se apenas de um coeficiente, um controle da divulgação. A divulgação não pode passar de um certo ponto. No Brasil, houve dezesseis anos de silêncio em torno do Foro de São Paulo. A possibilidade de controlar a informação, de ligar ou desligar a luz, de controlar o visível e o invisível, nunca existiu na Antiguidade nem na Idade Média. Luis XIV não podia impedir que ninguém soubesse do que quer que fosse. Nem imaginava uma coisa destas. Átila o Uno, não podia fazer isto. E hoje não só os governantes, mas a camada inteira que compõe o establishment dos vários países tem um controle quase total do que a população pode saber ou não. Isto significa que as vidas de milhões de pessoas são decididas por fatores que permanecem não só desconhecidos, mas invisíveis e até inverossímeis. Por exemplo, toda esta mudança recente dos costumes, o feminismo, o casamento gay, etc.. Quantas pessoas sabem de onde isto apareceu? A maioria interpreta isto no sentido do Merchior, ou seja, como sendo a expansão natural da democracia. Ora, se aos fundadores da democracia moderna, os teóricos iluministas, etc., fosse dito que aconteceriam movimentos to tipo gay e que isto seria a continuidade natural da democracia, eles nem iriam entender do que se trata. Pois no século XVIII, supunha-se a democracia como uma convivência igualitária de pessoas adultas. E a pessoa adulta era aquela capaz de manter uma família. Eram os pais e mães e mais ninguém. Que a democracia de repente fosse nivelar as diferenças de idade, de modo que a opinião de uma criança de cinco anos tivesse o mesmo valor que de um homem de sessenta, era uma coisa que não podia ser imaginada. A ideia mesma de expansão da democracia aparece como um topos fundamental em todo o debate contemporâneo. Quem quer que defenda alguma proposta automaticamente justifica-a como algo que é exigido pela expansão da democracia. Não basta a democracia, é necessário expandi-la. Estão tratando a democracia como se fosse uma substância material que pode ser aumentada indefinidamente sem perder a sua homogeneidade, como uma massa de pão que se põe no forno e vai aumentando de tamanho. É claro que esta é uma concepção materializada e coisificada da democracia, e que ignora que a regra do jogo democrático é essencialmente uma proporção, uma relação. Se essa relação se rompe porque um dos fatores cresceu demais, a democracia acabou. Por exemplo, quando nós falamos em democratizar a cultura ou o ensino. Um conjunto de bens culturais que antigamente eram possuídos teoricamente por uma classe dominante ou por uma aristocracia serão agora expandidos para toda a população. Esta é a primeira ideia de expansão da cultura que temos. Porém, quem disse que a democratização da cultura consiste em distribuir para mais pessoas um conjunto de bens de elite? Aqueles indivíduos que são a primeira geração, que são beneficiados pela expansão destes bens, raciocinam o seguinte: a democracia não é consiste somente em distribuir os bens da elite. Temos também o direito de decidir o que deve ser ensinado e divulgado. Na medida em que as massas beneficiadas pela expansão da distribuição dos bens de elite começa a opinar na seleção dos bens, elas podem escolher novos bens que estão à altura dos seus interesses. Por que nós temos que distribuir discos de Johann Sebastian Bach para todo mundo? Por que nós não podemos distribuir rap, que é mais popular? Resultado: a democratização cria uma nova elitização invencível, em que os antigos bens da elite agora são acessíveis somente a uma elite, e se tornaram incompreensíveis para as massas. Este é o famoso livro do Richard Hoggart The Uses of Literacy (Os usos da alfabetização), que mostra que a expansão do ensino escolar na Inglaterra, de fato alfabetizou todo mundo, mas criou uma nova modalidade de produção cultural, uma sub-literatura com livros do tipo Sabrina, para alimentar as pessoas que agora tinham acesso à leitura. Elas têm acesso à leitura, mas o que elas vão ler? Elas vão ler a mesma coisa que a elite lia? No começo essa é a ideia, democratizar, expandir para todo mundo. Mas em seguida o processo democratizante retroage sobre si mesmo democratizando a seleção dos bens a serem democratizados e criando portanto um novo processo de elitização. Elitização que inclui o acesso à compreensão dos elementos de segredo. Quantas pessoas estão hoje habilitadas a discutir a participação desses elementos secretos na criação da cultura, na condução da vida social, etc.? É um número ínfimo de pessoas. É o mesmo que dizer que o conhecimento dos fatores reais que determinam o curso da vida nesta ou naquela sociedade tornou-se proibitivo. Não que alguém tenha baixado um decreto que proíba, mas na prática a coisa é montada de tal maneira que ninguém vai ter acesso. Muito mais razoável do que descrever o curso das coisas nos últimos séculos como um progressivo império da liberdade, da democracia, etc., é fazer como Bertrand de Jouvenel e dizer que nos últimos quatro séculos o poder governamental saiu sempre fortalecido. Isto não depende absolutamente de se ter propostas políticas que defendam o crescimento do poder de Estado. [1:30] O processo por assim dizer é automático e incoercível. Seja num país socialista, seja numa democracia liberal, o governo vai crescer e vai dominar cada vez mais porque existe a luta pelos direitos, e esta luta significa que vai haver novas legislações, e portanto vai ter de haver agências para implementar a obediência a estes direitos. O Estado cresce de qualquer maneira. No entanto, há pessoas que acreditam que promulgar novos direitos é um elemento essencial ao desenvolvimento e expansão da democracia. Quando o simples crescimento do número de direitos regulamentados em lei implica um domínio maior do Estado sobre a sociedade. O processo tal como o Merchior descreve existe de fato e está indo nessa direção. Porém ao mesmo tempo há um outro processo que está indo na direção exatamente oposta. Mesmo dentro de um período histórico limitado, digamos três séculos, como nós podemos responder à pergunta "para onde o mundo está indo"? Nós só podemos responder através de duas respostas contraditórias. Ele está indo na direção de a para b, E também está indo na direção de b para a. Ele está indo para frente, mas também está indo para trás. E mais ainda: nós também não sabemos se está indo para frente ou para trás. Por exemplo, a ideia de progresso, tudo o que representa o progresso numa certa direção, representa um retrocesso na outra. Por outro lado, o retrocesso pode ser democratizante e o progresso pode ser elitizante. Esta identificação do progresso com a democracia não faz o menor sentido.

Isto para dizer que, se nós transpormos esta ideia do "processo" para a nossa compreensão da história da filosofia, nós podemos cometer erros tão gigantescos quanto este aqui. Em suma, todo o estudo que nós fazemos da história da filosofia, da história das ideias, e sobretudo o estudo que nós fazemos neste curso, eu gostaria de oferecer como ser fosse uma oportunidade, não para as pessoas captarem a unidade do processo e terem a ilusão de que sabem para onde as coisas estão indo. Mas apenas como um estímulo para que se lembrem da complexidade inabarcável das situações humanas. Tomemos a criação de uma filosofia. Nós estudamos René Descartes, por exemplo. Como nós podemos saber qual é a origem e o processo formativo interno de uma filosofia? De onde o indivíduo tirou as suas ideias? E quantas vezes nós vemos que o processo mergulha em mudanças de estado emocional absolutamente irracionais e inexplicáveis. Os famosos três sonhos de René Descartes, que eu comentei nas outras aulas, oferecem para ele imagens de grande impacto que têm um poder estruturante sobre o restante das suas ideias. Neste sentido, o que é compreender uma filosofia? Nós podemos, por exemplo, fazer como Martial Guéroult, para quem só interessa a filosofia tal como está nos textos, e até certo ponto ignorar os elementos externos, que não estão no texto. Mas será que isso é compreender uma filosofia ou é compreender uma imagem que eu mesmo estou construindo, ou seja, eu selecionei das ideias de Descartes um certo conjunto que está legitimado por textos, e estou discutindo isto aqui como se tivesse saído do nada. Estaria discutindo como se discutisse um cálculo matemático. Posso saber se a conta está certa ou errada, independentemente de saber algo dos processos mentais, psicológicos, pelos quais se fez o cálculo. Então o cálculo tem uma autonomia em relação à mente que o produziu. Em que medida pode-se fazer o mesmo com as teorias filosóficas? Muitos filósofos gostariam que fosse assim, mas o fato é que nenhum sistema filosófico e nenhuma teoria filosófica tem esta autonomia. Não existem leis do processo filosófico similares às leis da aritmética elementar, que permitem que todos cheguem idealmente ao mesmo resultado. Algo da sondagem do elemento biográfico, psicológico, torna-se absolutamente inevitável, e frequentemente nós nos vemos em face de enigmas insolúveis. Quanto mais eu estudo René Descartes, mais eu vejo que aquilo é um enigma insolúvel. Sem contar o elemento de secretude, que começa a entrar na história moderna a partir desta época. Toda a origem da intelectualidade moderna gira em torno de uma elite que pretendia representar o advento de uma mentalidade científica, racional, etc., em "oposição" à autoridade medieval. Mas ao mesmo tempo, estas pessoas impõem a sua presença no mundo cultural através de um procedimento infinitamente mais elitista do que as autoridades anteriores poderiam jamais ter tentado usar, que é o processo do segredo. Ou seja, das nossas ideias, uma parte aparecerá em público, mas a origem e o que nós combinamos entre nós, jamais será sabido. Sobre a formação da Royal Society inglesa, que é uma organização maçônica, só agora começa a aparecer um mestre maçom francês a revelar a história. Mas mesmo assim, ele não sabe a história inteira. É um grande engano pensar que uma sociedade secreta guarda ou esconde um segredo e não o divulga a terceiros, mas os membros têm conhecimento. O mestre maçon chama-se Alain Bauer, um francês com nome alemão. Ele mostra que uma grande parte das atividades dos primeiros historiadores maçônicos foi disfarçar a história da maçonaria e inventar imaginárias, repassando-as aos próprios membros da maçonaria. Decorridos quatro séculos, um mestre maçom constata que não compreende a história da maçonaria.

Ele sabe que a maçonaria do século XVII participou de certas operações importantes, dentre as quais a criação da Royal Society. A Royal Society criou a imagem da mentalidade científica moderna e, ao mesmo tempo, todos seus participantes eram alquimistas, astrólogos, praticantes de magia, etc. Então há um conjunto de crenças absolutamente irracionais, que a própria ciência vai rejeitar, criando a imagem da ciência que a rejeita. E em cima disso, várias camadas de desinformação e disfarce são colocadas ao ponto de criar uma massa inexplicável de dados. É claro que desconhecendo a história da maçonaria moderna, é impossível de se entender a história da ciência moderna, da mentalidade moderna, etc. Mas e se dentro da própria maçonaria os seus próprios historiadores estão mentindo uns para os outros? A história das luzes --- de repente nós escapamos das trevas da antiguidade e tudo se fez luz ---, como se chegou a pensar, que sobre todo o universo Newton lançou a luz sobre toda a constituição do universo. E eu digo: sim, mas quem era Newton e de onde ele veio? A história de Newton é pior que a história do Barack Obahma. É tudo disfarçado, é mentira em cima de mentira, e em cima de disfarce. E qual é o sentido então da obra de Newton? [1:40] Hoje nós entendemos que toda a teoria da gravitação universal era parte de uma teologia que ele estava construindo. Mais ou menos uma teologia de tipo islâmico que ele pretendia substituir --- não que ele tivesse influência islâmica, mas era o mesmo esquema de pensamento da unidade absoluta --- que ele pretendia impor em lugar da trindade cristã. E isto por sua vez baseado em estudos que ele fez de numerologia, de alquimia, etc. A lei da gravitação universal separada desses elementos tem um sentido, mas o fato é que ela nunca esteve separada. Ela só esteve separada na mentalidade das gerações seguintes, às quais não foi contada a história inteira. Isso quer dizer que uma das obrigações que foi incumbida a esta geração de estudiosos é de não esclarecer tudo. Nós jamais esclarecemos tudo isto. É uma massa de disfarces e camuflagens inexplicáveis. A primeira obrigação é entender que as luzes não existem. Não existe uma passagem das trevas para a luz. Não existe o império universal da luz, como queria Kant, onde todo mundo irá saber tudo e tudo estará esclarecido, e então diremos adeus às trevas da antiguidade onde as pessoas eram conduzidas por fatores misteriosos. Nós continuamos nas mãos dos fatores misteriosos. Eu acredito que uma das obrigações da presente geração de estudiosos é tomar consciência deste elemento de segredo e de mistificação que existe por trás de todas as forças históricas desde a origem da chamada modernidade, e cuja presença no cenário torna-se cada vez mais intensa à medida que o tempo passa. A presença do elemento secreto na sociedade torna-se possível graças à evolução da tecnologia. Quando se diz que a ciência e a técnica aumentaram o poder do homem sobre a natureza, a que homem esta afirmação se refere? Na realidade a ciência e a técnica aumentaram o poder de uns homens sobre outros homens. E na mesma medida aumentam a distância entre eles e aquilo que parece ser uma democratização em um sentido, é uma elitização em outro sentido. Isto é absolutamente inevitável. Qualquer instrumento técnico que se invente, qualquer um, coloca certas possibilidades nas mãos de umas pessoas e evidentemente aumenta o poder delas sobre as outras pessoas, e não sobre a natureza. Dizer que o homem tem poder sobre a natureza é risível. A totalidade das ações materiais que a humanidade pôde empreender desde o início dos tempos até hoje mal arranhou a superfície de um planeta. E o restante do universo continua indiferente às nossas ações. No que as nossas ações mudam as condutas das galáxias? Em absolutamente nada. Natureza, mesmo no sentido físico do termo, refere-se a tudo isto. Pode-se dizer que aumentou um pouquinho o poder de algumas pessoas sobre o ambiente imediato, porém aumentou muito mais o poder destas pessoas sobre outras pessoas. A associação da técnica com a democratização é um dos grandes mitos que nós temos que subtrair das nossas cabeças. Se a técnica confere poder de ação, é em primeiro lugar um poder de ação sobre outras pessoas, e só muito secundariamente sobre a "natureza", ou sobre um fragmento seu infinitesimal. Imaginem, por exemplo, os projetos que existem hoje de controle do clima. Quantas pessoas dedicam-se a isto? Algumas milhares. Mas a ação destes algumas milhares vai afetar a vida de bilhões de pessoas, que jamais vão entender o que eles estão fazendo. A ideia, por exemplo, do Al Gore, de que as ações humanas estão modificando o ambiente cósmico inteiro e que portanto nós, através de uma certa organização da sociedade, podemos racionalizar e controlar esta ação. Em outras palavras, nós estamos exercendo uma ação destrutiva porque as nossas ações são anárquicas. Se organizarmos tudo, teremos uma ação planejada e racional sobre o planeta. O planejamento do ambiente ecológico! A terra onde já não vai ser uma livre doação da natureza, mas é a propriedade de uma administração planetária, que determina o que se pode produzir, o que se pode consumir, quanto se pode respirar, e assim por diante. Isto quer dizer que, no fim de dois séculos de "evolução democrática", nós temos um panorama de uma elitização monstruosa que permanece secreta à maior parte das pessoas. Então, quanto mais as pessoas acreditam que estão vivendo em um mundo de liberdade, democracia, etc., mais elas estão sob poder de um planejamento tecnológico cuja compreensão lhes escapa completamente. Qual é a nossa obrigação? É tentar entender isto. Nós não vamos conseguir decifrar o processo histórico, mas aquilo que está ao nosso alcance de entender dentro do panorama imediato, e dentro da história dos dois ou três últimos séculos, nós temos obrigação de tentar entender. Entender não quer dizer que vai ficar tudo claro, porque muitas ações humanas emergem de um abismo de loucuras e de maldades que às vezes fica difícil de imaginar. Quando se identificar a origem e constatar que ela é abissal e tem um elemento demoníaco, não será possível de se entender este elemento demoníaco, por que ele não tem explicação. Mas o entender é somente uma parte do saber, e do conjunto do saber, só uma parte vai se entender. E admitir que o incompreensível é incompreensível e que há de se aceitá-lo como realidade mesmo quando não possa compreendê-lo. Isto para mim tornou-se uma regra da vida intelectual. Admitir a existência dos fatos que eu não compreendo. Se não se admite isto, só admite-se um fato quando já se tem uma explicação para ele. Isto quer dizer que o cérebro se fechou, que lhe foi dada uma explicação de algo existente, e o que quer que saia fora desta explicação vai ser negada. A negação do fato incompreensível tornou-se quase uma cláusula pétrea do debate acadêmico contemporâneo, porque aquilo que é considerado compreensível é aquilo que é aceito pelo consenso da classe falante. Raciocinando mais ou menos como o Guilherme Merchior, os intelectuais de prestígio merecem respeito e atenção, mas aquilo que os outros dizem não tem a menor importância. Portanto, o que quer que venha daí para adiante, só será aceito se passar pelo crivo destas pessoas. Ou seja, os fatos novos só serão admitidos se o consenso da classe acadêmica já tiver uma explicação prévia para eles. Isso aí é o anti-conhecimento, é o obscurantismo mais extremo que você pode imaginar resultante de dois ou três séculos de império das luzes. No nosso estudo de história das ideias e da história da filosofia, jamais fugiremos dos elementos secretivos, irracionais, demoníacos, etc., pois fazem parte da estrutura da realidade.

Eu queria lembrar uma coisa. Quando falamos da função da maçonaria no começo da Idade Moderna, esse simples fato que eu mencionei já mostra quanto é inviável a compreensão destas sociedades como se fosse um poder secreto que está controlando a história humana. Claro que existe dentro destas sociedades, não só na maçonaria, indivíduos que tem a presunção de ser os administradores do cosmos. Quando se vê o pouco controle que a maçonaria tem sobre a sua própria história, ao ponto de um grão mestre maçônico ter de dar saltos para tentar se orientar no meio da auto-mistificação, é de se perguntar como uma sociedade que conhece tão mal a sua própria história pode dirigir a história humana. [1:50] A história do poder secreto não existe. O que existe é uma presunção do poder secreto. Certos indivíduos gostariam de ser um poder secreto, mas isto de fato não acontece. Só Deus dirige o curso da história humana, ninguém mais. Não adianta tentar hipertrofiar o poder ou a imagem destes indivíduos e pensar que eles estão realmente controlando tudo. O fato de ser secreto não significa que tem poder de fato sobre o curso total dos acontecimentos. Nem somente sobre uma parte dele. O governo global mais comete erros, tropeça e fracassa do que realiza os seus planos. É necessário levar em conta que existe esta interferência secreta, mas não imaginar que, por ser secreta, é a explicação do que está acontecendo. É só mais um elemento do conjunto. Eu sugeriria o seguinte: em vez da mania de ter uma explicação para tudo, o que nós temos que buscar é o conhecimento, o saber, e não necessariamente a explicação. Admitir os fatos que não se compreende é abrir-se para a realidade. Na verdade, desde o momento que nascemos nós estamos abertos para uma realidade que nós não compreendemos. Qual é o problema de não compreender? Não compreender significa que não se tem o domínio intelectual sobre aquilo que está acontecendo, e portanto também não se tem o domínio prático. Ninguém é senhor do processo, e na verdade nem se consegue apreender a forma do processo. Nós estamos acabando de ver que todas as tentativas de apreender a forma do processo são ilusórias. O que se capta são processos parcelares, e a verdadeira forma de instalação do ser humano na realidade é a abertura total e a confiança em Deus. Não encontraremos nenhum princípio explicativo mais abrangente e maior do que o Evangelho. Não passaremos disso, ninguém vai passar. Quando as grandes presunções de domínio ideológico ou intelectual da realidade esfarelarem-se, esboroarem-se na sua frente como estas de Hegel, Karl Marx e Augusto Comte, então está na hora de saber que o verdadeiro trato do ser humano com a realidade não consiste em domínio intelectual da situação. Consiste em aceitação da realidade, tão somente. E por que eu deveria ficar aterrorizado pelo fato de o universo não está sob meu controle? Se estivesse sob o meu controle é que eu estaria aterrorizado.

Vamos a algumas perguntas.

Aluno: Muito obrigado pela aula sobre as doze camadas. Na época em que li sua apostila, fiz uma pergunta sobre a aplicação da teoria para a literatura que agora repito. Um escritor que tratou da ascensão humana para as camadas superiores, especialmente a décima, não foi Herman Hesse?

Perfeitamente. Essa é uma das ideias dele. Sidartha vê a mente imediata, e também Demian. Um romance de Somerset Maughan, O fio da navalha, gira em torno de um personagem que está alcançando as últimas camadas e da capacidade incompleta de todos em volta compreenderem o que se passa com ele.

Muitos romances do Georges Bernanos também. O diário de um pároco de aldeia, mostra um indivíduo cuja vida inteira é presidida pela providência divina, que ele mesmo também não entende, mas muito menos os outros o entendem. É aí que ele dá outros exemplos. A aplicação das doze camadas como um instrumento para descrição dos personagens literários é perfeita. Eu nunca tentei isto, mas acho que é perfeitamente factível. Se você quiser desenvolver algum estudo sistemático neste sentido, você fará uma grande contribuição, porque é evidente que, se as doze camadas existem no ser humano real, vai ter de ser referido também nos personagens de ficção, que são os modelos das vidas possíveis.

Aluno: Na aula passada o senhor falou sobre a blasfêmia que alguns ditos religiosos cometem ao citar textos bíblicos para dar crédito às suas opiniões. Gostaria de saber também como se dá o cuidado disso dentro de uma obra literária. Obviamente os discursos são extremamente diferentes quando o autor cita a bíblia como epígrafe de um conto ou faz referência a um texto bíblico. Ele não o faz desejando colocar a sua palavra como sendo a palavra de Deus. O fato é que o autor, no entanto, não deixa de mexer com coisa séria.

É o seguinte. É claro que nem toda citação bíblica visa a legitimar algo que você está dizendo e nem a conferir autoridade divina às suas palavras, mas muitas vezes tem esta função. Se você coloca uma epígrafe tirada da bíblia, obviamente você não está fazendo isto, você está apenas contando uma história e não apresentando uma teoria. Então a sua história pode ilustrar aquele ponto positivamente ou negativamente. Ontem mesmo eu estava comentando com um amigo o livro do Wulpert Selber, onde a história mostra precisamente o contrário do que está na epígrafe. Ele coloca uma epígrafe bíblica, e depois mostra o personagem fazendo exatamente o contrário do que a bíblia está dizendo para fazer. Note que ao fazer isto ele não está sequer interpretando textos bíblicos. Ele está usando um texto bíblico para iluminar uma situação específica e isto é perfeitamente legítimo, você deve fazer isso. Eu estou me referindo especificamente aos casos em que a citação visa a conferir um prestígio, uma autoridade a mais. Nós não temos esta autoridade, jamais. O máximo que nós podemos fazer é esperar que as nossas ideias estejam convergindo com aquilo que Deus desejaria que falássemos. É isso o máximo a que nós podemos chegar. Nós não sabemos se Deus aprova as nossas palavras, se ele assina em baixo. Nós nunca vamos saber isso.

Aluna: Sua última aula abordou o problema central da minha vida hoje. Gostaria de fazer uma pergunta. Formei-me em direito em 2008 e desde que peguei o diploma não sei o que fazer com ele. Advoguei por um tempo apenas o suficiente para constatar que não levo jeito para a coisa. Preciso ingressar na camada seis.

Muito bem. Isto aqui é um grande problema. Uma vez na vida você tem que dominar alguma técnica, algum conhecimento que lhe permita, com relativa margem de certeza, alcançar resultados naquilo que você faz. Não interessa qual seja a técnica, pode ser engraxar sapatos. Se você tem certeza de que sabe engraxar sapatos, você dominou o assunto, em todos os seus aspectos. Por mais modesta que seja a atividade, compreendê-la com começo, meio e fim é o elemento central da sua personalidade. Isto vai servir muitas vezes para você saber diferenciar as ocasiões em que você está de fato instalado na realidade e outras em que você está fantasiando. Quando eu comecei a trabalhar em jornal com dezessete anos, eu fiz questão, o mais rápido possível, de compreender tudo o que compunha a elaboração de um jornal, desde a coleta de notícias até a diagramação, a pauta que se fazia, a composição e impressão do jornal, os equipamentos usados, as marcas dos equipamentos, como funcionava a oficina, como se fazia a distribuição. Ver a coisa inteira pelo menos para saber onde eu estava. Não que eu tivesse a presunção de algum dia dirigir uma empresa jornalística e ter que comandar todo esse processo. Mas aquilo era uma sequência de ações humanas ordenadas em função de um fim e saber como isto funciona dá uma segurança muito grande e permite perceber até que ponto a mera afirmação da sua capacidade pessoal é insuficiente. Porque a sua ação sempre vai estar encaixada nas ações de outros que você não governa de maneira alguma, e às vezes este encaixe é mais importante que a sua capacidade pessoal. Você está trabalhando numa equipe, você pode ser um gênio, mas se as suas ações não se encaixarem com as dos outros, vai dar tudo errado. A sexta camada é um elemento básico do processo de socialização do indivíduo. Então Marcela, não interessa aonde você vai aplicar isto, interessa o seguinte: veja uma área onde você possa dominar tecnicamente todos os conhecimentos necessários. [2:00] Por exemplo, se o sujeito vai ser advogado, ele sabe como vai tratar as pessoas do cartório? Eu quando era moleque acompanhava o meu pai no cartório e via ele conversando com uma vasta rede de amigos ali dentro. Se ele não tivesse essa rede de amigos, todo o conhecimento de leis que ele tivesse não ia adiantar absolutamente nada. Um advogado que tivesse bons amigos no cartório funcionaria melhor que um outro que tivesse estudado muito. Essa é uma outra parte da profissão. Todos estes detalhes, que parecem às vezes ser o lado menos nobre da profissão, eles são absolutamente fundamentais. E qual é a melhor profissão para você? Aquela na qual você conseguir dominar estes detalhes, mas tem uma dica. Eu acho que uma vocação profissional é marcada por uma resistência especial que a pessoa tem a um certo gênero de incomodidades. Por exemplo, se você não gosta de enfrentar a burocracia você não pode ser advogado, porque oitenta por cento dos problemas que você vai ter são com a burocracia. Mesmo que você adore o negócio das leis, sempre vai esbarrar no cartório. Se você tem resistência para isto, se isto não a incomoda, não a destrói, então você talvez possa ser uma boa advogada. Do mesmo modo, se você vai ser um engenheiro, todo engenheiro tem que saber que todos os cálculos tem uma enorme margem de erro e que o controle que ele obtém sobre as coisas materiais é altamente precário. Então ele sempre vai estar correndo este risco de ser derrotado por um pedaço de madeira, por uma pedra, por um metal. Você fez os melhores cálculos possíveis e tudo deu errado. Por que? A matéria não obedece você. Se você não tiver uma resistência para este risco, você não vai poder ser um engenheiro. Se você acredita em planejamento perfeito, em controle total sobre o mundo material, não vai dar. Do mesmo modo, por que é que um sujeito vai ser médico? Por que ele pode conviver com gente doente o tempo todo sem que isto o deixe deprimido, ou desencorajado. Eu, por exemplo, via o meu amigo Dr. Müller o dia inteiro conversando com maluco e eu pensava que não iria agüentar aquilo três dias da minha vida. O primeiro cliente que chegasse eu o jogava pela janela e ia embora. Como é que se tem aquele tremendo interesse nos delírios mais subjetivos e despropositados de uma pessoa a ficar ali horas contando aquela coisa. Para mim isto é coisa de maluco. Mas ele se sentia perfeitamente bem no meio disso. Quer dizer, tinha aquela resistência específica. O problema não é o que você gosta de fazer, o problema é o que você tem força para fazer. Esta dica da resistência específica eu acho que é um excelente critério de escolha de atividade profissional.

Um aluno pergunta-me se eu conheço o Gustave Le Bonn. Bom, o Gustave Le Bonn escreveu dois livros importantes: A psicologia das massas e sobretudo A psicologia do socialismo, que eu acho livros absolutamente indispensáveis. Claro que depois disso se descobriu muita coisa.

Outra pergunta do mesmo aluno: Quanto ao acidente metafísico, parece-me ser um elemento que se aproxima das categorias de Aristóteles.

Muito bem, claro. Tudo isto eu tirei do Aristóteles, mas o conceito do acidentalmente necessário parece contradizer a terminologia aristotélica. Mas no entanto existe e não há como escapar disso. Isto não está dito em Aristóteles, mas é coerente com Aristóteles. Quando ele diz que não é verossímil que tudo sempre aconteça de maneira verossímil, ele está falando de uma margem de incerteza acidental, que é absolutamente necessária para que as coisas aconteçam.

Aluno: Ele está falando que existem outros acidentes que escapem das categorias...

Eu não sei, parece que não. Eu acho que todos os acidentes podem ser catalogados dentro das categorias. Nunca testei isto. Na verdade nem me interessei por isto, posso pensar nisso, mas não me pareceu importante. O importante é, perante a análise de uma situação real, conseguir fazer pelo menos uma parte do repertório dos acidentes sem os quais aquilo não poderia ter acontecido. É a presença do elemento acidental que vai marcar a diferença entre o fato concreto e a sua mera definição abstrata. E é justamente aí que muitas análises que pretensamente abrangem a realidade acabam por falhar. Por exemplo, estas análises do Merchior que nós vimos. Ele está raciocinando a partir da ideia de democracia liberal. Mas muito bem, o que é necessário para que esta entidade assim definida, exista? É necessário isto e isto. E a simples somatória destes acidentes pode levar a coisa na direção totalmente oposta daquilo que está definido. Um bom caminho é ter primeiro a definição abstrata da coisa, então tem-se, por assim dizer, a sua essência. Em seguida faça a lista das condições de existência, ou seja, quais são as condições necessárias para que uma coisa assim definida possa existir genericamente. Em terceiro lugar, identificar quais são as condições para que isto possa existir dentro de um quadro concreto definido. E dentro destas condições, quais são aquelas que derivam da definição, ou seja, são propriedades, e quais são aquelas que não tem nada a ver com a definição, que são acidentais, mas que tem de estar lá para que a coisa exista concretamente.

Aluna: Gostaria que você esclarecesse a relação entre as doze camadas da personalidade e as casas astrológicas.

Muito bem! Essa teoria das camadas ocorreu-me justamente numa época em que eu estava tentando ver qual é a possibilidade de se conferir cientificamente certos dados astrológicos e saber se isto é possível ou não. A primeira condição para que isto fosse possível seria decidir do que um horóscopo está falando. Quais são os domínios da existência sobre as quais o horóscopo fornece alguma informação, e quais são aqueles que escapam dele? Em princípio, o horóscopo tal como os astrólogos trabalham é um elemento fixo, quer dizer, os planetas estão colocados em certos pontos de uma vez para sempre, ao ponto que se diz que este é o horóscopo deste indivíduo, e como os trânsitos astrológicos, que são as mudanças das posições dos planetas, que teoricamente ou hipoteticamente afetam aquilo, já estão dados por um algoritmo que está pronto no horóscopo. Os planetas estão colocados em certos pontos e sabe-se que os trânsitos futuros podem teoricamente afetar aquilo de algum modo, mas dentro de um algoritmo previamente calculável. Também é um elemento fixo, embora se desenrole no tempo. Então o horóscopo é um elemento sempre fixo. Qualquer coisa imprevista não pode estar referida no horóscopo. Dado o horóscopo do indivíduo, não se pode saber, a partir dali, em que estágio do seu desenvolvimento psicológico ele está, porque o horóscopo é sempre o mesmo. O desenvolvimento, a psicologia evolutiva está totalmente fora da consideração astrológica. Então o horóscopo não trata disto. Se ele não trata disto, nós temos que obter esta informação de alguma outra fonte que não seja o horóscopo. E todo o problema da verificação científica das teorias astrológicas baseia-se nisso. Uma informação que é dada pelo horóscopo que não é conferível por uma outra informação tirada por outro lado completamente diferente não é passível de averiguação. Se o único método de acesso àquelas informações é o método astrológico, então a verificação científica é impossível. Então há o que os astrólogos seguem, por um lado, e o que outros seguem, do outro lado. Um desses métodos é o que eu chamava de psicologia evolutiva, do qual se desconta o problema evolutivo para saber do que o horóscopo está falando. [2:10] Foi onde eu cheguei à elaboração da noção de caráter como sendo aqueles elementos absolutamente estruturais e imutáveis. Isso hipoteticamente. Não sei se isso existe. Mas a existência de um negócio chamado horóscopo pressupõe a existência de um elemento fixo. Se esse elemento fixo não existe, então o horóscopo não pode funcionar. Eu criei esta teoria das camadas justamente para isolar os elementos evolutivos. Existe uma relação, mas é uma relação negativa.

Aluno: Como diferenciar uma decisão positiva, por exemplo, de um governante, das iniciativas revolucionárias que pretendem revolucionar arbitrariamente o curso da história?

Há um critério imediato. Qual é o prazo da ação e em que tempo a ação deve mostrar os seus resultados? Se os resultados da ação do indivíduo estão dentro de um prazo relativamente controlável por ele, então é claro que esta ação está limitada à esfera daquilo que ele pode realmente determinar, até certo ponto. Por exemplo, eu estou empreendendo este curso, imagino que, se houve uma nova camada intelectual capacitada no Brasil em x tempo, talvez o curso das coisas venham a melhorar. Mas eu não tenho o controle sobre o curso das coisas. Também não tenho o controle sobre a formação da intelectualidade. O máximo que eu posso fazer é dar os elementos para que ela se forme. Isto está sob o meu controle. Dali para adiante, depende do freguês, da vontade de Deus, de uma série de fatores que estão completamente além do meu controle. Quando Ronald Reagan convida Gorbatschev a derrubar o muro de Berlim, é claro que as conseqüências imediatas da derrubada do Muro de Berlim são perfeitamente controláveis. Com a derrubada do muro, milhares vão fugir da Alemanha Oriental para a Alemanha Ocidental, e procurar novas oportunidades de vida. Derrubar o muro é destruir a Alemanha Oriental, é reintegrá-la. Isto é controlável e isto foi feito. E quais serão as consequências disto em escala mundial? No que isso vai determinar o curso da história? Não sabemos. Não há como saber. Esta é uma ação que pode ser empreendida por um governante dentro do seu prazo de vida, dentro do seu tempo de ação, e que não implica nenhum controle revolucionário do curso da história. Na verdade, a limitação das ações políticas a esta esfera de acontecimentos controláveis é a base da democracia mesma. A troca de governo de quatro em quatro anos, ou de cinco em cinco anos, supõe que o governo deve fazer algo dentro do seu prazo de gestão, e que ele não vai fazer coisas cujas consequências não possam ser controladas de algum modo. Por isso um governo democrático não pode mudar a estrutura ou a ordem política do seu país. Ele tem que agir dentro de uma ordem que permanece fixa para que o próximo governo possa eventualmente corrigir os seus erros. Mas se ele destruir o próprio sistema, então acabou, o governo seguinte não tem mais controle sobre o que está acontecendo. A abdicação do projeto revolucionário é a condição número um para que qualquer proposta governamental possa ser aceita dentro de um regime tido como democrático, liberal-democrático, um Estado de direito. Qualquer Estado de direito é baseado na possibilidade de controlar as ações do governo para que ele não passe de um certo limite. E o primeiro desses limites é o limite temporal. Você não pode fazer coisas hoje, prometendo que elas vão desencadear um efeito dentro de duzentos anos, porque ninguém vai estar lá para ver. Nem o autor da ação, nem os seus supostos beneficiários estarão vivos para poder controlar e ver se a coisa deu certo ou não. Esta limitação da esfera de ação humana é uma exigência moral absolutamente incontornável. O indivíduo só tem o direito de envolver as pessoas em ações cujos efeitos elas possam controlar de alguma maneira. Senão está se passando por cima delas, sobretudo se, vamos dizer, parte do plano permanece secreto.

Aluno: A palavra "relação" foi soberana na aula de hoje. Realmente ela é básica na aquisição do conhecimento dos diversos níveis de certeza. Na verdade a história humana se configura num conjunto de relações que não conseguimos abarcar, apenas perceber alguma coisa. Acredito que estas relações e os seus fins só Deus conhece, mas quanto mais nossa relação com Deus for sincera e verdadeira, podemos ter algum simulacro do processo histórico, pelo menos quanto ao fim. Seremos julgados, por pensamentos, atos e omissões. Afinal nossa história não se fundamenta na relação entre Deus, eu e o mundo, pois como diz o Apóstolo, "de que adianta o homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma".

Muito bem! É claro que o problema central da vida cristã é a alma e não o mundo. E muito menos a sociedade. Por isso que eu sou contra a ideia da sociedade cristã. Você pretende salvar a alma da sociedade? Tem alguma sociedade que está no céu ou no inferno? Acho que não tem nenhuma. O que tem são pessoas. Mais ainda, nós vimos em aulas anteriores que, na perspectiva da imortalidade, uma única alma é mais vasta que o processo histórico inteiro. Na verdade, o que nós chamamos de processo histórico, não é senão uma representação subjetiva que certas almas, certos indivíduos fizeram. O que é a filosofia da história de Santo Agostinho, de Karl Marx, etc.? É algo que Santo Agostinho pensou, que Karl Marx pensou. Não é o processo histórico na sua materialidade, o qual é inabarcável por nós. A ideia de que existe um Deus transcendente e que ele atua sobre a história, e que ele conduz o processo, é a origem mesmo de todas as teorias que tentaram descrever o processo histórico, só que elas tiram Deus sob o seguinte argumento: se há um Deus controlando, existe uma racionalidade por trás de tudo, que é uma racionalidade divina. Tendo acesso a esta racionalidade, é possível de se saber o que está acontecendo. O ser humano pode captar a racionalidade da ação divina ex post facto, ou seja, absorver a linha de coerência que existe por trás daquilo, o significado simbólico, etc. depois que os fatos aconteceram, mas só consegue fazê-lo mediante certos processos parcelares, e não com o conjunto. Deus é a garantia última da nossa racionalidade, o que significa que a nossa racionalidade é sempre incompleta e parcial. Para que precisaríamos de mais do que isso? Se a nossa vida é temporária, se a nossa capacidade de ação é limitada, para que precisaríamos de uma razão ilimitada capaz de saber tudo? Para que serviria o conhecimento infinito num ser finito? Não faz sentido. A verdadeira racionalidade está na adequação entre a alma e a situação real, só a adequação. Não no domínio que ela exerce, não no controle. É mais ou menos como dançar. É preciso adequar aos gestos que o seu parceiro está fazendo. Não precisa dominar, não são os gestos que farão a pessoa responder com outros gestos. Existe uma harmonia. Do mesmo modo também existe uma harmonia, uma adequação entre nós e a realidade, entre nós e o mundo, e entre nós e Deus. É apenas uma adequação, e note bem, Deus jamais exigiu que esta adequação fosse perfeita. Essa é uma coisa que sempre me chamou a atenção. Na Bíblia, Deus considerou perfeitos os vários homens que nós, lendo a vida deles, consideramos muito imperfeitos. Abraão de oferecer a mulher dele para o outro para escapar de um problema. Quem vai dizer que isso é decente? Abraão fez isto, e no entanto Deus o considerou perfeito. O Rei Davi. O conceito divino da perfeição humana é muito relativo e muito modesto. E eu acho, embora não seja autoridade nesta matéria nem seja a pessoa adequada para comentar isto, mas eu acho que Deus exige de nós é muito pouco. É só um o elemento constante: que busquemos o desejo e que queiramos o que Ele diz para nós fazermos. [2:20] Eu acho que é só isso. Eu não acho que podemos ter mais nada além isso. A nossa posição é sempre a de alguém que conhece a sua natureza corrompida, conhece o seu erro estrutural por assim dizer, sabe que a perfeição está fora da sua perspectiva e espera o perdão divino. Isto é o máximo que nós podemos esperar. Mais do que isto, não. Vivendo aqui nos Estados Unidos, vejo que o pessoal tem muita expectativa da perfeição quantitativa. Eles esperam que todo mundo esteja vivendo na graça e, de vez em quando, quando aluém cai no pecado, todo mundo o condena. Eu acho que é o contrário. Está todo mundo vivendo no pecado, na bagunça, na confusão, na perdição, e estamos tentando levantar uns aos outros porque todos estão caindo, mas felizmente não caímos todos ao mesmo tempo, então um ajuda levantar o outro. Minha perspectiva é muito mais modesta do que isto.

Aluno: Você poderia traçar alguma relação entre as experiências vividas pelas personalidades descritas nas doze camadas e os pecados capitais? Pois o sofrimento em cada uma destas etapas parece-me implicar tentações que podem levar a um retrocesso ou a uma fixação em uma camada.

Nem sempre. Quando eu digo que para identificar a camada em que a pessoa está há de se perguntar onde dói, é preciso ver que é esta a dor que a pessoa está querendo experimentar naquele momento, porque ela sabe que é aquilo que vai fortalecê-la. Por exemplo, a experiência para a abertura das emoções humanas na passagem da terceira para a quarta camada. Durante a adolescência, tudo é experiência, tudo é aventura, vale tudo e nada é sério. Mas de repente pode acontecer alguma coisa séria. A pessoa pode, por exemplo, se apaixonar por alguém e começar a sofrer porque ela não sabe como abordá-la, ou ele não manifesta interesse algum pela pessoa. Aí a pessoa não tem mais controle da situação. E no entanto nós podemos perguntar para esta pessoa se ela quer continuar na adolescência fazendo tudo como brincadeira. Eu acho que não. Eu acho que a pessoa quer passar para esta nova esfera da experiência. Ela percebe que ali existe algo que está guardado e que vai ser bom para ela. Do mesmo modo quando se enfrenta um desafio e quer-se afirmar a personalidade, provar o valor, etc. Isto implica riscos, implica medo, implica esforço, etc. Mas o que se prefere? Continuar sonhando ou fazer alguma coisa? Normalmente esta dor, este sofrimento é desejado pela pessoa. Isto não deve ser visto como tentação. Eu não vejo a possibilidade de um significado moral das camadas. As camadas são apenas a evolução normal do ser humano. Os elementos éticos, morais, o bem e o mal, entram ali igualmente. Entra tudo misturado. Evoluir humanamente não quer dizer que se está indo para o caminho do bem.

Aluno: Os grandes líderes, por exemplo...

Sim grandes líderes maus, como Stalin, passaram por esta evolução também. O sujeito que decide servir a Satanás passou por esta evolução. As camadas não tem um sentido moral, o elemento moral tem que ser acrescentado a elas. As considerações morais entram como um dos componentes. É na parte moral que atuam as tentações e não propriamente no puro sofrimento inerente à camada na qual se está entrando. Ao contrário, este sofrimento é aceito. Um indivíduo que tem uma habilidade, um domínio técnico, sabe se virar, sabe o que fazer, e a partir dali começa a aceitar a ideia de direitos e deveres, da confrontação, da justiça. É claro que isso vai dar trabalho, vai dar sofrimento para ele. Porque agora já não basta só a habilidade dele, a camada seis, ele vai precisar contar com outro elemento, mas ele vai desistir disto dizendo que quer voltar só para os direitos e deveres, voltar para o exercício das minhas atividades que tanto o favoreciam? Acho que se a pessoa chegou até aí, ela não quer voltar atrás. Na verdade, eu não acredito que exista a volta atrás. O que existe é a fixação numa camada, sobretudo quando esta fixação é forçada pela própria sociedade. Quando existe uma cobrança neste sentido. Por exemplo, eu acho que a conquista pela habilidade na luta pela vida não é um elemento que está muito presente na vida brasileira. Ao contrário, o que as pessoas buscam é uma posição na qual elas não precisem inteiramente de ter habilidade. O que é uma sinecura? É um emprego no qual não se precisa fazer nada, e não requer a prova de capacidade. A pessoa quer se libertar daquele desafio da camada seguinte, dizendo que quer mais pensar nisso.

Então de certo modo é uma sociedade feita para que as pessoas permaneçam numa espécie de pós-adolescência, não passando disso. Aqui nos Estados Unidos, a camada sétima está presente o tempo todo. Existe uma pressão para que se raciocine em termos de direitos e deveres. É até um negócio exagerado. Para puxar um cigarro e acendê-lo há de se ter preocupações morais enormes e pensar se irá incomodar alguém. Cada palavra é ponderada para não ferir este ou aquele. A consciência de direitos e deveres é muito aguda, e as pessoas não estão fugindo disso. Ninguém está fugindo disso. Elas querem isso. Claro, cada um vai ter a sua própria concepção de direitos e deveres, e muitas coisas que a um parecem muito importantes, a outro parecem uma bobagem. O fato de a média da sociedade alcançar uma determinada camada é muito bom para a evolução pessoal dela, mas quais são as consequências que isto tem para a sociedade em geral? Eu acho que essa consciência exasperada de direitos e deveres que o americano tem cria às vezes uma paralisia, e ele não consegue agir. A escrupulosidade moral é tanta que contra um ladrão dentro da minha casa a querer me matar, estuprar minha mulher e minhas filhas, etc. tenho de ter uma reação proporcional, eu não posso usar a força além de um certo limite. Por exemplo, por um tiro dado a um ladrão que entrou na casa, o atirador é processado porque usou força demais. Quanto é o demais? Onde começa e termina o excesso da força? Isso é um problema. Há pessoas que preferem se deixar assaltar para não usar força demais. O sujeito está batendo em uma pessoa e ela pensa se devia bater de volta, mas fica em dúvida quando deveria bater. Como é que se pode saber, se ele pode processar a pessoa porque usou força demais, ou se ele deu quinze porradas, e a pessoa quer dar uma nele, mas de repente esta porrada é mais forte e ele vai se queixar?

Eu acho que aqui na sociedade americana há uma paralisia na esfera das decisões por ser um país de camada sete. A presença de tantas pessoas na camada sete impede que algumas cheguem à camada oito e à camada nove. Prevalesce a inibição de personalizar um pouco mais a compreensão das coisas, porque pode ocorrer de violar direitos e deveres, e ela corre o risco de causar um inconveniente. O senso da gafe aqui é absolutamente obsessivo. Um sujeito fala uma palavra a mais, e no dia seguinte todos os jornais perguntam se ele cruzou a linha.

Aluno: Estou lendo o livro Johnny, a vida do espião que delatou a rebelião comunista em 1935. E vi o quando importante ler os relatos dos agentes secretos, de maneira que, quem quiser entender os fatos do século passado, tem de lê-los.

Isto é absolutamente certo. Livros de memórias escritos quando os autores já estão velhos e já não têm muito a esconder são uma fonte imprescindível. Aprende-se muito mais lendo livros destes do que lendo jornal durante cinqüenta anos. [02:30]

Aluno: Em determinado momento o ex-agente faz um relato muito interessante sobre a sua formação no exército vermelho. Lá ele estudou, história, política, economia, além das disciplinas militares. Naquele treinamento, toda faculdade humana era usada para o crescimento do Estado soviético, para um fim bem abrangente e determinado, e o relato chega a ser bem sedutor. Então comecei a comparar o relato com a vida fragmentada que levamos, usando determinadas crenças para o trabalho, outras para o lazer, outras para o estudo, etc., de modo que não enxergamos um fim unificante para todos os momentos da nossa vida.

Umas vantagens de se viver em uma sociedade totalitária é que tudo serve a um único fim e há uma única explicação para tudo, e um único critério de julgamento para tudo. Só que esta finalidade única não tem a universalidade que pretende e frequentemente vai contra a estrutura da realidade e só serve para destruir as pessoas.

Aluno: Aquele relato também me ajudou a reafirmar a importância do necrológio, quando estabelecemos um fim para a nossa vida.

Perfeitamente. Se você está numa sociedade totalitária, eles te dão o sentido da vida pronto. Qual é o sentido da vida? Trabalhar pela glória do comunismo, pela glória do Estado Soviético, pela glória do Estado Chinês, pela glória do Estado Cubano, e ponto. Ninguém tem de buscar o sentido da vida, eles calçam o sentido da vida em você como se calçasse um sapato de número 39 em todo mundo. Seu pé é 44, ou pode ser 32, mas vai ser esse aqui, 39. É claro que isto é um falseamento do sentido da vida. É um falso sentido da vida. Muitos movimentos políticos e culturais estão fazendo isto, estão forjando um falso sentido da vida.

Hoje ficamos por aqui. Até a semana que vem. Obrigado.

Transcrição: Pe. Emilson

Primeira Revisão: Cristina Saori Asazu