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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula Nº 83

13 de novembro de 2010

Introdução: Situação da vida intelectual no Brasil

Nesta aula recordarei algumas condições fundamentais da vida intelectual. A razão para isso é que, apesar de o método que adotei neste curso, como em cursos que dei anteriormente, ter evidentemente um temário organizado previamente --- um conjunto de temas e problemas que temos de percorrer até o fim do curso ---, isso é de alguma forma móvel. Ao seguir em uma certa direção, oriento-me muito pelo feedback, pelas perguntas que vêm dos alunos e pelas atitudes que vejo tomarem na vida, às vezes, pelo que um ou outro escreve na internet ou por aquilo que fico sabendo de uma maneira ou de outra.

Esse feedback muitas vezes me faz mudar o itinerário, abrindo longos parênteses que podem se prolongar por muitos meses. No fim, sempre acabamos retomando o fio da meada e vendo que todas essas coisas estão interligadas. Em nenhum momento a ordem do curso foi totalmente perdida ou anarquizada, muito pelo contrário. Esses parênteses são como notas de rodapé. Se vocês leram o Jardim das Aflições viram que ali tem algumas notas de rodapé enormes, às vezes de uma página inteira, onde abre-se a visão para todo um novo campo de investigações que poderia se desenvolver paralelamente ao livro e que só não é desenvolvido ali por falta de espaço. A mesma coisa acontece aqui com esses parênteses que abrem-nos para temas que são, por assim dizer, filiados ao tema central que estamos trabalhando e que não poderão evidentemente ser desenvolvidos integralmente aqui, mas que às vezes requerem uma, duas ou três aulas até chegarmos a formulá-los de maneira suficiente para que possamos voltar então à linha central.

Estávamos nas semanas anteriores estudando uma série de temas de teoria do conhecimento. Para esses temas tirávamos uma espécie de contra-inspiração do livro de Dardo Scavino, La Filosofia Actual, como uma espécie de mostruário de tudo o que não se deve fazer. Eu parei quando chegamos ao capítulo referente a Alain Badiou, não pelo motivo de que estou falando, mas pelo fato de que a exposição que ele fez de Alain Badiou não me pareceu suficiente e vi que teria de ler o próprio Badiou, um autor que conheço muito superficialmente. Parecia haver coisas muito interessantes na filosofia de Badiou, embora o mesmo seguisse essa linha geral desconstrucionista que não podemos aceitar de maneira alguma. Então cheguei à conclusão de que aquilo merecia um exame mais aprofundado, de maneira que, enquanto não terminar de ler Alain Badiou, não o comentarei aqui.

Como estava dizendo, temos uma linha que segue por uma reta, depois toma uma direção lateral, executa umas circunvoluções e no fim volta e emenda, de forma que as pessoas acabam percebendo todas as relações que uma coisa tem com a outra e que não houve extravio, isto é, não nos afastamos do assunto em nenhum momento. Na pior das hipóteses voltamos a algum tema já tratado anteriormente ou a um tema que foi dado como pressuposto.

Neste caso, em função de algumas cartas que recebi e de perguntas que são feitas aqui, além de coisas que li na internet escritas por alunos ou ex-alunos, achei melhor lembrar a vocês de um elemento fundamental da vida intelectual que está descrito nos capítulos I e II do livro do Padre Antoine Sertillanges, livro do qual se origina todo o meu esforço pedagógico. Esse livro foi decisivo para a minha própria vida e espero que seja decisivo para a vida de muitas pessoas.

Situação da vida intelectual no Brasil

O fato é que vocês precisam ter consciência de que a vida intelectual no Brasil não é normal de maneira alguma. É uma coisa doente, mórbida, onde todas as formas de falsidade existencial são cultivadas de uma maneira meticulosa e quase obsessiva. Vejam que na semana passada o maior prêmio literário nacional, o Prêmio Jabuti, foi dado a Chico Buarque de Holanda e Maria Rita Kehl. Fiquei sabendo agora que em função disso o editor Sérgio Machado da Editora Record tomou uma atitude muito corajosa e disse que se o critério desse prêmio não for modificado urgentemente, a sua Editora, que é a maior do país, não vai mais colaborar com o prêmio. Trata-se de uma atitude muito certa, mas o fato é que a atribuição desse prêmio a duas pessoas absolutamente desqualificadas sob todos os aspectos não reflete só uma distorção política, como parece que Sérgio Machado tenha entendido. Ele tem razão, pois existe uma distorção política, mas existe também o fato de que toda a camada letrada brasileira se tornou incapaz de julgar as obras literárias e culturais, não por falta de um critério --- pois critério é um conjunto de regras mais ou menos estabelecidas ---, mas por falta de uma certa sensibilidade que se desenvolve quando existe num país um diálogo cultural intenso, um intercâmbio, uma colaboração e até um confronto.

Esse confronto, colaboração e troca de informações não existe mais há quase trinta anos. Talvez os mais jovens tenham até certa dificuldade de entender o que estou falando. Por isso recomendo muito a leitura dos críticos literários de trinta, quarenta ou cinquenta anos atrás, para que se veja como as ideias circulavam e fecundavam-se mutuamente naquela época, o que é o normal em qualquer país. Isso não acontece mais no Brasil há muito tempo. O único tipo de diálogo que continuou existindo no Brasil foi o diálogo interno da esquerda política, através de órgãos como o suplemento Mais da Folha de São Paulo e vários outros, entre eles revistas, onde você via um grupo de esquerda discutindo suas próprias ideias, seus próprios problemas internos, sua temática, utilizando seu vocabulário, dentro de sua concepção do mundo, de seu imaginário e sem lugar para mais ninguém, e onde praticamente não havia muito o que trocar. Havia uma interconfirmação: um dizia uma coisa e o outro dizia exatamente a mesma coisa, com uma ligeira diferença.

Assisti a esse fenômeno muito estranho porque nos anos sessenta acompanhei o debate interno da esquerda brasileira. Logo depois do golpe de sessenta e quatro, houve uma espécie de efervescência de discussões na esquerda para diagnosticar o que tinha acontecido. Essas discussões se prolongaram muito além do tema imediato do golpe e da derrota da esquerda, e se aprofundaram em diagnósticos de maior alcance sobre a estrutura da sociedade brasileira. Por exemplo, até sessenta e quatro, o partido comunista tinha seguido uma estratégia de frente ampla, mediante uma aliança com o que ele chamava de burguesia nacional --- burguesia nacional seria parte do empresariado brasileiro, cujos interesses o colocavam em antagonismo com o concorrente estrangeiro, de modo que seria uma burguesia potencialmente nacionalista ---. Logo após o golpe surgiu a discussão séria que questionava se essa burguesia existia mesmo. Não é que não existissem burgueses que fossem assim, pois claro que existiam --- eu mesmo tive a experiência de trabalhar para um desses ---, mas questionou-se se existiam como classe e se, portanto, uma estratégia revolucionária poderia se basear em uma aliança com essa classe. Essa discussão se prolongava em uma outra mais profunda ainda para saber se a economia brasileira do período colonial tinha sido feudal ou não. Havia uma tese de Caio Prado Junior de que nunca tinha havido feudalismo no Brasil e que a agricultura do período colonial já se organizava em bases capitalistas, o que se discute até hoje. Muitos anos depois saiu o livro de Jacob Gorender, O Escravismo Colonial, que considero um livro notável e a melhor análise desse período. O pessoal comunista não tinha muita dificuldade de aprofundar a análise dos problemas desde o ponto de vista marxista ou similar.

Ficava claro que por um lado havia a discussão interna estratégica e sociológica da esquerda, e por outro havia a cultura geral do país. Eram duas coisas diferentes. Uma participava da outra, mas isso era somente um aspecto. Vi que essa cultura interna da esquerda comeu o restante da cultura e sobrou só a primeira. Na medida em que só aquela sobrou, também aconteceu que o nível da própria conversa interna da esquerda baixou muito.

As influências que chegaram posteriormente do exterior foram todas de ordem corruptora. Todas tinham influência estruturalista e desconstrucionista, introduzindo no meio esquerdista uma espécie de confusionismo liberal onde tudo é permitido, inclusive qualquer bobagem. Na medida em que essa escola não reconhece a existência de realidade fora do discurso, este assume uma posição quase imperialista --- como vimos no estudo do livro de Dardo Scavino --- e engole tudo. No fim só existe um confronto entre discursos. Não existe mais o problema da veracidade, da adequação do discurso à realidade. Não existe mais uma realidade pela qual se possa conferir o discurso.

Por outro lado, houve também a influência da corrente neopragmatista com Richard Rorty, que dizia que, não existindo arbitragem possível entre as várias divergências, só o que restava era tentar influenciar os outros para que falassem como nós, ou seja, tentar passar para os outros nossos cacoetes de linguagem, já que falando como nós, eles estariam sob nosso domínio e direção.

Todas essas influências novas que entraram no Brasil a partir dos anos setenta foram enormemente corruptoras para o pessoal da esquerda. Nem mesmo dentro da esquerda você tem um debate hoje que possa se comparar ao que havia nos anos sessenta.

Por um lado, a discussão interna de um grupo político ocupou todo o espaço da cultura nacional e não havia mais nada fora disso. Em todos os domínios que se pudesse procurar --- [00:10] no direito, na sociologia, na ciência política, na literatura etc. --- praticamente só se falava disso. Por outro lado, existia uma espécie de florescimento marginal de ideias liberais que também não ultrapassavam a esfera da mera propaganda, da mera pregação liberal, sem nenhum esforço sério de diagnosticar a situação existente.

Os únicos esforços sérios que vi, que me parecem fracassados de certa maneira, foram os do grupo de Antonio Paim, sobretudo com Ricardo Velez Rodrigues, que por coincidência não é brasileiro, mas venezuelano. Ele aprofundava o estudo do Estado brasileiro atual para encontrar suas raízes na contrarreforma. Acho que a tese é errada, mas de qualquer maneira é um esforço considerável e, no lado conservador, é o único equivalente que encontro das inúmeras discussões que havia no campo esquerdista. Ou seja, o único esforço de diagnosticar profundamente a situação brasileira e suas raízes históricas foi o empreendido pela turminha do Antonio Paim. Na maior parte, o que os liberais conservadores escreviam não passava de mera propaganda de ideias liberais, algo no nível de Rodrigo Constantino.

Assisti a todo esse fenômeno e fiquei evidentemente cada vez mais assustado com o que estava se passando. Hoje, quando tenho a oportunidade de reunir alguns milhares de alunos para tentar dar-lhes uma formação mais sólida que permita tentar criar uma cultura superior brasileira melhor daqui a dez ou vinte anos --- não que vocês tenham de esperar dez ou vinte anos para fazer as coisas, mas esse seria um prazo para maturação ---, vejo que às vezes é até difícil transmitir o que está acontecendo, porque vocês não tiveram informação desse período anterior e não têm ideia do que é uma alta cultura normal.

Tudo aquilo que seria de se esperar em uma alta cultura normal se tornou no Brasil uma coisa inexistente, inacessível, às vezes dificilmente imaginável. Não sei se vocês lembram de um artigo que publiquei meses atrás chamado Uma lição de Durkheim. Durkheim dizia que a quantidade de anormalidade que uma sociedade pode aceitar é limitada. Então, quando uma situação anormal prolonga-se, torna-se o novo padrão de normalidade e a sociedade inteira reajusta seu foco e seus esquemas para não perceber mais aquela anormalidade; ao contrário, passa a julgar tudo a partir daquele novo padrão de normalidade. Vejo que a rapidez com que as pessoas se adaptam a isso é uma coisa impressionante, sobretudo quando o contato que se teve com a situação anterior foi breve ou nulo e toda a sua vida já transcorre dentro do novo padrão.

Dessa forma, só pessoas que têm um gênio e uma independência intelectual formidável conseguem enxergar um pouco além disso. A maioria, inclusive as mais inteligentes, adapta-se a isso mesmo quando está revoltada e odeia a situação. Odiar não adianta quando você acredita que aquela coisa é a realidade, quando não percebe o coeficiente de ilusão, sonho e paranóia que está sendo imposto a você. Às vezes você está vivendo dentro de uma ilusão mórbida e odeia aquilo, mas acredita que aquilo é a realidade e que tudo o que você está pensando, desejando, aspirando é apenas um sonho, quando na verdade é o contrário: você está percebendo algo da realidade e a realidade que percebe bate contra um sonho coletivo, que nem é tão coletivo assim, é apenas um sonho grupal, a ilusão de um grupo que, se você somar tudo dentro um país de cento e oitenta milhões de habitantes, não passa de algo entre cinco e dez mil pessoas que são a classe falante, os formadores de opinião esquerdista que dominam TV, jornais, escolas etc.

O primeiro elemento da obediência é a crença. Se você acredita que tal coisa é a situação real, já está de certo modo obedecendo. Se acredita que uma coisa se tornou realidade só porque todo mundo diz que é assim e se acredita que esta confluência de discursos concordantes cria uma realidade, então de certo modo já cedeu e está obedecendo, por mais que você odeie. Aquilo que você acredita ser a realidade tem uma função estruturante dentro de sua personalidade. Você constrói toda a sua personalidade em cima de uma base que acredita ser a realidade, ainda que odeie e rejeite essa realidade.

Às vezes vejo que a reforma que as pessoas desejariam fazer em si para poderem se dedicar a atividades intelectuais superiores não vai fundo como deveria. O estado de dependência mental em relação a uma situação degradada continua, o que faz com que as pessoas estejam sempre deprimidas e no fim vejam as coisas piores do que estão, atribuindo demasiada realidade, autoridade e força a algo que às vezes é apenas uma espécie de blefe grupal coletivo.

Por exemplo, vimos a expressão política disso nas últimas eleições, onde as pessoas sentiram-se esmagadas pela vitória de Dilma Roussef sem levar em conta que somando os 44% de votos de José Serra, mais os 23% de abstenção, mais os 7 ou 8% de votos brancos e nulos, a mulher foi eleita com 30% dos votos. Num país onde o voto é obrigatório, em que todas as pessoas adultas são eleitores, o total que ela teve foi 30%, que é o que o PT sempre teve durante a sua história --- passou a ter mais durante o período Lula, o que foi um upgrade momentâneo que já acabou ---. Isso significa que você não está numa sociedade petista, mas numa situação eleitoral dominada por esse partido. O discurso petista não reflete uma realidade, mas apenas um blefe propagandista. Sob esse ponto de vista, a situação brasileira não é tão desesperadora assim. O fato é que o poder que esse esquema petista desfruta hoje é completamente desproporcional com a estreiteza de sua base eleitoral, o que significa que todos estão vivendo dentro de uma ilusão. Os próprios líderes petistas sabem que isso é uma ilusão, mas não querem que ninguém a perceba. Vejo por muitas cartas e e-mails que recebo um tom de desesperança e tristeza, sobretudo um desencanto com o próprio país. Isso é justificado até certo ponto, desde que você não internalize isso e não o torne um elemento de sua personalidade.

Camadas da Personalidade

O problema com a personalidade é que ela não nasce pronta e tem de passar por uma série de mutações evolutivas antes de alcançar um patamar onde alguma atividade intelectual seja possível. Isso nos remete ao velho problema das camadas da personalidade, algo que lecionei há vinte anos atrás e que é sempre um instrumento útil para analisar essas situações. Vou sugerir-lhes que, assim como fizeram o exercício do necrológio no começo deste curso, parem um pouco toda essa linha de estudos que estamos seguindo e façam uma análise de vocês mesmos à luz da teoria das camadas. Na verdade não é uma teoria, mas apenas um instrumento descritivo de um fenômeno que qualquer um pode observar.

Observando a conduta de qualquer pessoa e a sua própria, você verá que todos os elementos que compõem uma personalidade estão presentes no outro também. Todos temos basicamente os mesmos instintos, impulsos, necessidades, sentimentos de base, e a diferença entre um ser humano e outro não está nos elementos psicológicos que o compõem, mas apenas na forma que o conjunto adquire. Essa forma, por sua vez, é mutável com o tempo. Embora todos esses elementos estejam ali, e a forma também seja mutável, é possível apreender a forma de cada momento da vida de uma pessoa fazendo as seguintes perguntas: qual é o objetivo dominante que orienta o conjunto dos esforços dessa pessoa? O que ela está procurando o tempo todo? O que ela está buscando no fundo dos vários objetivos, emoções, situações e estados que vivencia? Qual é a chave de tudo isso?

Camada 1

Se você observar um bebê recém-nascido, verá que o primeiro interesse fundamental que essa criatura tem é a descoberta de seu próprio corpo. Um bebê observa o seu próprio corpo, mexe os membros, porque ele está tentando adquirir um domínio de algo que para ele é estranho ainda. Veja, por exemplo, o interesse que o bebê pode ter pelo seu próprio pé. Ele pega o pé e fica olhando um tempão.

Outra coisa típica da vida do recém-nascido é que ele vive num estado de busca perpétua de autossatisfação. Esse é o primeiro centro de interesse, que nunca é abandonado. Todos temos interesse em nosso bem-estar corporal e em nosso próprio corpo. Ninguém é totalmente indiferente ao próprio corpo.

Mesmo um asceta tem de levar em conta seu próprio corpo. Ele é capaz de distinguir entre as várias sensações que tem e considerar algumas prazerosas e outras extremamente desagradáveis. Inclusive a própria disciplina corporal que o indivíduo se impõe é ainda um esforço de apropriação do corpo. Na medida em que você está tentando dominar seu corpo, está tentando personalizá-lo.

Por exemplo, se você vai fazer um jejum prolongado, está tentando dominar seu corpo e provando que ele é seu, isto é, que você não está à disposição dele, perdido [00:20] naquele conjunto, naquele sistema de órgãos e impulsos, mas que existe um centro que domina tudo aquilo. Esse esforço de dominar o próprio corpo, de personalizá-lo, é a primeira coisa que você vai ver um bebê fazendo. Isso é o que chamamos de primeira camada da personalidade. Essa primeira camada está sempre presente, você nunca a perde.

Camada 2

Acontece que com o passar dos anos existe uma passagem para outros centros de interesse, onde os instintos corporais começam a se dirigir a vários elementos do mundo exterior. Por exemplo, o garoto gosta de comer umas coisas e não outras. Ele personaliza a expressão do seu instinto. Todos temos o instinto básico de fome, que é mais ou menos idêntico, mas nem todas as pessoas querem comer as mesmas coisas. Você verá que o moleque prefere uns brinquedos e não outros, umas atividades e não outras. Isso significa que ele está tomando posse de um círculo um pouco mais amplo do que o seu próprio corpo.

Dizemos que essa segunda camada é o círculo dos instintos: coisas que se prolongam para além do corpo. Selecionar esses instintos e desejos e atendê-los é um esforço que vai muito além do domínio do próprio corpo, mesmo porque a maior parte desses instintos já não tem o próprio corpo como alvo, mas coisas, pessoas, situações e objetos. Nesse período, o indivíduo está formando o círculo dos seus impulsos e desejos predominantes. É evidente que ele subiu um patamar quando, por exemplo, tem a alternativa de comer várias coisas diferentes. Um recém-nascido não tem tal alternativa, pois está tomando apenas leite ou aquelas papinhas. Ele não conhece aquelas coisas suficientemente para poder selecioná-las. Imagine quanto tempo de experiência o sujeito precisa ter para conseguir identificar a diferença entre uma papinha e outra, e saber que de uma ele gosta e de outra não. No começo ele come a que gosta e a que não gosta, sem perceber a diferença, mas depois vai personalizando isso. Essa personalização dos gostos, desejos e preferências é a segunda camada, que também permanece o resto da vida. Ou seja, estamos o tempo todo selecionando objetos, situações e sensações que queremos e não queremos, outras que apenas toleramos e assim por diante.

Ora, cada uma dessas camadas que vamos atravessando permanecem em nós para sempre. Cada uma é integrada na seguinte, se tornando um aspecto da seguinte na medida em que esta a transcende e abarca imensuravelmente. Veja que todo o círculo das atividades que um menino de três ou quatro anos gosta e desgosta transcende infinitamente o tamanho e a esfera do seu próprio corpo. Mas o corpo no começo era como se fosse o mundo todo para ele. Na segunda camada o corpo permanece lá juntamente com o impulso de apropriação do corpo, só que ele foi automatizado e não é mais um objeto de atenção. Ele passa para um segundo plano, enquanto o foco de interesse se desloca para um círculo maior, incluindo aquele como uma parte, instrumento ou meio seu.

Camada 3

Em seguida, abre-se para o indivíduo o círculo das relações sociais, que transcende também infinitamente o círculo dos seus meros gostos e instintos corporais. Ele terá de adquirir novos códigos e novas possibilidades de ação que na camada anterior eram inconcebíveis para ele.

Por exemplo, um menino que está na segunda camada não diferencia muito bem entre pessoas e coisas no que diz respeito a sua conduta ou ao tratamento que dá às pessoas e às coisas. A diferença entre um objeto dotado de vontade própria, como um ser humano ou até um gato, e um brinquedo inerte não está muito clara para ele, porque ele os vê apenas como seus objetos de desejo e não como entidades externas que têm uma existência independente. A terceira camada então implica saber que os outros não são eu, que eles também são centros geradores de ação, de decisão, de significação etc., e que eu não posso submeter todos ao meu desejo.

Essa é uma descoberta absolutamente formidável, quando o sujeito descobre que não manda no mundo, que vai ter de se relacionar com todos esses seres e aprender a regra do jogo. Para obter o que quer, não basta apenas gritar ou fazer força.

O bebê pequeno impõe sua vontade chorando. Logo em seguida ele aprende a fazer força para obter aquilo que deseja. Quando um bebê está lidando, por exemplo, com um brinquedo e o brinquedo não procede do jeito que ele quer, ele quebra o brinquedo. Se estiver brincando com o irmãozinho e este não procede do jeito que ele quer, desce a mão no irmãozinho. Isso porque para ele é a mesmíssima coisa. É apenas uma questão de impor sua força física ao universo externo. Essa ainda é a segunda camada.

Na terceira camada, o indivíduo percebe que existe um imenso tecido de relações, regras, signos, todo o mundo de uma linguagem social que evidentemente não é só a linguagem verbal, mas todos os códigos possíveis, como olhares, gestos etc. Já é um mundo enormemente mais complicado do que o do mero trato instintivo entre o corpo como portador dos desejos e instintos e o mundo físico em torno.

Camada 4

Desse acúmulo de experiências forma-se um quarto círculo: o mundo dos sentimentos historicamente consolidados. Já se tem uma história aí. As coisas passam a ter uma significação temporal; o mundo do tempo se abre para o indivíduo. A pessoa já tem coisas que estão no passado. A distinção entre passado, presente e futuro torna-se importante. O indivíduo é capaz de fazer uma história dos seus sucessos e das suas frustrações e a partir destes delineia esperanças, objetivos e sonhos. Trata-se de toda uma personalização do mundo emocional.

Se vocês me perguntarem onde é que entra a formação do "eu", não sei exatamente, porque tudo isso é o "eu" no final das contas. Mas quando se chega na quarta camada, já se tem uma história pessoal e o valor das coisas passa a ser julgado em termos de tempo --- de passado e futuro ---. Aí delineiam-se pela primeira vez os sonhos e aspirações. A pessoa começa a sonhar com o futuro, com algo que desejaria ter ou ser e se aprofunda muito a consciência do abismo entre a situação real e o imaginário. Descobre-se então que em volta, em cima ou em torno da situação de fato existe todo um mundo de signos, aspirações e símbolos que, de certo modo, só existem para o indivíduo. Parte desse mundo pode ser comungado com outras pessoas, mas distingue-se nitidamente do mundo físico. A pessoa sabe que tudo aquilo é real, mas não está fisicamente presente.

Claro que há uma tendência para dizer que todo esse mundo está dentro da pessoa. Entretanto, o "dentro" afinal de contas é apenas um conceito espacial e não descreve corretamente o que acontece, porque todo esse mundo de sonhos e aspirações definitivamente não é espacial, não está em parte alguma. Por exemplo, toda sensação física é localizada. Ou você tem uma sensação visual, ou auditiva, ou táctil --- se você tem uma dor, ela se localiza em algum lugar ou em alguns lugares do corpo ---, mas as emoções e sentimentos não estão localizados. Não podemos dizer que eles estão dentro do corpo, pois nesse caso estariam localizados em algum lugar, quando na realidade estão em lugar nenhum. De certo modo é até difícil dizer se eles estão dentro de nós ou se nós estamos dentro deles. Uma emoção espalha a sua cor por todo o horizonte da existência da pessoa, a ponto de que quando se está triste, a tristeza expressa-se até mesmo na visão que se tem do mundo físico em volta. Tudo lhe parece mais apagado, cinzento, sombrio. Se você tem medo, tudo lhe parece atemorizante. Podemos dizer que por um lado esse mundo de sentimentos e emoções está "dentro de você", no sentido de que ele não é acessível a outras pessoas, já que é só você que está sentindo aquilo --- mesmo que uma pessoa sinta a mesma coisa, você só sabe disso por sinais externos; não há uma coparticipação imediata dos sentimentos ---. Mas por outro lado, como essas emoções abarcam a totalidade da sua experiência, é você que está dentro delas como se fosse em uma bolha da qual não consegue sair. Um estado de medo e tristeza o rodeia e você não consegue sair de dentro dele. Existe até a expressão "eu preciso sair dessa". Não haveria essa expressão se as pessoas não tivessem realmente esta experiência de estar dentro de uma atmosfera de sentimentos, como se o sentimento estivesse espalhado no espaço como uma bolha.

Assim como na primeira e segunda camadas o bebê buscava insistentemente sua satisfação física --- na primeira agindo apenas sobre seu próprio corpo e na segunda agindo sobre objetos em torno ---, na quarta a pessoa também está buscando a satisfação, mas sob uma modalidade mais sutil que é a satisfação emocional, a que chamamos de felicidade. [00:30] É a busca da felicidade e a fuga da infelicidade. Isso vai formar para sempre a constelação de símbolos que representam para nós a felicidade, o infortúnio, a alegria, a tristeza e assim por diante. É claro que é um período de intensa busca de autossatisfação. Veja por exemplo que adolescentes buscam insistentemente situações que lhes pareçam estimulantes: festas, esportes, passeios, às vezes até encrencas e aventuras. Isso é a busca da felicidade. O indivíduo quer sentir determinadas coisas. É a busca obsessiva por sentir certas coisas e não sentir outras.

Camada 5

Essa busca conserva-se dentro de nós, mas chega um ponto em que se esgota, e a mera busca do sentir não resolve mais a situação, já que de certo modo a experiência se torna repetitiva e sempre fadada ao fracasso. Há um momento em que o indivíduo percebe que, se ele quer de fato estabilizar determinados sentimentos, a primeira coisa que tem de fazer é sentir-se bem com ele mesmo, e isso já não é a mesma coisa que buscar a felicidade.

A felicidade é sempre algo que vem de fora: é uma situação, um estado, um dom qualquer que você recebe. Por exemplo, se você se apaixona por uma garota, sua felicidade depende de que ela o retribua, e o máximo de infelicidade será a indiferença dela. Chega uma hora em que a sucessão dessas experiências emocionais é concluída e o indivíduo percebe que de certo modo ele é o autor dos seus próprios estados, ou seja, que muito do que ele sente não depende do que está acontecendo ou do que os outros façam, mas dele mesmo. É o momento em que ele necessita tomar posse de si mesmo, já não no sentido corporal como na primeira camada, mas no sentido existencial total. Ou seja, ele tem de mostrar que é o senhor do seu próprio destino.

A partir daí o critério já não é mais felicidade versus infelicidade, mas vitória versus derrota. O indivíduo tem de vencer e provar para si próprio em primeiro lugar --- não para os outros --- que ele é alguma coisa. Pode ter algum coeficiente de exibicionismo também, mas o fundamental é tomar posse da sua força, sentir-se como um sujeito criador de situações que dependam exclusivamente dele. Nesse período, o coeficiente de felicidade ou infelicidade recebido de fora já não é tão importante, porque mesmo os fatores que podem deprimi-lo são encarados como desafios que ele tem de vencer. Nesse período o indivíduo tem de sair vencedor em tudo, mas só está tentando provar algo para si mesmo. O que importa é a vitória subjetiva, é conseguir olhar para si mesmo e sentir um certo orgulho. Ter orgulho de si é importante nesse período.

Continuemos lembrando que em cada uma dessas camadas as anteriores se conservam, mas agora viram instrumentos para a conquista de um objetivo que as abrange e transcende. O indivíduo que está em plena camada cinco está buscando sobretudo a vitória, o sentimento do seu próprio valor, da sua própria capacidade, da sua própria força. Nisso se integra, voltando de trás para adiante, todo o seu mundo emocional, que passa a ser um fator de vitória ou derrota. Por exemplo, ele percebe que tem de ter um certo domínio sobre seus sentimentos. Ele precisa reprimir certos sentimentos, senão eles podem atrapalhá-lo na luta para afirmar seu próprio valor. Aqueles sentimentos continuam ali, mas se integram diferentemente em um outro conjunto superior. Do mesmo modo, tudo o que ele aprendeu com as relações sociais, a linguagem, os signos etc. está lá, mas agora organizado em função de um novo objetivo.

Camada 6

Mas algum dia todos saímos da adolescência e temos de fazer algo mais do que provar para nós mesmos nosso próprio valor. Quando alcançou aquele nível mínimo e indispensável de autoconfiança sem o qual não é possível a sobrevivência no meio social, o indivíduo tem de passar para uma outra camada. Nesta camada, o que interessa já não é mais o indivíduo sentir que vale alguma coisa --- não é mais sentir a sua própria força ---, mas obter algum resultado real.

Por exemplo, se você arruma um emprego não adianta sentir que é ótimo. Você tem de fazer algo que funcione dentro do conjunto das suas tarefas. Você tem de ter um resultado objetivo, ainda que isso valha pouco para você em termos de autoafirmação --- camada cinco --- ou em termos de felicidade e infelicidade --- camada quatro --- e assim por diante. Trata-se do domínio da vida prática, das necessidades práticas.

Podemos dizer que esta sexta camada é uma camada altamente contábil, onde tudo o que interessa é o crédito superar o débito. Algum resultado você tem de obter. Evidentemente nesse período você tem preocupação com horários e com a distribuição das suas energias. Você sabe, por exemplo, que não pode ter períodos de descanso ou repouso conforme o exclusivo critério do seu bem-estar físico, mas que é necessário que o seu repouso e o seu esforço se encaixem dentro de uma máquina, de uma engrenagem, que visa a objetivos que não são os seus, mas que você tem de fazer funcionar da melhor maneira possível.

Lembro-me, por exemplo, quando eu tinha dezessete anos e precisava urgentemente trabalhar. Já tinha tido alguma experiência trabalhando em escritório, mas estava achando muito ruim. Lembro-me que fui trabalhar no jornalismo por um único motivo: naquela época a lei determinava um período de cinco horas para o trabalho jornalístico e eu achei aquilo uma maravilha porque precisava de tempo sobrando para estudar. Fui para o jornalismo exclusivamente por causa das cinco horas. Quando mais tarde modificaram a lei e todos os jornais começaram a utilizar o período de oito horas, o negócio perdeu a graça e não era mais vantajoso para mim. Eu não escolhi aquilo porque ia ter alguma autossatisfação ou porque ia provar a minha própria capacidade. A capacidade já estava provada. Quando sentei para fazer o primeiro teste no jornalismo sabia que sabia melhor português do que todos daquela redação juntos. Então aquilo ia ser moleza, pois minha capacidade estava demonstrada. Mas o problema não era provar para mim mesmo que tinha uma capacidade. Eu tinha de escrever uma coisa que servisse para eles. O critério é completamente diferente. Os critérios de exigência em matéria de linguagem no jornalismo eram muito inferiores aos meus. Mas isso queria dizer que eu tinha de dobrar os meus critérios de exigência e atender aos deles, porque os meus abrangiam certas exigências que para uma redação nem existiam e se tornariam invisíveis. Se eu escrevesse a coisa com altos méritos literários isso seria totalmente invisível para aquelas pessoas. Eles queriam apenas que eu atendesse ao critério do jornal. Foi uma espécie de desaprendizado. Eu tive inclusive de baixar o meu autoconceito para poder me adaptar àquela coisa. E tudo para obter aquele negócio maravilhoso que era um salário no fim do mês. Eu tinha trabalhado como office-boy antes e quando fiz o teste no jornal e me disseram o meu salário eu quase caí de costas e pensei que tinha ficado milionário. Era dez vezes mais e com três horas de trabalho a menos. Naquele ponto tinha dado tudo certo: o meu esquema organizacional estava funcionando perfeitamente bem naquela etapa da minha vida.

Nesse período então o indivíduo adapta-se a exigências externas, mas visando um resultado que o vai beneficiar. Não se trata de um benefício psicológico --- psicologicamente pode haver até um malefício ---, mas a pessoa faz uma troca; entra em um comércio. Sacrifica um pouco da sua autoimagem, do seu tempo e da sua felicidade para obter um rendimento no fim do mês ou no fim do ano. Mas trata-se de algum objetivo prático. É claro que isso não se aplica somente à vida econômica strictu sensu. Em vários domínios da vida o indivíduo aprende a ter um senso prático sem o qual não pode sobreviver como uma pessoa adulta na sociedade.

Camada 7

Depois que obteve esse domínio, a pessoa percebe que está convivendo com outras pessoas que também estão buscando os mesmos objetivos e vantagens e que não a consideram uma pessoa superior a elas. Vejam que coisa incrível! Pela primeira vez você descobre que não é a única pessoa que tem objetivos e que os outros não dão muita importância a você. Cada um deles tem os seus objetivos e desejos, o seu esquema organizacional no qual não vai permitir que você interfira de maneira alguma.

Por exemplo, se você está muito ocupado ou doente e não pode fazer um determinado trabalho, e quer que alguém o faça em seu lugar, nem sempre vai encontrar quem o faça porque os outros também estão ocupados, principalmente com os próprios objetivos deles. Você percebe que as pessoas têm objetivos próprios e não consideram, por incrível que pareça, que os seus objetivos são mais importantes. Você entra em uma outra esfera, na qual o equilíbrio de direitos e deveres é a coisa fundamental. Ou seja, já não é apenas a organização da sua vida que interessa. Não é apenas o encaixe da sua vida dentro de uma engrenagem maior que rende alguma coisa para você. É o encaixe do seu projeto e da sua organização pessoal numa infinidade de relações com outras pessoas que têm objetivos próprios e que se consideram, assim como você, o centro do universo.

Dessa forma você desenvolve o senso daquilo que hoje se chama cidadania. Cidadania é saber [00:40] que você tem direitos e deveres, ambos limitados, e que os outros também têm. Esse senso dos direitos e dos deveres não chega a você sob a forma abstrata de um código civil ou penal, nem sob a forma dos dez mandamentos ou de nenhuma filosofia política abstrata, mas sob a forma do código de lealdade vigente no lugar onde você está.

Por exemplo, lembro-me que um dos primeiros códigos que aprendi, ainda dentro do jornalismo, foi que havia uma conspiração geral para todo mundo trabalhar menos e ganhar mais. Todo e qualquer serviço devia ser feito na base do mínimo indispensável e os méritos de cada um deveriam ser maximizados perante a empresa. Todos conspiravam juntos --- não era uma coisa individual --- para trabalhar o mínimo e ganhar o máximo. Nesse sentido, ludibriar a empresa onde se trabalhava era um dever. Podendo ludibriar, tínhamos de ludibriar. Quando saíamos para fazer as reportagens para o jornal, às vezes em viagem, havia um "mandamento divino" que dizia que tudo tinha de ser superfaturado. Se você viajava até Sorocaba, faturava como se tivesse viajado até o Amazonas. A tarifa do ônibus seria a mais cara, a do hotel seria a mais cara, tudo seria superfaturado de forma que sobrasse sempre um dinheirinho no seu bolso. Isso era regra áurea. E se você apresentasse contas muito precisas e realistas seus colegas ficariam revoltados, pois você estaria boicotando o superfaturamento deles. Adaptar-se a essa regra implicava uma ambiguidade. Você tinha uma regra para lidar com os colegas e outra para lidar com a empresa. A empresa era considerada apenas um malefício temporário que você tinha de suportar.

No entanto, também havia outra regra: as pessoas que aos olhos do chefe ou patrão pareciam mais identificadas com as finalidades da empresa subiam e outros ficavam embaixo. Então chegava um momento na vida em que você tinha de optar: ou serei um bom colega dos meus colegas e ficarei embaixo com todos eles --- no fim de semana nos juntaremos num bar para tomar cerveja, falar mal dos outros e lamentar a nossa porca vida --- ou voltarei as costas para eles e ficarei do lado do patrão ou do chefe. Ou seja, vou me comportar na linha horizontal ou na vertical? Se eu subir um pouco na vida, todos os meus colegas vão me odiar e falar muito mal de mim, mas a empresa estará satisfeita e terei uma perspectiva melhor.

Essas regras você vai ter de aprender. Elas não visam apenas a produzir um rendimento, mas a obter para você o apoio da comunidade. Você tem de ter um lugar na comunidade. Você tem de ser respeitado, gostado, amado se possível. Tem de agradar as pessoas e ser justo com elas, de acordo com o padrão de justiça que está vigente naquele lugar. Esse padrão de justiça, quando julgado filosoficamente desde uma distância maior, pode parecer uma verdadeira monstruosidade, como a mim me parece.

A respeito disso leiam Aleksandr Zinovyev, The reality of communism, e vocês verão o conjunto de códigos totalmente predatórios que o indivíduo tem de obedecer para ser aceito pelo seu grupo, sua empresa etc. Nesta fase, quando se está nesta sétima camada, o acerto ou desacerto dos vários códigos ainda não interessa objetivamente. O que interessa é aprender os códigos e saber praticá-los. Evidentemente, a opinião do grupo torna-se uma coisa extremamente importante para você porque o seu futuro depende disso. Para abrir caminho na sociedade você vai precisar ser aceito por algumas pessoas.

Ainda nesse exemplo comum no jornalismo, outra regra bastante disseminada dizia que se você subisse na base de agradar seus superiores e dar as costas a seus colegas, apesar de subir, perderia totalmente a lealdade dos colegas e não teria poder de comando sobre eles. As pessoas que subiam no jornalismo tinham de ser de uma engenhosidade fora do comum. Elas tinham de agradar os chefes e superiores, mas ao mesmo tempo não podiam perder completamente o elo de cumplicidade com os antigos colegas. É claro que raríssimas pessoas conseguiam esse ponto de equilíbrio. Alguns subiam e eram odiados, de maneira que quando as pessoas obedeciam era de má vontade, e estavam continuamente buscando puxar o tapete deles e substituí-los por outros que os representassem. Basta isso para você ver que a atmosfera nesses lugares era irrespirável. Havia um senso de ameaça por toda parte. Havia até um personagem mítico que se chamava no jornalismo brasileiro "o passaralho". De vez em quando o passaralho descia sobre a redação e dez ou quinze perdiam o emprego. Todo mundo vivia num constante temor do passaralho, embora ele raramente descesse. Eu acredito que era mais ou menos assim por toda parte. Depois observei que no meio universitário era a mesma coisa e em empresas privadas um pouco menos. No mundo da indústria isso também acontecia, mas era um pouco menos.

Absorvendo esses códigos você se torna uma pessoa igual às outras: torna-se um cidadão, com seus direitos e deveres e, tendo sua posição reconhecida, consegue o mínimo de apoio da comunidade, sem a qual você não pode viver. É claro que pode se introduzir já aí uma pequena preocupação quanto à justiça ou injustiça objetivas da sua conduta. Mas apesar de poder estar presente, essa preocupação não é o centro das atenções. Você está tendo mais trabalho para aprender e se adaptar aos códigos do meio e não vai necessariamente julgá-los.

Camada 8

Nesse ponto você é praticamente um homem maduro, mas para isso falta uma coisa: lembrar de tudo o que fez e, depois de conquistada uma certa posição social, ser capaz de examinar tudo aquilo criticamente. É a hora de se fazer certas perguntas: o que fiz da minha vida? Isso é justo ou injusto? É isso que eu quero? Não é isso que eu quero? Sou um fracasso? Sou um sucesso? etc. Esse autoexame o recoloca, no plano da história, na quarta camada. Mas agora já não apenas no sentido de encontrar e definir objetos que simbolizem a felicidade ou a infelicidade para você, mas sim no sentido de saber o que você fez pela sua própria felicidade ou infelicidade e encarar-se a si mesmo pela primeira vez como sujeito dos seus atos. Só quando você está nesse ponto é que se pode dizer que é um homem maduro: aquele que não é apenas um cidadão, mas alguém. Ele tem consciência de si e é capaz de julgar-se a si mesmo. Isso é extremamente difícil.

Quando eu repasso mentalmente a minha experiência de ter vivido no Brasil durante tanto tempo --- vivi cinquenta e oito anos nesse país --- vejo que a maior parte das pessoas que conheci tinha parado na camada quatro. Ou seja, não tinham chegado sequer a ter o teste decisivo de sua capacidade. Fugiam do teste, buscavam proteção. De certo modo, encruavam e não alcançavam o desenvolvimento humano que é próprio da espécie.

Tudo o que estou descrevendo é próprio da espécie humana, os animais não tem isso. Por exemplo, o animal aprende todos os códigos de convivência em um dia, porque são muito simples: você obedece o mais forte e fica quieto. Não há mais nada para aprender depois disso. Vendo um documentário sobre lobos, notava que o lobo chefe, o mais forte, quando conversava com os outros mantinha o rabo elevado e o outro abaixava o rabo. Já é um código. O cara que tem o rabo levantado é o que manda. Ou você vai lá, bate nele e o obriga a abaixar o rabo, ou você abaixa o seu e fica quieto. Esses códigos são muito simples. É desconhecido no reino animal qualquer longo aprendizado de tentativa e erro. Eles definitivamente não aprendem isso por tentativa e erro. Esse negócio já está no código genético e acho que basta uma única experiência para ficar sabendo para o resto da vida.

No ser humano não funciona assim. Esse negócio é enormemente complicado. Ainda mais porque você vai conviver com muito mais membros da sua própria espécie do que qualquer animal jamais fará. Não apenas conviver diretamente, mas imagine todas as pessoas com quem você encontrou ao longo da vida, toda a imensa variedade de relações que você teve com elas, e mais aquelas que influenciaram a sua vida à distância como, por exemplo, o sujeito que era Presidente e assinou um decreto que mudou sua vida econômica, ou pessoas que você viu na televisão, no cinema etc. É uma multidão de gente. Nenhum bicho jamais teve acesso a isso. Até quantitativamente a situação é mais complicada.

Assim vemos que é próprio do ser humano atravessar todas as camadas. Todavia, algo é característico: para quem está numa camada, os objetivos da seguinte são incompreensíveis. Considere um bebê que está em plena segunda camada. Para ele tudo no mundo em torno é objeto e, portanto, só ele existe como sujeito. Ele tenta dominar fisicamente as coisas, por exemplo, forçando o brinquedo ou o cachorrinho a fazer o que ele quer --- lembro-me que um dos meus filhos tinha um cachorro e de vez em quando ao discutir com o cachorro, [00:50] meu filho o mordia; certamente o cachorro não entendia direito e duvido que passasse a obedecê-lo mais por causa daquilo ---. A segunda camada é aquela onde você força a natureza. Isso significa que a etapa seguinte, que é uma etapa de intercomunicação e de negociação, é inimaginável para você. Qualquer sinal que venha de uma das camadas superiores será interpretado pelo indivíduo dentro dos parâmetros da própria camada em que ele está.

Por exemplo, vejo muitos pais tentando dar explicações a crianças que estão em plena segunda camada dizendo que elas não podem fazer certas coisas por causa disso ou daquilo. A criança interpreta isso como uma imposição de força física mediante o tédio, sentindo-se obrigada a ficar quieta ouvindo a coisa toda. Ela não está entendendo uma palavra do que o outro está falando, mas está obrigada a ficar quieta. Você paralisou a criança. É assim que ela vai entender. Por isso eu digo a mães e pais que não expliquem nada para crianças pequenas. Simplesmente dêem uma ordem e está acabado. E se a criança não quiser obedecer, faça um olhar assassino. É simples. Eu demonstrei isso com a minha netinha e minha filha viu. De vez em quando ela fazia um show de ranhetice e a minha filha ficava desesperada. Então eu disse que lhe ensinaria uma técnica. Quando a minha netinha começava a ranhetice eu fazia um olhar assassino e ela parava na mesma hora. Olhava para mim e a chupeta caia da boca. Obedecia imediatamente. Eu não usava nenhuma palavra. Com a palavra você pode amedrontar a criança, mas é impossível forçá-la a entender o que você quer dizer. Vejo que nessa idade as crianças obedecem facilmente a uma ordem, quando a mesma é simples e dada com energia. Mas dar uma bronca é totalmente inútil, porque ela vai entender a bronca como uma imposição de força física e não como uma negociação. Uma criança pequena nunca sabe por que você está dando a bronca. Ela sabe apenas que você está dando a bronca. O porquê depende da terceira camada, ou seja, depende de linguagem, de negociação, de significações etc. Do mesmo modo que a criança aceita a ordem, ela não aceita bronca e não aceita explicação. Isso só serve para enervar e deixar a criança mais rebelde ainda.

Do mesmo modo, quando uma criança está em plena conquista da sua rede imediata de relações, todo o mundo das emoções pessoais é incompreensível para ela. Por isso que se nota que adolescentes parecem insensíveis e cruéis. É que agora estão num mundo de jogo. A terceira camada é eminentemente jogo. É interação, troca e descoberta desse instrumento maravilhoso de ação que é a linguagem. Podemos obter o que queremos através da linguagem. Isso ocupa de tal modo a mente deles que seria impossível imaginar que o que ele está fazendo pudesse magoar outra pessoa. Você não vai conseguir explicar para um sujeito desses o que é magoar. Ele não vai entender. Em cada uma das camadas, a temática da camada seguinte é incompreensível e invisível.

Para vocês verem como é pobre a situação da sociedade em que vivem, observem em torno e vejam a multidão de pessoas incapazes que querem ser felizes e que contam com a proteção dos outros para isso. São pessoas que vivem buscando atenção, carinho, um espacinho para elas, mas que não são capazes e nem tentam ser capazes de fazer nada. Pessoas que fogem de desafios da vida, isto é, que não chegaram nem na quinta camada ainda. Isso é uma tragédia.

É só na oitava camada que você está lidando com um homem adulto, ou seja, com alguém que sabe que o tecido das suas obrigações sociais não é tudo. Alguém que sabe que existe para além disso uma dimensão do sentido da vida, da moralidade, da consciência moral, do certo e do errado, e assim por diante. Não que antes a pessoa não soubesse o que é o certo e o errado. Mas é só quando se chega neste ponto que o indivíduo interioriza efetivamente a questão do certo e do errado. Para qualquer pessoa que esteja na sétima, sexta, quinta camada etc., o certo e o errado são elementos do mundo exterior. Se você está na segunda camada, o certo e o errado são forças físicas que estão se impondo a você. Você deixa de fazer o errado porque senão o seu pai vai bater em você. Se você está na terceira camada, há o elemento de jogo. Aí é quando o sujeito aprende, por exemplo, que ele pode se fingir de bonzinho. Ele pode fazer uma coisa mas fingir que está fazendo outra --- não que ele não pudesse fazer isso antes, mas ali ele adquire o domínio disso ---. Se está na quarta camada, tudo para ele é uma questão de felicidade ou infelicidade, de como está se sentindo. O bem é aquilo que ele ama, que faz sentir-se bem, e assim por diante. Na quinta camada, o bem é aquilo que lhe dá a vitória, que reforça o seu ego, e o que o deprime parece o inimigo, o demônio. E assim por diante.

Mas é só quando se chega na oitava camada que o problema do bem e do mal começa a existir efetivamente para o indivíduo. A oitava camada é uma crise, onde a pessoa pode verificar que falhou no sentido da vida, que sua vida não tem sentido nenhum. É onde a pessoa pode se arrepender de seus pecados e tentar remanejar o comando.

Camada 9

Em geral os seres humanos adultos param na oitava camada. Mas alguns criam uma nova camada, onde descobrem que todas aquelas perplexidades, contradições e dificuldades que observaram ao rever a própria vida são componentes estruturais da vida humana. Descobrem que todos os seres humanos tiveram as mesmas dúvidas e os mesmos sofrimentos. Alguns aprendem que esses problemas não são só seus, mas da humanidade. E aprendem-no através da cultura. Aprendem lendo, informando-se e vendo milhares de exemplos de outras vidas, interessando-se por vidas que se passaram há cem, duzentos, quinhentos anos atrás como se fossem a vida deles mesmos. Isso quer dizer que o padrão de humanidade dessas pessoas amplia-se formidavelmente para abranger milhões de pessoas --- reais ou meramente imaginárias --- que elas nunca vão conhecer. Através desse esforço de absorção da experiência humana universal, esses indivíduos, se não encontram uma solução para seus dramas pessoais, encontram uma nova razão de viver. É a isso que eu chamo de personalidade intelectual.

Você adquire uma personalidade intelectual quando completamente tudo o que lhe acontece já não é vivenciado apenas como seu problema pessoal, mas como exemplo, símbolo ou sugestão de problemas enormemente maiores que talvez não tenham solução. Pensar nesses problemas e dedicar um tempo a eles torna-se uma das grandes finalidades da vida humana. Não é preciso dizer que se você não chega a ter uma personalidade intelectual, não consegue acompanhar este curso, mesmo que seja um gênio, pois aqui não é uma questão de inteligência ou de QI, mas da consistência existencial do indivíduo.

Demais camadas da personalidade

Existem outras camadas depois dessas, mas não vêm ao caso no momento. Às vezes as pessoas tentam imaginar o que são as camadas seguintes, mas é apenas uma curiosidade intelectual. O que interessa não é examinar as camadas seguintes, mas examinar a seguinte. É saber onde você está.

Quando eu convoco as pessoas para este curso, estou tentando atender uma necessidade que é referente à nona camada, a personalidade intelectual. Portanto, não estou aqui para resolver problemas pessoais. Não estou aqui para lhe dar felicidade, nem alívio, nem para lhe ensinar o sentido da vida. Estou dando instrumentos para que você cumpra as finalidades que são inerentes à nona camada da personalidade. Ou seja, este curso é para intelectuais.

Acontece que na sociedade brasileira a função intelectual está muito mal definida. Ela não é clara para o distinto público. Por isso acontecem aberrações como esta de dar o Prêmio Jabuti para Chico Buarque de Holanda, que é um indivíduo de consistência intelectual absolutamente nula. Maria Rita Kehl então nem se fala. A totalidade da obra de Maria Rita Kehl consiste em reclamar do sexo masculino e ponto final. É uma coisa de uma pobreza tão grande que nem se entende como isso possa entrar em um concurso. Mas é preciso dar o prêmio a esses dois porque não há mais escritores. Não se produziu absolutamente nada de bom nos últimos vinte ou trinta anos. Então não há concorrentes.

Como você vai desenvolver uma personalidade intelectual num lugar onde não há pessoas que esperem isso? Você vai ter de olhar para o exterior. Você pode também olhar para mim. É claro que eu tenho uma personalidade intelectual e que na minha vida praticamente não tenho assuntos pessoais a resolver. Tudo o que me acontece é amostra ou sinal de alguma coisa na qual devo pensar e, ao pensar naquilo, devo pensar usando todo o material e recursos [1:00] que adquiri ao longo de cinquena anos de estudo. Eu quero chegar a uma compreensão efetiva e não me incomodo de que pessoalmente continue sofrendo este ou aquele problema. Eu não estou mais buscando a minha felicidade. O eixo já passou para outro lugar. Ou seja, entendi que a felicidade é um resultado mais ou menos acidental. A felicidade é como o prazer, dizia Santo Tomás de Aquino. O prazer é um efeito lateral resultante de uma coisa que deu certo. Ele não é um objetivo. Ele nunca é um objetivo. Afinal de contas, o prazer é um termo abstrato que designa uma constelação de sentimentos que podem diferir muito de uma pessoa para outra. O prazer é evanescente demais para você poder buscá-lo. Você vai ter de buscar alguma coisa concreta.

Por exemplo, o que é o prazer gastronômico? Você pode comer o prazer gastronômico? Claro que não pode. Você vai ter de comer alguma coisa concreta. Essa coisa pode lhe dar prazer ou desprazer. Santo Tomás de Aquino tem toda a razão. Você comeu, aquilo funcionou, então você diz que tem prazer. O prazer é o nome que você dá ao efeito lateral subjetivo de alguma coisa. Com a felicidade acontece a mesma coisa. Buscar a felicidade é a coisa mais inútil do mundo, porque você nunca sabe o que vai deixá-lo feliz ou não. É certo que algumas coisas o deixam feliz e outras o deixam infeliz, então são aquelas que você vai ter de buscar. Nosso esforço dirige-se sempre a fazer alguma coisa, a conquistar algo, e não a uma coisa abstrata chamada felicidade. Isso eu já entendi faz tempo: buscar a felicidade é fazer buraco na água. Quando o sujeito passa da camada quatro para a cinco, já entendeu isso. Se ele buscar a felicidade ficará infeliz, então é melhor buscar vitória, autoafirmação, força etc. Nesse ponto, já passou do estágio da busca da felicidade.

Entretanto, o Sr. Cristóvão Buarque quer colocar um artigo na Constituição Federal dizendo que todo brasileiro tem direito à felicidade. Se ele fizer isso, e se der certo, então todos entraremos com um requerimento dizendo que nossos direitos constitucionais foram feridos pela vitória da D. Dilma Roussef, porque estamos muito infelizes por ela ter ganhado a eleição. Em um país onde isso chega a ser discutido todo mundo está na camada quatro. Há uma espécie de visão material da felicidade. A felicidade é como uma coisa que pode ser garantida a esta ou àquela pessoa.

Exame da biografia individual

Peço que cada um examine profundamente sua biografia e pense no que está buscando neste curso. Estou sugerindo isso porque vejo que frequentemente essas coisas falham. Como os indivíduos não desenvolveram ainda uma personalidade intelectual, embora tenham aqui a chance de desenvolvê-la formidavelmente, seus objetivos centrais não estão na vida intelectual, embora estejam participando da vida intelectual materialmente. Este é um grande problema: o indivíduo está efetivamente em uma camada, mas sua existência social real o está vinculando à camada seguinte. Isso é gerador de infinitos equívocos.

Imagine, por exemplo, um indivíduo que esteja em plena camada cinco e arrume um emprego. Ele está num meio profissional onde tudo funciona segundo as regras do Zinovyev: os direitos e deveres recíprocos dos membros de uma comunidade estão arranjados de modo que cada um atenda aos seus interesses da melhor maneira possível, sem pisar nos dos outros. O indivíduo que está a fim de autoafirmação destrói a harmonia desse ambiente. Ele pode ser rejeitado pelo meio e não saberá por que foi rejeitado. Ele vai interpretar isso em termos de camada cinco, isto é, vai entender que perdeu o jogo. E como tudo o que interessa para ele é demonstrar sua força, a demonstração de sua fraqueza é absolutamente intolerável. É a total infelicidade. Então ele vai tentar de novo várias vezes e o desajuste ficará cada vez mais profundo. Esse é o indivíduo que chamamos de "chato". O chato é um sujeito de uma camada anterior que está colocado em uma situação que exige conduta de uma camada seguinte. Ele está completamente deslocado e só atrapalha.

No Brasil, ser intelectual é coisa que dá prestígio, embora não haja intelectuais. É uma coisa fantástica. Ninguém está cumprindo as finalidades da vida intelectual, mas fingir que cumpre, de algum modo, dá prestígio. Isso torna a condição de intelectual uma coisa que é ao mesmo tempo desejada, invejada, desprezada e odiada. Tudo isso ao mesmo tempo. É um complexo de sentimentos absolutamente incongruentes que ficam imantados em torno de uma determinada função social. Quando o indivíduo pensa que vai ser um intelectual "quando crescer", já começa a ter todos esses sentimentos com relação a si mesmo.

Uma solução que muitas pessoas encontram é dizer que não querem ser intelectuais mas apenas levar sua própria vida. Querem apenas se aperfeiçoar e alcançar a salvação da própria alma. Se o sujeito entrou nisso, já temos ali um trabalhador a menos e um canalha a mais. Nessas condições, a adesão a finalidades religiosas é sempre absolutamente falsa. Você verá isso sobretudo nos discursos dessas pessoas, que estarão cheios de citações bíblicas. Tudo será feito "em nome do Senhor". As pessoas cumprimentá-lo-ão "In Iesu et Maria" etc., usando toda uma linguagem eclesiástica, episcopal ou cardinalícia para arrogar-se importância e inibir o interlocutor, de modo que este sinta que aqueles estão falando em nome da Santa Madre Igreja, com quem não se pode discutir. Isso no Brasil virou epidêmico entre esse pessoal liberal, conservador, e entre antipetistas em geral.

Veja que eu só invoco o Senhor no meu programa de rádio para que proteja as pessoas contra mim. É a única vez que O invoco. Eu não fico fazendo toda hora prece em nome do Senhor. Só peço aquela ajuda ali porque realmente preciso. Sei que durante uma hora vou falar coisas horríveis sobre as pessoas e que a gente se excede realmente. Não quero cometer injustiças, então peço que Deus me fiscalize para eu não passar dos limites. É o único momento em que vocês me vêem fazendo isso. Invocar o nome de Deus em vão virou mandamento obrigatório no Brasil para todo esse pessoal. Eles acham que botar ali o nome de Jesus, de Maria etc., vai santificar o que eles estão falando. Ora, antes de você aprender a falar em nome de Jesus, você aprendeu a falar em seu próprio nome? Saiba que antes de chegar na camada oito, você não fala nada em seu próprio nome.

Você só tem uma voz própria, personalizada, quando tomou posse da sua vida inteira como problema, isto é, quando é capaz de meditar sobre tudo o que fez e ver que pode ser um fracasso ou que pode ter traído tudo. Enquanto você não tem uma espécie de crise de maturidade, não tem voz nenhuma. Você não fala sequer em seu próprio nome, mas apenas repete o que ouviu ou o que lhe parece conveniente dentro da regra do jogo.

Como é que pessoas assim estão toda hora com o nome de Deus na boca? Isso é um sinal de subdesenvolvimento mental e espiritual enorme, porque essas pessoas estão blasfemando o tempo todo e não percebem. Por que você acha que um dos dez mandamentos é não usar o nome de Deus em vão? Porque você não tem nenhum direito de atribuir a Deus aquilo que você está falando. Você fala a maior estupidez e mete lá o carimbo de Jesus Cristo sem perceber que o está ofendendo.

É claro que além de falar em nome de Jesus Cristo, você pode falar em nome de inúmeras outras coisas. Você pode falar em nome do povo brasileiro, em nome dos humilhados e ofendidos ou em nome de uma classe social. Só que todas essas representações são falsas. Posso lhes dizer que, com sessenta e três anos, nunca consegui falar em nome de coisa nenhuma, exceto de mim mesmo. Esta medida eu sempre tive: sei que isto aqui não é opinião de ninguém, não tenho autoridade nenhuma para dizer isto, a não ser a do meu próprio testemunho. Nada garante o que estou falando.

Há algumas aulas atrás, falei das pessoas que ficam julgando o conteúdo do que estamos dizendo aqui, em nome de algo que elas acham que é a doutrina da Igreja. Esse é um erro que as pessoas estão cometendo. Não estou aqui enunciando nenhuma doutrina da Igreja. Estou apenas apresentando algumas coisas que vi e entendi, na medida em que as vi e as entendi. Não pretendo que isso tenha nenhuma validade dogmática. Portanto, nada do que digo pode ser conferido com a doutrina da Igreja.

Nós, enquanto estudiosos de filosofia, assumimos o compromisso de Santo Tomás de Aquino: embora ele escrevesse obras de teologia baseadas na Sagrada Escritura, também escreveu várias obras de filosofia onde o compromisso era jamais tomar os dogmas da Igreja como premissa. Você tem de raciocinar a partir do fato, da experiência, dos princípios da razão e só. E é isso o que estamos fazendo. No Brasil de hoje é muito difícil entender isso, porque você tem milhares de pessoas amedrontadas, que estão na camada quatro, buscando uma proteção, um guarda-chuva, e crêem encontrá-lo na Santa Madre Igreja. Não é uma maravilha? Um idiota covarde de repente tem um imenso guarda-chuva em cima de si que o protege contra todos os males, erros e heresias, e que lhe dá a chancela de Nosso Senhor Jesus Cristo a tudo aquilo que fala. Quando olho essas coisas fico consternado, porque é um sinal de miséria humana. Nós aqui neste curso não nos podemos permitir isso jamais.

Peço encarecidamente a todos os alunos e ouvintes --- porque há pessoas que vêm e ouvem um pedacinho --- [1:10] que não falem nada em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Falem em seu próprio nome. Só digam em nome dEle aquilo que Ele mesmo disse. Se você está citando uma frase do Evangelho, é em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando você vai rezar, fala "em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo". Mas o que você fala em seguida? A sua própria e distinta opinião? Não! Você fala as palavras do Pai-Nosso e da Ave-Maria. Mas criar essa aparência de autoridade espiritual para proteger uma imensa covardia de um sujeito que tem trinta, quarenta, cinquenta anos e está lá como um adolescente buscando proteção é uma coisa muito feia. Não estou dizendo que alguém aqui em particular fez isso. Eu sei quem fez.

Às vezes eu dou uma aula inteira em função do pior aluno e algumas pessoas até se irritam e reclamam, achando que fico falando isso para pessoas atrasadas e fazendo os outros perderem tempo. Mas faço isso por um motivo muito simples: nunca é perder tempo recordar certas coisas. Se você amarrar dois burros um no outro e botar para correr, qual será a velocidade da dupla? A do mais lento. O mais lento tem a capacidade de atrasar o mais rápido. Mas o mais rápido não pode arrastar o outro. O indivíduo que está entendendo menos é aquele que tem de receber mais explicações, e aqueles que já sabem disso vão sair reforçados na coisa. De forma que é sempre bom repetir certas coisas.

Peço a vocês que releiam os capítulos I e II do livro do Sertillanges, A Vida Intelectual. Aquilo é absolutamente indispensável. O Padre Sertillanges explica que o exercício da vida intelectual é feito de determinadas virtudes. A capacidade de você conhecer as coisas com acerto, de descobrir a verdade, faz parte da virtude. Não é uma questão de QI. Não existe esse negócio de inteligência como um instrumento que você domina. Sua inteligência é função do seu amor pela verdade e exclusivamente disso. A única e principal qualidade de que você precisa para fazer este curso é ter amor à verdade.

Ter amor à verdade é, em primeiro lugar, querer conhecer a verdade sobre você mesmo, no sentido que isso tem quando se alcança a camada oito. Ou seja, você é uma pessoa que sabe de sua insuficiência, sabe que tem problemas e defeitos que ao longo de toda sua vida não conseguiu vencer e que não vai conseguir vencer nunca, e que essa história de fingir que pratica virtudes é uma coisa muito feia. A própria expressão "praticar virtudes" é completamente errada, porque virtude é uma força e essa força é Deus que lhe dá, às vezes. A virtude pode também se tornar um hábito, isto é, algo que você tem pela prática repetida. Aquilo se incorpora e você esquece que tem a coisa. São essas virtudes que você nem sabe que tem que nos interessam, isto é, aquilo que já se tornou normal para você.

Um dia ao conversar com meu filho Pedro ele me disse que foi depois de mudar para os Estados Unidos que ficou sabendo o que é um amigo. No Brasil ele não sabia. Por exemplo, encontrar pessoas leais, que o amavam, que queriam o seu bem, que queriam que ele fosse para frente, nunca havia acontecido no Brasil. Ele via todos os seus amigos puxando o tapete uns dos outros, deprimindo os outros, fazendo aquele tipo de gozação sarcástica e sádica que se sabe que vai ferir o outro, e isso era normal. Pergunto eu: de todas as pessoas que passaram pelo meu curso, com quantas eu posso ter esse tipo de relação?

Por exemplo, minha mulher está aqui presente, conhece-me há trinta anos e sabe que nunca digo não a qualquer pessoa que me peça ajuda. Não quero saber se o sujeito é bandido ou desonesto. Nunca! Essa virtude eu realmente tenho, é uma coisa que se tornou natural em mim. Não é uma coisa que eu faça porque queira fazer. Faço porque não sei fazer de outro modo. Alguns me previnem dizendo que determinado sujeito vai me enganar. Mas não tem importância, porque se ele me enganar o problema é dele, não meu. E se me enganar duas vezes, na terceira digo adeus, porque aí já fico com medo. Não posso conviver com esse sujeito porque ele vai me dar prejuízo.

Para quantos de vocês essas atitudes são normais? Por exemplo, o perdão. Examine e veja se você tem o instinto do perdão. Quando alguém lhe faz alguma coisa ruim, seu primeiro impulso é perdoar ou buscar uma vingança e dar uma bela justificativa moral para aquilo?

Outro exemplo: quando é que você acha que deve entrar em uma briga? Quando você acha que tem direito de ficar com raiva e, por exemplo, bater em uma pessoa ou denunciá-la publicamente? Vou lhe dar um critério que acho obrigatório para todas as pessoas que têm uma personalidade intelectual: você só tem direito de entrar em uma briga se ela tiver uma importância moral objetiva. Não que tenha importância para você, mas como exemplo para a humanidade em geral. Se você não encara as coisas dessa maneira, está com o critério de outra camada.

Sinceramente, e digo de coração, não acho que me ofender ou prejudicar seja pecado. Existe algum mandamento que diga "não prejudicarás o Olavo"? Não tem. Em princípio, não acho ruim que as pessoas façam isso. Mas em certos casos, a conduta do indivíduo está servindo de mau exemplo, deseducando os outros e prejudicando ele mesmo. Aí nós temos de entrar. Isso para mim já se tornou uma coisa óbvia, e eu tenho a presunção de transmitir isso a todos os meus alunos. Se nós não aprendermos isso, não alcançaremos a grandeza suficiente para desenvolver em nós uma personalidade intelectual e poder atuar publicamente de maneira que seja boa e útil.

Isso quer dizer que uma pessoa de nível intelectual nunca se enfeza muito com ofensas pessoais, porque ela está ocupada com outra coisa: com as verdadeiras ofensas. Por exemplo, essa situação intelectual do Brasil, com o total desrespeito pelo conhecimento e pela alta cultura, me ofende profundamente. Se alguém xinga o Olavo, só o Olavo vai sair prejudicado e mais ninguém. Agora, se nisso entra um elemento de despeito ou de desprezo pela alta cultura, aí me ofende. Sem falar naquilo que ofende o próprio Deus. E normalmente no Brasil as pessoas que ofendem Deus, sempre o fazem em nome do próprio Deus. Sempre entra lá o "em nome de Jesus", sempre entra três ou quatro invocações bíblicas. O indivíduo às vezes comete o próprio pecado contra o Espírito Santo, que é negar uma verdade que ele sabe que é verdade, e no mesmo momento está citando Jesus, Maria etc. sem perceber o que está fazendo. Pessoas assim não têm muito o que conversar conosco e não têm nada o que aprender comigo.

Embora eu prefira, nestes cursos, manter uma atitude descritiva e analítica e não exortatória --- de dizer o que as pessoas devem fazer ---, hoje achei que era uma obrigação fazer isso porque, à medida que vamos transmitindo novos materiais, novas informações, abrindo acesso a ideias, autores e fatos, a inteligência da pessoa vai sendo estimulada. Mas a inteligência sem a devida base emocional e moral é um problema porque vira sempre um fingimento. O indivíduo está exercendo funções de uma camada intelectual, mas em função de motivações menores, de camadas anteriores.

Vejam, por exemplo, os casos de algumas figuras políticas importantes no Brasil. Em que camada você acha que está o Lula? Indiscutivelmente na camada seis. Ele sabe fazer as coisas, obter vantagens e resultados. Quanto aos códigos morais e de cidadania que ele segue, veja aquele caso do menino do MEP como amostra da lealdade que ele têm com seus próprios companheiros. Ele só tem lealdade na medida do interesse próprio. Quando um homem desses usa a palavra cidadania, é claro que a palavra é vazia. É apenas um emblema, um enfeite, um adorno que ele está usando para se fazer importante. Quando usa a palavra ética, é a mesma coisa. Você sabe que essas palavras não tem sentido substantivo na boca de uma pessoa dessas. Quanto à D. Dilma Roussef, duvido que tenha alcançado a camada seis, porque nunca a vi fazer nada que funcionasse --- Lula fez várias coisas que funcionam: o próprio PT e o Foro de São Paulo são exemplos ---. São essas pessoas que estão mandando no país.

Agora imaginem os formadores de opinião. Leiam as colunas de jornal. Oitenta por cento é constituído de fingimento de uma importância que não tem. Pessoas que escrevem num tom que está infinitamente acima delas, que tentam fingir uma impessoalidade acadêmica. A impessoalidade acadêmica é uma coisa terrível. Imaginem um sujeito que está em plena camada quatro ou cinco que entra numa universidade e aprende a escrever como um sociólogo ou cientista político, onde há uma série imensa de termos e de construções feitos para fingir uma distância do problema. Imaginem que coisa mais feia que sai daí. A produção acadêmica brasileira é constituída disso. Um fingimento de distanciamento, de seriedade acadêmica por parte de pessoas que têm objetivos emocionais ou puramente egolátricos muito inferiores àquilo. É claro que não é aí que vocês têm de buscar seus modelos.

Se não houver constantemente um autoexame --- [1:20] no sentido de se perguntar o que você está querendo na verdade, qual seu objetivo dominante, qual a chave de todos os seus esforços que está por trás de todas as suas alegações --- você não estará cumprindo a finalidade deste curso, embora possa vir a ter algum aproveitamento intelectual aqui.

Repito: este curso não foi feito para atender a nenhuma necessidade pessoal de ninguém, mas a uma necessidade nacional de criar uma geração de intelectuais que possa restaurar a dignidade da vida intelectual no Brasil. Quem quer que tenha sido chamado a isso, saiba que foi chamado a algo muito honroso. Todavia, essa coisa honrosa não pode ser apenas uma camuflagem para algum objetivo menor. Seus objetivos menores serão atendidos também. Quando você muda para a camada posterior, a anterior é absorvida. Significa que ela não é mais o foco, mas está lá dentro.

Por exemplo, um indivíduo na quinta camada está atendendo ao seu desejo de felicidade. Só que ele já entendeu que a felicidade não pode ser conseguida diretamente, mas que passa por um negócio chamado "eu". O "eu" tem de valer alguma coisa, ocupar um espaço, senão está perdido, e assim por diante. A vida intelectual pode atender a todas as oito camadas anteriores, desde que seja o centro articulador de todos os seus esforços.

Perguntas dos alunos sobre as camadas da personalidade

Aluno: Há algo a se fazer para chegar rapidamente a uma camada de personalidade mais importante, ou tudo o que se requer é apenas seguir aquilo que as circunstâncias da camada em que se está impõem?

Olavo: É claro que há algo a se fazer. Se não houvesse eu nem daria este curso. Evidentemente não tenho a ilusão de que todo mundo vai chegar aqui em plena maturidade, pronto para desenvolver uma personalidade intelectual. Não posso acreditar nisso. É evidente que as pessoas às vezes estão em camadas bem mais baixas. O que posso fazer é precipitar a crise de passagem. Para isso é claro que o sujeito tem de identificar claramente e com toda a honestidade em que camada está. Essa honestidade não lhe dará maturidade ainda, mas simplesmente precipitará a crise de passagem. O critério para você saber em que camada está é perguntar onde dói. O que lhe ofende e o magoa profundamente?

Quando dois menininhos pequenos estão brincando, não é incomum que um tente tomar o brinquedo da mão do outro e este, em reação, desça a mão no primeiro. Nesse caso, vê-se que simplesmente contrariar seu instinto já é ofendê-lo. O menino está na camada dois porque o que quer que se oponha a seu instinto dói nele.

Quando você estuda a vida de Padre Pio --- um homem que estava na camada doze, que é o confronto com a eternidade --- vê que ele só se ofendia com aquilo que ofendia Deus. Você podia ofender o Padre Pio do jeito que quisesse. Podia boicotar os planos dele que ele não ligava muito. Mas se ele visse que a coisa ofendia gravemente Deus, aí ficava uma fera. Ele vivia ali. Aquele era o lugar permanente onde ele estava.

Então pergunte a si mesmo onde lhe dói. O que o magoa e frustra profundamente? Dessa forma você terá a resposta sobre em que camada está. Se você é dessas pessoas que vivem ressentidas com o mal que lhes fizeram, se não aceita rejeição --- a garota não quis ir para o motel com você e você diz que seu mundo acabou ---, então está em plena camada quatro. E assim por diante. Se você não suporta derrota de jeito nenhum, se em tudo tem de mostrar que é o primeirão, então é camada cinco. Estar na camada cinco significa que você não está preparado para a vida em sociedade. Essa camada é própria dos dezesseis ou dezessete anos, onde você ainda tem um pai que o protege --- o pai é seu mediador na vida social ---. Você participa da vida social através da família ou do pai. Você não tem uma função própria ainda. É claro que pretendemos que as pessoas mudem de camada rapidamente.

Também pode-se perguntar se é possível recair em uma camada anterior. A resposta é positiva. Por exemplo, suponha que você viva numa situação extrema, que você esteja num campo de concentração sem ter o que comer e pesando trinta e dois quilos. Nesse caso, suas únicas preocupações serão as de camada dois evidentemente. Mas isso é temporário. Pode tornar-se permanente em certas circunstâncias. Mas isso é uma desgraça e não é para acontecer. Pelo próprio exemplo que estou dando, você vê que esse não é o caminho normal do ser humano.

Uma coisa importante é que à medida que você passa de uma camada a outra, há uma tendência a se aproximar de pessoas que estejam na mesma camada e que entendam as coisas a partir de seu mesmo código. Porém, você terá muito problema se, ao passar de uma camada a outra, continuar convivendo apenas com pessoas da camada anterior. Você pode ser, de certo modo, forçado a não se desenvolver, a voltar. Embora você não esteja realmente ali, vai ter uma comunicação de dois andares. O que você diz significa uma coisa para você, mas vai significar outra coisa completamente diferente para aqueles que o cercam. Durante quanto tempo você vai suportar tal isolamento? É possível que você chegue a "cortar a própria cabeça" simplesmente para voltar a ser do tamanho que os outros eram. Pode ser que você passe a pensar que cresceu demais, e que por isso tem de cortar o desenvolvimento, caso contrário seus amigos não vão mais gostar de você e assim por diante.

É natural que as pessoas procurem convivência --- pelo menos a convivência mais intensa --- com pessoas que estejam na sua camada, que tenham os mesmos interesses e, portanto, os mesmos pontos doloridos.

Aluno: Os estados mórbidos --- estados de depressão ou outros estados patológicos --- serão vivenciados diferentemente por pessoas que estejam em diferentes camadas?

Olavo: Certamente sim. Na depressão existem inclusive fatores neurobiológicos que não estão ao seu alcance. Mas a tradução simbólica que cada um fará disso será diferente conforme a camada em que esteja.

Aluno: A formação do imaginário pessoal é um elemento integrante para a passagem para a camada posterior?

Olavo: Claro! É fundamental. O tempo todo você está aprendendo coisas, absorvendo cultura e isso formará uma massa crítica que, de certo modo, o forçará a passar de uma camada para outra. Isso quer dizer que sem a aquisição de bastante cultura a pessoa não chega. Acho difícil uma pessoa sem cultura chegar à maturidade, porque ela não terá elementos simbólicos para raciocinar sobre sua vida. Não terá linguagem para isso. Mesmo que o indivíduo entre na crise da maturidade, provavelmente o que vai fazer é cair para uma camada anterior, porque não terá elementos para elaborar a situação.

Quando as pessoas entram em uma crise existencial e vão para a psicoterapia, o que vão fazer lá é aprender uma linguagem na qual possam falar o que estão sentindo. Muitos desses estados às vezes são vivenciados de maneira muda, inarticulada, e o próprio esforço de articulação impele a pessoa a saltar uma camada. Por exemplo, quando após o período de crise da camada oito se cria uma personalidade intelectual, os instrumentos de expressão da pessoa se diversificaram. Ela se tornou mais capaz de articular as coisas interiormente. Só que a articulação que faz já não é apenas de um problema pessoal. Aquilo se torna útil para muita gente. A pessoa está dando voz a muita gente, por assim dizer.

Aluno: Até que ponto o meio hostil, a realidade hostil brasileira, dificulta a produção de pessoas que consigam chegar a uma camada.

Olavo: O ideal da sociedade brasileira é manter todo mundo na quarta camada, exceto aqueles poucos felizes que chegaram à sexta e sabem ganhar dinheiro em cima dos outros. As pessoas que chegam à sexta camada vendem fórmulas de felicidade para os idiotas que ficaram na quarta. Isso é o Brasil. Coloquem na cabeça: a sociedade brasileira não é normal. Não é uma sociedade feita para o ser humano. É feita para manter todo mundo muito abaixo do que o ser humano pode fazer. A conquista da maturidade no Brasil é quase impossível, porque você não encontra os similares com os quais possa dialogar no mesmo nível. Aqueles que conseguem continuar evoluindo sozinhos vão enfrentar uma solidão monstruosa. Além de passar de uma camada para outra, terão de desenvolver uma capacidade extra de suportar a solidão. Essa capacidade para a solidão também não é normal no ser humano.

O livro do Sertillanges tem logo no capítulo I um parágrafo chamado O intelectual não é um isolado. A vida intelectual é constituída de colaboração. Se você tem de exercer isso em condições de isolamento, vai ter de fazer um arranjo. Ter a capacidade de se rearticular numa situação extremamente anormal não é exigível do ser humano. É um dom que alguns têm e outros não. A maioria não tem. Passar pelas camadas, evoluir, continuar crescendo até morrer é normal no ser humano. Todo mundo chega na décima segunda camada, [1:30] mas às vezes só quando morre. O confronto com a eternidade você vai ter algum dia, depois de morto. Mas alguns têm esse confronto em vida.

A capacidade para rearticular suas forças, para sobreviver em uma situação de muito isolamento, não faz parte da evolução humana normal. É uma situação anormal que requer soluções anormais, isto é, adaptações. Por exemplo, para me adaptar a isso criei meu próprio público. Não existem leitores para mim? Então vou formar os leitores. Quase nenhum escritor é obrigado a fazer isso. Imagine se Thomas Mann ou François Mauriac tivessem de inventar o seu próprio público. Isso nunca aconteceu com eles. Já existia um público para o qual eles escreveram. Mas eu tive de educar as pessoas para que fossem capazes de ler o que eu escrevia. Se eu fosse, por vocação, um escritor no sentido puro e estrito da coisa, teria sido liquidado. Mas eu tinha outras capacidades como professor, conferencista, articulador, promoter, organizador cultural etc. Tinha de fazer um pouco de tudo.

Um sujeito que viveu uma situação muito similar foi Ortega y Gasset. Ele dizia que exercia todas as funções. Ser filósofo era apenas um aspecto do que ele estava fazendo. Ele tinha de fazer muitas outras coisas para poder ser filósofo. Por exemplo, fundou revistas e editoras. Teve uma função de animador cultural que não é normal em um filósofo. Imagine Eric Voegelin perdendo seu tempo com a função de animador cultural. Isso nunca aconteceu. Ele nem saberia o que fazer. Se ele vivesse essa situação estaria liquidado porque não tinha esse talento. Voegelin exerceu sua função intelectual desde cedo, conheceu pessoas que tinham as mesmas preocupações e funcionavam como companheiros vocacionais. Ele sempre dialogou só com essas pessoas e viveu nesse meio. Já Ortega y Gasset diz que quando voltou da Alemanha para o meio espanhol, que estava extremamente subdesenvolvido nesse sentido, --- tendo estudado com o que tinha de melhor na universidade alemã --- simplesmente não tinha com quem conversar na Espanha. Ele praticamente teve de formar e inventar seu próprio público. Ortega y Gasset escreveu durante muito tempo artigos de jornal que não se parecem com artigos de filosofia, mas com outra coisa. Ele estava falando para um público de jornal e não para um público universitário. A situação universitária de que ele desfrutou na Espanha foi criada por ele mesmo. Ele, Manuel Garcia Morente e Xavier Zubiri fizeram tudo.

Aluno: Por favor, comente a expressão "a busca da felicidade" na Declaração da Independência americana.

Olavo: A Declaração da Independência americana é uma proclamação de direitos. O direito de um é um dever incumbido ao outro. Portanto, trata-se da prescrição de uma obrigação que as pessoas têm com terceiros. Dizer que as pessoas têm direito à busca da felicidade significa apenas que você não tem o direito de atrapalhar a busca da felicidade delas, não importando como elas entendam a felicidade. Não quer dizer que substantivamente a busca da felicidade faça algum sentido. É uma maneira de dizer que todo mundo tem o direito de buscar aquilo que acha que deve buscar e o outro não tem o direito de atrapalhar. Então, não vejo por que a Declaração da Independência deveria entrar na questão da substantividade do conceito de felicidade. Funcionalmente, como mera expressão de um direito, é perfeita. Todo mundo tem direito à busca da felicidade. Portanto, se o indivíduo acha que deve fazer isto ou aquilo com a própria vida, você não tem o direito de impedi-lo.

Aluno: Acompanho o seu trabalho há uns cinco anos, leio os livros que o senhor indica, procuro entender a sua filosofia, faço o curso online*, etc. A vida intelectual tem um papel central em tudo o que faço. Acho até que encontrei a minha própria voz, mas ainda não sei no que este esforço vai dar. Ou seja, não sei se me tornarei um filósofo, um escritor, um professor excepcional como o senhor, embora seja claro que esse é o meu desejo profundo. (...)*

Olavo: Espero que você consiga, pois é preciso umas cem pessoas fazendo isso que eu faço. Se não tiver pelo menos cem, o Brasil está liquidado.

Aluno: (...) No fundo acho que tenho uma boa capacidade de estudar e aprender, mas não consigo repassar a terceiros muitos conhecimentos que já obtive por meio de suas aulas. Sinto uma espécie de alegria dúbia, pois embora seja muito feliz com a minha vida intelectual, por outro lado sinto-me incompleto por não conseguir, em função da minha limitação, espalhar virtudes e conhecimentos. (...)

Olavo: Talvez esteja faltando alguma coisa pelo lado literário. A sua expressão talvez não seja suficiente. A sua linguagem talvez não seja suficiente e só isso esteja faltando.

Aluno: (...) É possível tornar-se filósofo somente na base da boa vontade, da sinceridade, ainda que não se tenha a capacidade para tanto?

Olavo: Mas a capacidade consiste nisso. A capacidade consiste em ter boa vontade e sinceridade. Não há mais nada. Não há uma outra capacidade excepcional que você precise ter. Mesmo a capacidade de expressão linguística não faz parte da expressão filosófica. Um filósofo pode ter uma capacidade de expressão muito deficiente e mesmo assim conseguir fazer alguma coisa boa. Mas no meio em que você está, onde resta tudo por fazer, onde é necessário educar as pessoas desde o princípio, a capacidade de expressão é fundamental e você vai ter de desenvolvê-la de qualquer maneira. Acho que é só isso que está faltando. Você não tem muita confiança no seu poder de expressão linguística e talvez não tenha confiança porque esse poder está deficiente mesmo.

Outra coisa a salientar é que ter dúvida sobre sua própria capacidade é a coisa mais ociosa que existe. É um problema de camada cinco. Se você duvida de sua própria capacidade, prove-a para você mesmo em qualquer coisa. Não precisa ser na filosofia. Por exemplo, se você for capaz de cantar e as pessoas te aplaudirem já é suficiente. Você ganhou a comprovação da sua força e daí para adiante não se coloca mais esse problema nem na música nem em área alguma de sua vida. Examine bem dentro de seu coração se você tem dúvidas quanto a sua capacidade. Isso é uma coisa ociosa e não leva a nada. O que você tem de fazer é provar essa capacidade imediatamente em qualquer coisa. O jeito de provar a capacidade é arrumar um desafio e vencê-lo. É simples. Depois de vencer um, você estará satisfeito. Como você já está com toda essa preocupação intelectual, então de certa forma está sendo impelido à camada nove. Parece haver um problema empacado de camada cinco. Vença-o uma vez e você verá que nunca mais terá dúvidas a respeito de si mesmo.

É fundamental ter confiança em sua capacidade de aprendizado, em sua capacidade intelectual. Você tem de botar na cabeça que consegue aprender qualquer coisa que queira. Para explicar para os outros, dependerá de outras coisas, porque aí já não se trata de uma capacidade, mas de várias capacidades conforme o meio em que você está, conforme a situação etc.

Aluno: Um meio social caótico pode impedir que um indivíduo pule de uma camada para outra?(...)

Olavo: Pode. É o que acabei de dizer. Se você não tem pessoas com quem dialogar dentro do seu próprio nível, acaba sendo convidado a voltar atrás. E mesmo que interiormente você não volte, volta exteriormente. Você vai estar o tempo todo vivendo uma vida interior que sente como real e uma exterior que sente como irreal. Durante quanto tempo você aguentará isso? Se a situação for essa, você tem de mudar de meio social.

Aluno: (...) Pergunto isso porque o senhor, como jornalista, teve vários problemas nos jornais em que trabalhou, mas por outro lado acredito que a sua atuação como professor o tornou independente, e a estabilidade profissional é um fator decisivo para subir na camada. (...)

Olavo: Não é. O essencial é que a presença ou ausência de estabilidade profissional não o afetem mais. Se você precisa de estabilidade profissional para continuar evoluindo, então está empacado na camada seis: você não conseguiu a eficiência necessária. Mas a eficiência não pode ser vista só do ponto de vista profissional. A eficiência tem de ser vista como rendimento total da pessoa dentro de sua condição de vida.

Por exemplo, o indivíduo que se contenta com uma posição medíocre ou modesta na vida para ter tempo de fazer outras coisas está perfeitamente resolvido. Isso é de uma grande eficiência. Muitos filósofos e escritores viveram assim. Não há problema algum. Mas se você, pelo fato de ter uma posição modesta, se sente um incapaz, então voltou para a camada cinco. Se você continua com problemas funcionais em sua vida, não conseguiu organizar uma vida suficientemente modesta, continua tendo dívida toda hora e tendo de pensar nisso, então está com problema de camada seis efetivamente.

A estabilidade é uma coisa que absolutamente não depende de você. Eu nunca tive estabilidade, nem por um dia, para absolutamente nada. Não houve nem um dia em que eu pude dormir dizendo que as contas estavam pagas pelos próximos três meses. Nunca aconteceu isso, nem por três meses, nem por uma semana.

Para resolver a camada seis, que é uma camada utilitária, é importante total frieza para lidar com essas coisas. Você não pode permitir que problemas dessa camada transformem-se em problemas emocionais de quinta ou quarta camada. Se você está abalado pelos problemas da camada seis, então você não está nesta camada. A camada seis é a de pura eficiência. Eficiência significa que você não vai ter de se preocupar muito com os problemas.

Faz muitos anos que descobri uma regra áurea: pensar em uma dívida não põe dinheiro no seu bolso para pagá-la. Então eu só penso na dívida em dois momentos: quando faço a dívida e quando tenho o dinheiro para pagá-la. No Brasil é muito difícil [1:40] explicar isso para as pessoas, porque cada um acredita que se tem uma dívida, tem de sofrer dia e noite por ela. O indivíduo não paga a dívida mas sofre um bocado por ela. Está tentando provar que é um homem bom e honesto porque não dorme de tanto pensar no dinheiro que deve. Mas ficar sem dormir não adianta de nada para o credor. O sofrimento do devedor não vai devolver o dinheiro ao credor. O credor não quer o sofrimento, a preocupação, o arrependimento, quer apenas o dinheiro de volta. Entender isso tirou um peso da minha cabeça. Eu nunca me preocupo com a dívida que tenho de pagar. Preocupo-me em ganhar o dinheiro. Sei que quando entrar o dinheiro vou ter de pagar a dívida. Mas tenho de pensar em como ganhar o dinheiro e não na dívida.

Deixar-se oprimir muito por essas coisas impede que você se torne uma pessoa eficiente. Uma pessoa está na camada seis quando todos os problemas da camada seis são pensados com critérios desta camada, e não de camadas cinco ou quatro. Entende como no Brasil todo mundo o empurra de volta para a camada quatro? Você tem uma dívida e todos ficam em cima perguntando se você não vai pagá-la. De que adianta? Eu tinha um conhecido que quando o ameaçavam de levá-lo para um cartório para cobrar a dívida ele respondia: "Se me levar para um cartório que ponha dinheiro no meu bolso, você leva dez por cento".

Você tem de agir assim, mas também em relação ao devedor. Se o outro lhe deve um dinheiro, o que fazer? Ficar atormentando a pessoa? Por que não experimenta rezar e pedir a Deus que melhore a vida do devedor e ponha dinheiro na mão dele? Reze pelos seus devedores, é uma coisa tão simples! Atormentar o devedor, ficar tentando inculpar o sujeito para que fique se sentindo culpado porque tem uma dívida e não pode pagar, só vai criar um problema emocional. Que coisa mais feia! Isso no Brasil é regra geral. Todo mundo quer que os outros sintam-se culpados por não poder pagar as dívidas. É a psicologia do caranguejo no balde: um caranguejo quer sair e o outro se pendura na perna dele. Reze para que todos prosperem, sobretudo os seus devedores. Nunca fique com raiva de uma pessoa porque ela lhe deve dinheiro. Não quero me preocupar com minhas dívidas, mas também não quero que meus devedores se preocupem com as dívidas que têm comigo. Quero que ganhem dinheiro para pagar as dívidas. Se o devedor perde noites de sono pensando sobre o que irei pensar dele, está liquidado na vida.

Aqui na sociedade americana é muito mais fácil lidar com essas coisas. Acho que todo mundo entende instintivamente essas coisas de ordem prática. Atormentar-se por causa de uma dívida não põe dinheiro no seu bolso. Como credor, atormentar o devedor não ajuda em nada nem você nem ele. Se alguém lhe deve um dinheiro, por que você não tem umas boas ideias para que ele ganhe dinheiro? Por que você não o ajuda a ganhar dinheiro? No Brasil eu nunca vi alguém fazer isso.

Aluno: (...) Já vi um médico renomado que tinha uma vida estável se perder e virar mendigo porque perdeu o amor da sua vida. Largou tudo e perdeu a motivação pela vida.

Olavo: Isso pode acontecer mesmo. Essa pessoa estava na camada quatro. Uma vida economicamente estável não tem nada a ver com a camada em que você está. Por exemplo, você pode ser filho de um milionário e já ter uma vida estável desde que nasceu. Isso não quer dizer que você esteja na camada seis ou que tenha passado por ela. Você pode se formar em direito e ter uma ideia dos códigos de direitos e deveres recíprocos em todos os lugares, o que não quer dizer que esteja na camada sete. A maior parte dos advogados que eu conheci não estava na camada sete. Não tinham a menor ideia dos direitos e deveres. Estavam na camada seis. Só queriam saber de levar vantagem.

Se você tem uma dúvida da camada anterior, se o problema da camada anterior o absorve, você está nela e não na seguinte, ainda que esteja se ocupando de assuntos da camada seguinte. É só quando aquele problema desaparece --- e só reaparece nos termos da camada seguinte --- que você passou de camada. Quando se muda de camada, os objetivos das camadas anteriores passam a ser buscados de uma maneira indireta e não são mais um assunto para você.

Por exemplo, perder o medo de falar em público é um assunto de camada cinco. Eu estou falando em público há quarenta e tantos anos. A primeira vez que falei em público tinha doze anos de idade, e com doze e meio aquilo não era mais um problema para mim. Eu era capaz de falar para qualquer plateia, sobre qualquer coisa, e não ficar com vergonha, com medo ou com coisa nenhuma. Se alguém tiver de se sentir mal serão eles, não eu. Vão dizer que sou um chato que não pára de falar. O problema é deles, eu não tenho vergonha nenhuma de falar. Isso nunca mais foi problema. Nunca mais voltei a pensar nisso. Às vezes, claro, você vai fazer uma conferência e está com dor de dente, e não consegue pensar no assunto porque sua dor de dente é obsessiva demais. Você pode fazer um esforço de abstrair da dor de dente e falar, mas toda hora ela vem e você pode achar que não está explicando direito. Às vezes você está cansado, mas isso não é o centro de sua preocupação, é muito periférico. O essencial do falar em público é estar concentrado no assunto. Você tem de esquecer de si mesmo e da plateia. Só o assunto interessa. Dessa forma as ideias vão aparecendo porque você está pensando no assunto. Pouco interessa ficar pensando como você está vestido, que os outros o estão vendo ou que figura você deve estar fazendo.

Aluno: Tem gente que está entendendo que uma pessoa pode estar em camadas diferentes para cada aspecto da vida. Profissionalmente poderia estar na sexta, na vida familiar na sétima etc.

Olavo: Não. Estão pensando que a pessoa pode estar em várias camadas ao mesmo tempo. Isso nunca acontece. Há sempre uma camada dominante. É ali onde dói, onde você está buscando seus objetivos, ainda que esteja se ocupando de assuntos que teoricamente pertencem a outras camadas. O sujeito pode estar cheio de dívidas --- um assunto de camada seis evidentemente ---, mas tratando isso com critérios de camada quatro. Ele está sofrendo, se acusando e se lamentando. Então está na camada quatro.

Conforme a idade que você tem, os problemas da camada seguinte vêm persegui-lo de qualquer maneira. Por exemplo, ainda que você não tenha evoluído, um dia chega a ser um homem fisicamente maduro e provavelmente as pessoas vão olhar para você como um homem maduro, embora você não o seja. Então os problemas da camada seguinte já estarão aí, mas você não estará presente a eles. Você vai querer resolver o problema da camada em que está, utilizando critérios da camada mais baixa1. Se o que você está querendo é que as pessoas lhe dêem um contentamento, está na camada quatro evidentemente. Você espera isso e fica magoado porque as pessoas não lhe atenderam, não lhe deram atenção. Você está na camada quatro ainda que esteja cheio de dívidas, ou estudando Santo Tomás de Aquino, ou ainda que seja Presidente da República ou um escritor. O Brasil está cheio de escritores que estão na camada quatro ou até na dois. Conheci um --- não vou dizer quem era --- que dizia que escrevia com o baixo ventre. E acho que ele tinha toda a razão.

Aluno: Essa intolerância da sociedade americana com o erro, seria alguma coisa da camada quatro?

Olavo: Não, isso é camada seis. Tudo tem de funcionar. Aqui na sociedade americana o pessoal tem um senso de camada seis muito desenvolvido. As novas gerações já não têm tanto. Conheci os Estados Unidos em 1986 e conheço agora, e vejo que isso mudou muito. Naquela época se você entrasse em um supermercado e perguntasse se tinha sorvete de bacalhau, o sujeito revirava o supermercado até achar o sorvete de bacalhau. Se não achasse, telefonava para o chefe, pois tinha de resolver o problema. Todo mundo tinha essa mentalidade. Outro dia, entrei num supermercado e perguntei para a mocinha se tinha querosene. Ela respondeu que não tinha, mas na verdade nem sabia o que era. Está aí algo bem brasileiro: se eu desconheço a coisa, ela não existe! É batata! Joga o problema fora e não vai procurar. Fomos lá, procuramos o querosene e achamos. Ela não sabia o que era querosene, então disse que não tinha. Essa aí fez cursinho no Brasil.

Mas a maioria aqui ainda não é assim. E não é porque sejam pessoas maravilhosas. É porque simplesmente aprenderam que as coisas têm de funcionar. Não que elas adorem isso necessariamente. Apesar de que também existem pessoas que adoram os assuntos de camada seis e só pensam naquilo. Têm verdadeira obsessão de praticidade, achando que aquilo é tudo. Nesse caso o sujeito está doente evidentemente. As coisas tem de funcionar de maneira que você pense nelas o mínimo possível.

Se você tem qualquer problema funcional para resolver, qualquer problema de praticidade, vou lhe dar um conselho universal: tente resolvê-lo sem palavras. Faça-o mediante um gesto, uma ação que resolva. Mas se você pede para uma pessoa que vá lá e faça uma coisa assim e assim e o sujeito faz uma, duas ou três perguntas, ele já criou um segundo problema em cima do primeiro, que é o da verbalização da coisa. Você manda o sujeito varrer o chão e ele pergunta o que vai usar para varrer. Pronto, já complicou o negócio. Às vezes tem coisas que você sabe fazer e não sabe verbalizar. Se puder resolver os problemas dessa esfera com poucas palavras, é melhor para você. Quanto menos verbalizar é melhor. Quando um problema prático gera discussão, então complica, pois já passou para a camada quatro. O sujeito vai dizer que você não gosta dele, que tem preconceito contra ele... Aí complica mais ainda.

[1:50] Aluno: O estudo das camadas da personalidade pode ser encaixado dentro do estudo da tipologia espiritual humana, no sentido de que o sujeito tipificado psicologicamente como shudra*, não passa da quarta camada, o* vaishya vai no máximo até a sétima, o kshatriya chega à oitava, e o brahman caminha em direção à décima segunda?

Olavo: Acho que grosso modo a comparação é perfeitamente cabível. Eu mesmo escrevi uma apostila que chamei de elementos de tipologia espiritual onde digo que a pertinência do indivíduo a uma casta ou outra define-se pelo objetivo predominante de sua vida, isto é, o que ele está buscando.

Grosso modo o shudra busca sentir-se bem e evita sentir-se mal; o vaishya busca a praticidade; o kshatriya busca a honra e a grandeza; e o brahman busca a verdade, Deus, o infinito etc. Faz sentido de alguma maneira, só que as castas tendem a ser uma coisa muito mais estável. E há uma dificuldade muito grande em encaixar a teoria das castas nas classes sociais. É uma coisa que não coincide. Seria necessário fazer muitas distinções, que naquela apostila eu fiz, mas que aqui não tem sentido fazer.

Aluno: Eu gostaria de saber se é pertinente falar de uma hierarquia de valores como: vida, propriedade, honra. Não creio que exista uma ordem absoluta de prioridade, mas ao mesmo tempo em geral pode-se dizer que um valor é de maior hierarquia que o outro.

Olavo: Todo o problema da teoria dos valores que aparece em Max Scheler é este. É quase incoercível que os valores se organizem hierarquicamente. Se todos os valores são iguais, não há valor algum. O conceito mesmo de valor implica que uma coisa valha mais do que outra. Onde quer que você tente raciocinar em termos de valor, você estará raciocinando em termos de hierarquia. Não tem escapatória.

Aluno: Como fica a vaidade, o problema do orgulho, que advêm naturalmente do conselho de fazer o bem e de estar movido pelo amor à verdade. Lembro do Steinhardt: "sabemos que fazemos o bem e assim o maculamos". Mas é o bem que fazemos e não o mal.

Olavo: Isso também é um problema de camada. Querer sentir-se bem porque fez o bem é coisa de camada quatro. Você está buscando a sua felicidade. A hora em que você entender que fazer o bem --- pelo menos em certos domínios em que você está qualificado para isso --- é coisa natural, normal e obrigatória, e que você não está fazendo nada de mais, você não se preocupará mais com esse negócio.

Acontece que, no Brasil, como existe uma pressão muito grande para as pessoas ficarem na camada quatro, a busca de uma autossatisfação é obsessiva. A pessoa quer ter uma recompensa emocional imediata por tudo o que faz. Mas onde você busca uma recompensa emocional você tem uma frustração. Agora mesmo estava comentando sobre essas pessoas que vivem falando em nome de Jesus etc. Estão buscando satisfação emocional. O sujeito vai pintar a si mesmo de ouro. É claro que isso é palhaçada, mas à medida que você cresce, vê que os assuntos da vida são mortalmente sérios e que não dá tempo de ficar com esse tipo de frescura.

Ontem mesmo estava lendo um conselho do Padre Pio que recomenda que você esteja sempre de bom ânimo, sempre com um estado de humor estável. Você não está nem morrendo de felicidade nem infeliz, nem triste nem alegre, está normal. Esse estar normal é uma alegria permanente. Isso é incrível, porque você está feliz de certo modo. O seu nível de infelicidade não consegue passar de um certo ponto. Mas isso você só consegue quando dedicou inteiramente a sua vida a alguma coisa que está muito acima de você. Então você deixou de ser problema. O Dr. Juan Alfredo Cesar Müller dizia que você está curado de uma neurose quando esqueceu de si mesmo, quando você não é mais problema. Todo esse trajeto evolutivo é para você esquecer de si mesmo.

Aluno: Há camadas de personalidade que parecem guardar estreita relação com a faixa etária de uma pessoa. Já outras não, parecem ser mais independentes da idade do indivíduo ao analisá-la, embora não totalmente. Pergunto: pela experiência que o senhor tem, que faixa etária em média tinham os indivíduos ao ingressarem na nona camada da personalidade?

Olavo: Não antes dos trinta anos. A idade da maturidade de uma personalidade intelectual é acima dos quarenta. Eu não duvido que pessoas possam estar já virtualmente nela muito antes disso. A camada de personalidade não é uma coisa que você conquista de uma vez para sempre. Existe um período de consolidação em que os seus interesses, o eixo da sua vida, vão mudando.

Aluno: A partir da melhor compreensão das doze camadas que eu gostaria de ter adquirido na aula de hoje, instantaneamente passei a lembrar das conversas que tive com eleitores da Dilma. Parece-me retrospectivamente que a motivação das pessoas residia no fato da maior garantia de manterem a sua felicidade atual. Gostaria de perguntar ao professor se a simples existência da vida intelectual em pessoas que já atingiram a oitava camada num país pode fazer com que o debate público e a preocupação do "Zé Povão" se eleve. (...)

Olavo: Claro que pode. Imagine um país em guerra, onde todos são chamados a atender uma responsabilidade. As pessoas vão pensar na sua felicidadezinha e esperar que o governo as ajude naquele momento? Não. Todas sabem que tem de dar alguma coisa.

Aluno: (...) Ou seja, o senhor está tentando recuperar a capacidade do brasileiro comum de atingir a quinta, sexta e sétima camada e se tornar um ser humano mais completo?

Olavo: Isso só é pensável a partir do momento em que você tiver uma vasta classe intelectual capacitada e séria, senão pode tirar o cavalo da chuva. Quando a camada intelectual decai, ou se desfaz, ou desaparece, como aconteceu no Brasil, é claro que o nível moral de todo mundo vai para o brejo.

Por que você acha que tem essa coisa de banditismo, esse cinismo generalizado no país, essa falta generalizada de compaixão? Acho que a paixão que as pessoas colocam em discussões econômicas, no momento em que cinquenta mil brasileiros estão sendo assassinados por ano, é uma falta de compaixão monstruosa. Estão todos revoltados porque a CPMF vai voltar, mas matar cinquenta mil brasileiros não tem importância. É uma baixa de nível moral fantástica. Está sendo criado um país de criminosos. Isso se chama mentalidade luciferina. As pessoas estão ficando luciferinas. Isso acontece porque não há gente suficiente para informar às pessoas que isso é errado. Nossos comentaristas e analistas políticos falam de mil e uma coisas, mas não têm preocupação com isso. Nunca vi um único articulista brasileiro protestar contra a indiferença geral quanto ao homicídio ou mesmo quanto à violência de modo geral no Brasil. E o problema não é nem de violência de modo geral, mas de homicídio, de morticínio. As pessoas só falam disso quando há um interesse grupal.

Por exemplo, o movimento gay faz um barulho desgraçado por que no meio de cinquenta mil mataram cento e noventa e cinco gays. Eles mesmos dizem que os gays são dezesseis por cento da população. Sendo assim, tinham de ter matado pelo menos oito mil gays para se respeitar a proporção. Se mataram cento e noventa e cinco, está muito abaixo, significando que os gays não são um grupo de risco no Brasil. No entanto, eles fazem uma choradeira por interesse grupal. Quem fala pelos outros quarenta e nove mil e tantos? Ninguém fala. Eles não têm direito a voz e voto. Isso é total falta de compaixão.

Até em relação a usar o termo "violência". O termo "violência" é genérico, enquanto "homicídio" não. Falar de homicídio é falar daquelas pessoas que foram assassinadas. Violência pode ser uma bala perdida, um assalto, uma briga de trânsito. Tudo isso é violência, é genérico. Então as pessoas queixam-se da violência porque as atinge de algum modo. Mas e as cinquenta mil pessoas que foram assassinadas? Ninguém as defende? Pode-se cuspir no túmulo delas como todo mundo está fazendo? É coisa de louco.

Aluno: Não sei ainda ao certo em que camada estou, mas sei que toda a minha vida gira em torno da busca da verdade e da filosofia deste curso. Trabalho como frentista e isto não me ofende.

Olavo: Ofende a mim, porque quem devia estar aí era o Dr. Emir Sader e o Rodrigo Constantino. Você devia estar pelo menos escrevendo em um jornal ou dando aula de filosofia. Olha como está o Brasil! A esperança da vida intelectual do Brasil depende dos frentistas, porque os professores todos já pediram demissão.

Respostas a perguntas dos alunos sobre outros temas

Aluno: Minha pergunta é sobre Hans Jonas. No mês passado tomei contato com os textos de Hans Jonas em um curso de pós-graduação de que participei, em que surgiu uma disciplina com esse tema. Achei o autor original e sábio, mas fiquei com a pulga atrás da orelha pois vi que ele era uma espécie de pai ou mãe do movimento ecológico.

Olavo: Vamos direto ao ponto. Hans Jonas sabe tudo sobre o gnosticismo. Ele escreveu um livro sobre o gnosticismo, mas é meio gnóstico. Ele foi profundamente influenciado pelo pensamento gnóstico. Acho que o longo contato fez mal para ele.

O que a gnose tem a ver com isso? A gnose não é propriamente uma doutrina, mas uma dimensão da experiência humana. Sempre que você sente que o universo inteiro é hostil, que Deus está contra você, que o universo é um erro, você está vivendo a experiência gnóstica. Não tem ninguém que não passe por isso, mas alguns decidem teorizar sobre esse estado. Em vez de tentar sair dele, eles começam a justificar e a teorizar. Isso é a gnose. Se você procurar uma unidade doutrinal na gnose não encontrará. Aquilo é um saco de gatos. A gnose é um sentimento, uma experiência, [2:00] que o faz sentir certas coisas. O ser humano pode teorizar qualquer coisa. Pode pegar qualquer estado subjetivo e transmutar aquilo em uma teoria, como que tentando justificar o seu estado. As justificações você pode tirar de onde quiser.

Aluno: Há algum tempo atrás me submeti a uma terapia em uma discreta clínica de saúde. Entre outras pérolas, o guru-mor --- pois trata-se de uma clínica esotérica --- escreveu uma série de livros sobre a técnica que ele desenvolveu por cinquenta anos e que pretende entregar à ONU para que seja aplicada mundialmente. (...)

Olavo: O sujeito fez exatamente isto que estou dizendo: pegou um estado de espírito, codificou num sistema de erros e quer implantar aquilo mundialmente.

Aluno: (...) Será que entre as inúmeras seitas esotéricas no Brasil, esta clínica seria mais uma?(...)

Olavo: Sem sombra de dúvida.

Aluno: (...) Pois eles se acham adultos e a humanidade constituída de psicóticos, alguns tratáveis, outros não. Fiquei feliz em ter saído de lá, mas confesso que sinto falta daquela sistematização toda.

Olavo: Meu filho, mas ideologia é isso. Fornece-lhe um sistema de explicações universais.

A doutrina da Igreja Católica, por exemplo, não lhe dá uma explicação universal. Ela explica alguns pontos e é incompleta. Está sempre tendo de acrescentar alguma coisa a mais. Ontem mesmo eu estava lendo um livro de Garrigou-Lagrange, o guru máximo dos escolásticos --- que não era filósofo, era um teólogo ---, onde ele falava sobre lacunas imensas que existem na doutrina da Igreja Católica. Isso quer dizer que você não é capaz de pegar qualquer fato e explicá-lo pela doutrina Católica. Simplesmente não é possível. O livro chama-se Deus: sua existência e sua natureza. Ele está falando dos atributos de Deus. Fala da infinitude, eternidade etc. e então coloca:

"A ausência de toda sucessão, admitida pela unanimidade dos teólogos como elemento do conceito de eternidade, é uma verdade certa que se aproxima da fé, mas ela não parece ser ainda um dogma da fé católica".

Então, existe ou não sucessão em Deus? Todos os teólogos dizem que sim, mas isso não faz parte do dogma, então podemos continuar discutindo. Isso quer dizer que não sabemos. Parece que sim. Parece que isso se deduz do conceito de eternidade, mas sempre alguém pode apresentar mais um ou outro argumento, de forma que isso continua em discussão e ninguém sabe. Os teólogos estão discutindo esse negócio há dois mil anos e ainda não resolveram. A Igreja é obrigada a dizer que não chegamos a uma conclusão.

Por outro lado, existem esses sistemas autoexplicativos que têm uma resposta para tudo e um mecanismo gerador de respostas para tudo. Se pegarmos, por exemplo, esse cientificismo de Richard Dawkins, vemos que ele tem uma resposta para qualquer coisa que aconteça no mundo. Então é claro que se trata de uma ideologia ou de uma pseudo-religião, se preferir. É a busca de um repouso, de uma estabilidade, como que dizendo "encontrei a verdade, sentei aqui".

Aluno: Nestas eleições foram ditas muitas bobagens sobre o Estado laico. O senhor poderia comentar um pouco sobre o laicismo e indicar bibliografia.

Olavo: Não tenho a bibliografia aqui no momento mas existe uma infinidade de livros sobre isso. O que se pode dizer é o seguinte: se o Estado é laico mas a sociedade é religiosa --- isto é, a maior parte das pessoas é religiosa ---, quem vai decidir as questões morais? Das duas uma: ou o Estado vai impor a sua laicidade à sociedade ou a sociedade vai influenciar o Estado no sentido de seguir a sua orientação religiosa. O conceito atual da laicidade é que o Estado tem a obrigação de impor a laicidade à sociedade, o que é inteiramente absurdo porque o Estado nasce da sociedade, é criado por ela. A sociedade existia muito antes do Estado e vai continuar existindo depois que o Estado acabar. A sociedade é que tem de predominar. Mas por outro lado quando você começa a pressionar o Estado para que ele faça leis que reflitam a sua moral religiosa, você está declarando que a sociedade não é capaz de impor a sua moralidade aos seus membros sem a ajuda do Estado. Então você está entregando tudo na mão do Estado.

É por isso que essas políticas de democracia cristã acabam dando errado. Eles querem que o Estado siga a norma deles. Mas por que o Estado? Eles não são capazes, pela sua influência cultural e social, de fazer as pessoas agirem assim independentemente do que o Estado diz ou não? Se eu quero pegar os dez mandamentos, a Bíblia, e transformar tudo em Constituição, em direito penal, civil, então estou confessando a minha impotência. A sociedade não tem iniciativa suficiente para governar a si mesma e apela ao Estado. A partir daí ela não pode reclamar que o Estado venha querer lhe impor o seu laicismo. Você dá a arma para o bandido e depois reclama que ele o assalta? Todos os movimentos políticos que querem cristianizar o Estado estão loucos. Eles têm de cristianizar a sociedade, as pessoas, não o Estado. Eles têm de tirar funções do Estado e cumpri-las por si mesmos.

Por exemplo, em relação à educação muitos querem que sua religião, sua doutrina, seja ensinada em todas as escolas. Mas para quê? Por que não fazem suas próprias escolas, ensinam do jeito que querem e viram as costas para o Estado? É isso que eles tinham de fazer. Mas se entregam tudo para o Estado, depois precisarão de verbas do Estado e ficarão nas portas do Estado pedindo dinheiro. É um mecanismo de autoboicote.

Praticamente todas as políticas supostamente cristianizantes são culpadas disso. De certo modo, identificam o poder com o Estado, quando o que temos de fazer é lutar para que o poder esteja na sociedade e permaneça nela, e ao Estado delegar só uma parte pequena.

O Estado é uma administração. Uma administração em si não pode ser cristã nem anticristã. Não existe uma contabilidade cristã. Também não existe uma administração cristã. Esse é um departamento onde os critérios são de eficiência, de funcionalidade etc. O Estado por si mesmo é uma máquina impessoal. É possível cristianizar um automóvel? Um liquidificador? O Estado deve ser mantido nos limites do automóvel e do liquidificador. É uma máquina que serve para determinadas finalidades. Ele tem a tendência de se expandir e de virar o educador, o guru, o médico etc. Quanto mais você pede a ele, mais ele gosta. Se você pedir para ele ser cristão, ele pode até dizer que sim. Mas então o cristianismo da sociedade dependerá do Estado. O certo não é lutar para que as leis reflitam a doutrina cristã, mas para que a sociedade seja cristã e para que o Estado não se meta.

Por exemplo, devo discutir se o Estado deve aprovar uma lei abortista ou não? Quem deu ao Estado autoridade para discutir esse assunto? Fomos nós mesmos! Nós pedimos que ele se metesse e ele se meteu. No Brasil a rejeição ao aborto é maciça. Acho que são setenta e dois por cento. Como que esses setenta e dois por cento não têm meios de fazer valer sua opinião em cima do Estado? É porque se acredita realmente que o Estado tem uma legitimidade superior a da própria sociedade. Só é legítimo aquilo que o Estado aprova. Mas quem o botou lá em cima?

Aluno: Matriculei-me no curso de Filosofia online. No entanto, necessito de orientações para poder acompanhar o curso de forma adequada. Peço informações sobre o prazo para entrega de trabalhos, sobre a duração do curso para alunos que iniciam tardiamente.

Olavo: A duração é a mesma. Não a duração em tempo, mas em número de aulas. Você vai assistir a todas as aulas. Não pode pular nenhuma. Se você está acompanhando as atuais e repassando as antigas, fará o mesmo número de aulas que todo mundo fez. É claro que, uma vez terminado o curso para quem iniciou no começo, vai haver um prolongamento para essas pessoas que ficaram com aulas atrasadas. Não se precipite que nós vamos resolver a coisa na medida em que o problema for se apresentando.

Aluno: Qual o nome do ideólogo do Obama que fez uma dedicação a Satanás no seu livro e qual a relação dele com o movimento neotomista e o Vaticano II? (...)

Olavo: Chamava-se Saul Alinsky e era amicíssimo de Jacques Maritain e de Paulo VI. Não sei como admitiram aquele sujeito lá dentro.

Aluno: (...) O senhor julga que a expansão de seitas como a de Gurdjieff, com os mandalas e eneagramas, [2:10] tornam as pessoas pré-dispostas a obsessão e possessões, como descreve Malachi Martin, ao passo que o Modernismo na Igreja Católica e a descrença moderna na atuação do maligno entram apenas como força passiva?

Olavo: Eu não acredito que a seita do Gurdjieff tenha toda essa relevância. Você tem seitas satanistas que atuam dentro do Vaticano, fazem ritos lá dentro, atuam junto a todos os governos do mundo, estão funcionando agora mesmo, e o Gurdjieff perto disso é menino-passarinho.

Aluno: A causa da alienação, da perda do centro do ser, percebido pelo senhor nas pessoas e em si mesmo, não seria decorrência daquilo que a Igreja denomina pecado original?

Olavo: Claro que não. O pecado original é antiquíssimo e nunca implicou essa alienação como vemos hoje. O que acontece é que nossa civilização, pelo menos nos últimos trezentos anos e mais ainda a partir da segunda metade do século XIX, de fato perdeu o centro, perdeu o eixo. Estamos numa transição do cristianismo para o luciferismo ou para o Islã, na qual o Islã aparece até como uma alternativa menos ruim. Como que as pessoas poderiam não estar sofrendo de profunda alienação, de perda do centro do ser, de perda da própria voz, de perda da própria expressão humana, de perda da caridade, de perda da compaixão, se a civilização como um todo está perdendo, se nas altas esferas as lideranças perde? A personalidade humana não tem toda essa autonomia. Nós que estamos estudando, estamos tentando defender por meios intelectuais a nossa autonomia. Mas isso custa muito trabalho. Não é natural que o cidadão comum tenha autonomia para se manter imune a essas correntes. Nós mesmos temos de lutar muito para isso. Não temos de perguntar por que as pessoas estão alienadas. A pergunta é: como poderiam não estar?

Leia a profecia de Fátima e a profecia de La Salette e verá que tudo aquilo está se cumprindo diante de nossos olhos. Você pensa que isso é brincadeira? Nossa Senhora disse que se o Papa que estivesse no trono em 1960 não cumprisse as instruções dela, os erros da Rússia se espalhariam pelo mundo, e o que aconteceu? O movimento comunista se expandiu depois da queda da União Soviética. E não só o movimento comunista. Junto com ele vem o naturalismo, o luciferismo, de maneira avassaladora. Isso está acontecendo e nós estamos no meio. E como poderiam as nossas personalidades magicamente permanecer imunes?

Temos de lutar e pedir a Deus a ajuda do Espírito Santo vinte e quatro horas por dia. E quando você for invocar Deus, só O invoque para Lhe pedir perdão. Essa é a única invocação que você tem de fazer. Não é para sair falando mal dos outros em nome de Jesus. Quem faz isso evidentemente está do outro lado.

Aluno: A partir da aula 47 tentei relacionar de algum modo o que foi dito pelo senhor a respeito da apreensão da forma inteligível com o experimento das cartas de baralho comentado na aula 15. Se a apreensão da forma inteligível é imediata, o primeiro raciocínio sobre qual monte de cartas é o mais seguro e qual o mais arriscado chega ao indivíduo submetido ao teste não pela elaboração de um juízo de probabilidades montadas sobre o resultado das tentativas das quais ele participa, mas como se ele houvesse pegado a forma no ar?

Olavo: Entendo a pergunta e muita gente deve ter feito a mesma. A forma inteligível é apreendida dos objetos, dos seres. Não há como intuir forma inteligível das relações entre os seres ou da ação de um sobre o outro. Reconhecer um ser é captar a forma inteligível dele imediatamente. Isto aqui é um copo, aquilo é uma câmera, isto aqui é uma mesa, este aqui sou eu, ali está a Roxane. O que você está captando em tudo isso são as formas inteligíveis. Isso é imediato. Mas, se em um monte de cartas há mais cartas propícias do que no outro, não se trata de captar uma forma inteligível, mas de um raciocínio de probabilidades que é feito de duas maneiras.

Ao raciocinar você está sempre usando signos. O raciocínio não é captado nas coisas. Você o monta na sua cabeça. Só que em um caso você está usando os signos tal como diretamente apreendidos na realidade e no outro caso é com os signos que você criou na sua cabeça. O raciocínio é montado nos dois casos e não é intuitivo. Na própria aula 15 eu enfatizei que nos dois casos trata-se de um raciocínio, só que em um você está jogando com signos que vê na realidade e no outro com signos que criou na sua cabeça. Foi você que criou o raciocínio nos dois casos. Só que no segundo caso você cria os signos também. Isso dá mais trabalho evidentemente. É por isso que a mão percebe, por assim dizer, o que está acontecendo antes que a mente o perceba. Mas esse raciocínio que você fez, por assim dizer, com a mão também é um raciocínio. Não é uma apreensão intuitiva de maneira alguma.

Por exemplo, imagine que eu lhe mostre uma figura e queira que você apreenda algo nela. Eu desenho um quadrado na parede e pergunto o que obtemos se eu traçar uma diagonal no quadrado. Você olha para a figura desenhada e diz que obtemos dois triângulos isósceles. Outra coisa é eu lhe pedir para fechar olhos e pensar o quadrado. O raciocínio é o mesmo nos dois casos. Só que em um deles você está usando um signo fisicamente presente e no outro um signo que você mesmo montou. É claro que este segundo raciocínio é mais lento, embora você tenha mais controle sobre o mesmo. Em nenhum dos dois casos trata-se de percepção intuitiva de forma inteligível. Forma inteligível aplica-se aos seres, às entidades, não às suas relações e às suas posições recíprocas. Na quase totalidade dos casos você tem de fazer algum raciocínio para isso. Essa é a confusão.

Transcrição: Pe. Emilson José Bento

Revisão: Fabiano Rollim

Footnotes

  1. NdR.: O professor fala literalmente: "O problema da camada em que você está, você sempre deve resolvê-lo pela camada mais baixa". Todavia, tal afirmação não faz sentido no contexto, principalmente considerando-se o exemplo que é dado logo em seguida. Foi a partir do citado exemplo que cheguei à formulação: "Você vai querer resolver o problema da camada em que está, utilizando critérios da camada mais baixa".