Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula Nº 79
16 de outubro de 2012
Boa noite a todos, sejam bem-vindos.
Esta aula está coincidindo com a última aula do curso Consciência de Imortalidade. Então, eu estou falando aqui para dois públicos diferentes: o público do seminário e o pessoal que está reunido aqui no hotel, em Colonial Heights, para a última aula do curso Consciência da Imortalidade. Na verdade, eu já encerrei o curso ontem, mas, aproveitando que a última aula do seminário foi sobre os meios e métodos de descrição da sociedade humana e sobretudo de descrição das situações políticas, e aproveitando que isto não tem nada a ver com a consciência de imortalidade, nós podemos tentar estabelecer algumas correlações.
Logo no começo do curso Consciência de Imortalidade, eu anunciei que a tomada de consciência do eu substancial, e da identidade do eu substancial com a alma imortal, deveria ter algumas conseqüências para a visão que nós temos da historia e, portanto, também da sociedade política. Um dado importante é o seguinte: qualquer que seja o seu estado de consciência com relação ao eu substancial ― mesmo que você o ignore completamente ― é com o eu substancial das outras pessoas que você se relaciona sempre.
Eu comecei o curso estabelecendo várias distinções entre sentidos, ou significados, da palavra eu. Nós usamos a palavra eu com vários significados: a) primeiro, eu chamei de eu presencial: aquele quando você diz, por exemplo, eu estou com dor de barriga. [20:00] Este eu reflete o mundo sensorial presente. Você chama de eu o foco para onde convergem todas as informações sensoriais que você esta recebendo; todas essas informações, são passageiras, são transitórias, duram alguns segundos e vão embora para sempre. Então, este eu que é o receptor dessas informações tem também uma existência fugaz: você não pode estar sentindo coisas o tempo todo; a maior parte das informações sensoriais que chegam até nós, nós ignoramos solenemente, e elas desaparecem no abismo da memória; nunca mais voltam. b) Em segundo lugar, havia o que eu chamava de eu social: quando você se relaciona com as pessoas, sabendo ou imaginando saber o que elas sabem a seu respeito; por exemplo: vocês agora sabem que eu vim aqui para dar uma aula, então eu respondo a essa expectativa. Todas as inúmeras funções sociais que nós desempenhamos são baseadas nesses blocos de informação que cada um de nós tem a respeito do que outros sabem sobre ele. Se o sujeito perder essa rede de informações, ele se torna, imediatamente, uma pessoa incapacitada, um marginal, disabled, como se diz em inglês; quer dizer: um sujeito que não serve mais para nada. Esse eu social consiste na totalidade das ações que você é capaz de praticar dentro do grupo social humano, baseado nesse jogo de informações que você tem a seu respeito, que você tem a respeito dos outros e que você imagina que elas tenham a seu respeito. Note que, se você perder o fio da meada por dez minutos, você esta lascado. Essas informações também são de curta duração: elas dependem das varias situações sociais transitórias nas quais você se mete. c) O terceiro sentido da palavra eu, é o eu autobiográfico: quando você conta a sua própria historia para você mesmo ou para outro. Não estou dizendo que você tenha de se sentar e dizer: "Agora eu vou contar minha história para mim mesmo." Toda e qualquer recordação que você faça da sua história ― e toda hora nos temos e necessitamos dessas recordações até para nos orientarmos no campo do eu social ― faz parte da sua concepção autobiográfica, da sua autoimagem. A nossa autoimagem é constituída dessas três camadas: eu presencial, eu social e eu autobiográfico.
Todos esses três níveis ― são coisas que existem e nos sabemos que existem, por experiência ― todos eles se constituem de dados fragmentários e transitórios. Então, se nós perguntamos: "para quem está acontecendo tudo isso? Qual o foco dos focos?" Desses vários conjuntos de informações que eu recebo tem que haver, por baixo deles, um ente real.
Eu digo ente real no seguinte sentido: agora, por exemplo, vocês vêem aqui esta xícara; quando vocês param de olhar para a xícara ― não tem ninguém olhando a xícara; ela esta lá no armário fechado, no escuro ― ela não para de existir. Se ela parasse de existir, ela teria de ser uma xícara mágica ― que sai da existência e entra de novo, conforme as pessoas olhem para ela ou não. Essa existência contínua no tempo ― essa xícara desde que ela foi fabricada, não parou de existir nem um único minuto; quando ela não está sendo usada, ela existe; quando ninguém sabe da existência dela, ela continua existindo, e assim por diante. Você pode imaginar, por exemplo, que em algum deserto do mundo deve ter uma pedrinha que nunca ninguém viu, mas a pedra está lá; desde que ela se formou ela está lá e vai continuar por bastante tempo. O mundo inteiro está cheio desses entes. E o próprio mundo, e o próprio universo, também são assim.
Quantas vezes, na vida, você se lembra de pensar no planeta terra? Você está andando sobre um planeta ― se tirar o planeta debaixo de você, você fica no ar ― o planeta sempre esteve aí. É nesse sentido que Edmundo Husserl dizia que a Terra era imóvel: a terra sobre a qual nós andamos é imóvel; para que nós nos movamos em cima dela ela tem de ficar parada no mesmo lugar. Claro que ela pode se mover em relação a outro corpo do tamanho dela, mas ela não pode se mover fisicamente em relação a nós. Não é só uma questão subjetiva: nós temos a impressão de que a terra é imóvel. Não! Em relação a nós ela não se move nunca. Se você se sentar aqui, no lugar onde você está, e disser: eu não vou sair daqui, a terra não vai se mover em relação a você.
Quantas vezes na vida você se lembrou de pensar nisso? Raramente. E, no entanto, a terra sempre esteve aí e com relação a você ela sempre foi imóvel. E se não fosse assim você jamais poderia ter tido nenhum movimento. Essa é uma condição objetiva, permanente, perfeitamente contínua, que não é suspensa por uma única fração de segundo. Do mesmo modo, se você existe, a sua existência tem de ser contínua; ininterrupta. Você pode dizer que a existência do seu corpo é assim até certo ponto: algum corpo você sempre teve, mas você sabe que as substâncias, os componentes desse corpo, não são mais os mesmos que eram antigamente. Todas as células já foram trocadas várias vezes. Então, se o seu corpo existe, ele existe como uma forma abstrata que permanece para além de todas as mudanças do seu conteúdo. Então, o corpo nosso não é o exemplo mais nítido da nossa forma de existência permanente. Ou seja: suas idéias mudam, suas experiências mudam, seu eu biográfico muda, seu eu social muda, seu eu presencial muda, tudo, tudo muda. Mas tem que existir necessariamente uma faixa de realidade na qual você existiu permanentemente. Se essa faixa não existisse, você, como a nossa xícara mágica, teria esse poder de entrar e sair da existência várias vezes, o que seria ainda muito mais difícil de explicar do que sua existência permanente.
Normalmente nós pensamos em nós mesmos somente a partir daquilo que nós sabemos de nós: é fácil você perceber que o eu presencial, o eu social e o eu autobiográfico consistem de informações que você tem. Mas você pode consistir somente dessas informações? Claro que não! Se você consistisse somente dessas informações você seria uma criação da sua própria mente, e você teria a durabilidade que as outras criações da sua mente têm. Seria como uma idéia que aparece e se desvanece, como uma sensação que o atinge e depois desaparece e que você esquece para sempre, e assim por diante.
Esta é outra coisa ― um fator permanente e importantíssimo ― no qual nós jamais, ou raramente, pensamos. Cada um de nós tem uma existência permanente, contínua, desde que nasceu ― ou até antes de nascer ― e esta existência não coincide com o conjunto do que você sabe a respeito. De um lado temos todo o campo do conhecer, e de outro lado todo o campo do ser. E, curiosamente, em geral, para nos orientarmos em relação a nós mesmos, nós prestamos atenção apenas no conhecer ― apenas naquilo que nós sabemos ― e deixamos de fora a imensidão de dados que constituem a nossa realidade. Esta realidade não se identifica com as suas idéias, não se identifica com as suas emoções, e também não se identifica com a sua presença corporal, porque a sua presença corporal também não é continua, porque os elementos do corpo vão mudando.
Esta forma de existência permanente, que é absolutamente necessária ― se você raciocinar dois minutos perceberá que você sempre existiu ― é isto que eu chamo de eu substancial. Por enquanto nós não sabemos o que é o eu substancial, mas nós sabemos que ele existe, e sabemos que ele é a base ontológica de todas as outras imagens do eu que nos possamos formar.
Em seguida eu disse que o eu substancial não pode ser captado pelo pensamento humano: você capta a existência dele, você capta até o conceito abstrato dele, mas ele, como totalidade, não pode ser objeto de uma apreensão mental, ou de um ato de cognição. Então você sabe que você existe, mas você não tem a visão completa do seu eu substancial. Mesmo porque, essa visão completa você só poderia ter se você tivesse cessado de existir. Então você, desde outro nível, desde outro plano, observaria o seu eu substancial: você deixaria de ser você e o seu eu substancial se tornaria apenas um dado da sua mente, um dado de consciência. [30:00] Isso nunca aconteceu nem vai acontecer.
Basta isso para se entender que todo o campo daquilo que se conhece, que se compreende mentalmente, se apóia na consciência que se tem de outro campo mais profundo, mais permanente, sobre o qual não se tem nenhum domínio mental. Este outro campo, se ele não pode ser objeto de conhecimento no sentido mental, é objeto de admissão: você aceita que ele existe, do mesmo modo que você sabe que não pode apreender o universo inteiro num ato de cognição e só lhe resta admitir que o universo existe. Essas coisas que existem, mas que não podem ser apreendidas pela mente ― que só podem ser aceitas pela mente, porque transcendem sua capacidade de cognição ― determinam a forma e os limites da sua capacidade de cognição. Ou seja: estamos dentro de uma realidade ― nós mesmos somos reais, somos parte dessa realidade ― e existimos ao mesmo tempo como parte de uma realidade maior, e como uma realidade independente que tem sua constituição própria. E este conjunto de condições reais delimita as nossas possibilidades de cognição. A mente ― que é o órgão da cognição ― não tem o que fazer aí senão admitir que as coisas sejam assim.
Esta admissão é a forma fundamental de conhecimento, porque é ela que garante a conexão de todos os demais conhecimentos, com a realidade. Se nós fôssemos sòmente uma mente, se a mente cognoscente fosse o centro e a base do nosso ser ― como pretende, por exemplo, René Descartes ― a mente não poderia conhecer nada fora dela mesma. Tudo aquilo que nós pensamos ― que está na nossa mente ― são criações da nossa mente: conceitos são criações da nossa mente, imagens são criações da nossa mente. Se não tem um elo entre pensamento e realidade, então o pensamento só vive de pensamentos. Se nós conseguimos pensar algo a respeito da realidade, é porque nós também somos reais: é a nossa realidade que fundamenta a realidade dos nossos conhecimentos. Ou, dito de outro modo: um ente irreal, jamais poderia ter conhecimento do real. A nossa parte real é essa existência substancial, permanente, ininterrupta, que nós só podemos aceitar.
Ora, quando você se relaciona com as outras pessoas, você também não as enxerga como totalidade; você não sabe tudo a respeito de uma pessoa; você só sabe o que você viu, o que você ouviu e o que sentiu dela durante certos momentos. Por mais intensa que seja a convivência, ela não será continua: ninguém vive grudado no outro, vinte e quatro horas por dia. E, no entanto, você sabe que essas pessoas têm uma existência substancial; se você não soubesse, você jamais poderia amar um ser humano porque você estaria apenas amando uma idéia sua mesma: um produto da sua mente. Então, não existiria essa função eminentemente transitiva ― essa função que nos leva para além de nós mesmos ― que nós chamamos amor. Se é possível contato amoroso real entre duas pessoas, é porque elas sabem ― cada uma delas sabe ― que a outra é real, e que ela própria também é real, e que sua própria convivência abrange um círculo muito mais amplo do que a sua mente pode captar.
Esse reconhecimento da realidade que transcende a nossa mente é a condição para que nossa mente funcione. Por isso mesmo é que jamais, jamais, jamais, podemos aceitar que a consciência que o eu tem do seu próprio pensamento é a base de toda certeza. Na hora em que Descartes chega no famoso cogito ("penso, logo existo"), sim, é uma coisa bastante obvia: "Eu penso, logo existo". Mas eu existo somente como pensamento. O cogito prova a existência do pensamento, mas não de um substrato ontológico real, por baixo dele. Um personagem imaginário, que pensasse, poderia dizer a respeito de si mesmo: "eu penso, logo existo". Qualquer personagem de romance pode aparecer ali pensando e pode constatar sua própria existência, hipoteticamente. Porém, a existência do nosso eu substancial não pode ser captada hipoteticamente, porque uma hipótese é uma criação da mente. Você não pode transformar o seu eu substancial num conteúdo da sua mente; portanto você não pode pensar nele como hipótese; você só pode pensar nele em termos categóricos: eu existo efetivamente, num mundo que existe efetivamente e as outras pessoas também existem efetivamente, e não só na minha mente e, pior ainda, a existência delas transcende tudo o que está na minha mente a respeito delas.
É exatamente esse reconhecimento da existência substancial do outro que permite que eu tenha amor pelo outro, porque se eu vou amar alguma coisa que eu sei que é apenas imaginária, então este amor está destinado à frustração desde o início, e não haveria nenhuma diferença real, por exemplo, entre o ato sexual e a masturbação: você geraria as pessoas imaginariamente, e todos nós teríamos nascido de atos de masturbação cometidos pelos nossos ancestrais, em pensamento. A idéia é tão obviamente absurda que ela por si já basta como demonstração mais eloqüente disso: a nossa realidade transcende o nosso conhecimento e é por isso que existe o conhecimento. Se existisse somente o conhecimento, ele seria o conhecimento do nada; seria apenas uma hipótese pensando outra hipótese.
É por isso que estou dizendo que o eu substancial, embora nós raramente pensemos nele, ele não é nada de etéreo, de abstrato. Ao contrário, ele é a condição para que exista qualquer conhecimento. Tudo isso, depois que a gente explicou, se torna imediatamente óbvio: o fato de que você, ao relacionar-se com os outros, não esteja se relacionando com as imagens que eles têm deles mesmos; você não se relaciona com o eu presencial, com o eu social ou com o eu autobiográfico deles. Embora todos esses elementos façam parte da trama da convivência, você está se relacionando com pessoas reais; que você sabe que são reais. Não há nada de misterioso nisso. Nós sempre soubemos de tudo isso, só não nos lembramos de incorporar essa informação que é tão básica e tão óbvia. Os filósofos não se lembram de incorporar isso às suas filosofias e chegam a conclusões absurdas ― como o famoso "penso, logo existo" ― quando o raciocínio é, evidentemente, o contrário: para poder pensar, eu tinha de existir antes de pensar, e o meu pensamento jamais pode ser prova da minha existência. Ele só prova a existência do pensamento.
Quando o sujeito chega a procurar uma prova da existência, significa que ele já foi parar num estado mental muito artificial, porque provar é apenas uma atividade a mais, entre inúmeras outras, que nós desempenhamos na vida desde que nós existimos. Porém, a idéia que surge no começo da modernidade ― de que tudo tem que ser provado e que você deve duvidar de tudo que você não pode provar ― esta idéia paralisa o conhecimento instantaneamente. Porque a prova é apenas uma estrutura lógica: um esquema de pensamento que você faz para fundamentar, perante outras pessoas, algo que você sabe. A prova não é de mim para mim mesmo, jamais; a prova é para os outros; para validar socialmente algo que eu já sei. [40:00] Aconteceu que, com a idéia cartesiana do conhecimento inteiramente provado, a prova se sobrepôs ao conhecimento: a prova vale mais que o conhecimento. Quando o mais breve exame da coisa mostra que a prova é apenas um complemento de certos conhecimentos: você conecta um conhecimento com outro e você precisa de uma prova quando você não tem uma evidência direta da coisa. Isto criou um vício mental. Esse vício afetou tanta gente, tantas inteligências maravilhosas: o próprio Edmund Husserl caiu nessa; Mario Ferreira dos Santos caiu nessa. Mario Ferreira fala do método da suspicácia: se você aceita o método da suspicácia, você vai duvidar de tudo aquilo que não esteja provado; você já não pode pensar o pensamento seguinte, porque isto mesmo não está provado. Nós temos que entender que prova é um aprimoramento que você faz em certos conhecimentos quando isso é necessário. A prova é um elemento: ela faz parte do seu eu social. Por exemplo: não existe uma prova de que você é você mesmo; isto é um dado que você recebe de fora; isto é uma evidência. Essa evidencia é obtida de modo direto pela experiência que você tem da sua própria presença; experiência sem a qual não haveria mais nenhum conhecimento. Mas transformar isso, transmutar essa experiência de presença numa tese filosófica e elaborar uma prova para ela é uma coisa secundária. Se nós fôssemos depender dessa prova para termos a experiência, nós jamais chegaríamos a tê-la. O que importa é o conhecimento e não a prova. A prova se torna necessária apenas em certas circunstancias muito limitadas.
O fato de que nós convivamos com pessoas reais o tempo todo, significa que nós sabemos da existência do eu substancial das pessoas. Não há nenhum caso em que você suponha que aquela pessoa só existe quando você a vê. Ninguém supõe isso. Como eu posso mandar uma carta para um amigo, um parente, se ele não está presente? Se ele cessou de existir, para que eu vou mandar uma carta para um ente inexistente? O reconhecimento da existência permanente, contínua, das pessoas, é a base de toda convivência humana. Acontece que este eu permanente, se ele abrange todos os momentos da sua existência, é impossível que ele exista só temporalmente, porque, no tempo, só existe o momento presente: os momentos passados não estão mais aí e os futuros não chegaram ainda. Não é possível que a nossa existência substancial seja apenas temporal; é necessário que ela tenha uma estrutura permanente que abranja todos os seus momentos: passados, presente e futuros.
Se nós somarmos esta informação àquela que nos é dada pelos experimentos de visão remota ― sejam os obtidos em vida do cidadão: o vidente está aqui e está vendo um treco que se passa na Ásia; sejam os experimentos de percepção em estado de morte clínica, quando não há atividade nem cardíaca nem cerebral ― se nós somarmos essas informações, nós entenderemos que o eu substancial não depende da sua presença corporal. A sua presença corporal é um aspecto, uma manifestação especifica do seu eu substancial, mas ela não é o seu eu substancial. Isto significa que a nossa existência transcende, necessariamente, a nossa presença terrestre. Não é que ela faça isso por coincidência ou em casos excepcionais. Isto quer dizer que a imortalidade é uma condição para a existência do próprio ser humano: ele não pode existir como criatura meramente mortal. É impossível isto.
Portanto, a constatação da imortalidade do seu eu substancial é uma coisa tão básica para nós, dentro deste curso de filosofia, quanto o "cogito, ergo sum" foi básico para a filosofia de Descartes. Por isso é que eu escrevi aquele texto A consciência de imortalidade como base do método filosófico.1 Se o individuo não entendeu a sua imortalidade, ele não entendeu a sua modalidade de existência: a forma da sua presença ante a presença do ser.
Agora, façam para si mesmos a seguinte pergunta: "De todas as filosofias, teorias cientificas, que tentaram de algum modo descrever, explicar a sociedade humana, a história humana, quantas levaram esse dado em conta?" Quase nenhuma: duas ou três. Uma filosofia da história que leva esse dado em conta é a de Santo Agostinho. Santo Agostinho disse que nós vivemos simultaneamente em dois planos históricos diferentes: há o plano da história terrestre ― que é escandido, é cortado a todo o momento pela morte dos seus personagens. Quando um sujeito morre, o que sobra dele para os seguintes? Sobra somente aquilo que teve algum registro exterior ao qual as gerações seguintes possam ter acesso. Por exemplo: um governante morto que assinou um decreto que as pessoas continuam obedecendo depois da morte dele. Por que continuam obedecendo ao decreto? Porque os auxiliares, os subordinados do governante, lêem aquilo que ele assinou e eles ― e não ele próprio ― impõem a obediência àquele decreto. Se eles pararem de fazer isso, o decreto some: quando uma lei é esquecida por todo mundo, não importa que ela tenha sido assinada por um governante há duas, três gerações atrás: ela foi esquecida. Aqui existe um site que faz coleção de leis esquisitas que foram promulgadas antigamente: Há, por exemplo, uma cidade que tem uma lei que diz que é proibido embebedar um peixe! Está lá, é uma lei que existe mesmo! É claro que essa lei já foi esquecida: se alguém se lembrou disso, foi apenas como elemento pitoresco, mas ela já não tinha mais força de lei. Do mesmo modo os escritos e as palavras sábias do sujeito que tenha vivido: se desapareceu o registro, aquilo sumiu completamente.
No plano puramente terrestre, é inconcebível falar de uma continuidade da historia humana, mesmo quando há unidade de espaço ― quer dizer: no mesmo local. Mesmo as coisas que se passam no mesmo lugar não têm continuidade, a não ser que alguém force para continuar existindo essa continuidade. Por exemplo: quando Moisés desceu do Monte Sinai com as dez tabuas da lei: se o rabino esquecesse aquilo, babau: Moisés não pode voltar para forçar as pessoas a obedecer. Isto quer dizer que a ação inicial daquele individuo só perdura através da concordância e da continuidade que outros indivíduos livremente lhe dão, porque nada pode obrigá-los a fazer isso. Assegurar essa continuidade é tão difícil que, normalmente, não só os ensinamentos, mas as ordens dadas por pessoas notáveis acabam se distorcendo ao longo do tempo: elas perdem o sentido. As pessoas não sabem: Moises disse isso assim, assim, mas nós não sabemos o que ele quis dizer exatamente com isto. Então, começam a interpretar de mil maneiras diferentes: uns dizem que sim, outros dizem que não; e no fim, quanto sobra da obra originaria, do ensinamento originário? Não se sabe; não é possível se reconstituir. [50:00] Por exemplo: eu estudei bastante Aristóteles e estudos sobre o Aristóteles ― é uma bibliografia imensa ― e eu vejo as divergências cabeludas que existem na interpretação de Aristóteles; então nós nunca estamos seguros se estamos seguindo os ensinamentos de Aristóteles ou a interpretação que alguém fez de Aristóteles.
Bastam esses detalhes para se ver como dificilmente se pode falar de uma continuidade substantiva da história humana. Pode-se dizer que existe uma continuidade intencional: as pessoas continuam fazendo as coisas e elas acreditam e têm a intenção de que aquilo reflita uma continuidade. Por exemplo: cada padre que está fazendo a pregação, rezando missa, acredita que está seguindo os ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas, vejam as divergências que existem entre as várias igrejas protestantes, entre as protestantes e a católica, ou entre a ortodoxa e a protestante e a católica. São mil ensinamentos diferentes que cada um acha que são os ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas não se pode ter certeza absoluta. Então, existe uma continuidade intencional, uma continuidade, por assim dizer, imaginária.
Imaginem, também, culturas que se ignoraram umas às outras: uma nunca soube da outra; não tiveram contato nenhum: elas desenvolvem, nascem, crescem e desaparecem sem que a outra tenha ficado sabendo de nada. Como é que nesse sentido nós poderemos falar de uma "história da humanidade"? Não há história da humanidade nesse plano. No entanto, ― aqui eu estou ainda seguindo o raciocínio de Santo Agostinho ― se você souber que cada um dos personagens envolvidos é uma alma imortal, e que o sujeito, embora não esteja presente na terra, continua existindo, você entende que neste outro plano ― que é a história das almas imortais; a história do que os seres humanos são realmente e não a história daqueles sinais que eles deixaram espalhados na terra ― nesse sentido nós temos uma história efetivamente: há biografias completas; há a continuidade completa, e assim por diante. Ou seja: a história terrestre só existe no plano celeste ― essa é a concepção de Santo Agostinho ― e eu acho a única concepção cientificamente aceitável. No resto, todo historiador que só leva em conta os dados terrestres, só pode falar sobre história da humanidade em termos metonímicos: ele está designando várias histórias separadas e descontínuas ― é disso que ele está falando realmente ―, mas ele supõe acima delas outra história. Essa história só existe metonimicamente: está mencionando o todo pela parte.
A História ― a disciplina História da Humanidade ― é apenas uma figura de linguagem. Mas, no plano da existência dos vários eus substanciais, não é uma metonímia. É uma história, efetivamente, baseada também no fato de que todos os momentos do tempo, só se extinguem dentro do próprio tempo. É só temporalmente que uma coisa passa. Mas o que quer que tenha acontecido, se incorporou ao reino do ser. Saiu do nada e está no ser. Não pode se desfazer completamente. O que aconteceu não desacontece. Pode ser esquecido, mas não quer dizer que desaconteça; que volte ao nada. Tudo aquilo que esteve no ser por uma fração infinitesimal de segundo, está no ser eternamente. Claro que só neste plano nós podemos falar de uma história. Mas, para compensar, a história que se desenrola neste plano ― plano dos eus substanciais ― é tão cheia de coisas, tão densa, que ela também não é imaginável; ela não pode se tornar um conteúdo da nossa consciência; nós só podemos fazer com ela o que nós fazemos com o universo inteiro: admitir que ele existe, que nós não sabemos onde começa nem onde termina.
Ao método Cartesiano ― o método da dúvida metódica; o método da suspicácia etc. ―, eu oponho o método da confissão, ou o método da admissão: admitir, desde logo, a existência de realidades que se impõem a mim, inclusive de realidades minhas, de elementos componentes meus sobre os quais eu não tenho domínio, mas que se impõem a mim. Por exemplo: você diz que você tem um código genético. Quando começou a sua hereditariedade? Você consegue saber até onde? Eu tenho alguma informação até o meu bisavô, mas isto quer dizer que a história começou no bisavô? Não! Mesmo que você tenha sua arvore genealógica... Eu conheci um sujeito, o Willy Würtz, tinha na casa dele uma árvore genealógica que remontava até o século VIII. Um dia até perguntei para ele: "Willy, você é de família nobre?" Ele: "Não, nós éramos uma família de ferreiros, na Suíça." Mas era uma dinastia; era muito antigo isso. Mas, e antes do século oito? Vocês começaram no século oito? Seu código genético começou no século oito? Não! Remonta até à noite dos tempos. Tudo isso está presente. E mais ainda: seu código genético está presente fisicamente; até fisicamente você tem elementos de eu substancial que você desconhece, e que são enormemente reais.
Quando eu digo isso às pessoas mais jovens elas ficam assustadas: quando você faz sexo, todos seus antepassados estão lá presentes. O processo geracional não pode continuar se uma geração foi suspensa. Isto quer dizer: você não sabe o que você está fazendo. Ninguém sabe. Eu mesmo gerei oito filhos e não sei de onde eles saíram; não tenho a menor idéia de onde eles vieram. Claro que depois que inventaram os preservativos, as pessoas fazem de conta que não tem ninguém mais ali: são só eles. Mas essa impressão deriva do fato de que você, cortando a possibilidade das consequências, elimina a presença ativa dos antecedentes. Quer dizer: é uma situação teatral; montada: não há o contato bioquímico entre os corpos. Isso aí, de fato, não é uma relação sexual. É uma masturbação. Não digo que não seja divertido, mas é apenas um teatrinho que você montou: você está fingindo que teve relações sexuais. A relação sexual sem o aporte bioquímico inteiro não é uma coisa completa. Fundamental, nas relações sexuais, é a possibilidade, que está sempre aberta, de que aquilo gere uma modificação imensa no corpo da mulher. Não há uma só mulher que não considere que ter um filho é o momento mais importante da vida dela. Muito mais importante do que casar: só casa para isso; o marido só serve para isso...
Dentre os muitos elementos teatrais que compõem a vida atual, todos eles contribuem para que as pessoas participem de certas ações sem ter consciência da intensidade e da plenitude dos elementos envolvidos. Aos poucos, as várias ações humanas vão todas se tornando teatro: tudo se torna imitação de alguma coisa. O simulacro é um dos elementos fundamentais da cultura contemporânea. [1:00] Como as pessoas vivem num universo de simulacros, às vezes se você informar para elas que elas têm um eu substancial e que elas existem mesmo, é uma coisa em que elas nunca tinham parado para pensar. E, no entanto, mesmo estas pessoas que podem viver quase o tempo todo num universo de simulacros, sabem que as pessoas com quem elas convivem são reais. Mesmo essas. Se perderem completamente essa informação, entrarão no mundo da esquizofrenia. Este é um risco para os habitantes da sociedade presente e é um risco permanente. A esquizofrenia ameaça todos os habitantes da civilização urbana hoje em dia.
Vocês começam a ver por aí o quanto estes exames que a gente faz ― da questão do eu substancial, da alma imortal ― podem afetar a nossa compreensão do processo social-histórico-político, e como de fato essa simples informação, tão logo você a tem em mãos, já modifica a visão que você tem desse processo. Eu me referi outro dia à mudança de escala temporal: a partir do momento em que o individuo tomou consciência da sua imortalidade, ele entende que a duração do processo histórico-terrestre inteira é menor que a duração da existência dele; e de que tão logo ele, morrendo fisicamente, tenha acesso a uma visão mais direta da sua própria imortalidade, o tamanho da história humana terrestre vai diminuir muito.
Isto não quer dizer que você vá sair da história, porque todos esses experimentos que nos trazem a consciência de imortalidade ― em todos eles, sem exceção ― a temporalidade continua. Você passa para outra escala de temporalidade muito maior, e onde os elementos de simultaneidade são muito mais ricos, mas não é a simultaneidade completa e absoluta: continuam acontecendo coisas. As pessoas que dizem: no outro mundo encontrei minha avó, minha tia, meu pai, pessoas que eu conheci e também encontrei pessoas que eu não conhecia; eu acho essa informação de uma importância enorme, porque se você encontrou pessoas que você não conhecia, você ficou sabendo de uma coisa que você não sabia, o que significa que, nesse estado, o processo cognitivo continua; você ainda tem uma história cognitiva; e daí o absurdo das teorias que dizem que você é reabsorvido na mente divina, que você se transforma no Brahman, que você vira a mente cósmica etc. Vira coisíssima nenhuma! Você continua sendo você mesmo. Algumas das limitações terrestres lhes serão retiradas, mas não todas. A sua individualidade foi feita para durar para sempre.
Santo Tomás de Aquino dizia: "No céu estaremos fundidos, mas não confundidos." Ou seja: haverá muito mais proximidade entre as pessoas, o contato entre os eus substanciais será muito mais direto, porque não vai passar pela grade de limitações mentais que existe durante a vida terrestre: é um processo de cognição muito mais direto e muito mais eficiente. Todas as pessoas que passaram por essa experiência relatam que durante aqueles momentos elas eram extraordinariamente inteligentes; suas mentes eram velozes: bastava pensar numa coisa, para conseguir enxergá-la; tinham evidências diretas de maneira muito mais rápida. Este é o sentido do "estaremos fundidos, mas não confundidos": a distinção entre as individualidades continua.
Isto também basta para entendermos que a escala da temporalidade terrestre, com a qual os historiadores lidam, não tem existência substantiva: ela é apenas uma figura de linguagem. Mas, por baixo dela, existe outra forma de continuidade que assegura a realidade parcial do processo histórico. Ou seja: nós podemos chegar a uma visão concreta, correta, do processo histórico, se nós tivermos a idéia da continuidade substancial que embasa essa continuidade para muito além daquilo que os personagens envolvidos sabiam. Por exemplo: quando você lê os romances de Georges Bernanos, em todos eles a ação terrestre se passa simultaneamente a uma repercussão celeste imediata. A estória é contada em dois planos. A significação celeste, eterna, dos atos terrestres, é o que dá a substancialidade dos atos terrestres. Quando a visão do processo celeste nos parece abstrata e longínqua ― então os fatos terrestres físicos, ou registrados em documentos, nos parecem mais imediatos e reais, e esse outro plano nos parece demasiado etéreo e abstrato ― nós estamos confundido a ordem do conhecer com a ordem do ser. Aristóteles já ensinava isso: aquilo que é primeiro e mais evidente para nós, não é necessariamente aquilo que é primeiro e mais evidente em si mesmo.
A nossa dificuldade de acesso a esse outro plano de realidade ― que garante a realidade do plano em que estamos vivendo historicamente agora ― pode ser muito difícil. Mas isso não quer dizer que aquilo que nos parece mais longínquo e mais etéreo, seja de fato longínquo e etéreo em si mesmo, porque justamente nós estamos falando do plano onde os seres têm continuidade ontológica, real e, mais ainda, autoconsciência. É claro que, vista deste ponto de vista, é a história terrestre que é uma fantasmagoria, uma descontinuidade, uma série de pontos soltos no espaço dos quais nós criamos uma unidade fictícia. Porém, eu pergunto: a unidade da história tem que ser necessariamente uma unidade fictícia? Não. Normalmente é o que os historiadores fazem porque não estão levando em conta os dados de ordem espiritual que dão a continuidade e a substancialidade dos acontecimentos. Mas, é possível inverter isso e é exatamente isso que Santo Agostinho faz no livro A Cidade de Deus. É uma coisa incrível que o método de Santo Agostinho não tenha sido continuado e aprofundado; que os historiadores não tenham se interessado por isso.
Com exceção, por exemplo, de Ibn Khaldun (quando eu criei aquele grupo de estudos políticos no Paraná, eu chamei de Centro de Estudos Ibn Khaldun em homenagem ao grande historiador tunisino) que foi o único, que eu saiba, ao longo da história, que juntava esses pedaços: juntava história terrestre e história celeste ― do ponto de vista dele, que era um ponto de vista muçulmano, evidentemente. Ele sabia que era preciso fazer isto e, portanto, ele era capaz de perceber, no processo histórico, certas coisas que para os outros se tornavam totalmente invisíveis. Ele é o primeiro historiador a proclamar, por exemplo, que entre todas as modalidades de poder ― capacidade de ação ― que existe no mundo, a mais forte é o poder profético, cuja eficácia atravessa os séculos e os milênios. Decorridos milênios, você pode pegar como exemplo mais claro a civilização chinesa, ou a nação judaica: os judeus ainda estão obedecendo a instruções dos seus primeiros profetas. Que governante não-profético pode se gabar disso? Durante quanto tempo as pessoas obedeceram as ordens de Stalin,? Stalin foi o homem mais poderoso do século XX. Ainda há dois ou três que continuam obedecendo as ordens de Stalin, mas em geral foi esquecido. [1:10] Por exemplo, o Quartim de Morais, ele ainda está tentando obedecer Stalin. Napoleão: existem algumas leis que Napoleão fez que ainda estão vigentes, passados menos de duzentos anos, mas certamente vão se desfazer. Mas, as ordens de Moisés continuam sendo obedecidas; e as de Abraão também. Há alguns judeus que falam das leis de Noé: alguns rabinos dizem que, antes de tudo isso, o essencial é essa lei de Noé; e eles continuam tentando seguir aquilo. O único historiador que percebeu isso foi Ibn Khaldun. 2
Eu não conheço outro historiador que tenha tentado elaborar as coisas nesse plano. Quando eu propus, anos atrás, um estudo da fenomenologia do poder, a existência do poder profético e o fenômeno da continuidade histórica foram os centros de preocupação. Eu considerava um verdadeiro escândalo que, não só os historiadores profissionais, como até os filósofos da história, geralmente ignorem isso. Se nós não tornamos os personagens históricos como criaturas espirituais, que continuam existindo num outro plano, o único traço de continuidade que resta é a continuidade terrestre e, portanto, a continuidade intencional. A continuidade intencional está submetida a um negócio que se chama entropia. Quer dizer: o sentido da mensagem originária vai se desgastando, até que não sobra nada; é como uma substância em que você vai botando água, água, água, daqui a pouco só tem água.
O processo histórico seria realmente incompreensível e a continuidade de certas civilizações, ou de certos processos históricos, ao longo das eras, se tornaria uma coisa incompreensível. Daí eu ter colocado aquele problema de "quem é o sujeito da História?" Ou dito de outra forma: a História é a história do que? Nós só podemos falar que existe uma ação histórica quando a continuidade transcende a esfera da vida individual: tudo aquilo que morreu com o sujeito não se incorpora à História ― faz parte da biografia dele, mas não deixou nada. Quando nós vemos que certos processos históricos transcendem a duração daquilo que chamei de continuidade intencional e preserva uma continuidade substantiva ao longo das épocas, aí se tem, efetivamente, um sujeito histórico agente: a voz dos profetas é um sujeito histórico agente cuja ação se propaga e se prolonga para muito além da duração da vida do indivíduo ― não só pelo elemento intencional terrestre; não é só porque algumas pessoas têm a intenção de prosseguir obedecendo àquilo ― é porque desde o plano da existência substancial celeste, a força formadora dos processos continua agindo sobre eles. As leis de Moisés continuam funcionando só porque os rabinos querem? Não. Moisés quer alguma coisa e ele continua sendo uma força agente. Então, aquela pessoa se torna um fator histórico permanente: há uma presença de Moisés; há a presença de Abraão; há a presença de Jesus Cristo; há a presença de Lao-Tsé; há a presença de Confúcio. Esses elementos de duração enorme não têm como serem explicados só pela continuidade intencional, porque a continuidade intencional é necessariamente entrópica: ela se desgasta, ela perde energia. Assim como na natureza, temos de levar em conta a existência de uma entropia, mas também tem uma entropia negativa: algo que se opõe, uma força misteriosa que se opõe à entropia e que restaura os processos que estão se desgastando no plano histórico, também nós temos de levar isso em conta, senão nós nunca entenderemos absolutamente nada.
A continuidade histórica também se esclarece através do conteúdo preditivo das profecias ― a profecia não é só a previsão, evidentemente; a profecia é uma ação histórica real ―, mas, além de ela ser uma ação histórica real, ela também tem um conteúdo preditivo: o profeta manda fazer e ele diz o que vai acontecer se fizerem assim ou assado. O estudo das profecias acertadas é um elemento absolutamente indispensável à história, porque se ninguém conhecesse o processo histórico de antemão, toda unidade que você compõe para descrever o processo histórico é puramente imaginária sua. Mas quando nós vemos, por exemplo, coisas que aconteceram na profecia de La Salette, na profecia de Fátima ― onde as coisas se cumprem rigorosamente como foi dado ― então você entende que o processo que sucedeu aqui, já tinha uma unidade pré-determinada no plano da eternidade. E este jogo, vamos dizer, de história terrestre e eternidade, é o fundamento único de qualquer explicação histórica possível. Alguns historiadores falam num negócio que chamam meta-história, e entendem que a explicação da história está na meta-história, e que a história terrestre considerada em si mesma não só não tem sentido, como não tem unidade nenhuma e nem sequer pode ser contada, a não ser de modo ficcional.
Esta é uma conseqüência para os alunos do seminário que ouviram a aula anterior: na aula anterior, sábado passado, eu saí do fio da meada ― da ordem das explicações que eu estava dando antes ― e dei a eles uma exposição de filosofia política, por uma coincidência. Mas acontece o seguinte: não existe esse negócio de filosofia política, filosofia moral, teoria do conhecimento. A filosofia é um processo integral, onde todas as suas "disciplinas" estão conectadas ao mesmo corpo de princípios e são apenas exemplificações da aplicação desses princípios a vários domínios. Não há realmente essas disciplinas separadas. Ensinar filosofia política, filosofia moral, teoria do conhecimento, é sempre a mesma filosofia, de algum modo. É por isso que a gente explicar filosofia política: a fenomenologia do poder, por um lado, e falar da alma imortal por outro, nós não mudamos de assunto. Como eu mesmo defini a filosofia como a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa, é claro que todo esforço filosófico é um esforço de unificação, de organização. Esforço que falha continuamente. Falha, mas continua: não há a filosofia completa; não há a concepção completa do mundo. Não há e nem precisa haver. Neste mesmo curso eu já expliquei que uma explicação da totalidade é impossível, não apenas por uma limitação nossa, mas por uma limitação intrínseca: toda explicação consiste em remeter um corpo de fenômenos a algo de mais substantivo que o explique. Você pega um fenômeno e explica a realidade por baixo desse fenômeno. [1:20] Susanne Langer dá esse exemplo: você passa a mão num gato e leva um choque ― no Brasil não acontece, mas aqui acontece muito: a atmosfera é muito carregada ― depois você vê um raio, e você descobre que por trás destes dois fenômenos existe um elemento mais fundamental que você chama de eletricidade.
Toda explicação consiste em remeter fenômenos a realidades; ou manifestações fragmentárias a um princípio unificante. Então, se você fala "explicação da totalidade", você está supondo que existe uma totalidade mais profunda e abrangente que a explique. Então, a totalidade que você explicou não é a totalidade. Só que a nova totalidade que você obteve terá de ser explicada, então você terá de encontrar outra totalidade mais profunda e outra, e outra, e outra. Então, a "explicação da totalidade" é uma expressão que não faz sentido. E quando você vê a facilidade com que hoje mentes ilustres, como a do Dr. Stephen Hawking, ou de outros, que dizem que estão próximas de obter uma explicação científica da totalidade universal, eles simplesmente não sabem o que é explicação. Não sabem o que é "explicação" e não sabem o que é "totalidade", por mais que tenham estudado. É uma forma de burrice intelectual altamente elaborada. Nós só precisamos da explicação das partes, porque a totalidade é auto-explicante e é o fundamento de toda e qualquer explicação que se dê para as partes.
Por isto se vê que o estudo da consciência de imortalidade tem implicações diretas para a filosofia da história. E tem também para um domínio mais específico, que é o da filosofia política e, portanto, para a fenomenologia do poder. Se nós entendermos que "poder" é, substantivamente, a capacidade de ação, e que o poder que nós denominamos "político" é o poder específico de determinar a ação de outras pessoas, a primeira coisa que nos chama atenção ao estudar a história humana e ao estudar a fenomenologia do poder em todos os lugares onde ela se manifestou, é o fenômeno da diferença de poder. Isso quer dizer que o poder que um ser humano tem sobre outros, os separa, tão imensuravelmente, como se o primeiro deles fosse um deus e o segundo um simples animal mortal. E esta diferença de poder é estrutural, na condição humana. Nós podemos conceber alguma situação em que todos os seres humanos tenham o mesmo coeficiente de poder? Isto é impossível! Em primeiro lugar, porque as pessoas, antes de agirem historicamente, elas precisam nascer; e quando você nasce você não manda nada. Ou seja: pelo menos nesta ― uma diferença de poder baseada na idade ― é impossível de abolir. Em segundo lugar, qualquer princípio mínimo de organização social, de organização de qualquer ação em particular, pressupõe uma diferença de poder. É por isso que o conceito de igualdade, aplicado à sociedade humana, não faz o menor sentido. E, não obstante, esse conceito tem sido usado como um dos conceitos fundamentais da filosofia política. Você pode usar o termo igualdade, mas ele sempre também será usado de forma metonímica: você vai designar como uma igualdade substantiva uma mera semelhança parcial. Existe a igualdade como similaridade sob certos aspectos, em certos momentos muitíssimo limitados. Fala-se em isonomia salarial: pessoas que exercem a mesma função devem ter um salário equivalente, ou parecido; mas nem mesmo a isonomia salarial é possível: as pessoas exercem as mesmas funções, mas para quem? Suponha um Office boy do George Soros e um Office boy do armazém da esquina: a função é a mesma, mas as circunstâncias são diferentes, e exigir que do armazém da esquina pague a mesma coisa que o George Soros paga é de uma desigualdade brutal. Como dizia William Blake: uma mesma lei para o lobo e o cordeiro é totalmente desigual. O conceito de igualdade é apenas, de fato, uma metonímia, uma figura de linguagem, e, no entanto, é usado nas discussões políticas como se refletisse uma coisa substantiva.
Do mesmo modo o conceito de liberdade: os liberais fazem da liberdade um dos seus princípios. Uma vez eu escrevi uma série de artigos, que acho que eles nunca entenderam, explicando que se você estabelece que uma determinada proposição é um princípio, isso significa o seguinte: primeiro, que ela é origem e fundamento das proposições seguintes; e que ela não será posta em discussão jamais: ela está acima da discussão; assim como nós falamos do principio de identidade em lógica. Eu já expliquei que quando as pessoas falam que existem lógicas paradoxais, elas estão muito enganadas. Nenhuma lógica paradoxal jamais abole o principio de identidade. As lógicas paradoxais apenas usam o principio de identidade para raciocinar a partir de proposições que são contraditórias; mas que não são contraditórias consigo mesmas. Se eu raciocino na base de que os quadrados não são redondos, eu tenho uma série de conseqüências; se eu determinar que os quadrados são redondos eu tenho outra série de conseqüências; mas a primeira proposição continua sendo ela mesma. Se você nega o princípio de identidade, a proposição que afirma ― que se coloca contra o princípio de identidade ― ela mesma tem de obedecer ao princípio de identidade: ela tem que significar aquilo que ela significa e não outra coisa. Se você decide complicar um pouco mais, e disser que ela significa outra coisa, esta outra coisa que ela significa é diferente da primeira coisa, mas é igual a si mesma. E assim por diante indefinidamente. O principio de identidade nunca foi questionado. Nunca! O sujeito mais adepto de lógicas paradoxais nem por um segundo negou o princípio de identidade: isso não é factível. Nós o chamamos de "principio" precisamente por causa disto: ele fundamenta a credibilidade das afirmações seguintes e a credibilidade dele jamais é posta em dúvida. A aplicação de um princípio é universal e ilimitada; princípio serve para todos os casos, e ele é o fundamento da explicação em todos os casos possíveis. Ele mesmo não depende das conseqüências que se tire dele: mesmo que uma determinada conseqüência seja inválida, o princípio continua válido. Ou seja: os termos em que o princípio se enuncia são auto-explicativos e não depende dos termos seguintes: para entender o que é identidade, não se precisa de nenhum outro conceito. Agora, se você pega uma regra qualquer, e a aplicação dessa regra depende de outras condições que não estão definidas na própria regra, então ela não pode ser um principio de jeito nenhum.
Basta especular um minuto sobre o conceito de liberdade e você verá que o conceito de liberdade não é auto-explicativo: a liberdade, no seu sentido mais elementar, é a ausência de entraves a uma ação voluntária; se você dissesse que cada ser humano tem liberdade total e absoluta, o que aconteceria? Se eu tivesse liberdade total e absoluta, ninguém mais poderia ter liberdade. Basta isso para ver que a liberdade não pode ser um princípio. O sentido dela é especificado para cada situação particular, ou pelo menos para um grupo de situações hipotéticas que evidenciam as variações possíveis entre as diversas situações. Se a liberdade não pode ser absoluta, então o conceito de liberdade não pode fazer parte do enunciado de um princípio: é apenas uma regra pragmática, que você aplica em certas situações, mas cuja resolução depende de um princípio anterior. Quais são os princípios em que se fundamenta a liberdade? É curioso que isso não faça parte da filosofia política liberal que tanto preza a liberdade. Se você preza a liberdade, você tem de fazer o esforço de conhecê-la.
O que eu disse é o seguinte: o fundamento do conceito de liberdade é o conceito de ordem social. Dizer que existe uma sociedade é dizer que existe alguma ordem social. Existem ordens que dão um coeficiente maior de liberdade para os indivíduos e outras que dão um coeficiente menor para certos indivíduos. Mas para limitar a liberdade de um indivíduo, ela tem que aumentar a de outros. Ontem eu estava assistindo o filme maravilhoso do Ridley Scott, Robin Hood, com Russell Crowe, filme maravilhoso. O assunto ali é precisamente esse: o rei tem a liberdade de coletar impostos de quem ele bem entenda; e as pessoas dizem que elas têm a liberdade de não pagar. Para aumentar a liberdade de um, vai ter de limitar a do outro necessariamente. Qual é o coeficiente e qual é a regra que determina a diferença entre os dois? Isso não pode ser deduzido do próprio conceito de liberdade; isso implica outros conceitos, entre os quais o conceito de propriedade: quem é o proprietário? O rei é proprietário de tudo e você apenas um arrendatário, ou você tem a propriedade dos seus bens? Sem o conceito de propriedade, não se consegue aplicar o conceito de liberdade. Sem o conceito de propriedade não tem como aplicar o conceito de liberdade. Isso já mostra que a liberdade não é um princípio de maneira alguma: é apenas um arranjo dentro da ordem social.
As várias modalidades de conformação da liberdade e da propriedade vão dar as diferenças entre as várias ordens sociais. O assunto ali do filme é a Magna Carta. Inventam um personagem, que não sei se existiu efetivamente, que teria sido o inventor da Magna Carta, e que seria, na história, o pai do Robin Hood. Não tenho a menor idéia de qual fundamento histórico ele tem para isso ― eu acho que ele não tem nenhum; que tudo foi inventado, mas, como dizem os italianos: "Se non è vero è ben trovato" . Então, o pai do Robin Hood seria o filósofo que inventou a Magna Carta e o Robin Hood se torna um elemento fundamental na revolta dos barões contra o rei. Eles forçam o rei a aceitar uma limitação à sua autoridade e, portanto, eles restringem a liberdade do rei em favor da liberdade dos outros. E qual é o elemento mediador entre a liberdade de um e a liberdade do outro? A propriedade.
É claro que pode haver outros elementos mediadores. Se você falar, como hoje se fala, em direito à vida, onde você toma uma posição contra o aborto, você está limitando a liberdade da mãe em função de um direito que você atribui ao feto. Então qual é o elemento mediador na discussão? Não é a liberdade da mãe, mas o direito do feto. Você não pode falar que é a liberdade do feto, porque o que está em jogo não é a sua liberdade, mas a sua mera existência, a sua vida, a existência de um ser vivo. É ali que se coloca a discussão. Você vê que a falta de clareza, a falta de entendimento desses conceitos, cria desastres fora do comum. Como, por exemplo, a idéia de que se pode criar um governo que crie uma maior igualdade social. Para um governo criar uma maior igualdade social, ele a vai criar entre elementos que não são do governo. Significa que se aqui tem o cidadão A e o cidadão B e entre eles há uma diferença de poder econômico ― portanto, diferente coeficiente de liberdade ― o governo, para regular isso, precisa ter mais liberdade, mais poder de ação, que os dois juntos. Isso quer dizer que para estabelecer a igualdade, sob certo ponto de vista, é preciso aumentá-la sob outro ponto de vista. Você aumenta a desigualdade de poder entre governantes e governados para você diminuir a diferença econômica entre os vários cidadãos. Porém, de onde sai essa diferença de poder? O governo precisa se tornar mais poderoso, mas para ele ser mais poderoso ele precisa ter mais dinheiro. Então, até do ponto de vista econômico, o estabelecimento de maior igualdade traz uma maior desigualdade.
Todo esse problema que está agora em discussão no Brasil: nós temos um governo que, manifestamente, proclama ser favorável à igualdade econômica ― ele tenta fomentar a igualdade econômica ―, mas, para isso, ele precisa se investir do poder de estabelecer essa igualdade econômica e, para isso, ele tem de cobrar mais impostos para ficar mais rico: automaticamente aumenta a desigualdade, e voltamos exatamente à mesma situação que está descrita no Robin Hood. O rei diz: para defender o país contra o inimigo estrangeiro eu preciso de dinheiro, e quem tem de dar esse dinheiro, são vocês. No caso, é uma atividade de guerra, mas se fosse uma "guerra contra a pobreza" seria a mesma coisa: para combater a pobreza eu preciso ser mais rico. Então, isso não tem escapatória. Isso já basta para mostrar que essas noções, "liberdade" e "igualdade", são essencialmente relativas. Mais ainda, são relacionais; elas não têm substância em si mesmas. A noção de ordem social tem substância porque toda e qualquer sociedade, desde a sociedade mais tirânica à sociedade mais liberal, todas elas têm uma ordem, pelo simples fato de ser uma sociedade: ser uma sociedade significa que tem uma ordem social; ou seja: tem alguma regra.
Aluno: Até onde o governo pode controlar as liberdades? Sempre vai ter um que vai ter mais liberdade que o outro... Até onde ele pode, moralmente falando, em termos hipotéticos?
Olavo: Isso aí é do interesse dos "teorizadores do dever alheio", dentre os quais eu não me incluo. O tipo de sujeito que dá uma receita: a sociedade deve ser assim, deve ser assado... Eu não tenho a menor idéia disso e acho isso o assunto mais chato que existe. Eu quero saber como as sociedades realmente são; como elas funcionam; e quais os fatores que pesam ali. O que devem fazer? Isso depende de toda uma filosofia moral. Mas, também a filosofia moral, tal como eu a compreendo, tal como eu a lecionei no Paraná, ela também não se interessa pelo que as pessoas devem fazer: ela se interessa pela substância dos seus atos. À filosofia moral não cabe prescrever receitas de conduta, [1:40] mas explicar os fundamentos da conduta. É claro que isso tem uma opção moral por baixo: é a opção pela prioridade da verdade sobre a fantasia. Na medida em que você aceitou isso ― você quer a verdade, você quer conhecer as coisas como elas são mesmo ― você tem a obrigação de ceder perante os fatos, perante as provas etc. Essa é a única obrigação moral que está implícita na própria noção de conhecimento.
Das várias fórmulas possíveis, tentadas pelas várias sociedades, eu acho que todas elas, de algum modo, são justas, porque a noção de justiça se identifica com a da própria ordem social. Isso quer dizer que uma sociedade totalmente desigualitária pode ser tão justa como uma sociedade igualitária, porque ela será justa nos seus efeitos. Será uma coincidência que, por exemplo, na Inglaterra, onde todos os direitos da aristocracia foram preservados ao longo de tanto tempo, haja mais igualdade social do que em sociedades que pregaram o igualitarismo total? A democracia total? Isto mostra que nas sociedades humanas existem elementos paradoxais, onde as coisas podem ter um efeito inverso da sua definição nominal.
Até na linguagem aparece essa diferença: se você fala a palavra "privilégio" em português, quer dizer uma coisa odiosa, uma vantagem indevida que é a dada a certos indivíduos; na língua inglesa, sobretudo no velho continente, privilégio (privilege) significa um direito sagrado, uma prerrogativa, que ninguém tem o direito de abolir. Isto quer dizer que uma sociedade baseada no privilégio acaba, às vezes, sendo mais justa socialmente que uma sociedade baseada na igualdade.
O contrário também pode acontecer: pode acontecer que o sistema de privilégios se torne realmente opressivo. Quem é que pode dizer isso? Só quem está lá dentro e está sofrendo os malefícios ou benefícios daquela sociedade. Não há solução teórica para esse problema. É por isso mesmo que essas fórmulas gerais do que a sociedade deve ser, ou não deve ser, não fazem o mais mínimo sentido. A discussão sobre o que se deve ou não se deve fazer nunca pode ser feita em termos genéricos, universais e abstratos, porque toda ação humana se desenrola numa situação concreta. Se você cria uma série de direitos e deveres abstratos, eles não vão fazer o menor sentido quando aplicados a uma situação concreta: em cada caso a "aplicação" deles vai exigir uma série de traduções e adaptações nos quais o sentido supostamente originário vai se diluir por completo. Isso se aplica até aos Dez Mandamentos: tem o mandamento de não matar; então está lá o sujeito estuprando minha filhinha de três anos e, por mais que eu mande, ele não pára. Que eu posso fazer senão matar o desgraçado? Se eu me recusar a matá-lo, eu estarei entregando uma vitima inerme na mão de um criminoso. Então, aí se vê a "obrigação" de matar. O mandamento de não matar ― que tem validade absoluta ― se converte em seu contrário, conforme a significação das situações concretas. Não há limite para isso: a variedade das situações concretas não tem limite. Santo Tomás de Aquino dizia que o problema da moral nunca é saber a regra geral: é você saber qual é a regra que se aplica, e como ela se aplica. Existe uma regra para isso? Não, não existe. Existe um senso moral, que é como se fosse uma intuição moral que deriva do amor pelo bem. Mas um bem que você não consegue definir. Foi minha tese no curso de filosofia moral no Paraná.
Educação moral não se constitui de regras ― de ensinar o certo e o errado. Nunca se constitui disso. Mas se constitui de você afinar o senso moral para as várias situações. Pode-se usar a regra; mas a regra se aplica como baliza: não é que se vai deduzir da regra uma situação particular, porque nunca uma coisa é dedutível da outra. Para você "aplicar" uma regra a uma situação concreta você precisa já ter tipificado essa situação concreta. Mas existe alguma situação concreta que possa ser tipificada sob um tipo apenas? Não. Você pega, por exemplo, o homicídio: um sujeito matou outro na esquina. Do ponto de vista jurídico isto se chama crime. Mas o ponto de vista jurídico é o único que existe? Não. Houve, há algum tempo, um processo anatomo-fisiológico que em si mesmo não é criminoso nem não criminoso; que não se enquadra nesse conceito; houve também um processo psicológico: o conjunto das razões que levaram o sujeito a matar o outro. Essas razões podem ser tipificadas como criminosas? Não, porque o mesmo conjunto de razões que podem levar um sujeito a matar, possa levá-lo a não matar. Qualquer fato concreto tem uma multiplicidade de aspectos que convergem e se amarram num ponto x. Então, nenhum fato concreto é inteiramente tipificado, porque a tipificação depende dos vários sistemas tipológicos usados. O próprio processo da tipificação exige certo senso afinado do fato concreto e da sua multiplicidade de aspectos: é isto que tem que ser desenvolvido nas pessoas.
Pode-se desenvolver o amor ao bem, mas você não vai fazer isso, jamais, através de regras, porque a regra já chega ao individuo como uma encarnação do mal; é algo que se opõe a ele; é algo que de certo modo o intimida: basta você dar a regra e ele já está interpretando da maneira contraria. Mais ainda, você vai dar um ensinamento moral eminentemente para crianças: crianças não têm um eu autobiográfico suficientemente desenvolvido para que elas possam controlar sua conduta de acordo com expectativas anteriores que se prolongam no futuro: uma criança não tem capacidade de comando sobre si mesma, no sentido que um adulto tem. De que adianta você ensinar as regras para uma criança? Outra coisa: quem disse que a criança só aprende com você no momento em que você a está ensinando? Ela está olhando você o tempo todo ― criança tem um fascínio pelos adultos, pelo pai, pela mãe ― ela fica olhando, olhando, e quando você está fazendo o que não deve, é exatamente ai que ela está aprendendo. Você está lá berrando com sua mulher na cozinha, e o menininho, olhando, pensa: eu vou fazer isso quando eu crescer. Ou seja: você ensina a criança pelo seu exemplo permanente.
Qual a maneira de ensinar? Eu não posso controlar o processo de aprendizado moral do meu filho, mas eu posso, até certo ponto, controlar a minha própria conduta, para que nada do mal que está em mim passe para ele. É um processo muito mais sutil: não é baseado em regras. [1:50] É baseado no amor que você tem a uma conduta bonita, amorosa, generosa, a qual também não tem regras; é uma questão ― não das regras que você tem na sua cabeça ― mas do que você ama e do que você odeia. E você vai passar para os seus filhos o conjunto dos seus amores e ódios: é isso que ele vai ver. Depois, mais tarde, ele poderá decidir de maneira diferente; mas a primeira marca é deixada aí. Você quer educar seu filho para que ele tenha bons sentimentos? Tenha bons sentimentos com relação a ele. Eu recomendo a todos os pais: pegue seu filho o dia inteiro, pegue no colo, beije, abrace, faça carinho, diga: "Eu te amo". Faça isso o tempo todo e ele vai ficar um sujeito bom. É a coisa mais simples do mundo. Agora, se você não faz isso ― se você trata o bichinho de maneira distante e ensina regras ― ele vai aprender as regras pelo medo, mas vai odiá-las de alguma maneira.
Todas essas conseqüências, você vai tirando para o domínio dos vários estudos humanos ― história, filosofia política, ciência política, moral, filosofia moral, educação etc. ― tudo isso você vai tirando do mesmo princípio, que se chama consciência de imortalidade. Na hora em que esses princípios começaram a se proliferar na minha cabeça, eu entendi que a consciência de imortalidade é o principio número um da filosofia e eu vi que a consciência de imortalidade estava presente para Sócrates, Platão e Aristóteles; que eles sempre tinham isso em conta, embora só ensinassem a respeito disso em certos momentos. Quando Sócrates é condenado à morte e ele aceita a morte até alegremente, dizendo: eu vou desta para melhor e vocês é que vão ficar aqui; isso significa que ele levava a sério a consciência de imortalidade. Não era só uma tese filosófica. Este momento da vida de Sócrates é o momento culminante. A morte de Sócrates é o topo da carreira dele. E qual o ensinamento que ele deixa aí? O ensinamento da alma imortal. Em outros momentos, em que o debate era menos vital e mais acadêmico, ele pode ter ensinado outras coisas, mas a lição fundamental é essa.
Não se pode esquecer que Sócrates, Platão e Aristóteles ainda não tinham a revelação cristã; a sua concepção da alma imortal pode ser incompleta, pode ser falha, pode ser o que você quiser, mas ela está lá, como esteve em todas as culturas e em todas as épocas. Mas no caso de Sócrates, a conseqüência moral imediata da imortalidade da alma já está mais do que explícita; temer a morte, nesse sentido, não é uma coisa certa, pois a morte é apenas uma passagem para outra modalidade de existência, onde você terá mais possibilidades de ação, e não menos; mais possibilidade de cognição, e não menos. Então porque temer isso? Você deve temer tudo que acontece durante a vida, mas a morte não: você pode temer a doença, a pobreza, o agressor, tudo isso você pode temer porque está dentro da vida. O temor é uma das muitas emoções que nós temos durante a vida. Faz parte da estrutura da nossa vida terrestre.
Aluno: Se essa passagem é tão gratificante, o que nos faz querer ficar aqui?
Olavo: É aquilo que eu disse antes: na sua concepção geral das coisas, você só leva em conta as três modalidades de eu: o eu presencial, o eu social, e o eu autobiográfico. Embora você saiba que tenha algo mais profundo, este algo mais profundo não pode se converter em um dado do seu conhecimento. Você tem que, continuamente, admiti-lo e readmiti-lo, sabendo que ele transcende a sua mente. Não é uma operação fácil: a tendência normal é raciocinar a partir daquilo que a gente sabe, daquilo que é conteúdo da nossa consciência. E dentro do conteúdo da nossa consciência alguns podem achar que são imortais, outros podem achar que são mortais; uns acreditam em vida após a morte, outros não; mas tudo isso são diferenças de opinião; são elementos que estão na consciência das pessoas. Tudo aquilo que é mental, não tem credibilidade total, pela própria instabilidade da mente. Só quando você aprende a policiar e a limitar a autoridade da mente, obrigando-a a se curvar, permanentemente, àquilo que a transcende, aí você começa a aceitar a estrutura da realidade. Mas, normalmente, como essa parte é mais difícil, você vê que tudo o que se discute em sociedade humana, é troca de idéias: é um produto mental meu contra um produto mental seu. O apelo à realidade de experiência, sobretudo o apelo à experiência que mostra o limite do mental, e mostra a existência de uma realidade para além de nós, esse apelo é raro, e freqüentemente as pessoas não o entendem, porque nós estamos falando de coisas que não podem ser provadas e que também não podem ser impugnadas, é verdade, mas só podem ser conhecidas mediante a aceitação da realidade. Você tem de apelar, não ao raciocínio do sujeito, mas à honestidade da sua memória. Você se lembra de que é assim. Por exemplo: você se lembra de que você sempre considerou reais as pessoas que você ama e com as quais você convive; foi sempre assim. Agora, o sujeito é obrigado a concordar com isso? Não. Ele não é obrigado. Se ele quiser mentir, nada pode impedi-lo. Nada! Nós temos que criar um princípio de honestidade cognitiva, de sinceridade, que é outra das bases do aprendizado filosófico: aprender a admitir realidades que você já conhece ― que conheceu desde sempre ― e que não podem ser objetos de prova porque elas são fundamentos de toda prova possível.
Aluno: A outra realidade é superior a esta?
Olavo: Ela é manifestamente superior. De acordo com os depoimentos que a gente tem é claro que é superior.
Aluno: Por que, então, não optar pela outra realidade?
Porque você não concebe a outra. Você só concebe a outra [realidade] abstratamente, como idéia ou como doutrina. Você não fez o exame do conhecimento que você tem de você mesmo, até o ponto em que você é obrigado a confessar que você é uma alma imortal. A maior parte das pessoas que crêem em imortalidade, apenas creem; é apenas uma idéia. E quem não crê, também. Uma idéia não vale, necessariamente, mais do que a outra.
Aluno: Por que então não buscar o suicídio para atingir esse outro estágio e ficar mais sábio?
Olavo: O suicídio seria uma intervenção da sua mente, no processo. Se você determina o momento da passagem, então você é o senhor do processo. Mas, se você é o senhor do processo, então acontece aquilo que eu disse para vocês do que sucede no instante em que você, tendo aceitado sua existência de alma imortal ― tendo entendido que não tem saída; que é assim mesmo ― você faz um segundo ato de aceitação e você sente o júbilo e a gratidão por isso; você entende que você não tem razão de ser, que você não tem fundamento, que você nasceu de um ato de amor divino, e só. Agora, o sujeito, por algum motivo, pode não gostar que seja assim. [2:00] Ele pode não gostar de viver na aceitação daquilo que o transcende. Ele pode gostar de ele ter o controle do processo. Então, se ele faz isto, ele se voltou contra toda a estrutura da realidade, e aí a perspectiva infernal que se abre, também é infinita.
Aluno: Aceitação é resignação?
Olavo: Sim. Mas é uma resignação jubilosa. Eu, por exemplo, acho uma delicia saber que o universo não depende de mim; na hora de dormir eu digo: "eu vou dormir porque a minha ausência neste mundo não vai fazer a menor diferença. O universo não está esperando eu acordar para eu dar as minhas ordens." Aliás, nem eu mesmo dependo disto: eu não decido nem mesmo a minha própria continuidade. "E se eu morrer durante o sono? Bom, não sou eu que vou me matar. Não sou eu que vou me tirar daqui. Então, pensando bem, isto não é da minha conta." Quando você realmente se entrega nas mãos de Deus 100%, isto tira os seus propósitos, inclusive os seus pecados: "tem um monte de pecados que eu não lembrei, mas Deus conhece todos. E eu já peço perdão antecipado pelo que eu sei e pelo que eu não sei. E está tudo bem."
Esta aceitação total da realidade você pode chamar de humildade, se você quiser. Mas humildade, hoje, é outra coisa: é uma atitude mental de submissão a outro elemento mental. É um elemento humano que está se curvando a outro elemento humano, e isto na verdade não serve para nada. Agora, todas estas coisas que eu estou falando não podem ser provadas logicamente porque não se trata de uma tese abstrata, mas de uma realidade concreta. A realidade concreta só é conhecida por experiência pessoal. Eu não posso forçar você a lembrar a sua experiência. Eu posso sugerir que você o faça. E se você fizer você vai chegar à conclusão que eu cheguei. Mas e se você não quiser fazer? Ou se você quiser mentir? René Descartes, por exemplo, olhava pela janela e via as pessoas andando e dizia: "Que prova eu tenho que estas pessoas são sujeitos humanos como eu e não meras máquinas que andam?" O fato de o sujeito ter colocado esta pergunta já mostra que, para ele, aceitar a humanidade do outro é uma coisa que depende do raciocínio que ele faça. Mas, por raciocínio, jamais se vai chegar a isto. Vai-se chegar a isto por memória. Por admissão da realidade da sua experiência. Como tese abstrata não se pode provar isto jamais.
Aluno: É neste sentido o método que o senhor chama o método da confissão?
Olavo: Sim, é o método da confissão: eu vou reconhecer aquilo que eu sempre soube. E vou parar de mentir e parar de contar historinha. Este só é um processo mental, até certo ponto, porque a mente leva o raciocínio até certo ponto e daí para diante ela só aceita o que vem de fora: aquilo que não é um produto mental; aquilo que a própria estrutura da realidade nos impõe, mesmo quando você não sabe exprimir em palavras, aquilo. Por isso é que eu digo que uma doutrina filosófica que preste, jamais é uma doutrina completa. A doutrina completa seria a doutrina sobre tudo que vai explicar tudo. Mas aí entramos na contradição completa: explicar o todo é remetê-lo a outro todo maior. É uma coisa impossível e ao mesmo tempo desnecessária.
Isto quer dizer que a aceitação da presença do ser e da nossa presença no ser é o começo e o fim da filosofia. No começo você tem a consciência da presença do ser, embora você não preste atenção nela: só preste atenção nos seus pensamentos. Esta vaga consciência da presença do ser, que você tem desde o início, tem que se transformar numa consciência refletida e duradoura. E este é o processo da filosofia. A filosofia só faz isto. E se faz outra coisa, então, não é mais filosofia: é outro negócio qualquer. Agora, pessoas que estão acostumadas a raciocinar em termos doutrinais raramente entendem isto. E este é um problema que eu sempre tive com as pessoas mais católicas, porque elas lêem a doutrina da igreja e elas dizem: "esta é a verdade." Mas. esta não é a verdade. Esta é a verdade em termos doutrinais. Esta é a expressão verbal e doutrinal da verdade. A verdade vai infinitamente além disso.
Muitas filosofias, se interpretadas em termos doutrinais, tornam-se falsas e maléficas. A filosofia não é a expressão de uma doutrina acabada. A doutrina da igreja é a doutrina final: Roma locuta, causa finita. Quer dizer: na hora em que o Papa promulga uma sentença, é assim e está acabado. Mas o processo filosófico não é esse: têm filósofos que jamais chegaram à conclusão alguma. Ele é um processo de contínuo exame dialético da experiência. E, às vezes, a filosofia vale pela habilidade e honestidade com que foi constituído o processo, ainda que as conclusões finais sejam inválidas. Tem gente que não entende isto. E este pessoal que estudou teologia ― que é muito católico e quer fazer as coisas muito certinho ―, todos são assim. Por exemplo, eles lêem Platão como se as sentenças de Platão fossem decretos papais. Então, são decretos papais errados, claro.
A finalidade da doutrina da igreja é estabelecer as balizas: daqui não pode passar. Mas, qual é a correspondência, qual é a comparação, que se pode fazer disso, entre esta doutrina e a filosofia do seu fulano de tal, que é um processo cognitivo pessoal que ele atravessou? As duas coisas não se colocam no mesmo plano, evidentemente. A regra fundamental da compreensão de qualquer obra filosófica é aquela que Hegel enunciou: nenhuma tese filosófica significa nada se amputada do caminho que a ela conduziu. O mesmo se aplica às sentenças papais? De maneira alguma! A sentença papal tem uma validade por si mesma, independentemente das discussões que a produziram. Então, nunca é possível confrontar uma sentença papal com uma teoria filosófica qualquer. Isto é impossível.
Eu estou lendo um livro do Etienne Couvert ― que é um autor que eu adoro― e ele fala um montão de besteiras sobre Platão. Porque ele pega as conclusões finais, a que ele acha que Platão leva, e as confronta com sentenças papais: Platão estava errado nisto, nisto e nisto. Está-se confundindo o trajeto com o ponto de chegada. A Filosofia não tem ponto de chegada; e um decreto papal é o ponto de chegada. Isto quer dizer que nenhuma filosofia chega ao ponto em que ela possa ser confrontada com o dogma da igreja. Nenhuma chega! Ela sempre fica no processo cognitivo, que é, muitas vezes, muito pessoal, muito peculiar e que vale enquanto tal. Mas este é também o motivo pelo qual uma sentença papal não pode dar uma solução a nenhum problema filosófico.
No tempo em que eu estava discutindo com o Orlando Fedeli acontecia isto: ele simplesmente não sabe o que é uma filosofia; ele imaginava cada filosofo como se fosse um anti-Papa. [2:10] Então, está lá o Papa em Roma, baixa a sentença certa, e os caras, desgraçados, baixam a sentença errada. Veja que uma sentença papal, ou um decreto papal, é válido ainda que você não compreenda todas as conseqüências da sua aplicação. Ele é válido em princípio. Agora, para se julgar cada caso, para saber se se aplica ali, ou não, pode levar uma vida inteira de discussões. Agora, se o filósofo pretender estar enunciando a doutrina da igreja e esta doutrina não conferir com a do Papa, então não é uma filosofia: é uma doutrina herética; é uma falsa doutrina católica. Agora, como é que se pode acusar Platão de uma falsa doutrina católica se nem existia a Igreja Católica? Não faz sentindo.
Esta semana eu publiquei aquele artigo sobre aborto,3 dizendo o seguinte: o abortista não consegue convencer o anti-abortista de que é feto é apenas uma coisa que pode ser retirada. E o anti-abortista não consegue convencer o abortista que o feto é um ser humano desde o início. Os argumentos circulam, circulam, circulam, mas ninguém convence o outro lado. Então, a existência desta discussão mostra a incerteza. E na incerteza não se pode ter a certeza de que matar um feto é apenas uma cirurgia, ou se é um homicídio. E se você não tem a certeza você não tem o direto de praticá-lo. É um raciocínio muito claro e muito simples. Daí apareceu um católico indignado: "onde já se viu?! Tem que provar a humanidade do feto". Mas você pode passar o resto da sua vida provando isto: isto não vai persuadir os abortistas porque a noção que eles têm de espécie é uma noção diferente da sua. Sobretudo é uma noção influenciada pela teoria da evolução. Onde as espécies não são conceitos lógicos estabilizados, mas formas empíricas que aparecem e desaparecem e se transmutam umas nas outras. Então você não tem nem mesmo o mesmo conceito de espécie: como é que você vai provar uma coisa para o outro partindo de dois conceitos completamente diferentes? Não dá!
É por isso que o católico, discutindo com o abortista, não vão chegar a nada. Para isto seria preciso rever todo conceito de espécie ― rever toda a teoria da evolução, ou impugná-la, ou interpretá-la de outra maneira ― para que tornasse a noção darwiniana de espécie compatível com a noção lógica de espécie.
As categorias dos pensamentos são completamente diferentes. Então, teria de se corrigir e modificar tudo isto. Isto vai levar milênios e, enquanto isto, eles vão continuar abortando as pessoas. Segundo meu entendimento, moralmente falando, não é lícito prolongar uma discussão, para levar a coisa até à sua última prova cabal, se você tem o meio de parar uma determinada ação humana mediante uma prova incompleta. O sujeito achava que é feio discutir a partir da constatação de uma incerteza empírica e eu acho que é feio você, por querer dar uma prova completa, que no instante é inacessível, pelo menos ao seu adversário, você permitir que a discussão continue. Então, é o seguinte: o aborto é errado, então tem que parar já. Essa é uma decisão que é tomada no campo da ação humana e não no campo da prova teórica. Então, se eu estou dizendo que não precisa ter a prova final para provar a imoralidade intrínseca no aborto ― 'Não, mas isto é anti-católico, nós temos que dar a prova final' ― você vai continuar discutindo e os caras vão continuar abortando. Isto mostra a inadequação: o indivíduo não sabe o que está sendo discutido. A questão moral do aborto surge por causa da humanidade do feto. Mas o que está sendo discutido não é a humanidade do feto: é o aborto. O cara está confundindo o problema, com o motivo lógico que causa o problema. O que é isto? Falta de habilidade; falta de técnica filosófica; falta de formação. E o que eu digo é que nas faculdades brasileiras ninguém adquire formação em nada: só adquire confusão e deformação. Não tem um único educador nas universidades brasileiras. Nem um único! São todos charlatães. Tudo aquilo é pose.
Daí eu lembro também o famoso negócio do Zinovyev: toda instituição, toda a organização, tem as suas finalidades próprias. Por exemplo: se é uma fábrica de sabonete vai fabricar sabonete e vender sabonete. Existe uma técnica para fabricar sabonete e existe uma técnica para vender sabonete. Mas, além de ser uma fábrica de sabonete ela é uma organização hierárquica, onde as pessoas sobem e descem e caem. Então, manter a sua posição dentro da organização e galgar postos superiores na hierarquia é uma terceira tecnologia que não tem nada a ver nem com fabricar sabonete e nem com vender sabonete. E é uma técnica tão complicada quanto as outras duas. Então, se você tem três pessoas competindo dentro de uma organização: uma que sabe fabricar sabonetes, uma que sabe vender sabonetes e a outra que sabe subir na hierarquia, qual que vai subir? Esta última evidentemente. Então, a harmonia entre as finalidades da organização e a sua estrutura interna de organização só é assegurada se há um poder comum que articula estas duas coisas. Por exemplo, a fábrica tem um dono e ele só vai permitir que as pessoas subam na hierarquia se elas servirem à finalidade da organização. Se a pessoa é um carreirista espertíssimo ― entende tudo da política organizacional, mas está pouco se lixando para fabricar sabonete e vender sabonete ― então você não serve para trabalhar nessa empresa. Agora, se não tem o dono, o olho do dono, para fazer estas coisas funcionarem de maneira harmônica, a técnica política vai predominar sobre as outras, e será o reino geral da incompetência, da confusão, da perda, do desgaste e, embora as pessoas subam na vida, a firma vai para o brejo. Isto tanto se aplica a empresas particulares como se aplica a governos inteiros.
Isto quer dizer que se não existe uma classe social, um grupo interessado na manutenção da finalidade do governo, então a conquista de postos no governo, a luta pelo poder, se torna tudo. Ainda que este governo jamais cumpra as suas finalidades. E quanto menos ele cumprir mais vai predominar a luta pelos postos. E é isto o que acontece nas universidades brasileiras. Elas não têm um "dono" que esteja interessado em educação. Ninguém está interessado em educação ― e, aliás, ninguém tem educação. Como é que o Ministro da Educação vai estar interessado em educação se ele não tentou adquirir nem uma para ele mesmo?
Eu estou interessado porque eu me matei pela minha educação. Eu adoro educação e adoro auto-educação. Isto é tudo o que eu quero na vida. Então, claro que se eu fizer uma faculdade eu não vou permitir que vagabundo nenhum suba na escala se ele não está servindo às finalidades da educação. Mas o Ministro da Educação, que também só chegou lá por técnica política e não por amor à educação, como é que ele pode assegurar que as duas coisas funcionem para a finalidade nominal da coisa?
De modo geral a atividade inteira dos governos está hoje inteiramente dependente da técnica da conquista do poder, e mais nada. Se o sujeito sobe lá e destrói o país, mas se ele está aplicando bem a técnica de subir no poder, ele vai ficar no poder 50 anos, 60 anos, 100 anos e vai fazer sucesso. Fidel Castro não fez sucesso destruindo Cuba? Cuba era a quarta maior economia no tempo do Batista. Praticamente já não havia analfabeto. Era um lugar de turismo: todo mundo ia para Cuba. Agora não: as pessoas fogem de Cuba. E, no entanto, o cara está lá, no poder, impávido colosso, porque ele sabe se manter lá. Ele tem essa técnica. Ele não tem a técnica de fazer a economia funcionar, não tem a técnica de fazer o país prosperar, mas tem a técnica de ele ficar lá em cima. [2:20] Claro que é uma técnica admirável ― é uma ciência e uma arte também ―, mas ela serve aos seus propósitos e não aos propósitos nominais da organização. Esse é o principio da sociologia política do Aleksander Zinovyev. Descoberta fantástica! Não que outros não soubessem disso, mas ninguém captou isto com esta clareza. E na educação brasileira acontece precisamente isto. Eu só acredito que tem amor à educação a pessoa que lutou pela sua própria educação: porque queria aquilo; não porque queria um diploma, não porque queria um posto. Porque se queria um diploma ou um posto já está raciocinando em termos da ascensão social e não da educação. Quem ama a educação é aquele que a procura ainda que ela não lhe dê nenhum benefício social. Eu vou lhe dar um exemplo: aqui nos EUA tem um escritor chamado Eric Hoffer. Eric Hoffer era um operário; era um portuário. Ele estudou, estudou, estudou, estudou, ficou sabendo um monte de coisa, e nunca tentou sair daquela profissão. Quando ele publicou os seus livros ele ainda era portuário. Este tem amor á educação. Agora, se a educação lhe dá um beneficio externo, este beneficio externo, evidentemente, já passa a ser outro critério de ação para você. Agora, no Brasil, se você perguntar para 100% dos alunos: você acredita que aqui nesta universidade você vai adquirir cultura? Ninguém acredita nisto! Você adquire o que? Um diploma. Então, pronto! Quer dizer: a corrupção das finalidades da educação faz parte da estrutura do sistema educacional. Não é um defeito que acontece de vez em quando; não, acontece em 100% dos casos. É por isso que as pessoas perguntam: O seu curso dá diploma? Eu digo: de jeito nenhum! Eu dou o curso. Que mais você quer?
Agora, se a finalidade é um sujeito que não entende nada do assunto receber um certificado assinado por outro que também não entendo do assunto, o que se pode esperar de organizações concebidas assim? Elas são o desperdício estruturado e organizado. É por isso que vocês vêem que no Brasil tem inúmeras faculdade de ciências e tecnologia e quanto mais faculdades tem menos a produção de trabalhos científicos é relevante. Ela está caindo, caindo, caindo, caindo. É realmente o desperdício organizado.
[intervalo]
Aluno: Se o direito natural é percebido na consciência de imortalidade e ele é, ao mesmo tempo, um vínculo entre a eternidade, a lei moral e humana do povo, então a sua consistência universal pressupõe uma descoberta análoga à que corresponde, não somente ao eu substancial, senão ao nexo direto entre todos os eus substanciais? Ou não? Ele é apenas detectado por esse senso moral que é apenas percebido singularmente, e é impossível perceber no outro?
Toda questão de direito natural já está mal colocada pelo próprio termo. Como poderia haver um direito natural entre criaturas cuja modalidade essencial da existência é sobrenatural por definição? A expressão direito natural supõe a busca de normas universalmente válidas que não dependam de pressupostos religiosos ou que possam ser aceitos uniformemente por membros de várias religiões e até por ateus. Eu, sinceramente, não sei o que fazer com essa noção de direito natural. Toda vez que me falam disso, não é que eu saco do meu revólver, mas eu saio correndo; eu me acovardo perante a complexidade do problema. E eu vou fazer a mesma coisa com esta pergunta. Eu tenho pensado nisso, eu não sei como resolver isto, e no dia em que eu tiver um começo de solução eu apresento. Mas eu acho que a noção mesma é altamente problemática. Eu não acredito em moral natural, nem em direito natural. Nada disso pode ser natural. A não ser que você entenda a palavra natural no sentido mais elástico possível, que é aquilo que se refere à natureza do ser humano. Não a natureza, como se fala de natureza em ciência da natureza; mas aí você está falando somente da estrutura da realidade. Eu não acredito que criaturas meramente naturais possam ter algo como uma moral ou um direito. Sinceramente eu não acredito. Podem-se ter regras automatizadas de conduta, regras instintuais de conduta, ou regras até aprendidas por reflexo condicionado, como se tem nas comunidades animais. Mas a idéia mesma de "direito" e a idéia de "moral" subentende uma finalidade que vai para além da duração desta vida. Eu me lembro de que este foi um dos primeiros temas sobre os quais eu publiquei alguma coisa. Eu me lembro de ter publicado, trinta anos atrás, um artigo chamado Moralidade sem Deus, onde eu discutia esta possibilidade. O artigo está mal escrito ― eu não gosto dele ―, mas mostra que eu já tinha esta preocupação: se é possível uma moral meramente natural, limitada à esfera terrestre. Bom, na prática ela é possível porque existem códigos morais que os governos aplicam a pessoas de todas as comunidades religiosas, sem religião nenhuma, e até aos ateus, mas isso não quer dizer que ele tenha fundamento intelectual. Por enquanto eu acho que isso foi um arranjo iluminista, um quebra-galho, uma gambiarra jurídica. Mas, ao longo prazo, eu acho que isso não leva a nada.
Aluno: O senso moral, você o traz com você?
Não, o senso moral você não o traz com você: você o descobre. Agora, eu creio que o senso moral só pode ser descoberto eficazmente se você tomar como pressuposto a existência da realidade, a existência real dos outros seres humanos, o eu substancial etc. Se não tiver isso você pode estar tentando desenvolver no outro a percepção de uma coisa que você mesmo não percebe. Eu acho que a admissão da existência do outro ― não só da existência terrestre, mas da existência substancial ― eu acho que é o começo de toda a moralidade. Quer dizer: se eu não sei que o outro é um eu substancial, uma alma imortal, eu vou tratá-lo mal de alguma maneira. No mínimo já o estou rebaixando pelo simples fato de colocá-lo na posição de um bichinho. São Tomás dizia que o amor é o desejo de imortalidade do ser amado. Se você exclui essa perspectiva de imortalidade, você já o diminuiu de alguma maneira. Agora, este desejo de imortalidade, também ele pode ser só um sonho, ele pode ser apenas uma tomada de posição, ou um ato de fé, sem o devido fundamento racional ou, ao contrário, ele pode ter um fundamento racional inteiro. Eu acho que se o fundamento racional da consciência de imortalidade fosse ensinado para todo mundo isso iria melhorar muito as coisas. Mas, eu não creio que isso vá ser ensinado nenhum dia. Eu vou continuar ensinando, mas eu não creio que isso vá ser implantando no mundo. E se for implantado vai dar rolo também. Tem uns camaradas que outro dia estavam discutindo: "O Olavo é a favor de um governo teocrático?" Eu não sou a favor de governo nenhum. Eu acho que todas as formas de governo são deficientes, são problemáticas e, em última análise, são criminosas. [3:00] O governo teocrático não mais nem menos que qualquer outro. Também, estabelecer um governo teocrático seria mais um processo revolucionário. Todos esses programas de conservadores católicos ―, sobretudo franceses ― todos eles têm um forte elemento revolucionário dentro de si.
Eu acredito que Cristo resolveu o problema na hora em que ele disse: "Dai a César o que é de César e dai a Deus o que é de Deus". Isto quer dizer que os programas políticos, as formas de governo etc., são conflitos terrestres e mentais que nunca chegarão a uma solução adequada. O que nós poderemos fazer é, desde uma posição moral, cultural, intelectual mais ampla, fiscalizar e fazer a crítica dessas coisas. Não propostas concretas. Mas eu acho que a comunidade dos intelectuais ― se está habilitada a tratar deste problema, se tem a capacidade ― ela pode exercer uma função crítica e limitadora das pretensões de autoridade, e sempre devem exercê-la. A função, inclusive o exercício de poder, não se limita àquilo que está no governo. Existem poderes sociais intermediários que nunca devem ceder as suas prerrogativas ao governo. Se você pensar, por exemplo, que teocracia deveria ser o governo do clero: eu acho que a primeira função do clero é não estar no governo. É criticá-lo desde fora. E se nós tomarmos a palavra clero no sentido que tinha na Idade Média ― não só os padres, mas o conjunto das pessoas letradas e qualificadas ― aí sim é claro que a nossa função não é estar no governo. Mas esta classe pode ter um poder tão formidável que o governo não ouse fazer certas coisas para não entrar em conflito com a intelectualidade. Isto funcionou muito durante a Idade Média, onde o governo medieval era naturalmente fraco. Não havia um governo central com os poderes que depois adquiriram na modernidade. Mas o mundo do clero e, sobretudo, o mundo das universidades, era um fator de refreamento das ambições políticas. Então, é claro que não faz o menor sentido atribuir à minha pessoa uma intenção de governo teocrático e se houver um governo teocrático, se isso vier a acontecer algum dia, pelo menos eu espero não estar lá.
Aluno: O quê o senhor poderia indicar, em português, para se fazer um estudo introdutório da filosofia escolástica?
Neste ponto você tem sorte porque, se tem um material que foi bem e bastante traduzido, em português, é o material escolástico. Graças, sobretudo, aos jesuítas. Por exemplo: existem duas boas traduções inteiras da Suma Teológica: uma do Alexandre Correa e outra, agora, de um grupo de estudiosos, entre os quais Frei Carlos Josaphat, que teve um debate comigo na televisão. As duas traduções são boas e as duas traduções têm defeitos: se você puder comprar as duas, melhor para você. A do Alexandre Correa tem imprecisões, mas é de uma elegância verbal fora do comum; e a outra também tem imprecisões e não é tão bonita assim, embora seja, em certos pontos, mais exata que a do Alexandre Correa. Eu sugiro que, se você vai ler em português, use as duas. Vários livros do Padre Antonin Sertillanges estão traduzidos para o português. Agora, eu sugiro: mantenha distância do Jacques Maritain. Jacques Maritain foi o líder do movimento neotomista, mas é uma mente meio torta. Ele é um dos grandes responsáveis por esta confusão modernista que entra na igreja, no Concílio Vaticano II e, às vezes, Maritain é francamente burro em certos momentos. Sobretudo nos momentos em que se mete a baixar normas para o Estado: o Estado deve ser assim ou assado. Ora, baixar normas, conceber uma sociedade ideal, conceber um governo perfeito, é fazer buraco n'água. Qualquer que seja o governo tem que ter uma intelectualidade, incluindo o clero, capaz de criticá-lo e de limitá-lo. Eu ainda estou com Lao-Tsé: "o melhor governo é o que não faz nada". Ele apenas defende o território e mantém aquele mínimo de ordem e deixa a sociedade se virar. O filme de Ridley Scott ― Robin Hood ― é uma lição sobre isso, para jamais se esquecer ― se bem que em outros filmes ele tenha passado outras mensagens ideológicas catastróficas.
Aluno: O filme Alexandre o grande...
Olavo: Eu não assisti. O que eu assisti foi aquele sobre as Cruzadas ― O Reino dos Céus (Kingdom of Heaven) ― e o Gladiador. O Gladiador também é a apologia do governo limitado: então não se pode negar que neste ponto ele é sincero; mas no Reino dos Céus ele cria uma concepção que parece a da ONU e implica na burocratização enorme. Ele não percebeu a incoerência disso. É claro que ele não é um pensador sistemático: ele é apenas, como todo o artista, um elaborador de imagens que, às vezes, faz as coisas de maneira totalmente contraditória. Mas eu creio que este filme do Robin Hood não tem como ser interpretado de outra maneira: é a clara apologia, é a poética da Magna Carta. E a Magna Carta é a carta dos direitos que estabelece certas liberdades fundamentais.
Aluno: Professor Olavo, sinceramente, estou com medo que minha pergunta seja ridícula, mas vamos lá. O Sr., na aula passada, descreveu três meios de fazer uma pessoa obedecer a outra. São eles: a pessoa obedecer por medo de sofrer algum dano, a pessoa ganha alguma coisa obedecendo ou a pessoa obedece por não saber como não fazer isso. Mas não existiria um quarto meio, a de a pessoa fazer por estar hipnotizada?
Olavo: Eu disse que há três meios: o primeiro, a ameaça de um dano: faça isso senão eu te mato; ou faça isso senão eu queimo a sua casa; ou alguma coisa assim. O segundo é a promessa de um benefício: faça isso que eu lhe pago tanto. E o terceiro é você forçar a obediência porque você modela a mente do sujeito e a cosmovisão dele, de maneira que ele não consegue imaginar nada fora daquilo que você sugeriu. A hipnose se inclui necessariamente neste caso. Inclusive, modalidades de hipnose coletiva são as mais usadas na chamada imposição do poder intelectual. Praticamente os intelectuais, hoje em dia, não fazem outra coisa senão hipnotizar as pessoas. Nenhum destes três meios implica nenhuma valoração moral, negativa ou positiva, do uso destes poderes. Os três podem ser usados para o bem ou para o mal. Mas a hipnose não é uma quarta modalidade porque ela é manifestamente um poder intelectual: um domínio sobre a mente do outro.
Aluno: Os entes, os seres, são distinções realizadas posteriormente por nossa percepção, que é descontínua, já que a experiência inicial (Lavelle) é a do ser... [3:10]
Olavo: Não, a percepção da individualidade dos entes não depende das distinções que você faça a respeito deles, posteriormente. Ao contrário: o reconhecimento da individualidade é prévio a isso. Este reconhecimento é quase inconsciente. Ele determina todo o campo das distinções possíveis. Você não vai perceber que os entes ― os seres humanos, por exemplo ― são indivíduos distintos porque você operou certas distinções e, por abstração, você acaba retroagindo e distinguindo: Ah, o meu pai não é a minha mãe; o meu pai não é o meu gato; e assim por diante. Ao contrário: a percepção dessa individualidade é prévia. Ela não depende de nenhuma operação mental que você faça. Ela já está dada no conhecimento por presença. E é só em cima disso que você pode fazer as distinções. Você pode, por exemplo, comparar: meu pai faz as coisas desta maneira; minha mãe trabalha o dia inteiro, meu pai fica em casa dormindo, só bebendo e dormindo. Ou, ao contrário: meu pai fica em casa trabalhando, minha mãe sai para a gandaia. Estas são observações que você faz. Mas a capacidade de distinguir entre seu pai e sua mãe não é baseada em nada disso. Quer dizer: a presença das individualidades é um dado que está ali desde o início e é uma coisa muito forte: a gente não confunde as pessoas. Procure remontar na sua memória e você verá que esta confusão jamais existiu. Portanto, a distinção de indivíduos não resulta de operações mentais posteriores: ela é um dado inicial. Toda a sua atividade mental se baseia nesta distinção e ela jamais poderia ser realizada por meios mentais ex post facto. Não terminaria nunca! Por exemplo: se você tivesse que, mentalmente, reparar quantitativamente todas as diferenças entre uma pessoa e outra para chegar a perceber que são duas pessoas, não teria terminado até hoje.
Aluno: A afirmação de que tudo que tem um início tem de ter um fim é verdadeira? Em que circunstâncias? Se for, ela pode ser usada como argumento para negar a imortalidade da alma?
Olavo: Não. Eu disse: tudo aquilo que tem um início historicamente. Isso, evidentemente, não se aplica à individualidade humana. A característica distintiva da individualidade humana é a sua imortalidade. Na mesma medida em que a existência do eu substancial transcende tudo aquilo que em você é meramente psicológico ou biológico. Além disto, isso é confirmado experimentalmente por esses relatos todos que nós demos aí.
Aluno: [pergunta quase ininteligível, sobre reencarnação].
Olavo: Reencarnação? Mas eu não sei nem o que é uma encarnação, como é que eu vou saber o que é uma reencarnação? Eu acho que tudo isso são figuras de linguagem. Eu não vejo como transformar isso em teses explícitas que possam ser confirmadas ou negadas. Quando se fala: uma pessoa reencarnou, isto significa que ela tem outro corpo, num outro momento do tempo, e ao mesmo tempo conserva a sua individualidade. Se essa individualidade é imortal, a reencarnação só pode acontecer por um acidente cósmico ou uma anormalidade, e não como regra. Eu acho que a idéia de reencarnação contradiz a estrutura da alma imortal.
Aluna: Mas nesses casos de post mortem a pessoa reconhece seu próprio corpo e volta para ele.
Olavo: Exatamente! Nesses casos de ressuscitados, o indivíduo reconhece o seu corpo e volta exatamente para ele; não vai para outro. A reencarnação suporia o esquecimento total da sua imortalidade. E se a sua temporalidade continua após a morte ― e continua de modo intensificado: a consciência está mais clara ― eu não consigo encaixar a idéia de esquecimento, nisto. Não digo que a questão esteja resolvida para mim: eu ainda não sei. E não se pode, dentre os casos da onipotência divina, negar que uma reencarnação possa acontecer. Mas certamente isto não está nos hábitos divinos. Isto não é uma lei universal.
Aluno: As direções da atenção, de que fala a Astrocaracterologia, está impressa no eu substancial ou só no eu biográfico?
Olavo: Não. Isto é parte da sua mente; da sua hereditariedade, por assim dizer ― a distribuição diferente das direções de atenção nas várias pessoas. Primeiro, este é um fator estatístico: o universo à nossa volta contém todos os elementos que nós podemos perceber. Isto quer dizer que, de uma maneira ou de outra, todos nós temos todas as direções da atenção. Nós só divergimos entre nós por um fator estatístico: algumas pessoas prestam mais atenção em certas coisas do que outras. Por exemplo: é fácil perceber que nem todas as pessoas têm a consciência de corporalidade igualmente intensa. Têm pessoas que parecem que estão vivendo fora do corpo. Mas têm outras pessoas que, ao contrário, elas têm alguma coisa muito exata de percepção corporal. Agora, isso não quer dizer que elas sejam substancialmente diferentes; elas são só estatisticamente diferentes. Alguns prestam mais atenção em umas coisas e outros prestam mais atenção em outras, mas todos estão recebendo as mesmas informações. Então isso não poderia ser uma coisa do eu substancial.
Aluno: Você está dizendo sempre que a coisa mais essencial da imortalidade é como se fosse a mente que nos impede de apreender nossa imortalidade. Quer dizer: a gente dá muita autoridade à mente.
Olavo: Isso! Você colocou um ponto essencial: nós damos muita autoridade à mente. Sobretudo no ciclo moderno, depois de Descartes, a mente virou tudo.
Aluno: Muita credibilidade.
Olavo: Muita credibilidade. É claro!
Aluno: O que é insanidade então? É a hipertrofia da autoridade da mente? É um malefício? É um equívoco?
Olavo: Bom, a questão da insanidade mental não dá para ser estudada a partir só destes elementos que eu dei. Precisaria ter uma fenomenologia da psique ― não só da mente. Eu estou usando mente só no sentido cognitivo, e a mente faz parte de outro negócio mais complexo que se chama psique. Eu uso o termo psique para distingui-la do que é a alma. Quando se fala "a alma" nós estamos falando da alma no sentido pleno, quase como sinônimo do eu substancial. Mas a psique é o conjunto de funções cognitivas, decisórias, perceptivas etc., de que a mente se serve durante a sua vida. Uma fenomenologia da psique é uma coisa que eu já fiz ― tem até uma apostila que se chama "O que é a psique",4 em que isso está explicado ― onde eu parto da idéia de que, embora os psicólogos divirjam na definição da mente, eles todos parecem que sabem o que é a mente porque eles se referem à mesma coisa, ainda que a definam de maneira diferente. [3:20] Então, procurando o que existe em comum entre as várias definições da psique, a gente encontra um núcleo, uma série de características, que parecem estar sempre presentes, porque todos os psicólogos, das orientações mais diferentes, sempre perceberam isto. Primeiro, a psique é sempre definida como uma espécie de causa do que acontece. Não tem nenhum psicólogo que negue isto ― causas psíquicas. Mesmo quando o sujeito diz que a psique se dissolve em alguma outra coisa. Por exemplo, a psique do pessoal do behaviorismo ― que acredita que a psique é composta apenas de mecanismos fisiológicos ― ainda assim esses mecanismos fisiológicos são causas de condutas. Não há um só psicólogo que não seja capaz de distinguir entre um treco que teve uma causa psíquica e uma coisa que teve outra causa. Então, desde logo, todos os psicólogos, de todas as Escolas, vêem a psique como um tipo de causa, e sabem distingui-la de outros tipos de causas. Por exemplo: se cai um tijolo na sua cabeça isto não tem causa psíquica: não foi você quem moveu o tijolo. Todo mundo sabe disso! Se você pega o Jung, que diz que tudo no mundo é psique, e o Skinner, que diz que nada é psique, e que tudo se resolve em fatores fisiológicos: os dois estão de acordo em que o tijolo não cai na sua cabeça por causas psíquicas. Se você faz uma conta de dois mais dois e obtém quatro, isso não foi causado pela sua psique. Existe uma objetividade das relações entre as quantidades que por si mesma determina esse resultado. Afinando-se esta distinção entre a psique enquanto causa, e outras causas possíveis, você chega a perceber, mais ou menos, o que é a psique no entendimento geral ― não, necessariamente, no meu. O que todos aqueles estudiosos do assunto conseguiram perceber em comum: qual é o ponto, o mínimo múltiplo comum, onde todos os estudiosos da mente acreditam encontrar o seu objeto. Então, passamos por cima das divergências. E daí você pode deduzir uma série de características da mente. Por exemplo: ela sempre tem a tensão entre o que é liberdade e o que é coerção. Em qualquer mente humana isso existe. Segundo, ela sempre supõe uma historicidade: você acredita que o que aconteceu antes tem algo a ver com o que está acontecendo agora, ainda que a sua noção concreta de historicidade esteja completamente errada. Terceiro, ela tem alguma coisa a ver com a conservação da integridade do ser: ela age, em princípio, em benefício dessa integridade, embora possa, às vezes, em estados patológicos, funcionar ao contrário. Então, no fim de tudo isto, eu chego à conclusão de que é possível definir-se a patologia mental em termos quantitativos, de diminuição de atividade psíquica, onde outros processos causais de natureza não psíquica começam a determinar o seu comportamento.
Isto é o máximo de resumo que eu posso dar agora. Mas, note bem, psique não tem nada que ver com o eu substancial. A própria capacidade de abertura da psique àquilo que não é psíquico é uma condição do seu funcionamento, mas também pode ser uma das causas do seu não funcionamento. Quando, por exemplo, o fator liberdade é diminuído em função de uma compulsão ― condutas que tende a ser repetidas ― então a repetitividade compulsiva limita a atividade da mente. Nesse romance que eu acabei de mencionar, do Hubert Selby, The Demon, o sujeito começa com uma conduta compulsiva: ele tem de sair com mulheres casadas e ficar com ela um ou dois dias e depois desaparecer por completo. Ele faz isso uma vez, duas vezes, três vezes: está sempre buscando uma nova. Depois essa compulsão vai se transformando em outras, quer dizer, ele não tem margem de manobra para dizer: "Eu não vou fazer assim; eu vou fazer outra coisa." Por coincidência ele acaba fazendo: ele encontra uma mulher, gosta dela e casa com ela. Mas, depois que ele casa, ele não consegue parar com o outro negócio. Naquele momento em que ele casou, parece que ele se torna uma pessoa normal. O que é uma pessoal normal? É a pessoa que tem certa flexibilidade para escolher entre condutas. Mas na verdade você vê que ele não tem; ele continua com a compulsão; então tem uma força, como que cega e mecânica, que o impele sempre a agir da mesma maneira, mesmo quando aquilo não lhe convém. Então nós não temos como investigar a questão da patologia mental simplesmente a partir desses conceitos que nós demos aqui, mas isso está elaborado, até o ponto em que eu pude chegar na ocasião, nessa apostila: "O que é a psique". Mas eu ainda vou voltar a esse assunto; vou dar outro curso sobre isso. Também tem o curso de psicologia que eu dei aqui [nos Estados Unidos].5
Aluno: Será que os aspectos imanentes observados na natureza, sendo criação divina, não seriam balizas a definirem as nossas ações e princípios?
Olavo: Se você tomar o universo na sua totalidade, como criação divina, sim, mas você não percebe o universo na sua totalidade: você [apenas] sabe que ele existe. Então você não pode dizer que, do próprio universo você deduz padrões de conduta que você deve seguir. Isso seria uma espécie de lei natural: a gente observa a natureza e a natureza nos ensina. Mas, você está consciente da presença da natureza, do cosmos na sua totalidade, mas você não o abarca cognitivamente: você observa este aspecto, aquele outro aspecto..., mas quem lhe diz que a lição do aspecto que você observou pode ser transfigurada em norma? Por exemplo: nós observamos que os bichos maiores e mais fortes comem os bichos menores e mais fracos. Houve quem deduzisse daí uma lei moral e dissesse até que o conjunto da sociedade é definida ― é balizada ― por essa lei moral. "É a guerra de todos contra todos", como diz o Hobbes. Mas é claro que isto é um processo abstrativo: você separou certa conduta de outras condutas possíveis. Recentemente fizeram um estudo de quais são as espécies animais cujos membros matam outros membros da mesma espécie, e viram que esse caso é uma exceção. Em geral os animais não matam os da sua própria espécie. E também descobriram que praticamente toda espécie animal tem uma série de mecanismos de concorrência que excluem o assassinato do outro. Então como é que você poderia dizer que a guerra de todos contra todos é uma norma da natureza? Você não pode. Você não conhece e natureza inteira. Leva séculos para se abstrair da conduta de uma única espécie animal os códigos que a dirigem. No século XX, claro que se avançou muito nisso ― deontologia e essas coisas todas ―, mas mesmo assim não se pode ter certeza. Então, a natureza pouco nos ensina sobre a moralidade e às vezes nos ensina a coisa errada, não porque ela mesma não seja criação divina, mas porque a sua observação é difícil e problemática. Então, por exemplo, existem pessoas que acham que em sociedades primitivas as pessoas estão mais bem integradas na natureza e tiram disso uma conclusão moral. Eu me lembro que uma vez o Orlando Villas-Boas, que é o cara que mais conheceu índios no Brasil, disse: "Você pensa que índio gosta de mato? Ele tem [3:30] horror do mato; ele só quer ficar na taba. Eles só deixam que saiam da taba os caras que são experientes, que são profissionais da coisa, os outros (mulheres e crianças) ficam todos lá dentro e o próprio índio adulto só vai se for obrigado a isso. Então cadê a integração com a natureza? Os caras estão é fugindo da natureza. Inclusive eu raciocinei: "O fato que muitas tabas tenham formato circular já é para criar um isolamento em relação ao ambiente. Depois, mais tarde, estudando o livro do Wilhelm Worringer sobre o estilo gótico, ele diz que nas sociedades primitivas a arte tende a ser geométrica ― não figurativa ―: eles não desenham coisas que existem, eles desenham formas geométricas que só existem na mente humana. Então, o que o "primitivo" está fazendo? Ele está criando o isolamento entre a mente dele e o ambiente natural, para que a mente não entre em confusão dentro do caos da natureza.
Aluno: Então ele não é capaz de decodificá-la?
Olavo: Não, aquilo é muito complexo. A arte figurativa só aparece quando surge a civilização urbana: então você já está mais tranquilo e pode olhar a natureza mais de longe e daí você começa a decodificá-la melhor. Em tudo isso você vê que a famosa "Mãe Natureza" não ensina muito no que diz respeito à moralidade, aliás não ensina praticamente nada a respeito de coisa nenhuma. Os processos da natureza não são auto-evidentes: eles são sutis, são complexos, às vezes são secretos. Toda a parte invisível da história. Você imagine a mecânica quântica: se a "Mão Natureza" fosse uma boa instrutora, ela teria ensinado mecânica quântica para os caras desde o tempo de Adão e Eva. A "Mãe Natureza" não é uma instrutora: ela é objeto do nosso conhecimento.
Aluno: Em contraposição teórica a John Rawls, Richard Rorty e Robert Alexy, há alguma bibliografia que os senhor indicaria sobre o tema dos princípios e sua aplicação na ordem social e política?
Olavo: Todos os autores escolásticos trataram disso e, em geral, com mais lucidez do que fizeram todos os demais. Eu não consigo imaginar um escolástico, mesmo principiante, achar que ele pode deduzir todo o direito de uma só noção, como a igualdade, como o faz o John Rawls. Isso é uma coisa tão primitiva que uma pessoa com treino filosófico não faz isto. Não há nenhum campo de estudo onde você possa deduzir tudo de um único princípio. Mesmo na lógica você precisa de pelo menos dois princípios para começar a deduzir alguma coisa: o princípio de identidade, o princípio de não-contradição e depois o princípio do terceiro excluso. Com esses três você deduz a lógica; mas a lógica não se refere à complexidade dos fatos naturais; refere-se apenas à estrutura interna do possível. Mesmo numa ciência tão abstrata e tão descarnada como a lógica não tem como se reduzir tudo a um só princípio. Hoje em dia, e desde o século XVIII em diante, todo mundo tem o sonho de descobrir o princípio fundamental de tudo. Mas que falta do que fazer! Não há princípio fundamental de tudo. Ou seja: não há explicação de tudo e muito menos a explicação única de tudo. Eu acho que no tempo dos escolásticos não precisava ensinar isso a ninguém porque todo mundo sabia disto. Quando São Tomás de Aquino dizia: "A verdade é filha do tempo", ele queria dizer: qualquer questão mínima vai dar um trabalho miserável e mesmo assim, no fim, nós não vamos entender direito. O doutor Freud, por exemplo, queria explicar toda a conduta humana a partir de um fator sexual. O que é isto!? Depois veio o Adler com a "vontade de poder"; Jung com os "arquétipos do consciente coletivo"... Tudo isto existe: existe a repressão freudiana; existem os arquétipos do inconsciente coletivo; existe a vontade de poder. Agora, só o fato de existir os três já mostra como a coisa é complicada. Como é que eu iria reduzir a um fator único os famosos instintos do id, ego e superego; os arquétipos do inconsciente coletivo e a vontade de poder? Aí já tem uma heterogeneidade que me parece irredutível. Estes são fatores especificamente diferentes que pesam sobre a mente humana, sem contar outros tantos fatores: o reflexo condicionado não existe? A linguagem não existe? Tudo isso existe. Agora, a fileira de descobridores de princípios únicos não termina mais. Eles acabam sendo úteis porque logo que aparece um sujeito mostrando um princípio único, aparece outro mostrando outro princípio único e daí você percebe que não são únicos. Essa é a única utilidade.
Aluno: Eles não são únicos, mas têm sua validade?
Olavo: Claro, eles têm uma validade limitada dentro do seu campo, mas têm que ser articulada com outros, e outros, e outros...
Nosso tempo está esgotado e temos que encerrar a nossa aula. Muito obrigado a todos, e até a semana que vem.
Transcrição: Instituto Olavo de Carvalho -- IOC
Revisão: Eduardo Garcia de Queiroz.
Footnotes
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O texto "A consciência da imortalidade como premissa do método filosófico" foi lido pelo Prof. Olavo na aula 61, de 5 de junho de 2010, do COF e publicado no livro A Filosofia e seu inverso e outros estudos, Olavo de Carvalho, Vide Editorial, SP, 1ª edição, 2012, p. 105. ↩
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Escreve-se I B N; Khaldun escreve-se K-H-A-L-D-U-N; esse KH, na verdade, é uma letra única; HA (som de h aspirado) em árabe e Ibn quer dizer filho, é um sobrenome. O primeiro nome dele é Mohammed Ibrahim Yussuf... e muitos outros nomes ― eu não lembro o nome inteiro ― Ibn Khaldun: Ibn é como passou para o português o final ES. Por exemplo: Gonçalves, filho do Gonçalo; Lopes, filho do Lopo, ou Lobo e assim por diante. ↩
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"Lógica do Abortismo" , Diário do Comércio, 14.10.2010 - http://www.olavodecarvalho.org/semana/101014dc.html ↩
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A apostila "O que é psique" está no site do seminário, em "Arquivos", "Apostilas", "O que é psique". ↩
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http://www.seminariodefilosofia.org/cursosavulsos/conceitos-fundamentais-de-psicologia ↩