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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 62

12 de junho de 2010

Muito bem, esta gravação é uma espécie de rascunho de alguns elementos de lógica para o Curso Online do Seminário de Filosofia. Eu não sei quantas aulas teremos ainda sobre isso, mas não custa ir anotando, informalmente, o que eu pretendo explicar lá.

O grande problema do ensino da lógica é que as pessoas têm em vista logo a silogística, isto é, como se deduzir conclusões. A silogística é o próprio sistema dedutivo, quer dizer, como, de um conceito, você deduz propriedades internas que são inferidas da própria definição. Não é preciso dizer que esse processo é, em grande parte, automático, como, por exemplo, em geometria, quando se dá a definição de alguma figura e esta definição não contém todas as propriedades, mas podem ser deduzidas. Em qualquer tratado de geometria, o que é demonstrar um teorema? É você deduzir algumas propriedades da figura. Estas propriedades não estão evidentes à primeira vista, mas suas conexões lógicas com a definição são bastantes claras tão logo você as percebe. Esse processo não é absolutamente automático, mas contém um bom coeficiente de automatismo. Se for programado para isto, um computador pode continuar deduzindo conclusões indefinidamente. Enquanto se está lidando com a silogística, está-se lidando apenas com palavras. Há certos termos que você conhece a definição e extrai dela certas propriedades; também a partir daí nota quando uma propriedade se segue de uma definição e quando não se segue, ou seja, quando se fez uma dedução correta e quando se fez uma dedução incorreta.

Em geral, quando as pessoas apontam contradições num discurso, estão fazendo somente isto: de uma definição geral extraem uma determinada propriedade e a partir daí podem verificar se outras propriedades que foram atribuídas à mesma entidade correspondem ou não com a definição. Se todo o problema fosse esse, não haveria muita diferença entre o conhecimento humano e o que qualquer computador pode fazer. Não haveria a diferença mais mínima. Seria uma diferença apenas prática e não teórica. No entanto, essa atividade dedutiva só existe a partir do momento em que você tem os conceitos, as definições dos entes. Tais definições se incorporam em determinados termos e você continua a usar esses termos subentendendo-se que eles estão compactando a definição. Agora, como você obteve a definição? Este é o verdadeiro problema.

O verdadeiro problema da lógica não está na estrutura do raciocínio, como as pessoas geralmente imaginam. É o famoso "ensinar a pensar" em que você vai dar uma série de regrinhas de lógica para que o sujeito siga-as. Aristóteles reconhece 19 fórmulas legítimas do silogismo e outras tantas ilegítimas. A partir do momento em que a pessoa adotou este esquema, se sente habilitada a discutir, contestar conclusões e até captar erros de raciocínio. Eu não digo que tudo isto seja inútil, pois, de fato, existem erros de raciocínio, e apontá-los sempre pode ser útil de alguma maneira. O problema é que para você chegar aos conceitos há toda a encrenca das relações entre linguagem e realidade. Definitivamente, a percepção da realidade não é uma linguagem. A linguagem é um sistema de regras, um sistema de conexões que não permite a você captar a realidade, apenas referir-se à realidade para outro sujeito também capaz de captar a mesma realidade. Por exemplo, você entende o que eu falo porque está no mesmo mundo que eu; tem a mesma percepção que eu, e a infinidade de informações recebidas do mundo exterior é mais ou menos a mesma entre mim e você. Se nós suprimíssemos estas informações que são extralinguísticas, a língua seria totalmente incompreensível. É uma ilusão pensar que entre dois falantes existe apenas o intercâmbio linguístico. Este intercâmbio se dá dentro de um campo de realidades e percepções que em si mesmo não é linguístico e que sustenta a linguagem de pé.

Se a comunicação fosse exclusivamente linguística, então o sistema da língua teria de ser perfeitamente circular. Quer dizer, cada palavra tem uma definição que é feita com outras palavras, que é feita com outras palavras, que é feita com outras palavras, e no fim teria de se fechar. Isto, evidentemente, não acontece. A relação que existe entre os termos que nós usamos e os entes reais a que eles se referem e as percepções que servem de mediação entre coisa e linguagem são extremamente complicados. E é por isto que antes do estudo da silogística -- o estudo de como as afirmações "saem" de dentro das outras --, é necessário um estudo prévio do que em lógica se chama de os antepredicamentos. Sem os antepredicamentos, a lógica é apenas uma máquina de "tirar" palavras de dentro de palavras, ou "tirar" sentenças de dentro de sentenças.

Infelizmente, a maior parte dos livros e dos cursos de lógica passa muito rapidamente por isso, porque o terreno ainda não é propriamente lógico, mas pré-lógico. Ele tem algo a ver com a relação entre lógica e realidade, mas a lógica não trata da realidade, e sim das conexões possíveis entre conceitos. A lógica é a tradução linguística da estrutura do possível. Nunca trata de realidades, ela só pode estruturar os seus elementos dentro da ordem da possibilidade, como, por exemplo, a impossibilidade total ou contradição, a possibilidade relativa ou probabilidade e assim por diante. Quando nós dizemos que em lógica uma coisa está perfeitamente demonstrada, que ela é certa e verdadeira significa apenas que entre os conceitos envolvidos há um elo de necessidade. Necessidade vem do latim necess e quer dizer "aquilo que não segue". Por exemplo, da definição de um quadrado você deduz que se cortar o quadrado em quatro partes iguais, vai obter quadrados novamente ou que se você cortar o quadrado pela diagonal vai obter triângulos isósceles. Isto não está se referindo a uma realidade, mas a uma possibilidade. Quer dizer, se houver um quadrado e se você fizer isto, mais isto e mais isto, irá acontecer necessariamente aquilo. A lógica nunca pode dizer se algo aconteceu ou não aconteceu. Ela não lida com os fatos. Por outro lado, a nossa experiência sempre se relaciona a fatos que acontecem na ordem do contingente, não na ordem do necessário. Quer dizer, nenhum fato vem com o rótulo do contingente, do necessário, do possível, do provável. Não vem. Ele simplesmente aparece e nós é que temos de enquadrá-lo dentro da ordem superior das possibilidades, para podermos avaliar sua importância relativa. Por exemplo, quando você diz que alguma coisa foi mera coincidência. "Mera coincidência" quer dizer que não há relação necessária com outra coisa. [00:10] É diferente de você dizer que uma coisa tinha de acontecer necessariamente. Um sujeito está com uma determinada doença, ele morre, mas não morreu daquela doença, e sim de uma infecção hospitalar superveniente, que veio de fora. Aquilo aconteceu não por causa da mecânica interna da doença que chegou às suas conclusões necessárias, mas por causa de uma coincidência.

Na transposição da experiência para a linguagem, a possibilidade de erro é muito grande. Muito mais do que dentro do próprio campo da lógica. Quer dizer, os erros em lógica são em número limitado e você pode catalogá-los, mas o problema está nos erros que podem aparecer na transposição do objeto para a percepção e da percepção para a linguagem. Isto quer dizer que a parte mais importante da lógica está antes da lógica. Ela consiste de duas doutrinas básicas: a doutrina dos antepredicamentos e a doutrina das categorias. E é nisso que deveria se concentrar o ensino da lógica, mas eu vejo que, em geral, se dá muito pouca importância a isso, justamente porque essa parte não é propriamente lógica, ela é um preâmbulo da lógica. É como se fosse um preâmbulo ontológico da lógica.

Na relação entre dois conceitos, Aristóteles diz que existem quatro possibilidades: estes conceitos podem ser denominativos, ou seja, estão unidos por uma derivação linguística, como, por exemplo, "sócio" e "sociedade". Em segundo lugar, eles podem ser unívocos, quando significam exatamente a mesma coisa, quer dizer, você está apenas nomeando com dois nomes a mesma coisa. Eles podem ser equívocos, quando um nome significa duas coisas diferentes, como, por exemplo, ao dizer que um homem é saudável e que um determinado remédio é saudável. A palavra é a mesma e o conceito de saúde é o mesmo nos dois casos, mas ela se aplica diferentemente, porque o homem é saudável, ele tem a saúde em si mesmo, mas o remédio é saudável porque transmite a saúde ao homem, ou seja, você não pode dizer que um remédio tem saúde, não é? Ele é um instrumento para a reconquista da saúde. Em quarto lugar, você pode dizer que são conceitos análogos, quando eles em parte significam a mesma coisa e em parte significam outra. Já no caso dos conceitos denominativos em que um deriva do outro -- caso de derivação linguística --, os problemas já não podem ser resolvidos por meios puramente lógicos porque dependem do conhecimento das realidades respectivas. Usando o mesmo exemplo que eu afirmei -- sócio e sociedade --, vê-se que uma ideia deriva da outra, quer dizer, uma palavra deriva da outra implicando que entre os vários membros de uma sociedade existe uma relação que é mais ou menos a mesma que há, vamos dizer, entre os sócios de uma empresa. Por aí nós entendemos que realmente não é assim. Por exemplo, quando você vê que duas pessoas são sócias, porque formaram uma sociedade entre si, mas uma sociedade formada entre dois sócios é uma coisa e a sociedade formada no plano geral é outra. No primeiro caso, os sócios formam a sociedade e no segundo caso você nasce dentro de uma sociedade prévia sem saber que é um sócio. Portanto, o modo de participação é completamente diferente. Aí começa a confusão porque a relação entre a palavra "sócio" e a palavra "sociedade" é uma relação, como Aristóteles dizia, denominativa, portanto de derivação vocabular, mas a relação entre o sentido de sociedade -- quando é usada para dizer que duas pessoas formaram uma sociedade e quando se usa para designar a sociedade em geral --, não é uma relação meramente denominativa, mas uma relação análoga. Por exemplo, quando você diz "a sociedade brasileira" e "sociedade comercial". O modo de pertinência de um sujeito numa sociedade comercial é um e o modo de pertinência dele na sociedade brasileira é outro completamente diferente. Aliás, completamente diferente, não, porque neste caso seria o caso de conceitos equívocos. É um caso de semelhança sobre certos aspectos e de diferença sob outros. Logo, você tem aí uma analogia. Ora, isto quer dizer que só ao usar palavras que já são derivadas uma das outras você já tem uma infinidade de problemas de analogia. Nenhum destes problemas pode ser resolvido pela silogística. Quer dizer, você precisa ser capaz de perceber a realidade e conseguir expressá-la em palavras de tal modo que a ordem das semelhanças e das diferenças lhe apareça de maneira clara.

Sem um treino de percepção de analogias não há lógica. A lógica simplesmente não funciona, ela se torna uma máquina de você deduzir conclusões a partir de coisas que não existem absolutamente e de você pensar apenas sobre palavras, acreditando que está pensando em coisas. E é exatamente por isto que eu insisti com os alunos na questão da cultura literária. Por que o que faz um romancista, um poeta ou coisa assim? Ele está transpondo experiência real ou imaginária em palavras da melhor maneira que possa. É por isto que o Bruno Tolentino definia a poesia como uma maneira memorável de dizer. Ou seja, uma maneira de dizer que merece ser guardada na memória porque ela pode lhe servir algum dia. A variedade de experiência humana que é registrada na literatura universal é uma coisa enorme, oceânica, e tudo isto aí é baseado em analogia. Isto quer dizer que qualquer pessoa que se aventure em estudos lógicos sem ter um domínio de linguagem efetivo, que só pode ser adquirido mediante uma extensa cultura literária, vai cair num formalismo vazio, num artificialismo mais cedo ou mais tarde. Vai acreditar que está pensando, sem estar pensando nada. Ou seja, ele vai estar apenas combinando palavras. Eu considero isto a praga do pensamento moderno. Quando não há uma séria percepção das ambiguidades da relação entre linguagem e realidade, o número de argumentos que você pode construir em cima do nada é infinito. Pode criar problemas lógicos insolúveis cuja discussão se prolongue por séculos. Se você pensar, por exemplo, nas famosas objeções da escola céptica, verá que todas elas são baseadas nisto. Todas elas provêm do fato de que, se você considerar duas sentenças e começar a compará-las entre si, pode chegar a enigmas insolúveis porque a solução não está neste nível, mas no das realidades referidas. Por exemplo, a famosa ilusão do pau na água em que você põe um pau na água e ele parece que está quebrado; daí você compreende que a percepção sensível não é confiável, porque visualmente vê uma coisa, mas se passar a mão ali percebe que o pau não está quebrado. Logicamente isso não tem solução. A solução seria perguntar: [00:20] "Por que um pedaço de pau na água deveria ter a mesma aparência à de um pedaço de pau ao ar livre?" Longe de demonstrar a deficiência da percepção sensível, isso só lhe mostra o que você percebe quando o pau está na água e quando está fora da água. Quer dizer, quando remonta da formulação lógica do enigma à experiência, à percepção real da qual ele partiu, não há problema nenhum, mas se tenta resolvê-la só no plano lógico, verá que nunca mais haverá solução.

Muito bem, o assunto das analogias se torna mais complicado ainda porque não só existem analogias como existem analogias entre analogias. Existem muitas maneiras de fazer uma analogia. Analogia é a percepção de uma semelhança. Esta semelhança, já dizia São Tomás de Aquino, pode subdividir-se em dois tipos: o primeiro é o que se chama analogia de proporção: A/B = X/Y. Por exemplo, quando você diz que o leão é o rei dos animais, significa que o leão está para os outros animais como o rei está para as demais criaturas. O segundo é a analogia de atribuição. Analogia de atribuição é quando você atribui uma semelhança a duas coisas, mas podendo ser de dois tipos esta atribuição. Aí temos a atribuição intrínseca que é quando a semelhança entre os dois objetos deriva de uma mesma razão e a analogia de atribuição extrínseca quando não deriva de uma mesma razão, mas apenas quando uma aparência deriva de outra aparência. O mundo das figuras de linguagem, em geral, desse tipo de analogia, é composto de atribuição extrínseca. O famoso verso de Homero de que todo tratado de lógica cita, "a aurora de róseos dedos", significa que a aurora não tem dedos, mas você pode imaginar que quando o sol vai nascendo, a luz do sol vai tocando os objetos um a um e eles vão ficando claros. É como se fossem dedos delicados que vão tocando os objetos um a um e eles vão ficando claros, fazendo uma mágica neles. Isso é a atribuição extrínseca, que não tem nada a ver. Mas, por exemplo, um sujeito, quando pela primeira vez viu cair um raio, depois tocou no pelo do gato e levou um choque. Ele imagina que pode haver algo em comum entre estes dois fenômenos que são tão distantes, mas, depois, investigando, descobre um treco chamado eletricidade. Ele não sabe exatamente o que é eletricidade e até hoje ninguém sabe. Se você perguntar a qualquer estudioso da área o que é uma carga elétrica, o sujeito não sabe. É uma noção, por assim dizer, empírica, baseada numa impressão. Mas, como é possível manipular esta força chamada eletricidade, é preciso acumulá-la, canalizá-la, usá-la etc. Nós temos uma razoável pretensão de que sabemos mais ou menos o que é aquilo e quando nós sabemos como opera. Neste caso, se diz que entre o raio e o choque que você teve ao tocar o pelo do gato existe uma analogia de atribuição intrínseca. Os dois fenômenos não são a mesma coisa, são diferentes, mas há algo que os assemelha. Para você explicar o que os diferencia, o que diferencia o raio do pelo do gato, note que esta simples distinção pressupõe o conhecimento que você tem praticamente de todo o universo físico e das diversas modalidades de ser que existem dentro dele e das diferentes ordens de fato que podem acontecer. Quer dizer, nesta simples operação de você perceber que há algo de comum entre dois fenômenos está suposta a capacidade de conseguir classificar as diferenças dentro da ordem total do ser. Todo o mundo tem esta capacidade. Agora, a silogística, cuja capacidade todos nós temos, jamais poderia resolver isto, porque não se trata de um problema lógico, mas de um problema de realidade. Mais ainda, como disse Susanne Langer, no seu livro Introdução à lógica simbólica, todo e qualquer conhecimento começa com alguma analogia. Agora, partindo desta analogia, você pode criar, por exemplo, uma espécie de intelectualização prematura das aparências, uma formalização prematura das aparências e obtém disto conceitos que deduzem conclusões a partir destes conceitos. Na última aula eu disse que, a rigor, não existe sexo fora do casamento, quer dizer, na primeira "trepada" que o sujeito deu, ele já está casado quer a dona saiba ou não, e que, depois, tudo o mais é adultério. Quer dizer, só existe casamento e adultério e não sexo fora do casamento. Ou seja, toda relação extraconjugal já é um adultério ou é um casamento. Daí o sujeito diz: "Olavo está vivendo em adultério". Seria isto se a Igreja não tivesse remédios para esta situação. Quer dizer, o sujeito deduz uma conclusão factual a partir de meras palavras, sem ter em conta as várias acepções que esta palavra pode ter em distintas situações históricas, onde se mostram fatos completamente diferentes. Como nem sempre a Igreja teve um registro dos casamentos, se aparecia um sujeito com uma mulher e dizia "Esta é a minha mulher", a Igreja reconhecia. Por quê? Porque o sacramento tinha sido oficiado por eles mesmos. O problema é quando começou a aparecer um sujeito com uma mulher, duas mulheres, três mulheres, quatro mulheres, daí virou bagunça, então a Igreja passa a reconhecer como casamento aquele que foi oficialmente ritualizado ali. Isso não aconteceu desde o primeiro dia. Eu tenho a impressão de que isso só foi acontecer por volta do século IX ou X, não me lembro bem. É claro que se não existe um registro de casamento dentro da Igreja, o próprio conceito de casamento religioso está relacionado com o fato de o homem coabitar com a mulher fisicamente. Mas a dúvida que o rapaz colocou ali é legítima na esfera da pura lógica. Ele não levou em conta os antepredicamentos, não percebeu que o sentido da palavra "casamento" não é um sentido unívoco, é um sentido análogo, ou seja, designa realidades diferentes que são em parte a mesma e em parte são diferentes. O que seria o matrimônio tomado no sentido estrito de que é um sacramento oficiado na hora em que simplesmente o homem toma a mulher e coabita com ela? E o que é o casamento como um rito em que existe um rito público em que se assinam documentos etc., sem contar que mais tarde entra o casamento civil que torna a ideia de casamento ainda mais nítida, mais clara para terceiros.

A palavra "matrimônio" é usada em sentido análogo. Todas elas são matrimônio de algum modo, o casamento civil é um casamento, o casamento oficiado pelo padre é um casamento e o casamento no sentido primitivo também é um casamento. Há diferenças e semelhanças entre as três coisas. Esta sensibilidade para perceber que há realidades diferentes sob os mesmos termos só se desenvolve com o treino literário muito extenso. [00:30] Quando vejo, por exemplo, congressos de lógica como aquele congresso na Suíça de que eu participei por "ectoplasma", porque não pude ir por estar vindo para cá no ano de 2005, em maio de 2005 -- eu vim para cá em 21 de maio de 2005, portanto estão fazendo 5 anos hoje e o congresso foi no dia 20 de maio --, então, como não pude ir, mandei um trabalho para ser apresentado lá e não sei se gostaram ou não, mas entrou para as atas. Lendo alguns trabalhos apresentados, eu via a infinidade de discussões que se pode fazer em lógica sem se tratar de problemas reais, mas apenas de problemas internos da lógica que nunca tinham solução. Mas com certa sensibilidade para o tratamento lógico da experiência você imediatamente percebe se aquele é um problema real ou falso. Existem problemas também de teodiceia, sobre os quais a toda hora chegam-me perguntas: "Como é que um Deus bom permite tal ou qual coisa?", por exemplo. Ela deriva do fato de que a palavra "bom" é análoga e não unívoca. Quando você usa a palavra "bom" no sentido da moralidade humana, é uma coisa, quando se refere a Deus, é outra coisa completamente diferente, com alguma semelhança. O que acontece é uma espécie de looping: ouve a mesma expressão, dá àquela expressão o sentido que tem na moralidade humana e, em seguida, examina Deus como se a moralidade humana existisse independentemente de Deus. E daí se cria um enigma absolutamente insolúvel. Quando você repõe as coisas nos seus devidos lugares vê que o problema não existe. Nós só podemos compreender o sentido humano da palavra "bom" dentro da circunstância humana real que é feita de pecado, de violência, de brutalidade, de mentira etc. De dentro disto, sai o sentido que damos à palavra "bom". Se a bondade humana imperasse em todo lugar, se todo o mundo fosse bonzinho, não haveria sequer o conceito de bom. A bondade estaria onipresente. Como a bondade divina está onipresente, ela não se enxerga. Com o exame lógico, você nunca vai chegar à conclusão disto. Só vai chegar a isso mediante a meditação que é a rememoração profunda da experiência que te leva a perceber de onde eu abstraí esta ideia. Agora, quando a gente pergunta a uma pessoa de onde ela abstraiu tal ideia, a resposta na maioria dos casos é uma defesa da ideia, é uma justificação. A gente está perguntando qual é a origem e a pessoa responde com um fundamento lógico. Mas não estamos perguntando qual é o fundamento lógico, mas a origem, a origem real na experiência. Se essa palavra "bom" tem algum sentido substantivo é porque ela corresponde a algo na realidade e não somente no seu pensamento. Estou falando de quais realidades você abstraiu isto, com que elementos de experiência e abstração fez a realidade do que está chamando de bom neste momento. Esta rememoração é extremamente difícil e ela implica um exercício de autoconsciência, uma confissão para si mesmo. É claro que você operar num nível puramente lógico é muito mais fácil do que isto. Mesmo porque, como a lógica é uma só para todo o mundo, constituída de uma série de regras que são mecanicamente aplicáveis, ela pode ser usada sem um comprometimento da sua pessoa. Você pode raciocinar como se fosse outro, como se fosse uma função pública, como se fosse um computador. Existe nisso certa defesa social contra a participação efetiva do indivíduo real no processo de discussão e até no processo de conhecimento. Na verdade, todo intercâmbio de ideias no mundo filosófico e científico se baseia num tipo de convivência social que exclui o indivíduo real, onde o sujeito fala como profissional, como professor, sem precisar ter o comprometimento existencial com o que ele está dizendo. É claro que isso é um impedimento ao conhecimento. Quem disse que um papel social pode conhecer alguma coisa? Só um indivíduo concreto pode conhecer. Se no instante em que está lidando com as questões mais altas da filosofia você é um papel social e não um indivíduo real, então é como um lutador que entrasse no ringue com as mãos amarradas. Mas parece que existe uma obrigação de entrar ali com as mãos amarradas. As pessoas não podem participar disto com o coração na mão. Elas têm de estar ali de jaleco branco e bem defendidinhas. O círculo de percepção que está em ação neste momento é limitado. Quando você está sozinho, no seu quarto escuro, percebe coisas que depois, transmutadas no seu papel social, esquece. Quer dizer, naquele momento de solidão é que se tem o máximo de consciência, de atenção, de tudo. Isso precisa ser conservado para ser trazido para estes outros momentos. Mas na passagem de uma coisa para a outra existe o medo de ser visto por dentro, o sentimento natural de pudor do ser humano. Mas a filosofia exige, em certos momentos, a necessidade de um completo despudor. Quer dizer, o indivíduo tem de dizer as coisas como ele realmente as viu, sem o medo deste comprometimento. Quanto você pede às pessoas um depoimento sobre a origem de suas ideias, isto implica um auto-exame de acontecimentos internos reais. Não há como você se esconder. Vai ter de contar a coisa tal como ela realmente se passou, se conseguir se lembrar. Mas, e se você não se lembra? Neste caso não pode garantir que o que disse tem algo a ver com a experiência real. Eu não vejo como praticar filosofia boa num grupo que é quase um grupo de psicoterapia, onde as pessoas vão contar às outras as coisas tal como realmente se passaram. Mas veja que esta inibição existe mesmo quando você não está falando de coisas que possam comprometer a imagem das pessoas. Quer dizer, é uma espécie de pudor deslocado, pois eu não estou pedindo para contar uma experiência sexual, de que você "comeu" a mulher do vizinho, estou pedindo apenas para você contar como é que apareceu uma ideia na sua cabeça.

Mas esta intimidade psicológica é mais defendida do que, digamos, a intimidade erótica, o que é uma coisa incrível. Você acaba conversando com pessoas que não são pessoas reais, são apenas um papel social e aí a busca da verdade perde toda a força. Quando se é capaz de transpor em palavras sua experiência real, o que você transmite já tem bastante valor universal, ou seja, está repetindo certas experiências [00:40] que provavelmente se passaram da mesma forma na cabeça de outros. Não há porque ter medo disto. Em grande parte os seres humanos não obtêm o conhecimento porque eles não querem obtê-lo efetivamente. Eles querem um simulacro socialmente válido, seja ele acadêmico, seja ele religioso etc., mas é claro que se a gente perguntar: existe conhecimento socialmente válido? A resposta é de que existe somente em sentido metafórico. A sociedade tem conhecimento? A humanidade tem conhecimento? Na verdade só o indivíduo concreto tem conhecimento. Se você disser que a humanidade tem conhecimento, está dizendo apenas que ela conserva certos registros que são acessíveis a todos os indivíduos. É só isso que quer dizer. Ou seja, o portador de conhecimento é o indivíduo concreto. É como tal que você deveria raciocinar, sem esquecer que este indivíduo concreto também é membro de uma sociedade, não é uma coisa solta no ar. O domínio do conjunto dos instrumentos lógicos frequentemente serve apenas como uma autodefesa contra a experiência real e, se ao contrário, você tiver uma boa capacidade de transposição da experiência em palavras, frequentemente o aparato lógico aparece sozinho porque o pensamento lógico é natural. Fazer silogismo não é natural no ser humano, mesmo que você não tenha aprendido a técnica. Em geral é desnecessário, aprende-se sozinho. É claro que o estudo da técnica aprimora um pouco isto. Essa outra coisa de que eu estou falando é natural, mas ela é superada por outro instinto natural que é o instinto do pudor, da autodefesa etc. Se você perguntar às pessoas: querem realmente saber as coisas? Até onde vocês querem o conhecimento? Eu acho que, na quase totalidade dos casos, as pessoas não querem avançar muito. Elas querem um instrumento que lhes permita agir socialmente, até como intelectuais. Não querem ter a experiência viva do conhecimento, sobretudo que se arrisca a ser intransmissível e se arrisca a criar um abismo entre você e os outros. Mas sem este abismo o conhecimento não anda evidentemente. Você só pode saber o que os outros já sabem... Há alguma pergunta aí?

Aluno: Se eu entendi bem, esse trajeto dos termos que a gente usa até as experiências das quais estes termos se originaram, é um trajeto mais ou menos como o da anamnese voegeliana?

Olavo: É anamnese, claro. Recordar.

Aluno: Então, quando você se dá com um fato concreto, com um evento de ordem biográfica, desse evento para o termo é preciso um caminho de volta.

Olavo: É preciso um caminho de volta. Do acontecimento concreto para o termo que o designa universalmente. Mas aí você precisa ter a precaução de saber se no processo abstrativo pelo qual abstraiu do acontecimento singular, concreto, os traços que formam o conceito, realmente "pegou" aquilo que tem constância estrutural. Que são exatamente os elementos que estão presentes não naquela experiência singular somente, mas em toda experiência que possa levar o mesmo nome, como é o caso do que é a experiência sexual: eu descrevi elementos que estão presentes em toda e qualquer experiência sexual, não somente no acontecimento biográfico meu. Aí existem duas formas de elaboração que se pode ter: uma é poética, a outra, filosófica. Na poética, você vai tratar de reproduzir a impressão. É claro que tem de se apegar o mais estritamente possível aos elementos particulares e concretos. Isto é bastante difícil. E no outro você tem de puxar os elementos que são estruturais e que definem aquela experiência, e não aqueles que diferenciam a experiência singular de outras possíveis. Ainda dentro do exemplo do ato sexual, há elementos que são estruturais e que estão presentes em qualquer experiência análoga, mas há outros que são próprios daquele momento. Por exemplo, a fisionomia específica daquela pessoa com quem você está se relacionando e que é diferente de outra. Essas duas maneiras de elaborar a coisa são fundamentais. Mas tem de se criar uma precaução. Primeiro: quando você não é capaz de captar um conceito na universalidade então o que sobra é a expressão narrativa, poética. Você reproduz a experiência tal e qual ela apareceu o mais possível ainda que não a entenda. Não captou intelectualmente do que se trata, mas é capaz de contar o que aconteceu. E no outro caso é capaz de "puxar" uma formalização intelectual prematura, onde separa mais ou menos arbitrariamente dois ou três traços e os universaliza. Você tem o conceito errado. Conceito que certamente vai corresponder a alguma coisa, mas não necessariamente àquela experiência, como, por exemplo, esse pessoal que fala do sexo por prazer. Comer pode dar prazer, não fazer nada pode dar prazer... Assistir à televisão pode dar prazer. Então é uma palavra enormemente genérica, aliás, é mais que genérica, porque você está classificando aquela experiência dentro do gênero prazer, mas está classificando sem ter em vista a diferença específica. Quer dizer, está reduzindo uma espécie ao gênero. E se continuar raciocinando a partir disto pode abstrair conclusões que são de um artificialismo terrível, mas, ao mesmo tempo, logicamente, são muito persuasivas. Por exemplo, você pode fazer um discurso contra ou a favor ao sexo por prazer. A sociedade está cheia disto. Não tem aí o negócio do direito ao prazer, e daí vem outro, do outro lado, e diz: "Não, o sexo por prazer é pecaminoso." Os dois estão falando do nada. Mas uma vez que você aceitou o conceito ele passa a ser objeto de discussão. Mas é claro que isto aí é uma maneira de oprimir a humanidade. Você está colocando para as pessoas alternativas morais baseadas em coisas que não existem. Vai fazer as pessoas sofrerem. Agora, remontar à experiência... Bom, você precisa saber qual é o seu talento específico. A sua modalidade de expressão pode ser mais poética onde vai conseguir que uma pessoa tenha uma mesma impressão, uma impressão análoga, sem que necessariamente ela saiba o que é. Experiência é uma coisa, assim como sua compreensão intelectual é outra, assim como sua expressão verbal, poética, é outra ainda. São três elementos: a experiência, a sua expressão poética e a abstração. A única coisa necessária é saber exatamente o que você está fazendo.

Aluno: Se eu entendi bem as nossas primeiras aulas de lógica, pareceu que tudo isso que você está falando, tanto a elaboração narrativa quanto a intelectual, se referem a um mundo mental, ao mundo dos quatro discursos. Nessa passagem da experiência para a elaboração conceitual, isso pode ser muito abreviado ou até mesmo suprimido em casos em que a simples apreensão é bem feita. É isso? [00:50]

Olavo: Para o indivíduo, pode. Mas você não pode falar disto, não pode expressar uma simples apreensão, precisa abstrair um conceito. Ou pode abstrair um esquema fático. Toda a literatura é constituída de esquemas fáticos, na verdade. Quer dizer, da descrição verbal do esquema fático sem o necessário esclarecimento do esquema eidético. Quando um romancista narra alguma coisa está tentando narrar exatamente aquilo que ele apreendeu e não o sentido do que ele apreendeu. Aquilo pode até nem fazer sentido, você não pode narrar uma história sem sentido? Claro que pode narrar uma história que lhe pareça absurda. É claro que a expressão poética é o primeiro nível. Você não sabe o que aconteceu, conta o que aconteceu na esperança de que o outro te explique. Quando vai fazer uma psicoterapia, por exemplo, está contando suas experiências, mas não as está entendendo, você está pedindo que o psicoterapeuta te ajude a captar o nexo daquilo. Agora, a captação do que há de universal na experiência exige por um lado uma fidelidade à memória da experiência concreta que você teve e a capacidade de apreender nela o que é essencial. Mas nem sempre o que é essencial é o que te chamou a atenção. Daí essa enorme inexatidão, essa enorme nebulosidade da elaboração intelectual da experiência que as pessoas fazem. Elas consideram imediatamente algum conceito universal qualquer, que elas acham que é socialmente usado para descrever aquilo, e começam a raciocinar a partir disso. Isso aí no Brasil é endêmico. Eu nunca vi nenhuma discussão pública no Brasil que não se constituísse quase que exclusivamente disto. Conceitos verbais que já são moeda corrente na sociedade e que supostamente se referem a uma realidade, mas só supostamente. Se você "espreme" as pessoas para dizer de onde elas abstraíram aquilo, em geral elas não sabem. Essa anamnese é prévia a qualquer elaboração lógica. Como é que vai saber se está lidando com um análogo, um equívoco, um denominativo? Não sabe. Eles são chamados antepredicamentos porque todos os predicamentos... Quer dizer, uma afirmação é uma predicação. Predicação é atribuir um predicado a um sujeito. Predicar saiu o nosso verbo "pregar". Pregar quer dizer afirmar, dizer algo de alguma coisa. O antepredicamento é a condição perceptiva, a condição cognitiva inicial que torna possível afirmar alguma coisa daquilo. Quer dizer, as afirmações não são independentes, elas estão arraigadas numa percepção real que justamente delimita esses antepredicamentos, de modo que saiba do que está falando. Se você sabe do que está falando, está se referindo a uma experiência real. É claro que não precisa ser uma experiência pessoal, pode ser uma experiência de terceiro que leu ou ouviu falar, mas se não se lembra de onde abstraiu aquilo não sabe do que está falando. A nossa experiência pessoal é limitada, mas nós temos uma experiência emprestada: toda a experiência literária, tudo aquilo que você leu. Tudo isso aí vale também. Nosso entendimento, as palavras que nós usamos são como moedas no comércio. Essas moedas podem corresponder a uma riqueza real, a uma determinada quantidade de bens, ou pode se tratar de uma inflação, onde a quantidade de bens correspondente a certa quantidade numérica em dinheiro diminui cada vez mais.

Aluno: Uma coisa em que fico pensando enquanto você fala é... Às vezes me confundo quando vejo que estou oscilando entre tratar a linguagem como um sistema de referências ou como um sistema de significados. Eu volto sempre para aquela distinção fregeana e me pergunto onde ela se "encaixa" aí, como as duas coisas se articulam.

Olavo: Eu não entendi direito a pergunta: você está usando referência e significado no sentido técnico da coisa?

Aluno: No sentido de Frege.

Olavo: Qual é o sentido de Frege?

Aluno: Parece-me que quando você fala, por exemplo, no mundo como o garantidor da comunicação -- já que nós sabemos ao que um e outro estão se referindo --, estamos no mundo das referências, mas quando a gente está tratando da dificuldade de captar a essência do objeto num termo, aí se está falando de significado, não é isso?

Olavo: Qualquer captação de essência supõe que você já tenha todo um quadro ontológico em que possa captar as essências. Senão, não consegue. Quer dizer, o conhecimento de qualquer coisa sempre se baseia numa ontologia implícita que você tem. Não é possível abstrair nada singular, totalmente solto no ar e, de fato, ninguém faz isso. No momento em que você está "encaixando" a experiência dentro da linguagem já a está fazendo dentro de alguma ontologia qualquer.

Aluno: Não me parece que qualquer ontologia se preste a isto. Eu fico pensando, por exemplo, nas nossas aulas.

Olavo: Não, está "encaixando" dentro da experiência que você tem do mundo real que é o mesmo mundo para todo o mundo. Todos nós estamos no mesmo mundo e o conhecemos de algum modo. Nas suas linhas gerais todos nós sabemos o que é espaço, sabemos o que é tempo, sabemos o que é singular, geral. Todo o mundo sabe o que é isso. Não estou falando de uma concepção filosófica que um sujeito tenha. A ontologia do senso comum todo o mundo tem. E, note bem, a ontologia do senso comum não é um sistema de ideias, é um sistema de coisas. Se fosse um sistema de ideias, deveria poder ser expresso e sistematizado e ele não é; é permanentemente aberto às coisas. Eu não vejo o senso comum como um conjunto de ideias ou crenças que você possa expressar. O senso comum não tem essa autonomia em relação à própria realidade da experiência, ele está imerso na realidade da experiência, não se destaca dela, não se diferencia dela.

Aluno: A não ser em estados psicopatológicos.

Olavo: A não ser em estados psicopatológicos. Você considera todo um grupo que tenha um senso comum que na verdade é uma falta comum de senso. [01:00] Mas isso aí geralmente não acontece. Em geral, o senso comum está aberto à realidade da experiência e ele se identifica com ela, ele está imerso nela. As crenças e a realidade são uma espécie de mescla, senão o senso comum seria uma doutrina e ele não é. O senso comum pode ter alguma autoridade justamente porque ele está imerso na realidade, senão qualquer doutrina de um filósofo teria mais autoridade do que o senso comum.

Aluno: Eu tenho a impressão de que estamos passando rápido demais por um problema que me parece intrincadíssimo. Por um lado, parece que a lógica e essa passagem do... Essa forma de rebater o mundo dos fatos no mundo das possibilidades, isso surgiu com o aristotelismo por uma razão. Parece-me que no platonismo a coisa não se presta tanto porque, bom, o conhecimento das coisas, dos seres vivos não passa do nível da doxa.

Olavo: Sim.

Aluno: E você já me disse que as duas posições são conciliáveis.

Olavo: O platonismo fica no limite entre a narrativa e a elaboração filosófica. Sempre há os dois elementos. O diálogo platônico é uma narrativa. E as ideias e as opiniões são apresentadas como parte de um aspecto da personalidade das pessoas envolvidas, não diretamente como um traslado da realidade. Ali não é Platão apresentando uma doutrina, é Platão contanto sobre ideias de terceiros. Como essas ideias são várias, os indivíduos falantes são vários, então as ideias não aparecem como elementos independentes, mas como partes de uma convivência que por sua vez reflete uma experiência comum da realidade. Agora em Aristóteles isso já não acontece. Ele está falando em nome próprio, não são personagens. Ele está tentando dizer como as coisas são mesmo, e Platão nunca diz como as coisas são mesmo: só diz que um pensa isto, aquele outro pensa aquilo e isto está errado por causa disto. O que ele faz é confrontação. Agora em Aristóteles também há a confrontação, mas apenas quando ele investiga as ideias de seus antecessores, como meios de você chegar dialeticamente até as premissas de um campo de estudos que está abordando naquele momento.

Aluno: É justamente aí que tem algo que parece estar tão claro para você e que eu não consigo conciliar. Parece que nessas duas séries de aulas: por um lado, as aulas de lógica, por outro, as aulas sobre a alma imortal, a gente está lidando com uma lógica aristotélica, porém com uma ontologia platônica.

Olavo: Claro, claro.

Aluno: E é possível? Quer dizer, Platão não fazia isto.

Olavo: Aristóteles falava para membros da escola platônica. Ele está subentendendo todo aquele mundo de Platão. O aristotelismo não é uma entidade independente, ele é uma subseção da escola de Platão. É claro que tudo tem de ser inserido dentro da cosmovisão platônica, tem de ser entendido como uma série de problemas que surgem na tentativa de você transpor aquela experiência platônica numa linguagem doutrinal. As famosas objeções de Aristóteles à teoria das ideias, por exemplo. Essas objeções só se entendem dentro de uma discussão geral sobre a teoria das ideias dentro da própria Academia. Quer dizer, não está mostrando uma contradição intrínseca dessas doutrinas, mas uma mera dificuldade, dificuldade esta que existe, mas existe no plano lógico. Quando ele diz que, por exemplo, "Se você quer que um homem tenha uma ideia eterna de outro homem, tem de ter uma ideia eterna da semelhança" e assim por diante. É o terceiro homem. Há um homem aqui, um homem no mundo das ideias e um terceiro homem que o une com o outro e assim por diante. Isso é uma dificuldade lógica que surge da formalização, da intelectualização prematura das ideias. Quer dizer, a existência do mundo das ideias não significa que as ideias existam exatamente como existem os seres sensíveis. Ou seja, as ideias não são indivíduos. A resposta para isto seria: a ideia do homem abrange a sua própria semelhança com o homem, não precisa de uma terceira. Por exemplo, a ideia do Zezinho e a forma ou ideia do Zezinho. Esta forma abrange necessariamente a sua própria semelhança com aquele que no plano terrestre a exemplifica. Não há um terceiro homem, mas isto só pode ser respondido a partir da própria experiência das ideias, através do próprio processo anamnético. Quer dizer, se você abole este processo e lida somente com o conceito do ente individual e o conceito da ideia, chega a esta dificuldade lógica de fato. Aí vai demonstrar certa habilidade lógica acompanhada de certa inabilidade anamnética. Quer dizer, você não se lembra exatamente do que estava falando ou finge que não se lembra. Finge para efeitos de aperfeiçoamento da dialética.

Eu nunca entendi a filosofia de Aristóteles como uma coisa independente e acho que se considerá-la assim não faz nem sentido. Ela é uma tentativa de elaborar de maneira sistemática certos elementos que estavam na escola platônica e nessa tentativa é claro que surgem dificuldades. Platão, quando não sabe explicar uma coisa recorre a um mito, a uma figura de linguagem com o intuito de dar uma impressão de modo que as pessoas reconheçam do que ele está falando. Ele não está tentando provar uma tese, está tentando apenas expressar certas experiências cognitivas que são muito importantes. Mas quando você espreme e diz: "Mas o que Platão está querendo dizer precisamente?" Bom, talvez ele explicasse isso no seu ensinamento oral, talvez não explicasse. De qualquer maneira, eu não acho que seja possível um esclarecimento último destas questões porque nós estamos lidando com elementos que tocam os limites últimos da experiência humana, assim como essas experiências que você tem no plano da alma imortal. Pode narrá-las apenas, mas não fundamentá-las ou prová-las. Você pode provar que a experiência aconteceu, mas não tentar transpô-la numa afirmação doutrinal. Por exemplo, o sujeito que estava em estado de morte clínica e via o que se passava no quarto ao lado. O que ele pode fazer com isso? Ele pode contar. Existe algo que este simples fato prova, mas este algo é puramente negativo. Você não pode abstrair uma conclusão doutrinal, mas impugnar outra doutrina. Por exemplo, a doutrina de que a percepção se dá no cérebro. [01:10] Quer dizer, se você prova que o sujeito sem atividade cerebral percebe o que se passa onde ele não está fisicamente, isto aí derruba a outra teoria, mas por si mesmo não afirma nada. Porque ela é apenas um fato e este fato é apenas um exemplum in contrarium da teoria, então ela tem uma conclusão doutrinal puramente negativa, crítica. O que se pode concluir daí? Nada, somente que isso aconteceu. E se aconteceu, aquela teoria está errada, então qual é a teoria que possa substitui-la? Eu digo: Nenhuma. E, no entanto, é claro que esta experiência em si é mais valiosa do que qualquer teoria. Você sabe que pode fazer certas coisas. Ou essa experiência do fazer acontecer. O indivíduo, pela simples força do desejo no plano da alma imortal, não de ser carnal, ele quer que algo aconteça e isso acontece mesmo. O que isto prova? Só prova negativamente.

Aluno: Acho que essa é a minha perplexidade, porque eu não tenho os instrumentos para confrontar as duas coisas. Parece-me surpreendente que, dado tudo isso, edifícios como a teoria do conhecimento, a lógica aristotélica ainda para em pé.

Olavo: Não, ela se refere apenas à cognição material e como você obtém os conceitos universais partindo da experiência singular. Eu acho que essa mesma coisa também vale no plano da alma imortal. A alma imortal ainda está presente de certo modo no conhecimento do singular, a não ser que a gente suponha a segunda escalada da alma imortal para Deus. Aí é outra coisa, mas já é um escape.

Aluno: Tendo em vista tudo isso, todos esses planos com os quais a gente está lidando e o próprio problema que Aristóteles levanta ao interpolar tantos temas na metafísica e no Organon*, qual é a relação precisa entre lógica e metafísica?*

Olavo: Não, eu expliquei no início que a lógica é apenas a transposição verbal daquilo que nós apreendemos da estrutura da possibilidade. Ela é só isso. É uma espécie de imagem da metafísica.

Aluno: Porque a metafísica é o estudo da possibilidade, não é assim?

Olavo: Sim. Mas a lógica por si não traz esse conhecimento. Você não pode especular a possibilidade apenas mediante formas ou conceitos, tem de ter a experiência do real, porque tudo aquilo que é real é por definição possível. Se não existe o campo da realidade, então automaticamente fica tudo possível, só conhece a onipotência.

Aluno: Seria como se fosse uma ponte, então.

Olavo: Claro.

Aluno: Nesse sentido é absolutamente genial que os antigos tenham reunido linguagem lógica e matemática no mesmo estudo, as pontes todas de um nível de realidade para outra.

Olavo: Exatamente. Nos últimos séculos, com a disseminação do estudo de filosofia, milhões de livros de filosofia, milhares de escolas de filosofia no mundo onde todo o mundo vira filósofo, você tem automaticamente uma baixa de nível formidável. E vai adestrar pessoas em certas técnicas cujo sentido elas desconhecem por completo. Vamos dizer que existe certo gosto, certo prazer na discussão dessas coisas. Se você colocar problemas como determinismo e livre arbítrio, por exemplo, só vão gastar horas e anos discutindo esta coisa porque gostam de discutir, é uma espécie de divertimento. Mas quando você remonta daí às experiências originárias dos conceitos, o problema se dissolve, este problema só existe se eu o formular. Agora, se ele só existe depois de formulado, ele só existe como um problema lógico, não como dificuldade real. Quem disse que a lógica é capaz de resolver todos os problemas que ela mesma coloca? Ela não pode. E aí você está dizendo que todos os problemas têm de ser resolvidos dentro da versão verbal humana da estrutura do possível. Só de eu dizer assim, já vê que não é possível que ela resolva todos os problemas. Ela pode colocar muitos problemas, mas para muitos ela não terá como resolver de maneira alguma. Como uma aquisição de certo domínio da técnica lógica leva algum tempo, as pessoas ficam se adestrando nisso. Só que em vez de ela entender que isto é um mero exercício escolar, vira ciência com validade positiva. Pensando bem, isso é um crime. Se você vê, por exemplo, todas as discussões que apareceram em torno da raça, sendo que a própria apreensão que as pessoas têm dessa ideia varia com o tempo, então vê uma sucessão de doutrinas aberrantes que lutam umas contra as outras, isso vai desde as primeiras noções revolucionárias de conflitos de raças até essas coisas do politicamente correto, e vê que de alto a baixo nada disso faz o menor sentido. Em todos esses casos as pessoas não sabem o que estão falando, o que elas dizem não corresponde a um objeto de experiência nem mesmo delas. Veja a confusão que isso pode causar, não é só no plano intelectual, isso se traduz em atos.

Aluno: Voltando ao tema dos antepredicamentos, você falou que o fundamental para aprender a lidar com essas coisas é a educação literária. A pergunta é (...)

Olavo: Tudo que você tem no mundo é a linguagem, não tem mais nada além disso.

Aluno: (...) Para nós, seus alunos, qual é o trabalho, o tipo de estudo, o tipo de esforço que a gente tem de fazer para essa passagem entre a leitura, a simples leitura ingênua dos clássicos da literatura para a conquista desse arsenal?

Olavo: Têm de ler essas coisas como Herberto Salles dizia: criando um repertório de maneiras de dizer. A literatura existe para isso, para tornar visível, para incorporar na experiência cultural as experiências singulares de um indivíduo, que podem ser análogas às de outros, não é só curtir esteticamente aquilo, não, é absorver como um instrumento, com poderes expressivos que você vai adquirindo, ou, no mínimo, no mínimo, como referências [01:20] ou alusões que pode fazer na esperança de que o público compreenda as alusões por que a pessoa sente. Se numa solenidade não existe um grupo considerável de pessoas que leram os mesmos livros e que compreendem as mesmas alusões, acabou a cultura superior, acabou a racionalidade, acabou tudo. Aí você tem de fato a fragmentação da linguagem em linguagens grupais. Outro grupo pode ouvir só entendendo de maneira muito obscura, sim? Você toma, por exemplo, qualquer debate político. Quando vê a turma neoliberal usando a palavra "democracia", isso quer dizer uma coisa, e o pessoal de esquerda quer dizer outra completamente diferente. Eles têm claro isso aí. Mas é claro que o pessoal da esquerda, em termos de democracia, querem dizer a "igualdade de direitos" implantada por um governo que está acima de todos os direitos, e o pessoal neoliberal quer dizer, sobretudo, a liberdade da propriedade privada que eles acreditam que por si basta para garantir o resto da democracia. Você viu alguma vez esse pessoal sentar um diante do outro e dizer: "Vamos explicitar o que nós estamos querendo dizer para que a gente não engane o público". Eles não podem fazer isso, porque ambos querem enganar o público. Cada um pretende que o ouvinte atribua ao seu uso da palavra democracia não só as virtudes próprias, mas as virtudes da democracia do outro também. Cada um se apresenta como mais democrático do que o outro, embora cada um só seja democrático num determinado sentido. Sem contar que o próprio conceito de democracia nunca é posto em questão, ele é usado como se fosse um princípio universal auto-evidente e aplicável a tudo. Por exemplo, relações entre homem e mulher têm de ser democrática, entre pai e filho tem de ser democrática, entre você e seu cachorro tem de ser democrática. Quer dizer que democracia passa a ser o nome de um princípio sacrossanto que você não precisa entender, mas que não pode definir. Mostre-me um único debate público no Brasil onde esta confusão não esteja presente. Para que servem todos esses debates políticos no Brasil? Para nada. Só para confundir as pessoas e para ganhar votos. Isso inclusive da parte dos analistas, comentaristas etc. A confusão também está na cabeça deles e o interesse na confusão também está presente.

Aluno: Entre os agentes políticos que esse seja o meio habitual de comunicação mais (...)

Olavo: O meio habitual de comunicação é esse: enganar-se a si próprio enganando o outro.

Aluno: (...) Mas quando entre os estudiosos da área começa a ser a mesma coisa?

Olavo: Porque todos são agentes políticos e não são estudiosos, efetivamente. E não são capazes de conceber que alguém diga alguma coisa em público a não ser como agente político. Você é ouvido não porque por aquilo que disse, mas porque aquilo que outro ache que vai beneficiar a um terceiro. Tudo que você diz é considerado contribuição ao fortalecimento ou enfraquecimento de certas correntes políticas. Correntes políticas, por sua vez, que só existem por uma decisão humana, não veio da natureza das coisas. A existência delas é por assim dizer convencional. E por baixo das correntes políticas existe uma sociedade verdadeira que se organiza, trabalha, produz riqueza, comete e pune crimes etc. Tudo isso é a sociedade real, agora, em cima disso existem as correntes políticas que são uma realidade que se superpõe a isto com finalidades das quais os membros ou respectivos grupos participam, mas cuja relação com a sociedade é bastante ambígua. Basta dizer que todos os debates políticos no Brasil é debate eleitoral, no fim das contas. E você entende que a situação é absolutamente desesperadora, porque nenhum problema real será realmente discutido. Vai ser somente discutido aquilo que favorece este ou aquele grupo, mas e a sociedade? Ela sofre as consequências disto. Mas ela ao mesmo tempo não entra no debate. Por exemplo, uma coisa que eu tenho observado, sobre o que eu até estou escrevendo um artigo. No Brasil todo o mundo que fala do problema da educação reconhece a má qualidade da educação. Eu digo: bom, mas as pessoas aqui nos Estados Unidos também reconhecem a má qualidade da educação. Parece que nós temos o mesmo problema aqui e lá no Brasil. Acontece o seguinte: a má qualidade aqui é comparativa, em relação a algo que a educação americana maciçamente já foi até a década de 50, que era a melhor educação do mundo, e hoje não é mais. É isso o que eles querem dizer com má qualidade. Os fatores que entraram em cena e que produziram esse decréscimo de qualidade são conhecidos: a interferência do governo, a politização da educação, o politicamente correto, essa porcariada toda. Acontece que no Brasil esses mesmos fatores entraram em cena não dentro de uma educação que era a melhor do mundo, mas numa educação que já era péssima e deficiente. O termo "má qualidade" aqui serve para designar uma coisa que está acontecendo. No Brasil serve para camuflar o que está acontecendo. Não é que a educação no Brasil seja de má qualidade, ela não é educação de maneira alguma. Nada, nada, nada, nada tem de educação. E não serve para nada, ela é apenas uma máquina de desentortar banana e o sujeito diz: "Não, é uma máquina de entortar banana". Aqui a má qualidade é um problema, agora, no Brasil, a expressão "má qualidade" serve para camuflar um crime. Quer dizer que várias pessoas estão usando termos que servem para encobrir o problema. E quando você estuda o problema da má qualidade do ensino nos Estados Unidos ou na França etc., e quer usar os mesmos recursos para enfrentar os problemas no Brasil, vai agravar o problema. O Brasil precisa de um remédio muito mais radical do que aqui. É preciso criar uma educação do nada. O que significa suprimir o sistema propriamente existente, porque se não suprimir, se não eliminar o ministério da educação, não eliminar toda esta burocracia e não extirpar pelo menos 70% da classe dos professores, você nunca terá educação. As pessoas que estão ensinando sem ter a menor qualificação para isto são criminosas. "Ah, mas elas precisam de um emprego". Passa-se a raciocinar como se o emprego público fosse um direito humano. Todo o mundo, por mais vigarista que seja, têm direito ao emprego público, e os outros têm de trabalhar para sustentar isto, só que idealmente no Brasil todo o mundo será funcionário público e só haverá gente para receber o dinheiro do governo e ninguém para produzir. Quer dizer, é uma comédia, evidentemente! Se você fala de má qualidade da educação está supondo que a educação existe. [01:30] Existem instituições que custam dinheiro, que são sustentadas pelos impostos e que se denominam educação, mas que simplesmente não cumprem sua função, e sim cumprem outra função completamente diferente. Eu acho que no Brasil as escolas servem aos professores, as escolas são instrumentos de pressão da classe dos professores. Só servem para isto. Estão "proxenetando" as crianças para servir aos seus interesses de classe, interesses políticos, só isto. No Brasil sempre se discute a educação pelos supostos efeitos que ela teria no processo econômico e social. Quando esses efeitos não são governáveis, eles não são sequer capazes de produzir uma boa educação, mas eles já querem produzir uma educação que gerem determinados efeitos e que já entrem no planejamento deles. Mas, meu Deus, e se o sujeito não consegue andar e se está querendo que ele seja campeão de corrida? É claro que tudo isso é psicótico, mas como as pessoas estão envolvidas nisso há anos, elas não percebem que é psicose. É claro que o debate da educação no Brasil é francamente psicótico. Se existe um país que nos testes anuais tira sistematicamente em último lugar, então você não tem um plano de má qualidade da educação, simplesmente não tem educação.

Aluno: Como não é um debate só sobre educação, mas é qualquer debate, significa que para nós, seus alunos, toda essa coisa da anamnese é uma cura de neurose uma atrás da outra.

Olavo: Mas é claro que é. Isso é uma afetação de neurose coletiva, crônica. E esse negócio acontece em quase todos os debates públicos. Eu digo "quase" por uma concessão, por uma generosidade minha, mas eu nunca vi nenhum que não se reduzisse a isso. Você vê em economia, por exemplo, quantos anos, desde os anos 50, o debate no Brasil é entre os chamados monetaristas e os estruturalistas. Só. Quando eles chegam ao governo, fazem mais ou menos a mesma coisa. Você sabe do que eles estão discutindo. Outra coisa: nunca vi um debate brasileiro no qual o problema econômico não se confundisse com o problema financeiro. Eu acho que os Estados Unidos conseguem captar a diferença entre economia e finanças. Eles conseguem. Que eu saiba, por exemplo, a economia abrange um monte de coisas que não são dinheiro, são coisas, mesmo. Por exemplo, sei lá, o território, as riquezas minerais, a produtividade da terra, a fecundidade da terra, tudo isso está se falando de economia, mas não está se falando das finanças. Agora, quando o sujeito tem um problema financeiro que o atormenta, ele dificilmente é capaz de parar de pensar no problema financeiro para pensar em outras coisas que tinha antes. Por exemplo, qual é a relação entre a produtividade agrícola e a propriedade da terra? No Brasil há um fato brutal que só o que produz alguma coisa é o tal do agronegócio, mas ao mesmo tempo há grupos imensos querendo a propriedade da terra. Você vai ter de escolher: ou come, ou tem terra. Agora, a propriedade da terra também não é propriedade da terra, é um fator simbólico que deve servir, calculado para servir de instrumento de pressão para obter dinheiro público e poder político. A terra é um elemento simbólico. O pessoal do MST quer uma terra, mas eles vão plantar a terra? Não, eles não vão plantar a terra coisa nenhuma, eles vão usar a terra como instrumento de pressão. Aí a terra tem de atender a certas finalidades estratégicas militares, as terras deles têm de estar localizadas em certos lugares que permitam que eles paralisem a circulação, o tráfico, a viagem no país inteiro, num caos de revolução, tem de atender a mil coisas que estão todas entrelaçadas, uma encobrindo as outras, tudo embolado, uma confusão dos diabos e ninguém pode tentar explicar o problema como realmente está acontecendo, porque vai desagradar a todo o mundo. Estão todos comprometidos a ficar cada vez mais loucos. Fizeram um voto de enlouquecer. Toma certo grupo de pessoas e começa a esclarecer essas coisas, a elucidar a relação de linguagem e realidade, a fazer a anamnese, a experiência de modo que o pensamento tem algo a ver com a sua experiência, você está curando a pessoa, curando a loucura brasileira. É uma espécie de psicoterapia. O sujeito pergunta para mim: "Seu curso dá diploma?". Eu digo: "Não, psicoterapia não dá diploma, dá saúde".

Aluno: Só aí é que vai surgir a possibilidade de um diálogo propriamente humano.

Olavo: Não tenha a menor dúvida. Se sobrar alguma coisa, se dentro de dez ou quinze anos continuar existindo uma entidade política, uma unidade territorial, administrativa chamada Brasil, talvez se possa fazer alguma coisa, mas eu não acredito. Em 1990 -- portanto, há 19 anos --, eu dei uma conferência que se chamava "O fim do ciclo nacionalista". Toda a cultura brasileira com a noção central de nacionalismo, portanto a noção de identidade nacional, a formação da nacionalidade etc., esse processo havia começado mais ou menos na independência, não tinha se concluído ainda e já era tarde para isso, por quê? Porque nós estávamos entrando na fase do globalismo. O Brasil tinha se constituído como nação num período em que todo o mundo estava tratando de dissolver as nações. Ou o Brasil se coloca frontalmente contra todo o processo globalista e se afirma como nação -- o que ele não tem força para fazer --, ou então vamos ter de girar o eixo dessa cultura nacional e esquecer esse negócio de nacionalismo e partir para outra. As duas coisas são ruins. Aguarda-se uma terceira alternativa, se é que ela vai existir. Nós não podemos partir do princípio de que todos os problemas têm solução, porque há problemas insolúveis. Existem nações que morrem e desaparecem; culturas que definhem e desaparecem e de repente você está num território em que a sua nacionalidade é outra, se é que existe nacionalidade. Quando os brasileiros se prepararam para viver sem nacionalidade? Nunca. Na Europa há muitas pessoas que trocaram de nacionalidade vinte vezes e que, portanto, são capazes de se orientar no mundo sem ter esta referência nacional. No Brasil não há.

Aluno: É nesse sentido que seria necessariamente ruim a dissolução do Brasil.

Olavo: Essa dissolução é sempre traumática para quem está no lugar. É toda sua história que é dissolvida. Mas, veja, se a gente pensasse assim: o Brasil precisa de uma influência globalista para dissolver a sua nacionalidade? Não, ele dissolve sozinho. Se você olha a cidade de São Paulo, por exemplo, todos os registros físicos da história desapareceram. Só sobraram duas coisinhas: o Pátio do Colégio, que é um pouco maior do que esta sala, e aquela cabaninha dos bandeirantes lá no Ipiranga. Foi isso que sobrou. O resto foi tudo, tudo, tudo apagado. Como é que você quer construir uma nacionalidade apagando os registros históricos? [01:40] Isto não foi nenhum poder globalista que forçou o Brasil a fazer isto. Eles sempre fizeram. Por quê? Porque eles querem ganhar dinheiro com a especulação imobiliária e ao mesmo tempo querem ter a ilusão de que estão construindo uma grande nação. Não, você está construindo uma grande fortuna para você e destruindo a nação. Agora, veja o nosso governo dos milicos. Os militares eram patriotas, isso ninguém pode negar. Quais foram os maiores destruidores de paisagens urbanas que o Brasil já teve? Os milicos. Por exemplo, em São Paulo, eles fizeram aquele negócio chamado "Minhocão". Aquilo matou a cidade. Isso significa que as intenções subjetivas não correspondem à visão do mundo que as pessoas têm, não correspondem aos seus atos reais e muito menos às consequências desses atos. O que é isso? É incultura. As pessoas não têm cultura suficiente para entender a realidade. No Brasil cultura é um adorno, as pessoas acham que conhecer a realidade é um dom que recebemos de Deus, e que a cultura é apenas um adorno que você põe em cima. Todo o mundo pensa assim, todo o mundo, porque as pessoas que se dedicam à cultura se dedicam porque gostam, porque é prazer.

Aluno: Cursinho de história da arte...

Olavo: Na Casa da Cultura, na Casa do Saber. Aquele negócio diletante, esteticista. Patricismo grosseiro adornado com um esteticismo que não tem nada a ver com ele. E o conhecimento da realidade ninguém tem, e pior, ninguém quer ter, porque não imaginam que isso exista. Não são capazes de fazer cálculo mínimo de que o ato que você está desencadeando é o ato consequente que vai obter. Se você diz para as pessoas: Não se pode construir um país apagando registro histórico. Principalmente se você acha que é nacionalista. O nacionalista que destrói o registro histórico da sua nação é como um sujeito que na tentativa de se tornar mais vivo, cortasse as suas próprias bolas para examiná-las. É isso que eles estão fazendo. É trágico-cômico, é patético! Daí a necessidade desse curso que eu estou fazendo. Isso é uma obra de caridade. A gente está vendo que é uma sociedade que enlouquece as pessoas e as torna totalmente impotentes não só nas suas vidas pessoais, mas nas relações públicas. Se você não conseguir preservar umas quantas inteligências aí, é ridículo pensar que esse país pode ou deve continuar existindo.

Aluno: E mesmo que não continue existindo, o grupo pode sair forte o suficiente para se manter mesmo desarraigado.

Olavo: Claro! Este grupo de estudantes pode sobreviver mesmo numa situação de dissolução da nacionalidade, porque tem instrumentos para se integrar em outro campo cultural. Pode se integrar num campo português, por exemplo. Portugal existe historicamente, por quê? Porque eles conservaram todos os registros históricos do passado. Mesmo que Portugal não tenha grandes perspectivas de futuro, Portugal não acaba por quê? Porque tem um passado. É um paisinho desse tamanho, mas que tem um senso de identidade nacional quase indestrutível. Eles se integram na União Europeia, mas eles conservam aquele apego à nacionalidade do mesmo modo, todo português tem isso. Então, o senso de identidade grupal dessas pessoas... Não é bem um grupo, porque é muita gente para ser um grupo, é quase uma classe social. Os intelectuais dos intelectuais brasileiros. Essa ideia de classe pode ser mais forte neles do que a identidade nacional, porque cada um a carrega para onde vai. E esta ideia então, se eles não puderem servir ao Brasil, podem servir a outra cultura ou pode podem servir a si mesmo. O destino dessas pessoas como intelectuais não está vinculado ao destino do país. Arthur Koestler dizia que no tempo da guerra se trocava de nacionalidade como se trocava de cuecas. Ele nasceu húngaro e morreu inglês. Estava muito bem integrado na cultura britânica. Quantas pessoas não nasceram na Alemanha, na Rússia, e não se tornaram americanas? São mais americanas do que os que nasceram aqui. Não interessa onde as pessoas vão estar e qual a nacionalidade nominal delas.

Aluno: Parece que, quer o país sobreviva ou não... Aquela pergunta, se não me engano, foi feita pelo André durante a aula a respeito dos elementos do passado intelectual brasileiro, de que a gente tem de se apropriar, aquilo continua valendo ainda.

Olavo: Claro, claro, porque eu não acredito que a língua portuguesa vá desaparecer. A língua portuguesa é uma das grandes línguas da humanidade, milhões de pessoas falam português. E se você tiver um bom patrimônio cultural nessa língua, os outros vão ter de aprender a língua de alguma maneira. Pensar não em termos de cultura brasileira, mas de cultura de língua portuguesa. Fernando Pessoa dizia: "A minha pátria é a língua portuguesa". É isso que nós temos de pensar. Para você mudar de língua completamente, é uma coisa muito difícil, muito traumática. E mesmo que você use uma segunda língua, você não vai abandonar a primeira. É mais fácil adquirir uma segunda do que esquecer a primeira. A língua nativa se incorpora na pessoa como elemento da personalidade dela, e ela nunca perde isto, mesmo que você aprenda a se expressar em outra língua. Seyyed Hossein Nasr está aqui vai fazer trinta anos. Ele só fala inglês o tempo todo, no entanto pertence à cultura persa, cultura do Irã. Eu acho que essa vinculação com a língua portuguesa não é possível e nem necessário, e nem conveniente perder. Não precisamos nos preocupar com isto. A gente tem de aumentar o patrimônio da cultura de língua portuguesa. É isso que é a finalidade de tudo que nós estamos fazendo aqui. Parte disso pode beneficiar os países, você pode produzir, pode até escrever coisas em outras línguas, pois você tem uma raiz que é a língua, e não é territorial. Conseguir salvar meia dúzia de inteligências... Com meia dúzia você garante a continuidade dessa cultura. E o Brasil como nacionalidade? Se o Brasil acabar é problema dele! Não fomos nós que destruímos, fomos? Se os outros quiserem, deixemo-los. Agora, para fazer isto, para restaurar a saúde intelectual das pessoas, há que se voltar aos primeiros problemas, problemas fundamentais. Como esse que nós estamos lidando aqui. Essa ligação entre língua e experiência, linguagem e experiência -- isso é fundamental. Tudo que se ensina disso nas universidades brasileiras é para destruir a inteligência! Você tem um curso de desconstrucionismo em seis meses, está realmente desconstruído, meu filho!

Aluno: Mesmo aqui um curso de filosofia da linguagem de linha analítica.

Olavo: É, acaba com você. Mas acontece que aqui as faculdades de filosofia têm pouca importância, pouco peso nos debates públicos. [01:50] Então dificilmente vê um filósofo tendo uma voz, ocupando um espaço no debate público. Você não vê. A filosofia aqui virou uma ocupação técnica de fabricantes, técnicos de máquinas de "desentortar banana". E as pessoas pagam para eles fazerem isso o dia inteiro na esperança de que daí, de vez em quando, de 100 em 100 anos surja alguma coisa que seja útil para a ciência. Alguma inovação técnica, alguma uma porcaria assim. Não surge, mas a esperança é a última que morre. Virou uma coisa muitíssimo especializada de um grêmio de malucos que não tem peso num debate público. Quando aparece um filósofo que tem algum peso, como por exemplo, William Berg, que tinha alguma presença, foi diretor de uma revista cultural importante etc., mas ele era uma pessoa que era contra tudo isso aí. Aliás, era mais da linha existencialista, que não tem nada a ver com a filosofia americana. Ou um Eric Voegelin. O próprio Lévi-Strauss. Ou os filósofos da Escola de Frankfurt - onde você vê filósofos ocupando espaços num debate público, eles não saíram de dentro das faculdades de filosofia americanas.

Aluno: Às vezes, como no caso do Voegelin, sequer ocuparam uma cadeira do departamento de filosofia.

Olavo: Pois é, exatamente. Eugen Rosenstock-Huessy nunca foi da faculdade de filosofia. Coloque-o em outra faculdade. Aqui tem coisa importante de filosofia que sai da faculdade de letras, da faculdade de relações internacionais, sai daí. Das faculdades de filosofia mesmo não sai nada!

Transcrição: Vinicius de Oliveira.

Revisão final: Antonia Javiera Cabrera Muñoz, 02/08/2011 [[email protected]]