Curso Online de Filosofia
[Olavo de Carvalho]{.smallcaps}
Aula 09
04 de julho de 2009
[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.
Boa tarde a todos, sejam bem-vindos!
Eu queria começar esta aula comentando uma mensagem colocada no fórum do Seminário pelo Mário Chainho, de Portugal. Ele fez uma espécie de status quaestionis, mostrando até onde nós chegamos neste curso e quais foram os vários exercícios e práticas sugeridos aos alunos até agora. Essa mensagem é muito importante e oportuna. Eu agradeço ao Mário, e sugiro que todos dêem uma olhada na mensagem, colocada no fórum no dia 1º de julho [http://www.seminariodefilosofia.org/node/400]. Eu vou ler a mensagem e comentá-la --- e esse, na verdade, será o assunto da nossa aula de hoje.
"Senti necessidade de fazer um ponto de situação sobre o Curso de Filosofia na óptica dos deveres do aluno. Elaboro aqui uma lista comentada de 'deveres', pois talvez isto possa servir de alguma coisa para mais alguém, ao mesmo tempo que poderei receber comentários que me ajudem a elucidar vários pontos.
1. Aulas --- Assistência, transcrições e notas
Foi dito pelo professor Olavo que o centro pedagógico do curso estaria nas aulas e não nas leituras."
Bom, isso se refere sobretudo a esta primeira parte do curso. É natural que esse nosso processo de aprendizado vá passando do passivo para o ativo. No começo a única função de vocês é sentar e ouvir o que eu estou dizendo. Depois vocês começarão a trabalhar em cima do que eu estou dizendo, e mais adiante, aos poucos, eu vou lhes indicar certos trabalhos de investigação (e não somente de exercício, como vocês estão fazendo até agora). No fim do curso, eu espero que vocês tenham tomado alguma autonomia de vôo, e estejam em condição de programar os seus próprios estudos daí para diante.
"Tenho conseguido assistir à maior parte das aulas em directo mas ainda consigo reter muito pouco à primeira."
Ninguém consegue reter muito da primeira vez. Se você não recebe o conteúdo da aula pelo menos três vezes --- uma vez ao vivo, outra na gravação, e outra na transcrição (feita ou lida) ---, você não vai pegar nada. Essa primeira impressão de compreensão da aula não quer dizer que você compreendeu; quer dizer apenas que você está capacitado para compreender. A verdadeira compreensão é quando aquilo se incorporou em você; é quando, sem precisar lembrar das minhas palavras ou mesmo de em qual aula você ouviu o que eu disse, aquilo se incorpora em você como um instrumento cognitivo adquirido, como se fosse um novo órgão de percepção que você adquiriu.
"Fiz a transcrição completa da primeira aula, à mão, e fiquei num terrível dilema. Por um lado, ao fazer a transcrição ficava com um entendimento infinitamente maior ao que tinha anteriormente (...)"
Isso é batata. Quem mais ganha com a aula é quem faz a transcrição.
"(...) mas tinha levado tanto tempo até à conclusão que não era praticável continuar."
Esse é o grande problema da transcrição: ela é um negócio trabalhosíssimo e, por mais útil que seja, eu não creio que seja possível fazer a transcrição de uma aula dessas com menos de uma semana de trabalho.
"Decidi, então, tirar notas das aulas, que são quase tão completas como uma transcrição integral (...)"
Tomar notas, desse jeito que ele está fazendo, e depois redigir, é mais útil ainda. Claro que você pode perder um ou outro detalhe, mas você sempre tem a possibilidade de conferir esses detalhes na gravação.
Quando eu falo em "transcrição", isso não significa que você precise seguir palavra por palavra, porque a expressão oral é naturalmente imprecisa, vaga e hesitante; portanto, não adianta nada querer ser muito exato na reprodução de uma coisa que por si mesma não é exata. O ideal seria realmente tomar essas notas.
"(...) mas, aliviando alguns requisitos da transcrição, levam cerca de um terço do tempo a tomar, dando para completar durante a semana antes da aula seguinte."
Claro. É muito mais rápido você tomar as suas próprias notas e depois tentar articular uma redação.
"Por último, a partir destas notas faço um resumo escrito à mão, para o caderno do curso."
Eu sugiro que esses seus resumos sejam colocados à disposição de todos. Todo o material que foi colhido, anotado pelos alunos, deve ser posto em circulação. Isso é um patrimônio comum, não um patrimônio pessoal. Na medida em que vocês sintam que o que vocês tiverem anotado já adquiriu algum valor documental, por favor, coloquem isso em circulação, ou postando no próprio fórum, ou enviando ao Sílvio, para que ele coloque em algum lugar da página do Seminário.
"2. Exercícios do necrológio e do Louis Lavelle
Penso que a maior parte dos alunos já terá feito o exercício do necrológio. Como bem disse o professor, não será à primeira que vamos acertar no exercício, teremos de o refazer muitas vezes. Sem entrar em detalhes sobre o meu "eu ideal", sinto que o exercício que entreguei já está um pouco desajustado, mas não sei bem como, a ponto de o poder refazer. Curiosamente, o que ponho menos em causa na vida do meu "eu ideal" é o que ele faria aos 50, 60 ou 70 anos. Aquilo que me levanta mais dúvidas são precisamente o que devia eu e o meu "eu ideal" fazer nos próximos anos. De certa forma isso é natural, porque quando fiz o exercício do necrológio ainda não tinha noção do impacto do próprio curso de filosofia."
Isso é inevitável. Nossa imagem do futuro de algum modo orienta os nossos atos, mas de maneira hipotética e provisória, porque, no dia seguinte, a situação já mudou e, à medida que muda, essa própria imagem do futuro também vai mudando. Em grande parte ela vai se tornando mais precisa. Na medida em que você se aproxima de realizar o que queria, aquilo que era abstrato e hipotético vai adquirindo uma consistência de realidade. Por outro lado, você vê que houve vários caminhos que foram abandonados --- a famosa road not taken do poema do Robert Frost --- que são também elementos estruturais da sua vida (coisas que você foi abandonando para fazer uma outra coisa). A desistência, a renúncia é um componente essencial deste plano de vida.
De certo modo, o exercício do necrológio não é um exercício. Na primeira vez você o fez por escrito porque eu pedi para fazer, mas você vai voltar a fazer isso muitas vezes sem ser por escrito. Você ter sempre em vista essa imagem de quem você quer ser quando crescer é uma necessidade permanente. A gente sempre se orienta com base nisso. Pelo menos, nas principais situações da vida, nós somos confrontados com aquilo que nós podemos fazer no momento e o que nós achamos que deveríamos fazer. Essa tensão permanente é que vai dar a nossa verdadeira história.
O Mário diz que os problemas do "eu ideal" dele não se colocam tanto com relação ao futuro remoto, mas quanto ao futuro imediato. Sim, isto é da própria natureza do problema. Suas decisões mais próximas são aquelas que são colocadas diretamente em questão pela sua própria imagem do "eu ideal".
"Relativamente ao exercício do Louis Lavelle:
'Há na vida momentos privilegiados (...) A sabedoria consiste em conservar a lembrança desses momentos fugidios, em saber fazê-los reviver, em fazer deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito.'"
Note bem, a tendência quase incoercível da mente humana é se refugiar na banalidade para evitar os grandes dilemas, os grandes conflitos. O sujeito se fazer de pequenininho, de inocente, para fingir que não sabe o que está realmente em jogo na sua vida. Particularmente na cultura brasileira, esse é um dos elementos mais permanentes e de maior peso, de maior impacto na mente das pessoas. [00:10] É claro: se você se preocupa com qualquer coisa que vá além do seu estômago e do seu bolso, já começa a ficar angustiado, então o que você faz? Se refugia no estômago e no bolso e recusa qualquer preocupação acima disso. Isto é, de fato, o medo da responsabilidade da existência, e este medo impede que as pessoas cheguem à maturidade, ficando num perpétuo estado de puerilismo moral, intelectual, espiritual etc. Graças a esse puerilismo, não são capazes de avaliar as suas próprias ações cotidianas, ou seja, fazem coisas horríveis, mas sentem que são perfeitamente inocentes. Isso é um caso crônico daquilo que Igor Caruso chamava de repressão da consciência moral: você sufoca a consciência moral e se refugia na noção de que você é apenas um bichinho, uma criancinha, numa afetação de falsa modéstia --- "Esses problemas são demasiado elevados para mim; eu só tenho que me preocupar aqui com as minhas coisinhas." --- No fundo isso tudo é simples medo da responsabilidade da existência.
Essa semana aconteceu uma coisa extraordinária. O Denny Marquesani (que é um rapaz que há anos vem fazendo um trabalho maravilhoso de recenseamento de tudo o que eu escrevi e falei em entrevistas, aulas etc., desde que eu comecei ter uma atuação pública -- e ele tem de fato a bibliografia mais completa do meu trabalho até hoje) viu na página do Luiz Pontual (que é um guenoniano --- um homem da tradição, segundo ele diz) uma bibliografia do René Guénon e, com toda a boa vontade, informou --- "Olha, está faltando aí na sua lista das traduções de René Guénon uma tradução da Metafísica Oriental, feita pelo Olavo de Carvalho." --- O tal do Pontual ficou bravíssimo com ele e escreveu um monte de coisas --- "Eu não vou colocar essa tradução aqui porque está uma droga; esse Olavo de Carvalho não presta, é uma figura tenebrosa, sinistra etc." ---, ficou bravíssimo. O Denny, evidentemente perplexo diante da reação histérica, passou a carta para mim perguntando o que eu achava. Eu, que não vou levar esse Pontual a sério (conheço a figura há muito tempo, é um tipinho ridículo), coloquei umas piadinhas lá na minha página. No dia seguinte aparece o tal do Pontual indignado de que o Denny Marquesani tivesse contado para mim.
A indignação do Pontual com o Denny era totalmente sincera, você vê que ele estava bravo mesmo --- "Onde já se viu, ele foi fofocar de mim para o Olavo!" ---, ou seja, ele acredita que tem o direito sacrossanto de falar mal pelas costas sem que o sujeito jamais fique sabendo o que ele falou. Você vê que este é um nível de moralidade extremamente baixo. Uma criança tem de saber que não se fala das pessoas pelas costas; que você nunca pode falar pelas costas algo que você não diria na cara da pessoa --- eu, aos oito anos de idade, já sabia disso. Esse Luiz Pontual, que já está quase virando líder espiritual, ainda não aprendeu isso, não passou da fase de educação doméstica. Não digo que ele seja culpado disso, porque esse é um problema crônico no Brasil. As pessoas não têm a noção da responsabilidade moral elementar.
Como é que uma pessoa que se ocupa de assuntos tão elevados e tão complexos pode ser moralmente tão tosca? Isso aí é comum no Brasil, e vem justamente dessa cultura da insignificância, do apego à insignificância, que é algo totalmente defensivo: um anestésico para que o sujeito não tenha de se confrontar com as grandes responsabilidades morais da vida. Em suma: para evitar o sofrimento moral. Acontece que o sofrimento moral é a parte mais elevada e mais bonita do ser humano. O ser humano praticamente só se distingue dos outros animais porque é capaz de ter sofrimento moral, de imaginar as ações possíveis que ele poderia realizar e de se horrorizar perante elas. Ele tem a capacidade de se negar a si mesmo, de ficar com horror de si mesmo, só em imaginação. Você se imagina fazendo certas coisas e tem horror daquilo. Não tem ninguém vendo, ninguém está sabendo. Você, na total solidão, se confronta com a possibilidade da exteriorização do mal que existe na sua imaginação e você recua, se policia e tenta melhorar. Isso é a parte mais importante do ser humano. Inclusive, para o exercício da filosofia, a pessoa que não se aprimorar nisso, que não buscar isso, jamais entenderá o que é a filosofia. Não esqueçam que a filosofia, com Sócrates, começa como filosofia moral e filosofia política. Ela não começa como metafísica, lógica, teoria do conhecimento, nada disso. Ela começa como um apelo do filósofo à responsabilidade moral e cívica das pessoas.
É curioso que, a partir da década de 90, entrou em moda no Brasil o negócio da ética, mas todos procedem como se a ética fosse uma coisa que deve ser só para os políticos. O cidadão que critica o político não precisa ter ética nenhuma -- ele pode ser mentiroso, embrulhão, um fofoqueiro dos diabos. A ética se torna simplesmente um porrete para você bater na cabeça dos outros. Você imagine uma pessoa com essa composição moral estudando filosofia e querendo discutir com Platão, Aristóteles, com Leibniz, com René Guénon, que seja. O que vai se formar aí é um monstrinho, são figuras disformes. O Brasil está cheio dessas figuras disformes, praticamente toda nossa intelectualidade falante é constituída dessas pessoas que não têm mais a miníma consistência interior. Tanto não a têm que, no Brasil, em geral, se cobra das pessoas uma espécie de coerência lógica impossível.
Consistência interior é o seguinte: é a consciência dos elementos contraditórios que se agitam dentro de você, consciência das suas diferentes possibilidades de ação, consciência da multiplicidade de impulsos em luta dentro de você -- ou seja, é a consciência das alternativas. Se fosse possível termos a coerência de um livro de lógica, não haveria nada disso. A coerência de um ser humano não é a coerência de um tratado filosófico; é a consistência das atitudes pessoais na luta da alma consigo mesma. Não é uma coerência linear, mas uma coerência opositiva, uma coerência dialética --- extremamente complexa e dolorosa.
Quantas pessoas no Brasil são capazes de ter uma visão do que seja uma personalidade complexa, como a personalidade de um Goethe, de um Dostoiévski, de um Platão ou Sócrates? Eu vejo que, em geral, a imagem que as pessoas têm desses personagens é extremamente simplória, esquemática e desumanizada, no fim das contas. O que é você compreender uma pessoa, senão compreender os vários elementos, inclusive contraditórios, [00:20] que compõem a alma desse indivíduo e saber medir a envergadura moral do sujeito, a amplitude da problemática moral com que ele lida? Não precisa nem ser um Goethe, um Shakespeare; não é que as pessoas não compreendam Goethe e Shakespeare, elas não compreendem nem a mim! Não são capazes de imaginar a personalidade do Olavo, porque isso ultrapassa o horizonte delas. Há componentes ali que elas não podem perceber, então começam a imaginar coisas.
A questão desses momentos privilegiados -- que são momentos de consciência, em que sua vida lhe aparece na figura total da sua unidade (evidentemente não é uma unidade simples; é uma unidade bastante complexa e conflitiva, uma unidade tensional, por assim dizer); conservar a consciência desses momentos é realmente tornar-se humano: você vai agir como um ser humano que está consciente de si, que está próximo de si, com o coração na mão, sabendo quem você é e o que quer, quais são os seus verdadeiros sentimentos, suas verdadeiras perplexidades -- sem cair jamais naquela condutazinha falsamente simplória de quem age como um bichinho, uma maquininha, e acha que está tudo explicado e que é uma pessoa translúcida e fácil de compreender --- "Ah!, eu sou uma pessoa simples." Cada vez que o sujeito diz que é uma pessoa simples, eu sei que vou abrir uma caixa preta e que vão sair de dentro cobras e lagartos.
"3. Estudo da Gramática Latina
A Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida é realmente um achado, até para o ensino do japonês ela consegue dar uma ajuda."
Eu nunca vi um livro para ensinar língua nenhuma como o Napoleão ensina o latim. Uma tartaruga é capaz de aprender latim com aquele livro!
"Se bem que o ritmo de estudo possa variar para cada um, parece-me que seria mais proveitoso conseguir logo avançar umas boas dezenas de lições. Penso que isso iria ajudar na imitação dos grandes escritores."
É claro! A língua latina tem certas propriedades, sobretudo na construção das frases --- e a construção das frases latinas é uma obra de engenharia ---, e você se exercitando nisso automaticamente aprenderá a construir as frases em português. Mas, claro, o problema da escrita latina é um, e o da escrita portuguesa é outro. Em latim, por exemplo, você pode modificar a posição das palavras na frase, muito mais do que pode em português (como a função das palavras é designada pela terminação delas, tanto faz você colocar aqui ou acolá).
Eu lembro de um processo que nós movemos contra o Ziraldo (que acabou não dando em nada, o Ziraldo veio, pediu penico e nós entramos em acordo). O juiz, falando a respeito de nós, leu lá na minha página a frase "sapientiam autem non vincit malicia" e traduziu como "a sabedoria não vence a malícia". Ele estava lendo o latim como se fosse português (o sujeito da frase vem antes etc), sem ter a menor noção do que seja o caso acusativo. Em latim você pode fazer isso: o sujeito da frase está lá no fim e o objeto no começo.
Mas, de qualquer modo, existe o problema da estrutura da frase latina: não dá para você ler latim; você tem de traduzir latim e reconstruir a frase em português (o que também acontece no alemão). Esse é um exercício muito bom para você se tornar consciente da função das palavras na frase.
"Parece que não existe nenhum livro com a solução dos exercícios da Gramática Latina. Em grande parte tal livro não é necessário, pois as perguntas estão respondidas no livro, mas quando entramos nos exercícios de tradução do latim para o português e do português para o latim começam a aparecer situações mais complicadas. Os alunos do seminário poderiam promover uma espécie de "Livro de Resoluções dos Exercícios Espinhosos da Gramática Latina" (...)
Isso é muito bom. Antigamente, quando havia o curso do Napoleão Mendes de Almeida, ele enviava os exercícios corrigidos e isso naturalmente ajudava, mas agora ele morreu. Se alguém puder verificar para mim se o curso continua **(**talvez ele tenha algum sucessor que continue com o curso por correspondência). Caso esse curso tenha terminado, a sugestão do Mário Chainho é muito boa: troquem figurinhas com relação à solução desses problemas, sobretudo os de tradução.
"4. Imitação dos Grandes Escritores de Língua Portuguesa
Não sei por que motivo, mas a minha tendência foi querer logo começar por um difícil, Aquilino Ribeiro."
Você arrumou uma encrenca, hein. O próprio Aquilino Ribeiro reconhecia que as pessoas, para lê-lo, não precisavam entender todas as palavras: elas iriam mais ou menos pulando e, se entendessem cinquenta por cento das palavras, já conseguiriam se virar. Eu leio Aquilino exatamente assim, senão eu teria que consultar o dicionário três vezes a cada linha. Leio assim uma primeira vez e depois eu volto com o dicionário. Eu garanto que a segunda leitura revela então nuances que eu jamais poderia ter suspeitado na primeira. O problema com Aquilino Ribeiro é justamente a extensão do vocabulário. O pessoal gabava muito o vocabulário do Rui Barbosa, Coelho Neto, Euclides da Cunha, mas perto do Aquilino isso é brincadeira de criança. É um escritor absolutamente maravilhoso. Os efeitos semânticos que ele consegue, que você geralmente não percebe na primeira, são uma coisa do outro mundo.
"Quando o professor disse que este era um dos quase impossíveis de imitar, de certa forma fiquei com mais vontade ainda, se bem que não esteja a ver como o farei. Por enquanto vou reunindo algum vocabulário menos usual e recortando algumas frases emblemáticas, mas na verdade isto está mesmo a ser um acto de fé, espero que este caos lingüístico, através do milagre da convivência, dê origem a algum sistema inteligível."
Eu não começaria jamais pelo Aquilino Ribeiro, mas se você sente uma afinidade por este autor, porque não fazê-lo? A coisa mais espantosa do Aquilino é que, mesmo quando você não está entendendo as palavras, o negócio é morbidamente atraente, você não consegue parar de ler aquilo. Você sabe que a cada três linhas você entendeu apenas uma, mas continua. Você entende o enredo.
"5. Confissão --- Santo Agostinho e Adolphe Tanquerey
Para refazer a nossa educação moral e até a social o antídoto está na Confissão, cujo mestre é Santo Agostinho. Adolphe Tanquerey ajuda a preparar a confissão e a prática platônica de recordar tudo o que fizemos no dia poderá oferecer um complemento."
A técnica do Tanquerey é muito simples: consiste em pegar os dez mandamentos e desenvolver dez perguntas para cada um. Essas dez perguntas são apenas sugestivas; não quer dizer que, no caso de você estar se preparando para uma confissão ritual na Igreja Católica, você vai ter de chegar com uma lista e dizer cada um daqueles. Isso não é ainda a técnica da confissão, a técnica do exame de consciência; é para a sua informação. As perguntas podem se multiplicar, muitas podem parecer deslocadas para o contexto da sua vida, então você naturalmente as troca.
Eu acredito que, desde o tempo em que esse livro foi escrito até hoje, a situação social, cultural e também psicossocial mudou demais. Surgiram tantas oportunidades de falsificação da personalidade humana que, comparados com elas, os pecados de antigamente parecem de uma simplicidade quase paradisíaca -- que bom o tempo em que os pecados eram esses; agora complicou formidavelmente!
"7. Leitura lenta de um livro de Filosofia
Este será um exercício que irá mudar a nossa intelectual. Resume-se a ler um livro de filosofia, apenas algumas frases por dia, procurando achar o seu conteúdo experiencial, como se as frases já [00:30] fossem um pouco nossas pois já sabemos efectivamente do que o autor está falando. Os livros de Louis Lavelle podem servir para esta leitura e Aristóteles só pode ler assim. Alguns autores, como Mário Ferreira do Santos, têm tantas referências embutidas em cada frase que poderão ser difíceis de compreender antes de ter maior cultura filosófica."
Lembre-se que este exercício não é uma análise do texto, mas uma exemplificação mental do que está sendo dito no texto. Você vai partir do princípio de que você pensa exatamente como o sujeito disse e vai tentar preencher aquilo com conteúdo existencial sensível. Quanto mais visíveis e sensíveis forem os exemplos que você encontrar na sua experiência pessoal, melhor.
A análise de um livro de filosofia só vale a pena se você tiver feito isso primeiro. Essa fase de absorção passiva do livro é a mais difícil. A análise não é difícil. O problema é que geralmente se passa para a análise, ou até mesmo uma análise crítica, sem ter feito isso. Você não absorveu em profundidade o que o sujeito está dizendo, não se identificou com ele. Você não sintonizou a sua imaginação com a dele, os seus sentimentos com os dele, suas percepções com as dele. Então, de fato, você não leu o livro -- você apenas deslizou por cima daquelas estruturas verbais e, no fim, serão essas estruturas verbais que você vai analisar.
Todo o aprendizado da filosofia depende da possibilidade de você compartilhar certas experiências interiores com os filósofos do passado, partindo, sobretudo, do preceito de que a expressão verbal que eles utilizaram pode não ser suficiente para designar o que eles estão falando. Primeiro: nem todo filósofo é um grande escritor, um escritor expressivo. Segundo: nem todo filósofo tem tempo para traduzir em termos literariamente aceitáveis aquilo que ele está dizendo. Os escritos de Aristóteles, por exemplo, são apenas rascunhos de aula. Você imagine a diferença que existe entre um rascunho de aula e a exposição em classe; quanta coisa mais poderia aparecer ali. Você vai ter de preencher isso mentalmente.
Lembre-se que, como eu disse, cada filósofo que você venha a estudar deve se tornar mais um instrumento seu de percepção. É preciso fazer com que a sua alma, a sua inteligência, abra várias janelas --- uma janela platônica, uma janela aristotélica, uma janela hegeliana etc. ---, para você conseguir enxergar a realidade da experiência de acordo com essas várias perspectivas, encarando-as não como teorias, mas como experiências humanas. A teoria vem depois, é uma coisa que é elaborada em cima da experiência humana. E pouco importa que você não consiga refazer a experiência que historicamente eles tiveram; você pode achar um análogo.
Eu vou mostrar até que ponto o análogo funciona. O Dr. Freud tinha a teoria da catarse: o sujeito tinha um trauma de trinta, quarenta anos atrás e, revivenciando o trauma, ele tinha uma descarga emocional e ficava curado. Mais tarde houve um médico inglês, Dr. William Sargant, que tratava dos soldados americanos que tinham sido prisioneiros de guerra, durante a Guerra da Coréia, e que, evidentemente, carregavam um monte de traumas. Mas ele descobriu que, para induzir a catarse curativa, não era preciso recordar a experiência real: bastava ser um análogo. Por exemplo, se o avião caiu, você imagina que está caindo da escada. Funcionava do mesmo jeito. Isso mostra que, para participar em profundidade de uma experiência cognitiva alheia, você não precisa fazer uma sondagem histórica --- "o que Sócrates pensou? o que aconteceu para ele?". Não é isso que você tem fazer; basta você produzir apenas um análogo. É claro que pode falhar, mas a reconstituição histórica também pode falhar. Todo o aprendizado da filosofia depende dessa possibilidade de revivenciar a experiência interior -- ou nos mesmos termos, ou em termos análogos.
Hoje em dia nós estamos nos antípodas disso, com o negócio de desconstrucionismo, que considera o texto como um objeto em si mesmo e faz abstração da experiência interior. Assim você nunca vai entender nada! Você se afasta cada vez mais e está desumanizando o seu contato com os outros filósofos. Note que todo sujeito desconstrucionista, que toma o texto dos outros como objeto, não pode consentir que você faça o mesmo como o texto dele.
Quando, por exemplo, o desconstrucionista diz que um texto se compõe apenas de outros textos. Então vamos ver de que textos se compõem o texto dele. Naturalmente, são os textos que ele leu. Porém, a leitura e o ato de leitura em si mesmo não é um texto, mas um ato físico do ser humano. Se não tem a mediação deste ato de pegar o livro fisicamente e olhá-lo, não é possível se partir de um texto para outros textos, pelo simples fato de que os textos não se transformam em outros textos automaticamente: alguém tem de lê-los. E a leitura é mediada justamente por este ato físico, por uma percepção sensível que você tem. Basta isso para se ver que um texto não pode se compor somente de outros textos: ele tem de ter uma referência ao mundo exterior porque, se não houvesse mundo exterior, não existiria o livro fisicamente, e se não existisse o livro fisicamente, ninguém poderia ler. Outra coisa: se não há no texto referência ao mundo exterior, não pode haver referência a livros, porque livros são um dado da realidade física: eis aqui um livro, é um corpo. Como é que eu poderia me referir ao texto que está no livro sem me referir fisicamente ao livro? Isso aí mostra que se você for ler o texto do autor desconstrucionista, segundo os princípios desconstrucionistas, o que você vai fazer é destruir o texto dele, chegar à conclusão de que ele não disse absolutamente nada. O desconstrucionismo é uma técnica de não entender, uma técnica extremamente aprimorada de você transformar as palavras humanas em uma outra coisa completamente diferente. Ele é totalmente desprovido de interesse: ele pode ser estudado como fenômeno sociológico ou psicopatológico, mais tarde.
Vejam que eu não estou ensinando técnicas de análise de texto: estou apenas dando dicas de como se lê, de como se tem acesso, o mais direto possível, às experiências cognitivas que geraram esses textos. Os estudiosos modernos tendem a exagerar as dificuldades de compreensão dos textos, mostrando que existem obstáculos de ordem semântica, filológica, cultural etc., transformando cada texto, quanto mais antigo, mais difícil de compreender. No entanto, eles esperam que os seus próprios textos sejam de inteligibilidade imediata. Ora, mas se eu preciso de um suporte filológico para ler um autor, também precisarei deste suporte para ler o crítico que o está analisando. E, quando vou ler os livros dos filólogos que estão me dando suporte filológico, também preciso de suporte filológico para eles, e assim a coisa não termina nunca. É claro que essas dificuldades existem, sim, mas não são tão grandes e você não deve se deixar intimidar por elas. Mais tarde haverá tempo para você corrigir todas as imprecisões [00:40] das analogias que você fizer.
Na medida em que você está tentando reproduzir, revivenciar as experiências interiores de um Platão, de um Aristóteles, você está lendo um Platão imaginário, um Aristóteles imaginário. Muito bem, mas se você não consegue compreender nem o Aristóteles imaginário que existe na sua cabeça, como é que você vai entender o real? Quando um ser humano qualquer lhe diz algo da sua experiência anterior, conta algo que se passou com ele, qual é a sua primeira reação? Você tem de revivenciar aquilo mentalmente, e você não está revivenciando nos termos dele, mas nos seus. Em seguida, você pode fazer alguma pergunta do tipo "mas foi isso que você quis dizer, foi exatamente assim?", mas se você não tem esse primeiro material imaginativo, você não tem nem o que trabalhar.
O medo de errar, aquela coisa que na USP é chamada "o rigor da leitura", é uma arte do analfabetismo, porque, por medo de errar ao atribuir ao autor algo que ele não disse, você não se deixa impregnar pelo que ele está dizendo e não tem material sobre o qual trabalhar, então você acaba não entendendo é coisa nenhuma. Você não pode corrigir o que não existe, não pode tornar mais preciso um conhecimento que você não tem. Essa primeira apreensão imaginativa é tudo, isto é o material sobre o qual você vai trabalhar o resto da sua vida. Outra coisa: se você está lendo, por exemplo, os diálogos de Platão, ou o Louis Lavelle, ou qualquer outro, você vai formando o seu mundo imaginário, seu mundo de reações platônicas, ou reações lavellianas, que são as suas reações platônicas, as suas reações lavellianas. Você pode passar o resto da vida buscando uma aproximação entre isso e a realidade histórica do que eles vivenciaram e do que eles disseram. Mas antes é preciso ter esse depósito de evocações, associações, experiências, imagens, exemplos. Se você não tem isso, você não tem nada, está apenas deslizando em cima de palavras.
Quando você assiste a um filme, você não tem tanto esse problema, porque o filme já é um sonho acordado e dirigido -- você consentiu em participar daquela experiência, o sujeito lhe mostra uma sucessão de imagens que articulam um conflito que se resolve desta ou daquela maneira. Você vivencia aquilo, e até sofre junto com os personagens, não como se estivesse vivendo aquilo fisicamente, mas como se estivesse sonhando aquilo. Quando você lê um livro de ficção, a imagem não vem de maneira tão direta quanto no teatro ou no cinema, então você mesmo tem de dar o aporte imaginativo. Quando você lê um livro de filosofia, as imagens estão mais distantes ainda, porque a coisa não lhe é oferecida como narrativa de acontecimentos humanos, mas como conclusões ou formulações generalizantes e, portanto, muito sintéticas, muito resumidas de milhares de experiências que estão ali condensadas.
Peguem aquela primeira frase do livro A Presença Total, que nós lemos aqui. Vocês imaginem quantas vezes o Louis Lavelle pode ter revivenciado essa experiência. Quando ele diz que "há uma experiência inicial, primeira, que está subentendida em todas as outras, e da qual depende o significado e a importância delas", isso quer dizer que, para cada questão que ele se colocou, para cada experiência cognitiva que ele teve, sempre retornava a experiência da "presença do ser". Isso aconteceu para ele milhares de vezes. Acompanhando a evolução dos textos do Louis Lavelle, à medida em que ele avança, a expressão verbal dele vai se tornando cada vez mais simples e mais espontânea; a cada vez ele precisa trabalhar menos aquilo. Isso significa o quê? Que ele está mais permanentemente consciente da "presença total", e, portanto, ele precisa pensar menos.
O incrível no Louis Lavelle é o seguinte: os textos dele, sobretudo os da velhice, são de uma estrutura lógica perfeita, perfeita. Mas eles não foram obtidos por dedução lógica, mas por descrição do que ele está apreendendo. De certo modo, a estrutura lógica subjacente à experiência começou a aparecer para ele de uma maneira mais translúcida. O que é, no fim das contas, essa lógica? Lógica é a unidade do discurso. A unidade do discurso é o instrumento mais perfeito para você expor a unidade da realidade. Ora, se a sua atenção está voltada para a coerência do discurso, você pode fazer uma dedução lógica perfeita, mas os objetos dos quais você está falando estão sumindo. E no Lavelle isso nunca acontece, porque ele está pouco se lixando para a coerência lógica. Cada linha que ele escreveu é a descrição de um estado interior transposta, não em linguagem poética, não em linguagem narrativa, mas no conteúdo inteligível que está imanente ali. E isto é o que faz um verdadeiro filósofo. Todo filósofo digno do nome nunca está fazendo construções lógicas, mas sempre expressando o conteúdo inteligível de algo que foi vivenciado e percebido.
"6. Exercícios do Narciso Irala
Não consegui encontrar o livro Controlo Cerebral e Emocional de Narciso Irala, mas existe um resumo aqui: http://www.scribd.com/doc/6719200/irala
Além disso, o professor já descreveu alguns exercícios e prometeu dar mais. Os exercícios já falados nas aulas servem para compreender o que é a Presença Total de que fala Louis Lavelle."
Isso foi publicado pelas Edições Loyola, uma editora que ainda existe, que eu saiba...
Aluno: Já tem no fórum um link para a versão online, completa, em espanhol (http://www.4shared.com/account/file/119203865/edf2fd4a/Control_cerebral_y_emocional.html)
Olavo: Em espanhol... isso está no fórum? Então está resolvido o problema. E aqui ele lembra que os exercícios falados nas aulas servem para compreender o que é a "presença total" de que fala Louis Lavelle. Eu dei esses exercícios não para o aprimoramento do seu controle cerebral e emocional, mas apenas como amostras da diferença entre o que é percepção e o que é construção mental. É claro que, no exercício dado (que é o de perceber os sons), você está apenas percebendo estímulos sensíveis que vêm de fora. Mas, com o tempo, você pode desenvolver outras coisas baseado nisso. Por exemplo, a consciência da sua presença física num determinado lugar: eu, neste momento, estou sentado nesta cadeira, que está em cima deste chão, que por sua vez se prolonga por dois lados: em profundidade, quer dizer, ele tem uma densidade, é por isso que eu tenho uma confiança de que a cadeira não vai afundar; e ele se prolonga para todos os lados ilimitadamente. Essa experiência da sua presença no espaço já não é uma experiência sensível; ela abarca algumas experiências sensíveis, mas ela vai além disso. E, no entanto, é uma experiência imediata. A consciência do espaço dentro do qual você está, a consciência da sua presença no espaço --- note que não é uma dedução, não é um pensamento, não é uma construção: é uma percepção.
Você pode contrastar isso [00:50] com um outro experimento, que é de construção mental. Vamos inventar uma história aqui: um dia um sujeito acordou, levantou da cama e, na hora que ele foi sair do quarto para ir ao banheiro, ele abriu a porta e viu que em torno não existia mais nada. Tudo tinha desaparecido. Não havia mais a casa, não havia mais a rua, não havia mais o banheiro, não havia mais nada. Havia apenas o quarto dele. A experiência é aterrorizante, horrível. Só que a coisa prossegue: havia espaço em torno? Se havia espaço em torno, não havia um "nada", [pois o] espaço é a possibilidade de comportar coisas dentro (o espaço não é nada mais do que isso; ele não pode ser compreendido como uma "coisa" -- a atmosfera é uma coisa, o ar é uma coisa.) Neste "nada" que havia fora do quarto do sujeito havia ar? Se havia ar, então ele não estava no nada. Façam a experiência de suprimir o universo, e vocês verão que não conseguem. Sempre sobra alguma coisa. Mas force, force. Isso é um exercício construtivo, de imaginação. Se você retirar tudo o mais, você tem de sumir também. Imagine que o sujeito ficou como no poema do Manuel Bandeira, "meu quarto intacto, suspenso no ar" (derrubam o prédio mas o quarto do Manuel Bandeira fica no ar); imagine que ele estivesse lá dentro. Então você não tem mais a densidade do chão, porque o assoalho estava onde? Qual era a espessura desse assoalho? A espessura de uma tábua, digamos, uns dois centímetros? Mas, para que a tábua tivesse a espessura de dois centímetros, seria necessário existir algo fora do quarto, porque só a superfície da tábua aparece para dentro. Então você vê que, na idéia do quarto suspenso no ar, ele já não está tão isolado do ambiente. A espessura da tábua é um elemento externo. Agora, suprima isso. A tábua [agora] não mede nada, só sobrou a superfície. Então nós estamos num mundo kantiano de meros fenômenos: não existe tábua alguma, existe apenas uma aparência fenomênica de tábua. Muito bem, a tábua não mede nada, mas ela tem um outro lado, mesmo que seja de espessura infinitesimal. Se ela tem um outro lado, este outro lado está fora. Então você não conseguiu isolar totalmente o seu quarto do mundo exterior.
Essas duas experiências, você pode refazer mil vezes --- eu sempre refaço, sempre penso nisso. Eu estou aqui, em cima do chão, este chão se prolonga para baixo e para os lados, quando ele termina tem outra coisa, e depois desta tem outra coisa e outra... sempre tem outra coisa para adiante. Esta é a experiência da densidade do mundo e da densidade da minha própria presença neste mundo.
Faça uma outra experiência: imagine que você morreu e que você entrou no "nada". Mas como você pode entrar no "nada", se no "nada" nunca houve nada? Para você entrar no "nada", você precisa ter ido do "ser" para o "nada", do existente para o inexistente. Mas acontece que, se você passou pelo existente por uma única fração de segundo, você está excluído do "nada" eternamente. Freqüentemente faço este exercício: olho o vento balançando uma folhinha, e digo: "Olha, isso aí aconteceu, o ar realmente balançou a folhinha." Quando é que isso poderá ser um "nada"? Nunca mais.
Os filósofos gregos tinham freqüentemente a experiência da impermanência das coisas: tudo flui e tudo se extingue, as coisas passam pela existência e somem. Eu tenho freqüentemente a experiência contrária: eu vejo o vento balançando a folhinha e tento suprimir aquilo mentalmente. Eu não posso fazer aquilo que aconteceu "desacontecer". Eu não posso expulsar aquilo para o "nada". Claro, aquilo foi numa outra fração de tempo, não está mais neste tempo (se estivesse neste tempo significaria apenas que foi um fato um pouco mais duradouro). Por exemplo, o ciclo que uma árvore percorre durante o ano, durante as quatro estações, dando folhas, depois frutos, depois caindo as folhas no outono e ficando pelada e seca no inverno, tudo isso aconteceu no ano passado. Para cada árvore que eu vi, isso aconteceu. Isso não pode voltar ao "nada", o tempo é irreversível, aquilo que aconteceu está acontecido, não pode "desacontecer" nunca mais. O retorno ao "nada" é uma coisa impossível.
Do mesmo modo que existe a experiência da impermanência, a experiência da transitoriedade, existe a experiência da permanência, depende de por onde se olha as coisas. Quanto aos exercícios de impermanência, de transitoriedade, eu nem preciso falar, porque o mundo está tão cheio de menções à transitoriedade, é uma coisa que todo mundo repete. Mas, e a experiência da permanência? Ora, tente suprimir o acontecido. Se você entende que tudo o que aconteceu está acontecido e não pode mais voltar para o "nada", você começa a ter uma pré-experiência, uma antevisão do que é a eternidade, onde nada jamais passa. Não tem como encaixar a eternidade dentro do tempo, mas, a partir da hora que você fez a experiência, você pára de entender o tempo como a única dimensão possível, e entende que ele é apenas uma linha dentro da eternidade. Você pode ter acesso a isso não como teoria, mas como experiência. E ter essa experiência é muito mais importante do que ler tudo o que os filósofos escreveram a respeito [disso]. Pegue qualquer acontecimento, uma formiguinha que se mexeu, e tente suprimir aquilo. Tente fazer "desacontecer". Quanto mais você tenta fazer "desacontecer", mais você se lembra que a formiguinha se mexeu. Ou seja, você não tem o poder de devolver nada ao "nada".
E Deus, teria? Deus também não teria, porque Deus é eterno; para que Ele próprio pudesse devolver alguma coisa ao "nada", seria preciso que Ele próprio estivesse no "nada", e que Ele fosse o "nada".
Note que eu expresso isso às vezes sob a forma de raciocínio lógico, mas é apenas a forma verbal da expressão. O que eu estou sugerindo é que você busque [01:00] apreender isso com experiência, com fatos da realidade, os fatos mais simples. Claro que nós podemos esquecer das coisas, mas eu não sou a medida do Universo: o fato de que eu esqueci uma coisa não significa que ela não exista.
Por exemplo, todo mês eu esqueço de pagar a conta de luz. Todo mês, invariavelmente. E daí chega o camarada lá e diz -- "Olha, vim cortar a sua luz" -- "Peraí, peraí que eu vou pagar!", e pago a ele. Ele já entendeu que eu estou ficando um velho gagá, e que eu me esqueço, então eu tenho de pagar na porta. Ora, todas as vezes que eu me esqueci de pagar, a conta de luz veio do mesmo modo, ela não cessou de existir porque eu a esqueci. É aquela famosa pergunta: "as coisas continuam existindo quando nós não as estamos percebendo?" Eu acho essa pergunta uma característica inversão da ordem real da experiência, porque são as coisas que nos lembram da sua existência; a nossa memória não é soberana, ela falha. Se não existir fora de você, para além de você, esses elementos que te recordam a existência do mundo, aí que a sua memória vai para o brejo mesmo.
Imagine, por exemplo, se todos os estímulos sensíveis que lhe chegam do mundo exterior desaparecessem: um experimento de privação sensorial total. A experiência de privação sensorial total, quando realizada efetivamente, introduz na pessoa uma tal desordem que o sujeito não agüenta nem por cinco minutos. Ou seja, se você não tem os estímulos do mundo exterior, a sua própria memória vai para o brejo.
Eu freqüentemente olho para a minha biblioteca e vejo: ali está a minha memória, ali está o meu HD. Mas não está só ali: ela também está no mundo em torno -- se eu acordasse e visse que a minha biblioteca foi parar em outro lugar, e que eu estou em outro lugar, isso destrambelharia toda a minha memória. Então a nossa memória depende da estabilidade do mundo exterior. A pergunta "o mundo exterior continua existindo quando eu não estou reparando nele?" é uma pergunta totalmente imbecil. Ela é um truque, uma pegadinha, não é uma pergunta filosófica legítima, e nunca foi. Os filósofos gregos jamais se fariam uma pergunta tão idiota, os escolásticos jamais se fariam uma pergunta tão idiota. As pessoas só começaram a se fazer essa pergunta depois do Descartes, quando elas passaram a acreditar que o "eu" existe e o resto é duvidoso. Mas se o resto fosse duvidoso, eu não poderia ter "eu" algum! Se não existe a estabilidade do mundo exterior para me fazer lembrar que eu sou eu, não tem "eu" nenhum.
No estudo que estamos fazendo da mentalidade revolucionária, nós vemos essa série de inversões que foram aparecendo na modernidade -- inversões em relação à atitude normal e normativa do ser humano. A inteligência construtiva começa a criar esses joguinhos, essas pegadinhas, e isso passa a ser chamado de filosofia, e as pessoas se mantêm ocupadas com essa masturbação mental durante séculos e, no fim, toda essa atividade filosófica se torna de um artificialismo absolutamente sufocante, que não serve para absolutamente nada. É o que a Bíblia chama de "as obras estéreis das trevas".
Esses exercícios que estou sugerindo são exercícios para você se recordar da densidade do real e da densidade da sua presença no real. É precisamente disso que o Louis Lavelle está falando, este é o tema do Louis Lavelle. E, de certo modo, você vê como a consciência humana se torna mais aguda, mais translúcida para si mesma, mais luminosa, quanto mais ela aceita essa "presença total" do real e a presença dela no real. Então você pode imaginar o quanto o procedimento contrário, que é isolar a consciência do real, pode estupidificar uma pessoa. Imagine o número de filósofos que, há pelo menos quatro séculos, estão se dedicando precisamente a construir esse tipo de exercício que, através de pegadinhas verbais, cria a ilusão de irrealidade. O nosso método aqui é exatamente o contrário, é assumir a densidade do real cada vez mais, a densidade da sua presença no real. Nesse sentido, o texto do Louis Lavelle é um chamado à responsabilidade cognitiva.
Uma vez eu estava falando de desonestidade intelectual e alguém falou: "Você fica falando essas coisas mas, afinal de contas, o que é honestidade intelectual?" Respondi que era a coisa mais simples do mundo: é não fingir que você se sabe o que não sabe e não fingir que não sabe aquilo que você sabe perfeitamente bem. Tudo isso que eu estou dizendo, todos os exercícios que eu estou sugerindo, são só para você assumir a responsabilidade daquilo que você sabe, e isso, evidentemente, é o análogo metafísico daquilo que a confissão é na ordem da moral. Então, no fim das contas, isso também é confissão.
Mas de que serve a confissão moral, se você não confessa a realidade da realidade? Isso é uma coisa gravíssima, porque, até uma certa fase da história, essa responsabilidade de assumir o real era compartilhada por todas as pessoas, tanto as simples quanto os maiores sábios. A realidade na qual vivia São Tomás de Aquino era a mesma realidade na qual vivia o Zé Mané da esquina.
A partir de um certo momento na história, por volta do século XVI, XVII, os intelectuais passam a viver em um outro mundo, que é o mundo do "eu", das "formas a priori", enquanto as demais pessoas continuam vivendo no mundo de sempre. Aos poucos, os filósofos vão fazendo o possível para tirar as pessoas do mundo de sempre e colocá-las dentro do seu mundo fechado.
Ora, o indivíduo que não está plenamente consciente da densidade do real e da densidade da sua própria existência no real, que sentido faz ele se confessar, se todos os seus atos estão impregnados de irrealidade? Note que o sacramento da confissão continua o mesmo, mas a situação mudou muito, porque as pessoas já não têm certeza de que elas fizeram ou não fizeram alguma coisa, de que elas pensaram ou não pensaram alguma coisa. Estão todos vivendo em uma situação de névoa kantiana. Então qual a possibilidade de você fazer uma confissão efetiva? É mínima. Para um camponês analfabeto de oito séculos atrás era muito mais fácil fazer uma confissão, porque ele tinha certeza do que ele tinha feito, ou do que ele tinha pensado, ou do que ele tinha desejado, enquanto nós, com todas as técnicas psicológicas que desenvolvemos, [não temos mais essa certeza].
Quando você vê a multidão de psicanálises diferentes que existem, elas existem porque aparentemente o auto-conhecimento se transformou em uma coisa muito complicada. Nenhuma dessas técnicas, quando confrontadas, pode lhe dar auto-conhecimento, porque cada uma delas só lhe dá o conhecimento de um aspecto hipotético da sua alma hipotética. Por exemplo, eu saber o que se passa no meu id e superego. Eu nem sei se essas coisas existem! Os [01:10] arquétipos do inconsciente coletivo: eu fico lá sondando os arquétipos para ver os que estão dentro de mim. Mas eu não sei se isso existe!
A própria profusão de técnicas de investigação psicológica --- supostamente destinadas a amparar o auto-conhecimento humano --- na verdade criam uma confusão dos diabos, porque tudo isso pode ser muito útil, todas essas técnicas podem ser muito úteis se você tiver essa permanente admissão da densidade do real, no sentido do Louis Lavelle, porque daí você tem onde encaixar essas várias coisas, você sabe onde elas estão. Quando o Lavelle diz "a experiência da presença do ser é o que dá o significado e a importância das demais experiências", significa que, desprovido da consciência da presença do ser, nada tem significado e nem importância -- inclusive o seu famoso "eu".
Quando Descartes fez do "eu" o centro de construção do conhecimento, ele não podia prever que em muito breve tempo esse "eu" ia se esfarelar, se desfazer. Porque o nosso "eu" só é alguma coisa quando situado dentro da presença do real e da sua própria presença ao real. Se você o isola, como o "eu" isolado poderia ter história? O "eu" de que fala Descartes é um "eu" atomístico. Ele diz "penso, logo existo, e esta frase é verdadeira no instante em que eu a penso". Mas quanto tempo dura esse instante? Se transcorreu algum tempo, então você entendeu que, além do seu "eu", existe alguma outra coisa que se chama "tempo". E se não transcorreu tempo nenhum, isto simplesmente não aconteceu. Mais ainda: "penso, logo existo --- esta frase é verdadeira no instante em que eu a penso", sim, mas também no lugar onde eu a penso. Pois onde você pensou isto? Em lugar nenhum? Então você não pensou. A tentativa de construir o mundo a partir do "eu", ou da consciência humana, destrói a própria consciência humana.
E por que os filósofos caíram nisso? Por amadorismo, por inépcia, por incapacidade ou falta de vontade de confessar o real estado de coisas. Eu acho que, ao longo do tempo, o primeiro filósofo que restaura isso na sua plenitude é o Louis Lavelle. Você ler o Lavelle depois de estudar Kant, ou Descartes etc., é como despertar de um pesadelo. As pessoas que vivem dentro desse pesadelo e que, não obstante, querem levar uma vida moral, terminam todas loucas.
Por exemplo, agora que estou aqui nos EUA, eu assisto a muito mais filmes americanos do que antigamente, e vejo a infinidade de filmes sobre adultérios, e os dramas terríveis do adultério. Ou seja, o sujeito descobre que a mulher dele olhou para outro, pronto, meu mundo caiu --- "Ah, ela desejou o outro". Mas ele não foi informado de que as pessoas às vezes desejam os outros? Ele não sabia disso? Ele esperava realmente que a mulher só pensasse nele, só tivesse olhos para ele, nunca tivesse atração por outro? Ele espera isso? Mas que idiota! Por isso mesmo, o Cristo, na hora em que proíbe o adultério, diz que é para perdoar as pessoas, porque Ele já sabe que elas vão fazer isso. Então, a problemática do adultério separada da problemática do perdão é uma loucura, uma abstração, e não tem solução, é só sofrimento. E de onde vem isso? É o abstracionismo. É a separação entre a alma humana e a estrutura do real, a densidade do real. Ou seja, o sujeito se casa, mas não com uma pessoa de verdade; ele se casa com um produto imaginário, que é uma espécie de espelho dele, um espelho lisonjeiro.
Mais ainda: a fidelidade conjugal faz sentido dentro do contexto religioso que a criou, quer dizer, o casamento passou a ser um sacramento, então é um compromisso que você assumiu perante Deus. Agora, você tira Deus da jogada, e põe lá um monte de homens e mulheres que acreditam que, pelo simples fato de existirem, têm direito àquilo. Você acredita que tem direito à fidelidade da sua mulher? Você é louco. Quem você pensa que é? Você merece dois chifres na cabeça, desgraçado. Quem merece a fidelidade é Deus, não é você. E Deus sabe que a pessoa vai falhar, e por isso mesmo Ele diz que vai perdoar. Agora, você não. Ou seja, os direitos de Deus podem ser espezinhados milhares de vezes e Ele sempre vai perdoar; mas os seus direitos não podem ser espezinhados nem uma vez. Quanto mais as pessoas levam a sério esse negócio de casamento, mais o adultério se torna o tema praticamente único da literatura universal. Existe o famoso livro do Denis de Rougemont, O Amor e o Ocidente, que trata precisamente disto. Por que quase todas as histórias têm adultério misturado? Claro, as pessoas só pensam nisso, e elas têm uma expectativa absurda de que elas merecem a fidelidade do seu cônjuge. Cada um acha isso, e, evidentemente, estão todos enganados. O que é isso aí? Subjetivismo.
Se você recua na História, você vê que em outras épocas a tolerância e o perdão para com essas coisas eram muito maiores. Na medida em que você entra no mundo moderno, sobretudo depois da reforma protestante, aqueles mandamentos que tinham origem divina, e que são dados em uma hierarquia --- veja que os Dez Mandamentos não são apenas uma coleção, eles são uma hierarquia, vão do principal para o secundário ---, são subitamente retirados desse contexto divino e colocados dentro de um contexto, por assim dizer, atomístico humano.
Suponha que um fulano comunista se case com uma mulher feminista; ele acredita que tem direito à fidelidade conjugal dela, e ela também acredita. Por quê? Baseado em que você tem esse direito? Você não tem direito nenhum. Essas pessoas estão vivendo em um mundo de irrealidades. Quem botou essas pessoas lá dentro? Foram os filósofos, foi Kant, foi Descartes. O subjetivismo moderno colocou as pessoas, cada ser humano, no centro e no topo de realidade, e colocou o universo abaixo dele. Isso é inversão total da realidade. Nós só temos o direito de falar a palavra "eu" se nós temos a consciência da "presença total" e da nossa presença à "presença total". Aí nós temos um "eu". O "eu" não é uma entidade substantiva que exista por si mesma. O "eu" é uma espécie de relação que nós temos com a realidade na medida em que nós assumimos essa realidade e, agindo e reagindo dentro dela [01:20], nos tornamos cada vez mais sensíveis à presença. Aí sim nós temos um "eu". O verdadeiro "eu" é o produto de uma espécie de modéstia epistemológica do ser humano, o que é exatamente o contrário de toda essa tradição idealística moderna. Tradição idealística na qual os materialistas estão também incluídos. Mais tarde nós vamos tratar disso.
"8. Outros exercícios
O professor foi deixando ao longo das aulas uma série de outras sugestões:
--- Imaginar a vida de pessoas nossas conhecidas como um romance."
Isso é um negócio espetacular, porque, primeiro, você vai vendo que a vida das outras pessoas tem uma forma. Os vários fatos que sucedem a elas só adquirem sentido em face de tudo que aconteceu antes e de uma expectativa do que vem depois, ou seja, não há apenas uma sucessão, mas há efetivamente um drama. Esse drama surge porque as pessoas, além de serem aquilo que elas são presentemente, querem ser alguma coisa (mesmo que queiram apenas continuar sendo o que são agora). Elas podem querer ser o que são agora, mas a vida pode forçá-las a mudar. Por exemplo, o sujeito mais rotineiro, mais burguês, mais banal, colocado no meio de uma crise, de uma revolução, de uma guerra. O sujeito estava vivendo na sua repetitividade plácida e medíocre e, de repente, é colocado dentro de um campo de concentração. Pronto, acabou. O que acontece, os fatos que acontecem, mesmo que venham de fontes absolutamente aleatórias, se incorporam na vida de cada um como elementos de um enredo dramático, e, de certo modo, cada pessoa que você conhece tem o direito de ser tratada como personagem desse drama. Ela tem uma vida própria, ela pode contar a sua vida, e os fatos da vida têm para ela um significado, mesmo que seja um significado ilusório (mesmo sendo um significado ilusório, não quer dizer que essa ilusão não exista mesmo, e que não tenha para ela, dentro do drama da sua vida, um papel específico).
Você é capaz de contar a vida de quantas pessoas em torno? Em geral, a compreensão que você tem das pessoas em torno é meramente esquemática, e não dramática; você não as entende como personagens de um drama, como elas mesmas se entendem. Você as entende como personagens ocasionais de cenas separadas, e estas cenas você incorpora ao seu próprio drama. Enquanto você faz isso, você está no egocentrismo, na ilusão egocêntrica. Você só sai disso se tentar contar a vida das pessoas como você conta a sua. Quando você conta a sua vida, você tem um sentimento de unidade do seu personagem desde o começo até o fim. Pelo simples fato de você contar agora cenas que se passaram quando você era bebê, ou seja, o "eu" que está contando a história agora é o mesmo "eu" que você coloca dentro do bebê, de tal modo que ele fale. Mas raramente você concede esse privilégio aos outros. Isso significa que você está em um mundo onde existe somente um "eu", e existem personagens ocasionais que vão compondo o seu "eu". Mas será que a vida é realmente assim? Não pode ser, pois cada uma das pessoas acha que tem um "eu". Só de você tentar contar a vida das pessoas, você verá como esse seu horizonte vai se enriquecer e como as pessoas em torno começam a ser mais reais para você. Isto é um exercício que todo romancista faz. O romancista lê uma noticiazinha, "fulano matou não sei quem", e imediatamente começa a imaginar tudo para frente e para trás -- como começou essa história. Isto fez da arte do romance um instrumento cognitivo formidável. Muitas vezes os romancistas entendem as coisas melhor do que os filósofos. No século XIX, quando tudo quanto é filósofo estava dizendo besteira, estava lá Dostoiévski que entendia as coisas mais ou menos como elas eram.
"--- A partir de um romance conceber um roteiro de filme, e vice-versa."
Transforme um filme em narrativa verbal, e a narrativa verbal em filme, ou em peça de teatro. Isto serve, sobretudo, para você entender o que é a narrativa em si, e o que é a sua tradução ou condensação em símbolos que podem ser símbolos visuais, como no cinema, ou corporais, como no teatro.
"--- Exercício de aceitar tudo o que nos acontece, sem queixas e lamentos. Apenas referido para ser feito mais tarde."
É claro, este exercício é um pouco mais complicado; ele se desdobra em uma série de outros. Um deles é você imaginar que tudo o que lhe acontece é responsabilidade sua. Na verdade não é, isto é falso, esse é um exercício construtivo. Mas você vai imaginar como se tudo que lhe acontece fosse o seu carma. Ora, se tudo o que me acontece fosse o meu carma, então só eu poderia ter um carma, e os outros não têm carma nenhum, porque tudo acontece em função da minha ilustre pessoa. Então isso é falso. Mas esse exercício é bom para você depois fazer o lado comparativo, ou seja, você se imaginar como se fosse uma vítima inerme dos acontecimentos, e tudo são os outros que fazem, nada é você. Então você vai ter essas duas perspectivas opostas, as duas falsas, mas em algum ponto elas têm uma tensão, e é nessa tensão que está a realidade das coisas.
"--- Audição de peças de música com a noção de que a música é, por excelência, a arte da continuidade, sendo o objectivo conseguir memorizar e "reproduzir" a peça tal como a ouvimos."
Uma música é uma sequência de experiências sensoriais e emocionais muito bem organizada. Cada vez que você decora uma música, você tem uma sucessão de experiências emocionais que podem lhe servir mais tarde de modelo para você perceber outras harmonias na vida mesma. Por exemplo, você identificar quando as coisas estão acontecendo com um ritmo que imita a 3ª Sinfonia de Beethoven, ou a 4ª Sinfonia de Brahms etc., ou seja, você aprender a pegar a tonalidade musical das situações reais. Quanto mais músicas você tiver na memória, ótimo. Isto não tem nada a ver com análise musical; tem muita gente que estudou música a vida inteira e nunca parou para pensar em uma coisa dessas.
"--- Leituras pontuais foram sendo sugeridas, para agora ou para depois, com fins vários. Marques Rebelo, pela correcção do português, Orígenes Lessa, para compreender que a vocação não se pode opor aos nossos deveres. Lima Barreto, para perceber o ambiente de degradação moral onde estamos inseridos e que exige a nossa corrupção. François Mauriac, Stendhal, Balzac, Dostoiévski, para ver no romance a história de um indivíduo contra a sociedade. Machado de Assis, pela psicologia do auto-engano, e toda a série de grandes escritores e poetas portugueses e brasileiros que serão os nossos primeiros mestres da língua como forma de adquirirmos a nossa própria voz."
Ora, a arte do romance é tão importante que você deve ler todos os grandes romances, porque isso compõe a variedade dos modelos de vida com a qual você pode depois contar a vida dos outros e a sua mesma. O senso da dramaticidade das várias vidas, esse é um dever que você tem. Isso é imposto pelo Segundo Mandamento, "amar ao próximo [01:30] como a ti mesmo". Mas como eu posso amar ao próximo como a mim mesmo se eu não o compreendo como a mim mesmo? Se eu não dou ao desgraçado sequer o direito de ser um "eu"? Ou seja, você tem obstáculos cognitivos ao exercício do Segundo Mandamento.
Tudo isso que nós estamos expondo nessa primeira parte do curso, partindo geralmente de um material literário --- claro que não é um estudo literário, não é um estudo de letras ---, é um conjunto de instrumentos de percepção, e é justamente este conjunto que dará para você mais tarde o verdadeiro peso, a verdadeira importância do que os filósofos estão dizendo. Não é possível ter acesso aos filósofos se você não tem essa base imaginativa; é absolutamente impossível. O indivíduo com uma base imaginativa tosca, pobre, seca, que começa a ler Platão, Aristóteles etc., só vai fazer besteira. Primeiro ele tem de ampliar um pouco a dimensão da sua alma, para daí ele poder entender com quem está falando.
Neste sentido, eu queria sugerir um outro exercício. Todos esses exercícios não são exercícios que serão corrigidos em aula, não haverá nota; a maior parte deles será praticada na solidão da sua mente. Façam o que fez o Mário Chainho: façam a lista e, quando surgirem dificuldades, tentem enfrentá-las através desses exercícios.
O exercício que eu queria sugerir hoje é o que eu chamo de biblioteca imaginária. A biblioteca imaginária é você fazer a lista de todos os livros que você vai ler pelo resto da sua vida. É claro que você não vai conseguir [fazer uma lista completa]; sempre vai ficar faltando livros, porque, para fazer a lista dos livros que você vai ler pelo resto da vida, você já precisaria saber os títulos deles, ou seja, já precisaria ter alguma informação sobre cada um desses livros, e essa informação você não tem. Freqüentemente faltarão coisas, então você estará permanentemente completando isso. Porém, você tem um certo universo de interesses, de áreas do conhecimento em que você pretende se desenvolver ou onde você tem algum enigma a resolver. De preferência escolha as suas áreas de conhecimento não pelo interesse superficial que tal ou qual disciplina ou arte lhe sugere, algo como "eu gosto de música, eu gosto de História"; não é assim. Parta das questões que realmente são importantes para você existencialmente, e essas questões vão lhe dar os nomes das disciplinas respectivas que as estudam, ou onde você pode encontrar alguma dica para elas. Trate de fazer com que o seu universo de estudo se expanda e se desenvolva precisamente no sentido em que a sua alma está se desenvolvendo, a sua verdadeira pessoa está se desenvolvendo, de modo que não haja esse abismo entre personalidade real e o universo intelectual -- abismo que as escolas fomentam "até o último"; elas não só abrem o abismo como colocam um muro de chumbo entre uma coisa e a outra. Na medida em que colocam esse muro, essa separação, o efeito imediato é a estupidificação. Mais ainda, às vezes, essa estupidificação é exigida como prática disciplinar (eu não estou exagerando, isso não é caricatura).
Partindo das informações que você tem atualmente sobre livros que você não leu, mas que lhe parecem importantes, comece por fazer a lista deles, e por definir mais ou menos essas áreas de perplexidade, nas quais você precisa de auxílio para saber mais e poder resolver lá as suas dúvidas. Em seguida, você vai buscar as bibliografias essenciais dessas áreas. Hoje, na internet, você encontra bibliografia de praticamente tudo: existem bibliografias especializadas, publicações periódicas que atualizam a bibliografia. De início, claro, você ficará perdido em um mar de títulos, não só de livros, mas também de trabalhos acadêmicos ainda não publicados em livro. Para simplificar a coisa, eu sugiro que você pegue a bibliografia final da coleção dos "The Great Books of Western World". Naqueles volumes introdutórios dos Great Books, chamado "The Great Conversation", onde você tem o "The Great Ideas", existe uma bibliografia final que são dos livros mais importantes que tratam daquelas questões que estão colocadas no índice do Great Ideas. Eu creio que dá mil e quinhentos, dois mil livros. Aquilo é um bom começo. Você vai ver que há áreas inteiras que não vão lhe interessar e que serão excluídas.
Em seguida, você vai procurar os livros que tratam da história dessas disciplinas. Por exemplo, se você se interessa por Ciências Sociais, Sociologia, então vai pegar uma História da Sociologia. Não precisa ler tudo, mas apenas pegar o nome dos autores e dos livros e ir completando a sua lista, como se você fosse comprar esses livros (imagine que você tem muito dinheiro e irá percorrer várias livrarias, compondo fisicamente a sua biblioteca). Claro que você vai passar o resto da sua vida compondo a sua biblioteca, como eu, que estou até hoje compondo a minha.
É muito importante você prestar atenção nos elementos conflitivos que existem já nessa seleção, porque cada autor de bibliografia, ou cada autor de história de uma disciplina, faz a seleção que a ele parece a certa, e às vezes pode fazer omissões medonhas. Onde houver essas dúvidas -- onde o sujeito colocar no centro da história de uma disciplina determinado autor, e o outro nem mencionar o mesmo autor --, exatamente aí você tem uma preciosidade, porque neste ponto há um conflito de perspectivas. Esses conflitos sempre se travam em torno de elementos muito importantes dessas disciplinas. Em geral, o coração do problema está ali, naquilo que foi omitido por um e destacado por outro -- aí você já sabe que tem algo de muito importante.
Vejam também o que acontece com alguns autores específicos que, num primeiro momento, não parecem ter importância na história da disciplina, [mas que depois são colocados no centro]. Por exemplo, se você pegar as histórias da filosofia publicadas até, digamos, 1920, o espaço dedicado a um cidadão chamado Karl Marx era relativamente modesto, ninguém lhe daria um espaço como se dá a um Platão, ou Aristóteles ou a Leibniz. Mas, aos poucos, se desenvolve uma outra tradição filosófica, marxista, na qual ele está colocado no centro. Essas duas tradições não têm muito como se encaixar, elas vivem numa espécie de conflito. Há um autor chamado José Ferrater Mora -- um autor eruditíssimo, autor de um dos melhores dicionários de Filosofia que existem --, que escreveu um livro que se chama Filosofia Contemporânea. Neste livro ele afirma que existem três tradições filosóficas independentes e praticamente incomunicáveis [01:40]. De um lado, há: (a) uma tradição chamada continental, onde predominava, na época, fenomenologia, existencialismo etc.; (b) uma tradição anglo-saxônica, com a filosofia analítica; (c) uma tradição marxista. Não tem como juntar essas tradições. Se você pegar os autores de História da Filosofia que personifiquem cada uma dessas correntes, você vai ver que a hierarquia de valores que eles dão a diversos autores é completamente diferente. Assim, muitas coisas que nos EUA se chama Filosofia, dentro da tradição européia seria uma coisa absolutamente irrelevante. Por exemplo, esses enigmas lógicos de que eu falei. Aqui [nos EUA] têm pessoas que dedicam a vida a isso, a destrinchar esses enigmas lógicos -- o que pode ter uma importância técnica para a ciência da lógica, mas que filosoficamente é nada. No entanto, é precisamente isso que eles chamam de Filosofia. Eu considero o ambiente filosófico anglo-saxônico absolutamente psicótico, louco. Graças a Deus existem outras disciplinas -- o sujeito, às vezes, precisa estar fora de um faculdade de filosofia para fazer uma boa filosofia. Por exemplo, os críticos literários do mundo anglo-saxônico são filósofos maravilhosos: Kenneth Burke, Northop Frye etc. Aí há muito mais filosofia do que na faculdade de filosofia. Aqui existe esta saída. Sem esquecer o caso do próprio Eric Voegelin, na faculdade de direito. O que se chama de filosofia, nos EUA, é uma atividade mais restritiva, centrada nos problemas da escola analítica, que são, na verdade, problemas de ordem lógica.
Então, onde você encontrar esses abismos nas bibliografias, ali você tem uma coisa preciosa, porque ali você está lidando com elementos contraditórios, explosivos, que têm dentro dessas disciplinas.
Sem essa lista de livros que compõem a sua bibliografia, você nunca terá um senso de orientação nos seus estudos. Vá comprando os livros na medida em que for possível. Há livros que eu anotei um dia e comprei trinta ou quarenta anos depois, por uma questão de conveniência (o livro estava mais barato ou apareceu na minha frente). Mas, sem isto, você nunca terá orientação nenhuma nos estudos. Uma biblioteca imaginária é, praticamente, o começo de uma vida de estudos.
Essa biblioteca lhe dará uma outra coisa, que eu chamo "o repertório da ignorância", ou seja, o que eu não sei, mas preciso saber. Se você sabe que não sabe algo, então algo a respeito você já sabe: o suficiente para saber que lhe faltam conhecimentos a respeito. Esse repertório da ignorância é precioso porque lhe permitirá fazer um esquema do que você precisa saber para resolver determinadas questões, quando for confrontado com elas.
Quando Eric Voegelin, no livro Reflexões Autobiográficas, vai contando como foi sua própria formação, percebemos que ela foi inteiramente feita nesta base: na consciência que ele tinha dos elementos que faltava incorporar para poder resolver as questões que o atormentavam. Note que o repertório que ele abriu foi enorme -- os diferentes estudos a que ele foi se dedicando, inclusive, em diferentes partes do mundo... Ele passa um ou dois anos na França, incorporando os elementos de literatura francesa etc. Que outro cientista político fez isso? -- "Para entender esse negócio aqui, eu preciso ir lá ler Balzac, Stendhal e mais isto e aquilo..." Voegelin chegou a ter um conhecimento de literatura francesa monstruosamente extenso, e tudo isso o ajudou mais tarde. Da mesma forma, quando ele chegou aos Estados Unidos, foi estudar a Constituição Americana... Aparentemente uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas essas coisas se uniam não no nome de uma disciplina, não numa carreira acadêmica já predeterminada, mas se unificavam nas questões e nos problemas. O grande problema da vida dele -- ele mesmo o reconheceu -- foi a origem das ideologias de massa contemporâneas. Esse problema aparece para ele não como um problema acadêmico, mas como um problema existencial. Ele estava na Áustria quando houve a ocupação nazista -- ele escapou pela porta dos fundos, enquanto a Gestapo estava na porta da frente. Definitivamente, não era um problema acadêmico, mas um problema real, o que garantia o interesse genuíno que ele tinha na questão. Essa proximidade física que ele tinha em relação ao problema e, ao mesmo tempo, o recuo que ele consegue dar, até perceber a infinidade de elementos que ele precisar estudar até resolver a questão central, isto nos dá a medida real do que é uma vida de estudos, marcada pela paixão intensa de resolver certas questões e, ao mesmo tempo, pela isenção, pela idoneidade com que o indivíduo se afasta da sua problemática, do seu problema imediato, para tentar ver a coisa numa perspectiva imensamente maior. O exercício de formação da biblioteca imaginária permite fazer esse estudo verdadeiro.
Vou passar a responder algumas perguntas.
Aluno: Gostaria que o senhor discorresse mais ou indicasse alguma leitura sobre como fazer a transposição entre a experiência sensorial da música para outras áreas da realidade, especialmente em nossas relações interpessoais.
Olavo: A música é uma experiência muito peculiar --- outro dia escrevi isso num artigo --- pelo fato de que existe a chamada surdez tonal, isto é, o sujeito não percebe uma melodia, embora perceba todas as notas -- ele não consegue perceber a unidade da melodia. Uns testes recentes mostraram que não só as notas ouvidas por um sujeito normal e pelos sujeitos que têm a surdez tonal são as mesmas, mas as áreas do cérebro ativadas durante a audição musical são também as mesmas, ou seja: o seu cérebro percebeu a melodia; foi você que não percebeu. Como dizia Viktor Zuckerkandl, a música se revela um experimento de tipo muito peculiar, onde existe a apreensão de algo que vai além das estimulações sensoriais percebidas. Por isso a música abre uma porta para o reino dos significados, que vão para muito além dos signos. Por exemplo, você conseguir fazer analogias musicais com certas situações vividas, você perceber, por exemplo, o ritmo em que as coisas se passam. Claro que na vida os ritmos são muito mais variados do que na música, pois a música é uma espécie de condensação dos ritmos e melodias da vida, mais simplificada e depurada dos elementos acidentais, mas, por baixo da variedade dos elementos acidentais, existe um andamento musical, por exemplo, na fala ou na escrita. Essa analogia você pode fazer entre a leitura de um sermão de um Bossuet e certas composições de Bach, por exemplo, porque o ritmo é mais ou menos o mesmo. [01:50] Isso pode ser desenvolvido até às últimas conseqüências, até uma espécie de percepção musical da realidade inteira. Para quem quiser saber algo mais sobre isso, eu sugiro o livro do Victor Zuckerkandl, Sound and Symbol (1956), que é um dos grandes livros da humanidade.
Aluno: O que fazer para vencer a timidez?
Olavo: Depende. Você tem certeza que a sua timidez deve ser vencida? Bem, eu nunca tive esse problema, sempre fui de uma cara de pau exemplar. Exceto em certas situações muito específicas, que eram constrangedoras em si mesmas. Se você quer vencer a timidez simplesmente na esfera social, é claro que você vai desagradar muita gente, porque pode ser que você force as coisas para se impor em certas situações. Já na esfera amorosa você não pode fazer isso, se não você pode ofender as moças e botá-las para correr, daí não fica bem, não pode ser muito atrevido com elas.
O grande problema com a timidez é a mesma ilusão do "eu", da qual eu falava no começo: você está se vendo como um "eu" e vendo todos os demais como forças inibidoras que se voltam contra este "eu". Mas com que direito você faz isso? As pessoas são todas "eus", cada uma delas está no centro do seu próprio mundo e raríssimas dentre elas concedem aos demais a chance de também ser "eus". Uma boa maneira de você vencer a timidez é o amor ao próximo. O amor ao próximo faz com que as pessoas deixem de ser estranhas e, se elas não são estranhas, acaba a razão do medo. Mas a pessoa não consegue vencer a timidez porque ela acha que a timidez é um problema dela. Quanto mais ela se preocupa com ela, menos ela vai ter amor ao próximo, e daí as pessoas vão ficar mais esquisitas ainda. Eu sugiro que você faça isso [que você se faça essa pergunta]: o seu problema é timidez ou falta de amor ao próximo?
Há muita gente tentando ensinar os outros a vencer a timidez, há uma série de técnicas de auto-ajuda, mas eu acho que todas essas técnicas fortalecem o egoísmo, transformam um sujeito ostensivamente tímido num tímido disfarçado em cara de pau. Há muita gente que é agressiva, e até inconveniente, mas que na verdade é um tímido disfarçado. Se a timidez é colocada como um problema, então você está no centro do problema. Experimente sair do centro, para ver o que acontece. Tente se interessar pelas pessoas que estejam sofrendo, tente se interessar pelos problemas delas, perguntar, ouvir. Você vai perceber que, nessas horas, você deixa de ser tímido. Por quê? Porque você saiu do centro, [e] agora o problema é dela [da outra pessoa].
Desde que a civilização burguesa veio ao mundo, cada pessoa começou a se dar demasiada importância, achando que ela veio ao mundo para obter tais ou quais satisfações, que ela tem direito àquelas satisfações. Naturalmente, isso gera uma infinidade de frustrações, isso nunca dá certo, nunca funciona. Quando você pensar em timidez, lembre: a vida dura pouco; essas pessoas todas, daqui a pouco, estarão mortas, e eu posso sentir falta delas, então deixe eu fazer algo por elas enquanto elas estão aqui, porque assim, quando elas morrerem, eu não vou ficar com aquela tristeza. A solução da timidez é a bondade, o amor ao próximo. Na hora que você colocar o outro em primeiro [lugar], você esquece sua timidez. É a coisa mais simples do mundo.
Existe um outro exercício: experimente, durante alguns meses, ser atento, cuidadoso e generoso com cada pessoa que você encontrar; que a sua passagem pela vida dessa pessoa faça alguma diferença. Experimente isso. Mesmo que você não queira, [mesmo que] for a pessoa mais chata do mundo, faça abstração da chatice dela e faça de conta que você é a solução dos problemas dessa pessoa. -- "Não interessa quem você é, não interessa de onde você veio, em mim você vai encontrar atenção, reconforto, bondade etc., seja você quem for, pode ser o pior bandido." Faça isso com todo mundo, sem exceção. Claro, você não vai aguentar viver assim o tempo todo, mas uma parte disso vai se incorporar na sua maneira de ser permanente. É claro, também, que quando você for tão atencioso, bondoso com as pessoas, muitas delas depois vão abusar de você, mas, como parte do exercício, isso não tem importância. Se elas abusarem de você, o problema é delas, elas estarão fazendo o mal e só vão se prejudicar a si mesmas. Durante um tempo, faça abstração dos seus próprios interesses, faça de conta que você é um balcão de reclamações. Todo mundo vai vir com algum problema e todo mundo vai sair satisfeito. Dê o melhor de si durante algum tempo. Você vai ver que isso vai fazer diferença para o resto da sua vida. Mas tem de ser com todo mundo, não pode falhar nenhum, pode ser o maior chato de galocha. Claro que você vai ter alguma satisfação pessoal nisto. Durante esse tempo todo, você tem todo o direito de pensar: -- Como eu sou um sujeito educado, como eu sou um sujeito bom. Claro, faz parte, é um prêmio subjetivo que você vai ter disso aí. É apenas um exercício. Faça isso durante um mês. Você nunca mais vai ser o mesmo depois.
Aluno: Nessa perspectiva que o senhor falou de que aquilo que existiu, existirá sempre, não pode voltar ao Nada, pergunto: a onipotência de Deus não existe? Se Ele, por um ato de vontade, voltasse atrás nos Seus atos, não estaria estabelecendo o caos?
Olavo: Certamente estabelecria o caos, mas Ele não vai fazer isso. A onipotência de Deus não é a onipotência do absurdo. Deus não pode deixar de ser Deus, não pode negar a Sua própria Natureza. O que você está supondo é a onipotência do arbitrário total, mas se fosse arbitrário total, não seria onipotente. Onipotência é a capacidade de fazer o que você quer, e não de fazer qualquer coisa. A onipotência total do arbitrário corresponderia à impotência total, porque Deus não teria o domínio sequer de Si mesmo. Se Ele pode mudar de idéia a qualquer momento, a respeito de qualquer coisa, Ele não teria nenhum controle de Si mesmo, então não teria poder sobre Si mesmo. Mas a Bíblia está repetindo a todo momento: Deus é fiel, Deus não volta atrás. Então, se Ele não volta atrás, este tipo de onipotência Ele não pode ter, porque é a onipotência do arbitrário, e o arbitrário não pode ser onipotente. [02:00] Lembre-se: onipotência é capacidade de fazer o que você quer, de acordo com o que você é, e não de fazer qualquer coisa. Não confunda onipotência com arbitrariedade ou com o próprio caos.
Aluno: Caro Professor, conforme o senhor disse nos vídeos de apresentação deste Curso, o próximo ano será totalmente dedicado a Platão e Aristóteles. O senhor ainda tem isto em mente? Explico o porquê da pergunta: nas suas Reflexões Autobiográficas, Eric Voegelin diz que só se pode entender aqueles autores lendo-os no original, isto é, em grego.
Olavo: Não, isto não é verdade. Você precisa saber algo do grego para tirar dúvidas, mas note bem que um dos melhores comentadores de Aristóteles, que foi São Tomás de Aquino, nunca leu uma palavra de grego. O texto original não é onipotente. Todo texto tem uma infinidade de nuances que você nunca vai pegar. O importante não é a total fidelidade ao texto, porque uma total fidelidade é utópica e desnecessária. Você tem é de pegar certas estruturas gerais da experiência que possam ser repetidas. Claro que depois você pode ir aproximando isso da fidelidade ao texto, mas essa aproximação com o detalhe semântico do texto é uma assíntota, é uma aproximação, você nunca chega lá. Veja que isso não se aplica somente ao texto. Você pode compreender uma pessoa qualquer na totalidade dos seus processos interiores, da sua vida? Não. Se você busca essa totalidade quantitativa, vai perder o senso da estrutura e da forma integral, e isso é um problema sem solução: ou nós somos fiéis às linhas gerais da estrutura, isto é, nós pegamos o sentido da forma que tem a pessoa, ou a forma mentis de Platão, a forma mentis de Aristóteles, ou você vai se deter nos últimos detalhes do texto e perder a forma mentis, e vai achar uma infinidade de problemas que não acabam mais.
É o caso de Werner Jaeger. Quando ele tentou reconstruir evolução do pensamento de Aristóteles a partir da cronologia dos textos, ele chegou a certos enigmas absolutamente insolúveis. E por quê? Porque os textos de Aristóteles não foram escritos para que alguém reconstituísse a evolução intelectual de Aristóteles, o qual nunca escreveu sobre a sua própria evolução intelectual. Escreveu sobre a Física, sobre a Metafísica, a sociedade política, sobre os animais, sobre os meteoros, ele escreveu sobre essas coisas, e é isso que ele queria que nós entendêssemos, e não "a evolução intelectual de Aristóteles". Claro que algo dessa evolução você pode pegar, mas ela nunca é o problema. Quando o estudioso gira a atenção desde os objetos que o filósofo está tentando lhe mostrar, para a própria pessoa do filósofo, ou para a própria estrutura interna de percepção do filósofo, ele mudou de assunto. Se você está usando um livro escrito sobre o assunto "x" para entender o assunto "y", você irá errar necessariamente.
Muitas vezes, para você entender o que Aristóteles está dizendo sobre isto ou aquilo, você precisa ignorar a evolução intelectual de Aristóteles. Por exemplo, quando ele diz que tal animal se comporta assim e assim... --- e Aristóteles tem uma série de descrições sobre a conduta dos animais, que são uma coisa absolutamente maravilhosa --- ele, por acaso, estava pensando em "evolução intelectual de Aristóteles"? É claro que não. Se ele estava falando do crocodilo, era sobre isso que ele falava; se falava do cisne, falava do cisne, se voltava para a águia, falava da águia. É nisso que você tem de prestar atenção, e isso é que é compreender Aristóteles. Se você gira e transforma o próprio Aristóteles em objeto de estudo, certamente esta não era a vontade dele, se não ele teria escrito uma autobiografia.
Esses problemas filológicos para entender o texto muitas vezes são uma perversão cognitiva monstruosa. Algo de grego você precisa saber, claro, mas você nunca vai saber grego como sabe a sua própria língua, porque você não pode ver essa língua sendo falada numa sociedade realmente existente. Quando se fala que a língua é morta, é porque ela não é mais usada pragmaticamente (para comprar, vender, casar, namorar, xingar etc.). De fato, ninguém mais as usa para isso. Ela somente existe nos textos, então você jamais vai dominar essa língua como domina a sua língua ou qualquer outra língua atual. Portanto, você já está separado dela por este aspecto.
O que garante a você a possibilidade de compreender o que Aristóteles ou Platão disseram não é a infinidade de técnicas filológicas desenvolvidas para tanto, mas a permanência dos objetos dos quais eles estão falando. Aristóteles diz alguma coisa sobre o elefante, então eu pego o texto de Aristóteles e vejo "ah, aqui ele usou o verbo tal, aqui está o sentido da palavra tal", mas eu digo, cadê o elefante? Se Aristóteles, esquematicamente, diz algo sobre o elefante, e eu posso ver o elefante ver a mesma coisa que ele disse, então eu entendi Aristóteles perfeitamente. Eu entendi o que ele disse. O próprio Voegelin usa muito mais esse método que eu estou dizendo do que o método filológico.
Às vezes surge um problema filológico e você vai ter de pedir socorro para o filólogo, sim, porque você não está entendendo o sentido da palavra que o camarada usou. Então vai precisar não só consultar o original, mas de um dicionário, de algum estudo específico sobre aquela palavra etc. Isso vai acontecer algumas vezes, mas esse não é o principal problema na compreensão dos filósofos. Eu conheço gente que passou a vida inteira analisando esses textos mas jamais prestou atenção no objeto do qual os filósofos estavam falando. Criaram, assim, uma forma eruditíssima de burrice --- é o que se pratica na USP, na melhor das hipóteses -- ou melhor, é o que se praticava nas primeiras gerações da USP. Hoje não se pratica nem isso -- quando se lê esses Vladimir Saflate, e outros, ali não tem mais nada, acabou.
Mesmo que você esteja fazendo um estudo histórico -- você faz ali uma seqüência temporal de filósofos que trataram de vários assuntos etc. etc. --, se você focar a sua atenção nas filosofias em si mesmas ou nos textos em si mesmos, você nunca mais vai entender nada. Todo mundo que diz alguma coisa, diz a respeito de alguma coisa. Se esta coisa for inacessível, exceto pelo próprio texto, o texto será incompreensível. É a unidade do objeto, a unidade do mundo, que permite que você entenda o que se diz sobre ele.
O meu método aqui é, digamos, o anti-filológico -- o que não quer dizer que eu não use dicionário. Lá no meu estudo sobre Aristóteles está cheio de consultas que eu tive que fazer a dicionários, a filólogos, para esclarecer o que Aristóteles estava querendo dizer. Mas, em nenhum momento, isso foi mais importante do que a atenção ao tema do qual ele estava falando. E o tema, ali, é os usos da linguagem em contextos diferentes, para dizer coisas diferentes a públicos diferentes. Isto existia só no tempo de Aristóteles? Só é acessível pelos textos de Aristóteles? Não, isso é a nossa experiência de todos os dias: você liga a televisão, as pessoas estão falando; você vê o discurso no Parlamento, as pessoas estão falando; estou eu aqui falando. Então, você tem a experiência da comunicação e é este o objeto do qual Aristóteles está falando. Interessa muito mais você pegar esquematicamente o que Aristóteles disse e conferir com o objeto, do que ficar esmiuçando os textos de Aristóteles. A não ser que você tenha pela filosofia um amor errado. A filosofia é a busca da sabedoria, [02:10] e não a busca dos conhecimentos dos textos.
José Arthur Gianotti, que é um dos camaradas mais incompetentes que atuaram no campo da filosofia, diz que a filosofia é uma atividade de textos. Ah, é? Então quer dizer o seguinte: Aristóteles, quando estudava a sociedade política, só estava interessado em textos: não havia o governo efetivo, não havia guerras, não havia pessoas, eram só textos! Quando ele estudava os animais, ele pegava os escritos dos crocodilos, as falas das cobras. Mas que estupidez é essa, que texto é isso, que masturbação mental medonha é essa? A filosofia está falando da realidade do mundo, está falando da presença total. Muitas vezes, se você tem um conhecimento deficiente do texto, mas tem uma boa percepção do objeto, você vai entender o texto perfeitamente. Quando você for verificar nos detalhes filológicos, vai ver que percebeu exatamente o que o texto estava dizendo. Grandes estudiosos cometem erros monstruosos por causa disso. Enrico Berti, um dos grandes estudiosos de Aristóteles, comete um deslize monstruoso ao analisar a questão da retórica, porque ele se apega ao sentido de determinadas palavras, em vez de olhar para o exercício efetivo da retórica na sociedade. Ele dizia que é um erro dizer que a retórica visa à verossimilhança, porque a palavra tal patati, patatá etc. Muito bem, só que é o seguinte: qualquer orador, falando sobre o que quer que seja, está sempre apelando ao verossímil, ou seja, aquilo que a platéia já acha o que é verdadeiro. Ele não coloca a veracidade disso em questão. Quer dizer que o retórico não pode ferir as crenças da platéia; ele tem de raciocinar a partir delas. Isso acontece na realidade, não nos escritos de Aristóteles. Portanto, se Aristóteles usou uma palavra que não fosse muito adequada, ele falou errado, mas eu entendi o que ele quis dizer, porque ele está falando uma coisa que eu também conheço. Basta ligar a televisão e ver um discurso eleitoral, ver um vendedor vendendo alguma coisa, e você vai perceber que a base da argumentação dele é sempre o verossímil. O que é o verossímil? É aquilo que o seu ouvinte acha que é verdadeiro. Eu não poderia justificar isso pelos detalhes semânticos do texto de Aristóteles, mas posso justificar pelo fato de que ele estava olhando para os oradores do seu tempo, e eu olho para os oradores do meu tempo e vejo a mesma coisa. No entanto, eu não posso negar a competência de Enrico Berti, e muitos outros. Chaim Perelman não consegue perceber a diferença entre retórica e dialética. Para ele, tudo é a mesma coisa. Tem o que ele chamava "lógica dura" e "lógica mole". Mas veja, um filósofo tentando discutir alguma coisa e um vendedor tentando fazer alguma coisa, eles estão fazendo duas coisas completamente diferentes. É disso que Aristóteles está falando, ainda que às vezes ele se equivoque nos textos. Não se esqueça de que os textos de Aristóteles são rascunhos e pode haver ali uma precisão muito grande. Se eu for me ater aos detalhes das palavras que ele usou, eu vou me deixar enganar, porque ele se enganou! Ele está querendo dizer uma coisa e disse outra. Como é que eu sei disso? Porque eu estou olhando para o mesmo objeto.
Quando eu dei o exercício de ler um parágrafo de um filósofo e tentar preencher aquilo com o seu conteúdo existencial, imaginativo etc., o exercício é o mesmo: você vai focar não no texto, mas no objeto, na coisa de que ele está falando. Não se esqueça que boa parte da atividade acadêmica não tem outra finalidade senão você agradar professores e tirar uma boa nota. Aquilo não tem nada a ver com a realidade. É como você comparar exercícios numa academia de artes marciais com uma briga de rua. Nos exercícios, você está querendo demonstrar que tem uma boa técnica; não quer bater em ninguém, nem está com medo de que o outro o mate ali dentro. Mas, se for uma briga de rua, bom, os caras podem matá-lo, então você tem de fazer alguma coisa. Escola, na maior parte dos casos, é um ambiente teatral, que imita a realidade, mas não é realidade. Por exemplo, os exercícios de matemática que você faz na escola não vão ter nenhum efeito sobre a sua conta bancária. É um ambiente teatral, propositadamente construído para imitar certas circunstâncias da vida, sem os riscos reais da vida.
Por exemplo, imagine que você vai aprender boxe com Mike Tyson. Ele vai lhe dar umas porradas, mas vai moderá-las, se não ele mata o aluno e aí ele não paga mais a mensalidade. Agora, se você encontra o Mike Tyson na rua e xinga a mãe dele, a situação é completamente diferente. Isso ilustra que boa parte da atividade acadêmica é alienante por si. O estudo das ciências, em última análise, visa à realidade, à compreensão da realidade, mas o treinamento que você obtém para isso nas escolas se afasta da realidade. E você continua o resto da vida se dedicando àqueles rituais escolares, achando que está fazendo ciência: isso é um ledo engano. Quem julga o seu trabalho na escola é o professor; no exercício real do conhecimento, é a própria realidade. Nós podemos atenuar esse caráter artificial e teatral da escola (afinal de contas, isto aqui também é uma escola), fazendo com que em todos os exercícios, em todos os estudos, as pessoas lembrem da realidade, e que elas não estão aí para serem julgadas por mim. Eu não vou lhes dar uma nota. (Claro que posso dar implicitamente, na minha cabeça.) Vocês não estão aí para agradar o professor. Eu estou pretendendo que vocês se transformem em verdadeiros homens de estudo. Na verdade, e não na escola. Por isso essa insistência na experiência pessoal real, no reconhecimento da presença da realidade, e assim por diante.
É importante ler Aristóteles em grego? Secundariamente. Em primeiro lugar, é preciso estar de olho nos objetos dos quais ele fala. Se você só tiver acesso a esses objetos pelos textos de Aristóteles, acabou a possibilidade de estudo. É necessário que o objeto exista fora deles, independentemente deles, e que você tenha outros meios de acesso ao mesmo objeto, para você poder comparar a sua experiência com a experiência da qual Aristóteles está falando.
Se Aristóteles está dizendo algo sobre a estrutura do Estado, o que você quer conhecer: a estrutura do Estado ou a concepção aristotélica da estrutura do Estado? Para você conhecer esta, você precisa conhecer a estrutura do Estado primeiro. Então você usa o texto de Aristóteles como um veículo para chegar à estrutura do Estado [02:20], tenta captar o mesmo objeto por outros meios, e depois você pode até separar este objeto, separar aquela nuance, e dizer que existe uma concepção aristotélica específica. Mas essa concepção só aparecerá nitidamente, no que ela tem de específico, quando você tiver a visão geral -- afinal de contas, toda espécie é espécie de alguma coisa. Existem diferentes concepções do Estado, mas, espere aí: existe o Estado? Se não existe Estado nenhum, não faz sentido ter concepções a respeito dele. Se este Estado não pode ser compreendido por experiência direta, mas somente através de suas concepções, não é possível testar essas concepções. Eu conheço um bando de gente que estudou um monte concepções do Estado e nunca tentou raciocinar sobre o Estado que existe atualmente. Assim, haveria também "diferentes concepções do elefante". Você pega vários desenhos de elefante, compara uns com os outros, e jamais pergunta nada ao elefante. Aonde você pretende chegar com isso? Você vai chegar a uma masturbação mental acadêmica absolutamente estéril.
A preocupação com os textos é secundária em face da preocupação com o objeto. É na dificuldade que surge com o objeto que você, retroativamente, terá de apelar aos textos. Eu estudei um pouquinho de grego, mas até hoje não tenho conhecimento suficiente do grego para ler correntemente. Eu posso entender uma frase ou outra, tirar uma dúvida no dicionário, isso é o máximo. Tem um monte de gente que estudou grego a vida inteira, mas por que não descobriram a Teoria dos Quatro Discursos? Porque erraram no método.
Eu sei que Aristóteles está falando de alguma coisa, e eu tenho a experiência dessa alguma coisa, então é ali que interessa você prestar atenção. Note que, quando se fala de ciências naturais, ninguém ignora que as coisas sejam assim. Ninguém vai dizer que as ciências naturais são "estudos de textos". Se você fala de minhocas, você tem de observar minhocas. Ora, oitenta por cento dos escritos de Aristóteles são escritos de ciências naturais, ou seja, ele está falando de objetos que são acessíveis à experiência humana, independentemente do texto. Se ele diz que tal bicho se comporta assim-assim, não adianta eu esmiuçar o texto de Aristóteles que eu nunca vou saber se aquilo está certo ou errado: eu preciso conferir com que o bicho está fazendo. A mesma coisa com relação à retórica, à psicologia, ao Estado etc. Essa idealização dos textos filosóficos é uma das grandes perversões acadêmicas do mundo. No entanto, até hoje, a única confrontação que eu tive com um professor de filosofia a respeito de um texto foi aquela com o "Faulo Ghiraldelli" [Paulo Ghiraldelli], onde eu demonstrei para ele que ele não tinha a menor notícia do que aquelas palavras queriam dizer em grego. Ele nunca tinha ouvido falar naquilo. Se for preciso dar uma explicação textual, eu sei fazer isso, só que essa não é a minha ocupação principal. Eu só entro nisso quando alguém me enche o saco.
Aluno: Agradeço muito pelas aulas e os exercícios propostos. Sobre o livro para a leitura lenta e análise essencial, estou lendo a Metafísica, de Aristóteles, que Giovanni Reale traduziu. O próprio tradutor enfatiza que ele traduziu e interpretou em larga medida, pois o texto original em grego é muito denso e assume um aspecto de notas de aula.
Olavo: Isso é a pura verdade. O aluno aqui pergunta se a tradução do Reale é fidedigna. Sim, a tradução é maximamente fidedigna. É verdade que o texto grego é muito rico, porém, os assuntos dos quais eles estão falando são infinitamente mais ricos. Você pega a primeira frase de Aristóteles da Metafísica: "Todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer." Eu fiquei anos com essa coisa na cabeça. Eu vi um monte de gente que não tinha o desejo de conhecer nada. Mas do que Aristóteles está falando? Como é que você pode explicar o desinteresse da quase totalidade dos seres humanos por qualquer tipo de estudo, se os homens têm por natureza o desejo de conhecer? O que ele quer dizer com isso? Adianta eu esmiuçar o texto de Aristóteles para descobrir isso? Não. Eu vou ter de examinar os seres humanos e entender que o desejo de conhecer pode coexistir com a indiferença pelo conhecimento, pela rejeição ao conhecimento, pelo ódio ao conhecimento, entender tudo isso. Será que Aristóteles não sabia disso? Ele nunca viu um ignorante na vida? Ele nunca viu um ignorante presunçoso, que quer falar das coisas sem conhecê-las? É claro que ele viu. Eu tenho de entender que, quando Aristóteles diz que o homem tem por natureza o desejo de conhecer, ele não está se referindo à conduta do indivíduo concretamente, mas a uma tendência natural. A tendência natural pode ser contrariada e reprimida. Eu entendo que esse desejo de conhecer não é uma coisa direta e plana, mas uma coisa problemática. Ou seja, eu dei à frase de Aristóteles uma densidade de experiência vivida, minha, que ele também teve, e que o exame das palavras dele jamais poderia me dar.
De fato, pode surgir uma dificuldade no entendimento do texto e você precisar recorrer ao original, mas quem disse que o original vai resolver os problemas? Se o próprio Reale diz que aquilo são anotações de aula, isso significa que Aristóteles escreveu algumas coisas só para efeito mnemônico, para que ele pudesse se lembrar na hora. Então, para quem ele escreveu aquilo? Para ele mesmo. Na hora ele lia aquelas notas e lembrava o resto do que ele queria dizer. O texto tem uma densidade, mas tem maior densidade ainda o que Aristóteles não escreveu.
Outra coisa, Giovanne Reale é aquele sujeito que escreveu um livro maravilhoso sobre os ensinamentos não escritos de Platão. Como é que eu vou analisar textualmente os ensinamentos não escritos de Platão? Não dá para fazer isso. A reconstituição dos ensinamentos não escritos de Platão jamais ficaria completa se dependesse somente dos textos e dos testemunhos. Então, como é que se faz? É preciso olhar para os objetos dos quais Platão está falando e fazer o mesmo raciocínio que eu fiz com relação ao livro Aristóteles e Os Quatro Discursos: para Platão saber isto o que ele está dizendo, ele precisaria saber também esta outra coisa, que ele não disse, mas sem a qual ele não poderia saber a primeira. Por exemplo, se eu digo "fulano comeu um cachorro-quente", eu preciso saber que fulano estava vivo naquele momento, porque morto não come cachorro-quente. Eu não disse que ele estava vivo, mas eu sei que ele estava vivo. Como você consegue as informações que estão embutidas embaixo das informações que são ditas? Pelo exame do texto? O exame do texto jamais pode lhe dar isso. O texto só tem aquilo que ele tem. O objeto tem mais.
Quando o Mário Ferreira reconstituiu o sistema das categorias pitagóricas, segundo a ordem dos números, ele fez isto baseado em texto? Não tem texto! Ele pensou assim: para Pitágoras dizer isto, ele precisava também saber aquilo. A referência disso não está no texto; está no objeto do qual ele está falando. O grande problema não é o texto; é a realidade! O próprio Voegelin dizia: "Não estude Aristóteles ou Platão; estude a realidade." E se é para estudar a realidade, [02:30] o problema do conhecimento fidedigno dos textos vai para o segundo plano. Esse problema surgirá, mais dia ou menos dia surgirá, sem dúvida, mas esses problemas são minúsculos diante do conhecimento da realidade. Qual é a dificuldade em pegar uma frase de Aristóteles em grego e ver as várias traduções dela? Por exemplo, você pega o texto em grego e pega várias traduções. Você perceberá que cada uma teve uma nuance ligeiramente diferente, e você pode supor outras nunces embaixo, mas isso não é um grande problema. Você não precisa ser um grande conhecedor da língua para isso, basta conhecer um pouquinho. Com relação a uma língua morta, só é possível conhecer um pouquinho.
Aluno: Suas observações sobre a reconstrução da experiência humana dos filósofos tem a ver como o método de Stanislavski? (...)
Olavo: Sim.
Aluno: (...) Você menciona um pouco disto em textos do site. Você poderia falar um pouco mais sobre o uso e o método de Stanislavski para compreender e interpretar os textos filosóficos?
Olavo: Muito bem lembrado isto aqui. Stanislavski desenvolveu seu método, sobretudo, no esforço de representar textos de Anton Tchékhov. Tchékhov era um autor que buscava o realismo e a exatidão psicológicas. As situações psicológicas da vida real reproduzidas da maneira mais simples e direta. O efeito a ser obtido no palco tinha de ser um efeito de realismo, como se as coisas estivessem acontecendo mesmo. Stanislavski percebeu que ele não poderia obter esse realismo mediante a simples imitação exterior das atitudes dos personagens, mas que ele precisaria pegar, de certo modo, o nexo interior, a verdadeira motivação, o impulso verdadeiro que movia os personagens em tal e qual circunstância. Ele percebe que o único instrumento que ele tinha para apreender esses movimentos internos da alma dos personagens era sua própria memória afetiva. Quer dizer, eu tenho um conjunto de recordações que vem da minha experiência, e é através dele que eu, por analogia, capto as emoções dos outros, inclusive as das personagens do teatro. Mais ainda: os personagens do teatro vivem uma série de situações que você nunca viveu. Então, como é que eu posso me identificar com o sujeito, se ele tem uma experiência que eu nunca tive? O que fazia Stanislavski? Ele buscava o análogo (mais ou menos como no caso do trauma, que eu falei, do Dr. William Sargant). É um acontecimento diferente, mas que provoca o mesmo efeito psicológico. Isso que dizer que o constante reexame da sua memória afetiva, do seu repertório de experiências emocionais interiores, servia para Stanislavski como um dicionário, onde ele buscava os análogos das experiências dos personagens. Eu vi isto funcionar. Vi com Eugênio Kusnet, um grande ator russo que trabalhou no teatro de Stanislavski. (Eu não sei se ele teve aula direto com o Stanislavski, mas, se não teve, ele teve aula com alguém que foi da equipe do teatro que Stanislavski dirigia). Kusnet era o mais sério trabalhador que eu já vi no teatro brasileiro. O homem treinava e estudava o tempo todo, era de uma dedicação incrível. O teatro para ele era o mundo. Eu cheguei a ver, na peça de Górki, Os Pequenos Burgueses, a interpretação que o Kusnet fazia do personagem do pai de família, era uma coisa de você ficar arrepiado. Doía fisicamente. Eu falava: -- Olha aí o Stanislavski funcionando. E, no entanto, não havia duas pessoas mais diferentes do que aquele pai, pequeno burguês, limitado, cheio de preconceitos, e o Kusnet, que era um homem de uma grande amplitude. Como é que ele consegue se identificar com uma pessoa tão diferente dele? Como é que ele consegue virar essa pessoa? Mas ele fazia isso, e era justamente através da memória afetiva.
Nós também temos uma série de experiências análogas que podem ser usadas na interpretação dos filósofos. Por exemplo, "todos os seres humanos têm por natureza o desejo de conhecer". Está certo. Mas você tem por natureza o desejo de conhecer? Como é que isso apareceu em você? Que sinais você vê disso aí? Logo em seguida, na segunda frase da Metafísica: "Prova disto é a afeição que temos pelas percepções sensíveis, especialmente as da visão." Procure ver em você como o olhar é curioso -- ele não só recebe impressões; ele as busca. E você realmente gosta disso. Então, você tem uma série de experiências análogas. Você não precisa ter visto as mesmas coisas que Aristóteles. Você viu outras coisas, mas funciona como se fossem as mesmas. O que você está fazendo? É o método de Stanislavski aplicado à interpretação do texto filosófico: sempre puxar da sua experiência pessoal, da sua memória afetiva, do conjunto da sua memória, do conjunto da sua vida. Você tem de usar tudo o que você tiver, para cada frase do filósofo. Você tem de dar realidade àquilo que ele está falando. Não vai criticar o que ele está falando, não vai analisar -- não é isto, não é este o momento ainda. Por enquanto você vai só preencher de conteúdo; pode até botar mais conteúdo do que ele disse. Frequentemente, lendo Aristóteles, eu descobri que ele tinha mais razão do que ele mesmo imaginava, porque, puxando as minhas experiências, eu dizia: -- Mas claro que isto é assim!, e, no entanto, ele diz com aquela modéstia, como se não estivesse dizendo nada. Por exemplo, quantos quilômetros de papel não se gastaram discutindo aquela parte em que Aristóteles diz que "existe o homem que é escravo por natureza"? Sabe quando eu fui entender essa frase? Quando li a biografia do Michel Foucault, que dizia que ele ia aos clubes de sadomasoquismo para levar chicotadas. Ora, se existe um sujeito que tem prazer em ser chicoteado, humilhado, pisoteado etc., é porque o instinto da escravidão existe no ser humano. E por que ninguém entendeu isso antes? Por que as pessoas ficam indignadas diante de uma coisa tão real? Porque foram discutir aquilo como doutrina política, e não foram buscar na experiência real.
Vocês nunca viram um puxa-saco compulsivo? Um sicofanta profissional? Eu já vi tantos. O que é isto aí? É o escravo por natureza. Este impulso existe em nós em medidas diferentes. Tem pessoas que têm muito e tem pessoas que têm pouco. Mas que ele existe, existe. Tem pessoas nas quais esse impulso se torna dominante. Aqueles que vão todo dia ao clube de sadomasoquismo para levar chicotada, o que eles estão querendo? E, no entanto, o sujeito sai dali dizendo: "Eu sou um cidadão livre, eu decido minhas próprias coisas." Que palhaçada é essa? Isto e só da boca para fora, porque o que o cara gosta mesmo é de uma boa chicotada. Este é o exemplo que eu achei de escravo por natureza [02:40]: Michel Foucault. Se existe esse impulso no ser humano -- e pode existir em quantidades maiores ou menores --, certamente ele pode se tornar dominante em algumas pessoas. Qual é o problema de reconhecer que existe o escravo por natureza? Se não existisse o escravo por natureza, os ditadores jamais fariam sucesso.
Aluno: Boa noite professor, ajude-me aqui. O senhor entende a técnica filosófica como a conversão dos conceitos especulativos em experiência existencial efetiva. O treinamento para a percepção da experiência tem sido permanente nestas últimas aulas. Mas aqui me ocorre um problema: como possuo a certeza de que estou investigando fenômenos reais e não ficções ideológicas? Desculpe, professor, mas estou num mato sem cachorro.
Olavo: Muito bem, esse equívoco sempre pode acontecer. Mas, à medida que você for aprimorando a arte da confissão, com o tempo você aprenderá a distinguir o trato com meras palavras, ou meros símbolos trazidos pela tradição cultural, do trato com experiências reais. O teste é o seguinte: tudo quanto é ideológico é figura de linguagem disfarçada em conceito efetivo. O conceito efetivo deve poder se remeter a entidades do mundo real, ou pelo menos a estruturas que foram pensadas com a devida clareza (pois você pode fazer um conceito efetivo de uma coisa hipotética, é claro). As figuras de linguagem se caracterizam por ter várias camadas superpostas de significado e, conforme você troque uma camada de significado por outra, numa mesma frase, ela se torna verdadeira ou falsa. Por exemplo, vamos supor essas discussões que existem hoje em dia entre fé e ciência. Em todas estas discussões, é claro que "fé e ciência" são apenas uma figura de linguagem. Uma figura de linguagem não transmite nada do mundo real, mas apenas um amálgama confuso de impressões que você tem. Então, você não está na clave denominativa da linguagem, não está se referindo a objetos do mundo real, mas a meros amálgamas de sentimentos que o falante tem. Para passar deste amálgama de sentimentos para o mundo real, nós temos de decompor as várias camadas de significado que estão envolvidas nestas figuras de linguagem.
O que o sujeito quer dizer com "ciência"? Se eu tentar puxar de dentro da fala dele um conceito de ciência, eu não vou conseguir. Então eu tenho de decompor a história daquele conceito e ver como essas várias camadas foram se superpondo, gradativamente. Quando eu chego à terceira ou quarta camada, eu já vejo que tudo o que o indivíduo está falando é besteira, ou seja, aquilo não tem nada a ver com a realidade, é apenas uma coisa imaginária; ele está expressando um sentimento, é uma coisa que ele quer que seja assim, que ele gosta que seja assim. Se você pode fazer isso com a fala dos outros, você pode fazer com a sua também, ou seja, eu sei realmente do que eu estou falando, ou eu estou tomando figuras de linguagem por entidades reais? As figuras de linguagem são usadas quando você não sabe exatamente do que você está falando, e não pode designar o objeto propriamente dito, mas pode designar o conjunto de emoções que ele lhe infunde, então você se refere a ele indiretamente. Se você está falando nesta clave de figura de linguagem, o que você está dizendo não pode ser testado na dimensão da verdade ou falsidade. Você está fora da verdade ou falsidade, está na clave auto-expressiva apenas.
Portanto, [para evitar o equívoco a que se refere o aluno] as técnicas são duas: a confissão, que deve se aprimorar também, neste caso, num outro exercício (que eu também já mencionei, mas de que o Mário Chainho se esqueceu aqui), que é o da história de como certas histórias chegaram ao seu conhecimento. Por exemplo, como a palavra "ciência" chegou à sua mente? Às vezes é difícil reconstituir essa história, porque, quando você começa a fazer isso, você vê que geralmente você não sabe nada do objeto, mas sabe apenas o que as pessoas disseram a respeito. É que você jamais examinou a coisa por si mesmo. Nesse caso, vale a pena prosseguir a discussão? É claro que não. Vale a pena ter uma opinião? É claro que não. Vale a pena voltar atrás e ver se, na história do seu conhecimento daquela palavra, não ficou faltando alguma coisa.
Antes de ontem, eu estava fazendo uma gravação a respeito disso aí: quando surge a idéia de ciência --- episteme, entre os gregos ---, ela é a idéia de um conhecimento perfeitamente demonstrável e apodíctico. Apodíctico vem de apo, que é negação, e de deiktikós, que é destruir, ou seja, é um conhecimento indestrutível. Se não existe a possibilidade de um conhecimento indestrutível, então também não existe a possibilidade do conhecimento aproximativo ou relativo, por que vai se aproximar de quê? É a mesma coisa que dizer: se não existe a certeza absoluta, também não há certeza relativa, porque tudo o que é relativo é relativo em relação a alguma coisa. Mais ainda: o relativo ou o provável, se não puder ser quantificado, não significa nada. Quando se fala numa probabilidade não quantificável, que pode ser de 0% a 100% --- o que não significa nada ---, é flatus vocis. Quando as pessoas dizem que não existe certeza absoluta, você pode parar de conversar com o sujeito na mesma hora, porque, se não existe nenhuma certeza absoluta, também não existe nenhuma relativa, e não existe sequer a possibilidade de levantar questões. Frases como esta, "não há certezas absolutas*", são apenas flatus vocis. O sujeito está querendo expressar a idéia de que ele se sente mal quando alguma coisa é provada para ele como verdade, porque ele pode não querer que a coisa seja assim. Por exemplo, se eu chego ao banco e meu saldo bancário está no vermelho, eu não gosto que a coisa seja assim, então eu digo: não há certezas absolutas. Ou se você chega em casa e está lá, na cama, a sua mulher com o padeiro, então "não há certezas absolutas"*. E assim por diante. Você escolhe a incerteza quando a certeza é demasiado dolorosa ou humilhante. Você introduz o elemento de relativismo, mais ou menos como o Piu-piu: "Será que eu vi um gatinho?" O gato está lá, na cara dele, pronto para comê-lo, e ele fica na dúvida.
Quando os gregos expressaram a idéia do conhecimento apodíctico, eles não tinham a menor ilusão [02:50] de que fosse possível adquirir conhecimentos apodícticos a respeito de tudo, mas eles sabiam que a idéia do apodíctico é o elemento que dá consistência à idéia de conhecimento, ou seja, os conhecimentos se graduam desde o mais incerto até o absolutamente certo.
O que é buscar conhecimento sobre alguma coisa? Se você começa a buscar o conhecimento, é porque está na incerteza. Se não vai se aproximar da certeza, não vai obter conhecimento algum. A idéia de certeza, a idéia do absolutamente verdadeiro, a idéia do apodíctico, é a chave que dá unidade a todo o processo do conhecimento; ela constitui o ideal de ciência. Se não existisse essa noção do conhecimento apodíctico, seria impossível dar o primeiro passo no sentido da ciência demonstrativa a que visava Aristóteles.
Ao longo do tempo, você vê que esse ideal de ciência passa por diversas transformações, por diferentes versões. Qual é o critério admitido por esse negócio chamado "ciência moderna"? A ciência moderna não pode sequer apelar à idéia de causa; não pode sequer afirmar a existência do seu objeto. O critério de veracidade da ciência moderna é a possibilidade de, com base no que ela verificou, construir equipamentos que funcionem mais ou menos. Veja que muita água rolou desde o conhecimento apodíctico até o conhecimento que -- pode ser falso, mas que, provisoriamente -- nos permite construir alguns equipamentos. Então, quando o indivíduo opõe a ciência à fé, ou a ciência à religião, ou a ciência à crença, é claro que ele não sabe do que está falando. Se o seu único critério de veracidade é a possibilidade de certas aplicações técnicas, mas, ao mesmo tempo, sem poder afirmar que há um nexo de causa e efeito entre o princípio usado e a eficácia do equipamento construído, você não sabe nada. Você está em pleno mundo da crença. Esta é a substância da questão com que nós estamos lidando.
A idéia de causa, para a ciência moderna, não tem fundamento. A idéia de verdade objetiva também não tem. E, no entanto, na sua confrontação com a fé ou com a religião, a "ciência", ou melhor, o porta-voz da ciência, se alega o detentor das verdades objetivas e de nexos causais comprovados. É claro que tudo isso é uma fantasmagoria. Claro que essa discussão não faz o menor sentido. Esse é um exemplo de fala vazia. O sujeito está falando uma coisa, mas ele está usando uma figura de linguagem para dizer: -- Eu quero me sentir mais importante que você, eu quero sentir que sou uma alma iluminada e que você é um bárbaro primitivo cheio de crendice. Então enche a boca e fala em "ciência". Isso vale um peido verbal. Isso não é nada. Ele nem sabe o que está falando. Mas todos nós podemos fazer isso. Eu, quando leio coisas que escrevi vinte, trinta anos atrás, vejo que está cheio de peidos verbais ali. Eu não sou infalível. A gente vai vivendo e aprendendo.
Então, respondendo à pergunta [do aluno]: (i) confissão; (ii) distinção entre figuras de linguagem e nomes de coisas; (iii) história de como as idéias chegaram à sua cabeça. É por meio disso que você fica sabendo se está entrando nas ficções ideológicas, ou se está falando alguma coisa que você conhece. É uma espécie de anamnese*.***
Aluno: Tive um problema com a internet; só consegui entrar agora. Gostaria de saber se a sua colocação sobre o Mário Ferreira dos Santos se aplica à leitura dos livros introdutórios de Filosofia. (...) colocação sobre a última aula acerca da obra do Mário que não deve ser lida num primeiro instante.
Olavo: Eu acho as obras introdutórias do Mário as mais problemáticas, estão entre as piores dele. Por exemplo, em Filosofia e Cosmovisão, ele praticamente muda de livro lá pela metade. Começa com uma espécie de introdução escolar e enciclopédica da filosofia e, de repente, ele mete as teorias mais avançadas que ele acabou de descobrir. Então, você não sabe o que fazer! Eu acho muito problemático começar esse exercício com as obras do Mário. Se você quiser, faça, mas eu não garanto bom resultado.
Aluno: Li vários livros do Milan Kundera vários anos atrás e fiz exercícios de copiar o estilo dele sem saber que isso seria proposto aqui no COF. Gostaria de saber se há validade o exercício com esse autor.
Olavo: Sim, certamente. Lendo traduções você pode pegar a estrutura das frases, mas não a semântica. A estrutura das frases, o ritmo, tudo isso é muito importante. Você pode imitar a estrutura de uma língua estrangeira, mas a semântica de cada palavra você não poderá pegar. Seria melhor fazer esse exercício com escritores da sua própria língua.
Aluno: Professor, sobre essa questão do Nada, um depoimento: quando eu era criança, já tinha essa intuição, já fazia esse exercício que o senhor indicou. (...)
Olavo: Ah! Isso aí! Você pensa que eu também não fazia? Eu, quando era moleque, doente, ficava deitado durante dias e dias, fazia esse exercício, essas maluquices mentalmente. Hoje eu vejo o proveito que elas têm. Mas, na época, era apenas um meio de passar o tempo. Por exemplo, quando eu ficava deitado olhando para cima e pensava: "Vamos supor que o espaço onde eu transito, em vez de ser horizontal, fosse vertical. Como seria o movimento aqui?" E assim por diante.
Aluno: (...) Principalmente quando eu ia para a roça, observava, por exemplo, uma pedra, e ficava fascinado com o fato de que naquele instante eu era a única pessoa, entre milhões, que estava vendo aquela pedra e que isso não seria mudado.
Olavo: Claro! Tem um poema do Giuseppe Ungaretti, muito bonito, em que ele fala de um sujeito miserável, banal, medíocre, um mendigo que ele conheceu numa pensão infecta, e ele fala nos últimos versos: "e talvez só eu saiba que ele tenha existido". E no entanto o cara era real!
Aluno: (...) Aproveito e peço que o senhor fale um pouco sobre intuição. No livro Teoria Tridimensional do Direito, o Miguel Reale diz que a teoria começou de uma intuição da juventude. Acho que isso exemplifica bem o valor da intuição.
Olavo: A palavra intuição é usada de muitas maneiras diferentes, mas aquilo que você capta como intuição, você capta como presença imediata (eu prefiro usar sempre a palavra intuição no sentido filosófico clássico). O conhecimento intuitivo é o conhecimento direto; o conhecimento racional é o conhecimento através de conceitos. Eu acho que o Reale tem razão. Quando ele articula aqueles três fatores, que pra ele constituem a composição tridimensional do Direito -- fato, valor e norma --, ele o faz porque percebia, ao ler os vários teóricos do Direito, essas três coisas presentes sempre, só não tinha ainda os termos da equação prontos. Aparece para ele primeiro como um fato, e fatos são, evidentemente, de ordem intuitiva. Havia uma presença, aqueles três elementos estavam sempre presentes ali, apenas ninguém tinha reparado que eles sempre vinham juntos. Então, mais tarde, quando elabora a teoria, o que ele faz? Ele está extravasando o conteúdo de uma experiência intuitiva, e não criando uma estrutura teórica.
[03:00] Aluno: Estou tentando fazer o exercício da leitura analítica, mas logo percebi a dificuldade, pois realmente não consigo preencher com dados da experiência concreta o que lá se encontra como idéia abstrata. O fato de agora eu perceber isso já é um progresso?
Olavo: Claro que é um progresso. Você entendeu que não está entendendo. Você está entendendo a frase, mas não a coisa à qual a frase se refere. Se você só tem a frase, mas não tem o objeto, na verdade você não tem nada -- tem apenas um esquema lógico possível a ser preenchido com dados da realidade. Essa passagem da formulação abstrata para a experiência concreta, para a revivescência concreta, pode ser muito problemática. Você pode passar dias antes que a coisa lhe apareça. Eu só lhe peço o seguinte: não passe para a frase seguinte antes de conseguir. Se você levou três meses para passar do primeiro ou do segundo parágrafo, não há a menor importância, nós não estamos com pressa. Aos poucos, você vai acelerar isso. Se não apareceu, espere. Durma em cima do problema. Por exemplo, depois que você leu várias vezes a frase, ela pode aparecer em sonho, e, com o sonho, vem junto a imagem. Não adianta forçar. Espere, que os exemplos aparecerão. A hora que começar a aparecer você verá a riqueza de sugestões que está em cada uma dessas teses filosóficas.
Eu tenho certeza de que [isso funciona assim]. Isso aqui é como a história daquele professor de matemática, que chega ao teorema trezentos e vinte e cinco e diz: "Eu não sei a demonstração deste teorema aqui, mas eu nunca menti para vocês, então acreditem em mim. Este teorema é verdadeiro, passemos ao seguinte." O que eu vou dizer eu não posso provar já, mas creio que a experiência vai demonstrar: você pode ter certeza absoluta de que nenhum filósofo de verdade abre a boca para anunciar qualquer tese se aquilo não estiver carregado de experiência real. Isso é o que vai distinguir o filósofo da imitação de filósofo. E você vai verificar essa densidade da experiência real, porque ela está subentendida em outras coisas que o filósofo escreveu a respeito de coisas completamente diferentes. Por exemplo, aquilo que Aristóteles fala do desejo de conhecer e do prazer que nós temos nos nossos sentidos, especialmente o da visão, vai reaparecer quando ele estiver falando de animais -- o animal que enxerga mais, que enxerga menos etc. Eu não sei o que Aristóteles escreveu antes ou depois, e, às vezes, é impossível reconstituir a cronologia dos escritos, mas percebe-se que essa mesma coisa estava presente em dois momentos completamente diferentes. Quando ele diz que a visão é o mais teorético dos nossos sentidos --- como é que ele obteve isso? Por exemplo, nós temos a palavra cosmovisão, não temos a palavra cosmoaudição. Porque, se você apenas ouviu falar, você não conhece a coisa; mas se você viu, você conhece. A visão marca a presença, o som marca apenas uma evocação. Você não pode ver o que não está presente. Por outro lado, a estimulação visual é a mais sutil que existe, a mais delicada. Você não toca a superfície do objeto e ele também não toca você. Como é que Aristóteles fez isso? Ele viu nele mesmo! Então, você imagine a imensidão de auto-observações, quantas noites Aristóteles sonhou com isso, quantas vezes ele comparou a diferença entre ver alguma coisa e ouvir alguma coisa. Você tem um maço de experiências sensíveis ali. E, se ele fez isso, você também pode fazer. Se você não fizer, não adianta estudar os textos de Aristóteles. O texto de Aristóteles não fala do texto de Aristóteles, mas da visão, da audição, dos bichos etc.
Aluno: Professor, não seria possível disponibilizar algumas obras suas das quais não temos acesso? Cito, por exemplo, um texto que o senhor cita no Imbecil Coletivo, sobre o simbólico que está no cinema, e a biografia de Maomé.
Olavo: Eu acho todos esses escritos uma bela porcaria. Quando eu conseguir melhorará-los um pouquinho, talvez eu os publique.
Aluno: Caro professor Olavo, acho que na segunda aula o senhor disse que, para combater o cansaço e a fadiga mental, o melhor seria creatina e proteína. Também me recordo que o senhor disse que daria mais tarde umas dicas de alimentos.
Olavo: Vou dar duas dicas de alimentos que eu tirei de um livro do Robert Tocquet, Cultivez votre Cerveau (Cultive seu cérebro). Acho que há uma tradução brasileira. 1) Oleaginosas --- amendoim, castanhas, essas coisas todas; 2) Certos tipos de queijos --- queijos mais fortes, tipo camembert ou limburger. Comam isso e lhes fará muito bem. Cereais também, todos os cereais, mas especialmente as oleaginosas.
Aluno: Com relação a essa dificuldade de concentração e o cansaço físico e mental, pode dar alguma dica?
Olavo: Eu vou dar uma dica. Com o chamado progresso da tecnologia, o número de aparelhos elétricos que estão ligados ao mesmo tempo é uma coisa terrível. Esta sala aqui está atravessada de ondas para tudo quanto é lado. Isso não existia cem anos atrás. Tudo isso desgasta o nosso corpo. A quantidade de alimentos que as pessoas comiam antes não basta, então surgem providencialmente os suplementos alimentares. Consumam todos, se não vocês não vão durar. "Comer bem" não adianta mais. Por exemplo, para você completar uma quantidade de vitamina C que tem em uma pastilhinha pequena, você precisa comer trinta e seis laranjas. Se o sujeito está com gripe, você não vai fazê-lo comer trinta e seis laranjas, é uma crueldade, dê logo um comprimidinho de vitamina C. Suplementos alimentares são a salvação da humanidade.
Aluno: O modelo circular das quatro funções do ego de Szondi pode ser usado como um guia para a educação intelectual? Penso que pode me servir de modelo para o foco da minha consciência, evitando que ela se cristalize em qualquer de suas etapas.
Olavo: Eu acho que aquele modelo do palco giratório de Szondi é uma coisa altamente inspiradora. [3:10] Eu não sei onde você leu isso, talvez tenha sido em um livro traduzido pelo Dr. Müller --- Introdução à Psicologia do Destino ---,* *mas aquele modelo pode servir de inspiração permanente. Na pergunta que foi feita anteriormente, sobre como saber se estamos na realidade e não delirando, um dos testes é este: você estar permanentemente girando entre as várias funções. Parou o palco, então você está doente, está delirando. Por exemplo, na recusa de ver uma mesma coisa por vários aspectos contraditórios, quando são justamente os aspectos contraditórios que dão a densidade da coisa. Tudo na vida humana se constitui de drama, contradição, tensão etc. Se não há tensão, contradição, você não está falando de realidade, mas de esquemas mentais. Olhe sempre qualquer problema, qualquer questão, pelo que ela tiver de mais contraditório e mais difícil; não tenha medo da contradição. A pior das coisas que podem acontecer é você não saber a solução do problema; então você carrega o problema.
Geralmente, as soluções que se expressam em fórmulas simples são ideológicas. Por exemplo, uma palavra que as pessoas usam muito: direito. Uma coisa que eu li da Simone Weil há muitos anos, para mim, foi como tirar escamas dos olhos: o que é você ter um direito, senão alguém ter uma obrigação para com você? Por exemplo, se eu tenho direito à alimentação, mas ninguém tem a obrigação de me alimentar, então eu não tenho direito nenhum. A substância do direito é a obrigação. O direito é o reflexo passivo de uma obrigação. Quando as pessoas falam da ampliação dos direitos, elas estão aumentando as obrigações. Olhe que coisa terrível. Quanto mais direitos houver, mais controle terá de haver sobre as obrigações. Então, cada vez que me oferecem um direito eu já saio correndo, porque eu sei o que isso vai custar. Essa é uma noção que traz em si o seu aspecto tensional. O que é um direito? O direito é a tensão entre o titular de uma obrigação e aquele para com o qual ele tem a obrigação. Isso é a realidade do direito. No entanto, quando as pessoas falam em direito, elas pensam em um negócio escrito em um papel, e elas acham que isso é bom. Está claro que isso é um abstratismo.
Quando você aprende a girar entre as várias funções, você também aprende a olhar as coisas por vários lados. Uma coisa que eu acho muito estranha, sinal da miséria intelectual brasileira, é quando eu faço algumas afirmações e aparece algum sujeito levantando a afirmação contrária e imaginando, acreditando piamente, que eu jamais pensei naquilo. Olha, eu nunca escrevi uma frase sem que eu tivesse pensado a sua contrária -- nunca! (Quer dizer, desde que eu virei gente grande; na adolescência, eu posso ter escrito um monte de certezas unilaterais.) Se eu não estou consciente da tensão dialética envolvida naquilo que eu estou dizendo, eu não digo. Como o brasileiro jamais imagina que possa existir um sujeito mais inteligente que ele -- quando descobre que existe, ele fica aterrorizado e foge --, então toda hora aparece um camarada me dando lição de coisa que eu já sabia cinqüenta anos atrás. Essas pessoas estão fazendo um papel ridículo. Quando você for ler um filósofo, saiba que você está lidando com um homem muito inteligente, muito sério, muito estudioso: um especialista em problemas, e não em saltar direto para as conclusões. Qualquer filósofo que tratou de qualquer coisa geralmente passou por todas as etapas de evolução do problema. Ele sabe a complexidade da coisa. Por isso eu disse que a primeira coisa que você tem de fazer com o filósofo é absorver passivamente o que ele está dizendo. Mais tarde você vai discutir; só quando você tiver a mesma amplitude de consciência que ele tem a respeito daquele problema. Do contrário, você está discutindo apenas fórmulas verbais, sem sequer saber com quem você está falando.
Aluno: Não sei se estas questões deverão ser debatidas em aula ou por correspondência individual Em primeiro lugar, obrigado pelo que o senhor tem feito, parabéns a todos do Seminário de Filosofia. Eu estava no começo de um mestrado em sociologia quando começaram as aulas do Seminário. Baseado no conteúdo das aulas decidi alterar o meu tema de dissertação para concentrar-me no que me parecia essencial. Tenho interesse particular pelo tema da vocação, mas também pelo pensamento ibérico. Então, pensei em estudar a obra de Ortega y Gasset (...)
*
*Olavo: Muito bem, porque a idéia de vocação na filosofia de Ortega y Gasset é fundamental. Pode-se dizer que tudo o que Ortega y Gasset fez na vida, ele tirou da idéia do dharma. O dharma é o oposto do kharma. O kharma são os efeitos acumulados das suas ações e ações alheias que pesam sobre você, e o dharma é o dever no sentido mais elevado. Eu li muito Ortega y Gasset quando eu era novo. Toda a filosofia dele se estrutura nesta idéia e na idéia da nobreza, como a passagem do kharma para o dharma --- a busca da verdadeira obrigação. É em função disso que ele define o homem-massa. Há um monte de indivíduos que dizem: "Homem-massa... então ele despreza os proletários etc." Quer dizer, essas pessoas acham que estão lidando com um idiota, um idiota como eles, que, ao escrever, expressam apenas os seus preconceitos, os seus próprios defeitos. Mas não, quando você está lidando com um filósofo, você está indo com a farinha e o sujeito já voltou com o bolo. Não é nem uma questão de respeito, é uma questão de realismo. E olha que eu não estou falando de pessoas comuns; há estudiosos que falam isso. Arnold Hauser disse que Ortega y Gasset é um pensador fascista, que desprezava as massas etc. Sabe, V.T.N.C!
Aluno: Então, pensei em estudar a obra de Ortega y Gasset como ponto de partida, por ser um autor de grande importância pessoal para mim e também por tratar do meu tema de interesse. O senhor acha recomendável começar pelo estudo de um autor específico?
Olavo: Sim, sem dúvida. E Ortega y Gasset pode servir para duas coisas. Se você imitar o estilo dele, você estará imitando o estilo do maior prosador da língua espanhola. Mas leia em espanhol, e não as traduções. As traduções brasileiras, por mais caprichadas que sejam, não dá. Graças a Deus, o espanhol é uma língua parecida e dá para ler direto. Há dois textos dele que eu recomendo: "Estética del Tranvía" (tranvía é bonde) e "Conversación en el 'golf' o la idea del Dharma". São escritos do começo da carreira dele, no tempo daqueles artigos da série El Espectador, onde ele ainda não tinha formulado as suas idéias como doutrinas filosóficas, eram mais impressões literárias, mas é dali que vai sair, mais tarde, a elaboração dele da teoria da vida humana. Sugiro que você leia inicialmente esses dois textos, que são textos-chave para compreensão do Ortega y Gasset. Ele não é difícil de compreender, de maneira alguma.
Aluno: Uma das dificuldades que tenho com a sua teoria dos quatro discursos é nem sempre conseguir classificar um texto ou fala com a qual me deparo em um dos quatro níveis. Por exemplo, uma notícia de jornal é o que naquela classificação?
Olavo: A teoria dos quatro discursos não serve para classificar todos os textos. Elas são quatro graus de credibilidade. [3:20] Você não pode pegar textos diretos -- uma notícia de jornal, de canal de televisão etc. -- e classificar nos quatro discursos diretamente. Você tem de transformá-lo em uma tentativa de persuasão. Qualquer fala possui elementos persuasivos dentro dela. Qual é a base da persuasão? A partir disso você classifica, mas não o texto diretamente. As razões de credibilidade que o sujeito apresenta estão classificadas em uma das quatro. Por exemplo, em uma notícia de jornal, um sujeito pode sugerir que alguma coisa é meramente possível: "Será que Obama nasceu no Quênia?" Pode ser que sim, pode ser que não. Então, o nível é de especulação poética. Depois, "Dizem que Obama nasceu no Quênia." Passou para a verossimilhança. E assim por diante. Mas não é a notícia, o texto mesmo que tem isso; é apenas o nível de credibilidade que está subentendido nele. Quanto ele quer persuadir você daquilo, e quais são os fundamentos de credibilidade que ele fornece? Aí sim você classifica nos quatro discursos.
Aluno: Professor Olavo, em primeiro lugar, agradeço a oportunidade que estou tendo, com o senhor, de conhecer o outro lado da vida, digamos assim. Estou sendo obrigado a rever posições ideológicas até então inabaláveis. Mudando de assunto: com relação ao exercício da obra de autores literários, gostaria de saber a sua opinião sobre o autor e o livro escolhido [por mim]. O autor escolhido foi Machado de Assis, e o título do livro é Machado de Assis: Trinta Melhores Contos. (...) Por tratar de um livro de contos de Machado de Assis, escolhidos por autoridades na literatura daquela época, não sei se esse é o melhor caminho (...)
Olavo: Eu conheço essa coletânea. Não há muita dúvida quanto aos que são os melhores contos de Machado de Assis. Qualquer antologia terá Noite de Almirante, Uns Braços, Missa do Galo... Existe um grande consenso quanto aos melhores contos. Não há nenhum problema em você começar por esse livro. Se você pretende fazer o exercício de imitar o Machado de Assis, então pode ler qualquer texto dele. Porém, eu sugiro os textos da maturidade, porque, no meio da vida, Machado de Assis teve um estalo na cabeça e aí que ele acertou a mão. O livro que marca essa passagem é Memórias Póstumas de Brás Cubas, que é diferente de tudo o que ele escreveu antes e dali para diante ele foi consolidando o seu estilo.
Aluno: Faço uma leitura cronológica ou aleatória?
Olavo: Depende. Se for para o exercício de imitação, qualquer leitura (com essa ressalva). Mas, se for para um estudo da evolução do Machado de Assis, você terá de ter em vista a cronologia. Mas isso é para depois, eu acho que não precisa começar a ler as obras de Machado de Assis em ordem cronológica.
Aluno: Professor, o senhor já comentou sobre a velocidade na qual o senhor realiza certos tipos de leitura. Por exemplo, leituras informativas são mais rápidas. Para nós, alunos do curso, o que o senhor recomenda nesse quesito para a leitura de obras de ficção, levando em conta que o objetivo é o enriquecimento do imaginário?
Olavo: Você pode ler devagar, a não ser que a leitura o arraste. Eu levei dois anos para ler A Montanha Mágica, do Thomas Mann. É um livro bastante interessante, mas eu estava lendo e marcando todas as metáforas corporais, as referências anatômicas que ele usou, uma por uma, e fazendo uma lista, por isso levou muito tempo. Há outras coisas que você lê na hora. Há livros que você não quer que termine. Eu lembro que, quando eu estava lendo o diário do Herberto Sales, eu não queria que terminasse, então eu lia devagarzinho de propósito, porque estava muito gostoso. Quando eu li a última das histórias do Sherlock Holmes, eu fiquei tão triste -- "Agora acabou, não tem mais..." Eu queria que o sujeito vivesse mais, para inventar outras histórias. Você pode ler devagar para prolongar os prazeres.
Aluno: Eu gostaria de saber sua opinião sobre os escritores Padre Vieira e Pedro Nava.
Olavo: Eu li muito pouca coisa do Pedro Nava. Quanto ao Padre Vieira, pode ser de muito interesse para os estudos milenaristas, a teoria revolucionária que eu estou estudando. O Padre Vieira era um milenarista quatro cruzes. Não são autores pelos quais eu tenha interesse especial, mas, no caso do Padre Vieira, ninguém pode negar que é um modelo de língua portuguesa.
Aluno: E, no cinema, as obras de Manuel de Oliveira e Ingmar Bergman.
Olavo: O Bergman fez uma infinidade de filmes muitíssimo importantes. Eu acho que os da última fase se tornaram demasiados presunçosos e falsos intelectualmente, ele começou a exagerar no gnosticismo. Por exemplo, Fanny e Alexander eu já não gosto. Mas os primeiros, e os da fase intermediária, Noites de Circo, A Fonte da Donzela, são filmes maravilhosos. E do Manuel de Oliveira eu não assisti nenhum filme. Dizem que é muito bom.
Aluno: É possível articular a estrutura do pensamento milenarista com os modernos Estados democráticos de direito, fundados no chamado Estado de bem-estar social? (...)
*
*Olavo: Sem sombra de dúvida.
Aluno: (...) Se os valores desse Estado radicam nas suas próprias constituições, pressupondo assim a sua perpetuidade, estaria suprindo o perigo de perda do eixo transcendente?
Olavo: Não, de maneira alguma. Porque essa coisa da constituição, mesmo nos EUA, que é o país que tem a constituição mais estável do mundo, existem forças tremendas tentando miná-la e transformá-la em outra coisa. Os caras inventaram técnicas de interpretação constitucional que fazem o texto dizer o contrário do que estava dizendo. E tem toda uma disputa entre a chamada escola construtivista, que são aqueles que se apegam ao sentido originário, e os que dizem que não existe nenhum sentido originário, que é impossível você saber a intenção dos legisladores. Bom, se fosse impossível saber, você jamais teria entendido uma linha da constituição. Ademais, o que vai determinar o rumo dos Estados não é a sua constituição, mas a ação real dos grupos humanos a cada geração. Dentro de um mesmo texto constitucional é possível introduzir novos elementos revolucionários ou milenaristas através de novas interpretações. Eu acho que esse negócio da mentalidade revolucionária --- ela existe desde há quatro séculos, mais ou menos --- invadiu todos os setores da vida. A idéia de progresso, a idéia de que estamos indo em direção ao melhor e de que todos nós temos a obrigação de lutar por um mundo melhor, essa idéia transforma cada um em um revolucionário em potencial. O que precisa é realmente uma mudança total de perspectiva. Eu acho que esse assunto é um pouco complicado para a gente lidar aqui, eu prefiro tratar disso nas gravações que eu estou fazendo sobre a mentalidade revolucionária.
Não quero matar as pessoas, então vão sobrar umas perguntas para a próxima aula, que acontecerá normalmente no sábado que vem. [3:30] Um último aviso: o curso do Napoleão Mendes de Almeida acabou há uns quatro ou cinco anos, mas um aluno, chamado Luiz de Carvalho (que não é o Gugu), fez um site [http://mestrenapoleao.blogspot.com] com as respostas dos exercícios tal como ele as fez. Isso aí eu acho uma coisa muito boa.
Muito obrigado a todos e até à semana que vem!
Transcrição realizada por: Eduardo A. Aguiar, Ronald Pinheiro, Rodrigo Fernandez Peret Diniz, José Correa de Melo, José Manoel Domingues, Rogério Perego, Rafael Nogueira, Daniel Berça.
Revisão realizada por: Marcela Andrade
Em: 07 de março de 2010