Curso Online de Filosofia
[Olavo de Carvalho]{.smallcaps}
Aula 08
23 de maio de 2009
[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.
Hoje eu gostaria de sintetizar o que nós falamos nas últimas aulas, de pôr um pouco de ordem e traçar algumas linhas que devem servir de orientação prática para vocês não só no restante do curso, mas idealmente para o restante da sua vida intelectual.
A formação filosófica tal como eu a concebi --- especificamente para as circunstâncias da vida brasileira atual, isto é, para as condições que eu sei que vocês vivem e não para um aluno abstrato, universal --- se compõe de uma série de blocos. Cada um deles tem de ser desenvolvido independentemente, com suas próprias exigências, formando um conjunto. Você deve estar continuamente circulando entre esses blocos e articulando o conjunto que formará, no fim das contas, a sua própria personalidade intelectual e filósofa.
No fundo, essas indicações --- como bem assinalou o Júlio Lemos em comentário ao meu artigo "Quem é filósofo e quem não é" --- servem não só para os filósofos especificamente, mas para a vida intelectual em geral. De certo modo, nesse sentido, a filosofia constitui o modelo da vida intelectual. Todos aqueles que leram o livro do padre Sertillanges, A Vida Intelectual, devem perceber isso imediatamente. Somente um filósofo poderia ter compreendido a natureza da vida intelectual daquela maneira, unificando desde os fundamentos mais gerais e teóricos até as indicações práticas mais imediatas, mais concretas.
O primeiro desses blocos é aquele ao qual nós temos dedicado mais atenção nas primeiras aulas, que nós vamos chamar, por falta de nome melhor, de "o adestramento do imaginário". Sem isto, nada se pode fazer. O meio essencial para o adestramento do imaginário é precisamente a longa e constante convivência com a literatura de ficção universal: poesia, romance, epopéia, teatro etc., incluindo, evidentemente, o cinema. Isto nos serve para aprendermos a nos identificar com pessoas que são diferentes de nós, mas que sempre têm algum ponto de contato --- não existe o totalmente heterogêneo. Se nós conseguimos nos colocar na posição de Hamlet, Antígona ou de Ulisses, significa que eles têm algo em comum conosco, por mais diferentes que sejam sobre inúmeros aspectos (culturais, históricos etc.).
É somente a longa prática da literatura de ficção que nos habilita a "criar" esses personagens imaginários. Na verdade nós não estamos criando, e também não estamos copiando. Ler literatura de ficção é como se fosse um sonho acordado dirigido: você recebe uma pauta de uma série de atividades imaginárias que você vai desenvolver. É o seu imaginário que vai produzir tudo isso de acordo com as indicações que foram dadas pelo autor da narrativa. Na medida em que se desenvolve a narrativa, você vai dirigindo o seu sonho para esta ou aquela direção, incorporando novas possibilidades, novos dramas, novos conflitos, novas tensões etc.
Isso também o ajuda na vida cotidiana, na sua convivência direta com as pessoas, pois é importante você ser capaz de imaginar o que elas estão passando. É somente a imaginação que nos permite compreender o próximo --- isso é muito importante. É muito fácil falar "Ame ao próximo como a ti mesmo". Aquela pergunta do Gurdjieff: "Como é que nós podemos amar os nossos inimigos se não amamos nem os nossos amigos?" é uma pergunta cínica, mas muito pertinente. No que consiste este "amar ao próximo"? Consiste, em primeiro lugar, em tentar compreendê-lo como ele mesmo se compreende, e não julgá-lo desde fora, desde um estereótipo ou por um padrão qualquer que pode não se aplicar ao caso.
Tudo consiste em você ir do abstrato para o concreto, do genérico para o particular e o individual. Claro que o individual nunca pode se desligar do genérico, senão ele se torna absolutamente ininteligível --- ele pode ser percebido, mas não inteligido. Por outro lado, o genérico, o abstrato, o universal, é sempre o padrão pelo qual nós julgamos as coisas. Se o padrão universal não está adequado à situação concreta e individual, então você está cometendo uma injustiça, você está deslocado em relação à realidade, julgando de acordo com uma lei que não é pertinente ao caso.
Esta arte de compreender as pessoas depende inteiramente da amplitude do seu imaginário, da sua capacidade de vivenciar imaginativamente situações que você nunca viveu pessoalmente: dramas que nunca teve, sofrimentos de que nunca padeceu, alegrias que nunca desfrutou, esperanças que jamais compartilhou, e assim por diante. É só assim que você vai incorporando esses vários personagens. Quanto mais personagens você tiver na cabeça, mais facilmente você os combinará para compreender um novo personagem, seja ele adquirido de uma leitura de ficção, sejam pessoas conhecidas na vida real.
A leitura da ficção tem a vantagem de nos fornecer somente aqueles episódios que são pertinentes a um drama em particular, ao passo que na vida real nós vivemos uma pluralidade de dramas inconexos. O sujeito pode ter um problema na família, outro problema dentro do emprego, um terceiro conflito com o vizinho, e assim por diante. Esses vários conflitos não vêm das mesmas causas e eles são perfeitamente inconexos. Como os conflitos que vêm do passado e que já estão consolidados dentro de nós, mais aqueles que nos vêm de uma situação nova se acumulam, nós freqüentemente confundimos uns com os outros. Tendemos sempre a interpretar a situação nova à luz das situações já vividas, quando às vezes isso não é inteiramente adequado.
Em suma, nós vivemos dentro de uma espécie de malha de conflitos diferentes e heterogêneos que não tem unidade em si mesma e que só adquire unidade à luz do seu projeto biográfico. São os seus objetivos na vida que vão articular, de certo modo, retroativamente, as várias significações dos vários conflitos e situações que você viveu e vive. Essas várias significações passam a adquirir um sentido para você em face do seu objetivo.
Na literatura de ficção, como é absolutamente impossível absorver toda a densidade da trama desses conflitos simultâneos, o ficcionista seleciona um ou dois conflitos mais ou menos articulados e os coloca ali. Às vezes há uma tentativa de você articular conflitos heterogêneos na ficção, como, por exemplo, nesses grandes panoramas ficcionais onde há uma multiplicidade de personagens inconexos, que se desconhecem e vivem num mesmo lugar ou atravessam a mesma situação histórica. Um exemplo é o livro O Espelho Partido de Marques Rebelo, uma obra que ele não terminou. É uma obra magistral que ele pretendia fazer em sete volumes, mas só escreveu três porque morreu. São vários personagens diferentes [0:10] cujas vidas vão se entre-cruzando. É a maneira que o ficcionista tem para representar, de algum modo, a densidade dos conflitos heterogêneos, dentro de cuja malha nós vivemos. Mas em geral não é isso o que acontece. Em geral, se destaca um ou dois conflitos que são ligados e que são representados de maneira intensificada, de modo que eles adquirem uma nitidez que na vida real eles não teriam. Como, por exemplo, o drama de Hamlet, de vingar-se ou não de uma ofensa cometida. Freqüentemente nós vivemos esta situação, mas nós a vivemos misturada com mil outras situações. Nós não somos capazes de pensar no mesmo conflito 24 horas por dia, porque nós temos outros.
A ficção nos dá uma galeria de situações dramáticas. Não vamos chamá-las de conflitos porque nem sempre a natureza da coisa é conflituosa, mas são situações dramáticas que na vida real aparecem tão entre-mescladas que você não consegue separar e descrever uma em particular. Aliás, esse é um dos grandes problemas da humanidade: os seus problemas vêm todos juntos e você não consegue examinar um por um. É que nem aquela velhinha que chegou lá no professor de artes marciais para fazer massagem. Ele perguntou: "diga onde e quando dói", ao que ela respondeu: "dói tudo, sempre". Ou seja, assim fica impossível de tratar um problema tão onipresente e tão constante. Em geral, as pessoas ficam desesperadas porque "dói tudo, sempre", elas sentem todos os conflitos ao mesmo tempo e, portanto, não conseguem discernir um por um, não conseguem dar uma forma inteligível ao seu sofrimento.
Através da literatura de ficção nós aprendemos a incorporar esses vários personagens e situações, e aprimoramos a nossa capacidade de nos identificar com o próximo e compreendê-lo como se fosse nós mesmos --- dito de outro modo, tornar uma pessoa que era diferente em efetivamente um próximo. Essa habilidade nos servirá muito quando nós sairmos da esfera dos dramas concretos, reais, vividos, para os dramas cognitivos, os dramas intelectuais, as grandes dificuldades cognitivas da humanidade que foram enfrentadas por diferentes filósofos em diferentes circunstâncias e com diferentes desempenhos em cada caso.
Nós temos de aprender a incorporar esses dramas intelectuais vividos por eles como se eles fossem personagens do nosso mundo imaginário, do nosso teatrinho mental. É só assim que você vai compreendê-los. Você não vai se identificar com eles no sentido de "ser" eles, você vai se identificar como você se identifica com um personagem de teatro, não ao ponto de você acreditar que tem o mesmo problema dele. Como o sujeito que assiste Otelo, chega em casa e mata a mulher. Não é porque o Otelo está sendo chifrado que você também está --- graças a Deus, isso não acontece com a maior parte das pessoas (se bem que às vezes acontece). Você vivencia durante duas horas ali no teatro aquele drama que não está acontecendo para você, mas que poderia estar, lembrando sempre a definição de Aristóteles de que a ficção não nos mostra o que aconteceu, mas o que poderia acontecer ou poderia ter acontecido. Então você vivencia aquilo não como uma realidade, mas como uma possibilidade real concreta, à qual você está aberto, como todos os seres humanos.
As dificuldades, as dúvidas, a luta contra a opacidade do fenômeno, a tentativa de penetrar numa fenomenalidade opaca para conseguir captar algo de inteligível ali é o drama do conhecimento que foi vivenciado por todos os filósofos ao longo do tempo. Não é um drama sangrento, mas às vezes são dramas muito mais importantes e decisivos para o destino humano em geral do que, digamos, o problema do ciúme, ou o problema da inveja, como no caso do Raskólnikov, de Crime e Castigo, que é um sujeito que acha "eu sou um sujeito tão inteligente, eu sou um gênio, por que eu não tenho dinheiro? Por que essa velhinha inútil tem o dinheiro do qual preciso?".
Todo mundo já teve algum problema parecido com o de Hamlet, Otelo ou Raskólnikov. Direta ou indiretamente, todo mundo já viveu isso. Do mesmo modo, todos os dramas do conhecimento vivenciados pelos filósofos ao longo do tempo são possibilidades reais e permanentes que podem retornar a qualquer momento. Eles retornam, evidentemente, dentro de outra circunstância, outra situação histórica, outro contexto cultural, mas, estruturalmente, podem permanecer os mesmos.
Em primeira instância, você nunca deve ler livros de filosofia como teses com as quais você vai concordar ou discordar. Em primeiro lugar você tem de entender que aquilo é uma experiência cognitiva, uma experiência intelectual humana que foi vivenciada por pessoas reais, numa outra circunstância, e que você está tentando revivenciar. Você pode até depois achar uma solução diferente, mas se você não se imbuiu do problema, se você não se deixou, por assim dizer, embeber-se do problema, se você não se identificou com o problema, você não vai nem entender do que o sujeito está falando. A primeira coisa que você deve buscar numa leitura dos livros de filosofia é esta abertura, entendendo-os não como verdades ou mentiras que você vai proclamar ou impugnar, mas como expressões de uma busca humana, do esforço humano, expressões de uma experiência humana. Se você não aprender primeiro a absorver os dramas concretos, humanos, muito menos você vai compreender os dramas cognitivos. Por isso é que eu digo: primeiro, muita literatura de ficção!
Você tem de ler essa literatura não como literatura, ou seja, não como as lê um estudante de Letras, não como objetos de estudos, mas simplesmente como documentos da vida humana. [Para esse fim], as obras não interessam tanto em si mesmas, enquanto textos, mas enquanto depoimentos. Encará-las como textos, como estruturas etc., é outro problema, que pode ser tratado separadamente mais tarde e que também faz parte da formação intelectual, mas não num primeiro momento. Este é o primeiro bloco: o adestramento do imaginário.
O adestramento do imaginário pode prosseguir num estudo mais aprofundado da psicologia --- também entendida não como disciplina teorética, como disciplina filosófica, como disciplina científica em si mesma, mas como elemento auxiliar para a sua compreensão dos seres humanos reais, seja nos seus dramas existenciais, seja nos seus conflitos de ordem cognitiva. Mais tarde nós vamos ver um pouco disto aí também.
O segundo bloco, que vem automaticamente com o primeiro, é o seu adestramento na compreensão e uso da linguagem. Na mesma medida em que você vai captando as sutilezas e as nuances das várias situações humanas vivenciadas, você também capta as sutilezas e as nuances da linguagem, e não há limite às possibilidades de aperfeiçoamento, de ampliação e de fortalecimento nisso. Claro que, conforme você for lendo essas obras em traduções na sua própria língua ou no original, você pode ter algumas dificuldades de ordem técnica, então você vai ter alguns problemas especificamente linguísticos a resolver. São problemas técnicos, mas não é para dar muita atenção a eles, é para resolver rapidamente e passar adiante.
Esta ampliação da linguagem deve se voltar em primeiro lugar para aquilo que Benedetto Croce considerava a função imediata da obra literária, que é a expressão da experiência concreta.
Passar para um segundo andar, da linguagem abstrata da filosofia e das ciências, quando você [ainda] não é capaz [0:20] de ter alguma expressividade na maneira de nomear e descrever a experiência concreta, pode lhe causar uma lesão intelectual da qual você nunca mais se recupere. Tudo aquilo que está registrado na linguagem genérica da filosofia corresponde a experiências intelectuais e existenciais concretas e, se você não é capaz de refazê-las imaginativamente, você jamais vai saber do que o sujeito está falando.
Por exemplo, se você procurar num dicionário de filosofia um termo qualquer que descreva uma atitude ou uma corrente filosófica, como "ceticismo" ou "gnosticismo", você vai encontrar uma definição esquemática do que são essas escolas ou correntes ou atitudes filosóficas. Porém, essas escolas ou correntes não apareceram como posições filosóficas prontas, mas como resultados, como a expressão de dramas intelectuais cognitivos longamente vividos. Há toda uma situação humana por baixo daquilo. Se quando você ouve ou lê esta palavra, a evocação que você faz é simplesmente a de um conceito abstrato e não de todo o drama apreendido compactamente num relance, então você não sabe do que está falando.
Tendo isto em conta, quando estamos lendo um livro ou ouvindo um sujeito falar de filosofia, nós podemos freqüentemente saber se estamos lidando com um charlatão ou com alguém que sabe do que está falando. O sujeito que lida somente com os conceitos abstratos sem ter o lastro experiencial direto é um imitador, um papagaio. Ele lida somente com o universo de palavras para uso acadêmico, mas não compreende as realidades que estão ali envolvidas. É como uma criança que ouve uma nova palavra e a imita, sem saber exatamente qual é o contexto no qual aquilo cabe ou não cabe.
A pessoa totalmente leiga e despreparada em filosofia às vezes não percebe a diferença, porque o imitador pode usar todos os termos certinhos, pode fazer raciocínios muito bem arrumadinhos. Só com um pouco de experiência é que se percebe se o sujeito tem aquele lastro imaginativo que coloca diante dele a realidade dos dramas intelectuais ali vividos.
Este aprimoramento da linguagem é o irmão siamês do adestramento do imaginário. As duas coisas têm que vir juntas.
Então surgem as perguntas: --- Para que você está fazendo tudo isso? Qual é o seu objetivo? Você está lendo tudo isso só porque você tem uma curiosidade? É porque você tem um projeto profissional a atender? Você está fazendo tudo isso porque você quer fazer uma tese de mestrado? Enfim: --- Qual é o seu objetivo?
Nisso entra o terceiro bloco que se anuncia como o exercício que nós fizemos logo no começo, o exercício do necrológio. Quem você quer ser? Qual é o objetivo da sua vida? Para que você está se esforçando e onde entram, dentro desse seu plano, todos esses elementos que nós estamos colhendo nessa formação literária e filosófica?
O seu adestramento para a vida intelectual é, no fim das contas, uma arma ou um instrumento para um objetivo a ser realizado existencialmente, na sua vida efetiva. Não confunda vida efetiva com vida profissional. Você não pode esquecer que vida profissional é uma coisa abstrativa, ela é um aspecto da sua vida e não a vida concreta. A vida profissional é apenas um papel que você desempenha em certos lugares e circunstâncias, perante certas pessoas, mas que você não pode desempenhar em outros lugares, perante outras pessoas. Por exemplo, se você é professor de filosofia, você desempenha essa atividade perante seus alunos etc.; mas você não pode desempenhá-la perante o caixa do supermercado, porque ele não vai entender a situação. Se você tem uma dívida e o sujeito vem cobrar a dívida na sua porta, não se trata de você discutir filosofia com ele, é uma situação totalmente diferente.
A vida profissional não é a sua vida real, embora ela seja hoje em dia quase um fetiche, uma coisa que absorve as pessoas ao ponto de elas imaginarem que aquilo é tudo. Ela é apenas um componente de uma vida real, um componente abstrativo dentro de um conjunto. No exercício do necrológio eu insisti que a narrativa fosse feita com relação a uma pessoa real e não apenas a uma carreira. No começo eu fazia como se fosse um necrológio de jornal, com um repórter escrevendo. Pratiquei isso durante algum tempo. Funcionava, é claro, porém o fato de ser um repórter escrevendo sobre um personagem público já criava um viés e um critério seletivo, onde somente os fatos da vida profissional e pública interessavam, e não era esse o objetivo do exercício. Por isso é que eu mudei a formulação do exercício para uma pessoa amiga, uma pessoa que conhece o fulano e está escrevendo sobre ele. É como se fosse uma narrativa ficcional mesmo, que não se refere somente ao currículo profissional, mas ao trajeto real percorrido por uma pessoa de carne e osso, no planeta Terra.
Este senso de quem você quer ser como pessoa é o que vai dar o critério unificante para você contar a sua própria vida. A nossa vida, como define Ortega y Gasset, "es lo que hacemos y lo que nos pasa" --- aquilo que fazemos e aquilo que nos acontece.
Aquilo que nós fazemos é freqüentemente um amálgama de atos inconexos nascidos de impulsos momentâneos, que não têm nada a ver um com o outro, impulsos que, por sua vez, podem ter sido inspirados para nós desde fora, por imitação, imitação inconsciente, ou até por osmose, e assim por diante. E aquilo que nos acontece vem de uma multiplicidade de fontes não unificadas. Por exemplo, se você perdeu o emprego e, na hora em que você vai buscar o seu carro na garagem para ir para casa, na sua nova condição de desempregado, você descobre que alguém amassou o seu carro, esses dois fatos deploráveis não vieram da mesma fonte. O sujeito que demitiu você não é o mesmo que amassou o carro. São linhas causais completamente independentes que coincidiram. (Veja que essa palavra "coincidência" significa "aquilo que incide", "aquilo que cai ali". Duas linhas co-incidiram: incidiram no mesmo ponto, mas são linhas independentes).
A nossa vida, por ser composta de atos (conexos e inconexos) e acontecimentos que sobrevêm a nós (conexos e inconexos), é muito difícil de contar, caso não haja um padrão unificante. Esse padrão unificante é dado exatamente por esse ideal ou meta. A vida vista sob esse aspecto deixa de ser apenas um aglomerado de fatos e se torna um drama unificado. Tão unificado quanto o drama de Otelo, de Hamlet ou de Napoleão Bonaparte. Ela passa a ser a sucessão [0:30] dos esforços para dar unidade e sentido àquilo que nos chegou inconexo e freqüentemente sem sentido.
Este senso da meta ideal se torna o padrão e o critério da sua autoconsciência, ou seja, você começa a medir e a articular tudo como se fosse exatamente aquilo no qual você está tentando tornar a sua vida: um trajeto que tem um sentido e que se unifica na medida em que busca esse sentido. É claro que não é porque você determinou um sentido ou uma meta que tudo passa a lhe acontecer coerentemente. Ao contrário: os fatos continuam sobrevindo de fontes inconexas e os seus próprios atos continuam tão inconexos quanto antes. É você que vai tentar conectá-los agora.
E note bem: quando eu digo conectá-los (conectar inclusive os acontecimentos que vêm de fora), não estou querendo dizer para você criar um mito da sua própria existência no qual você veja todos os fatos que lhe sobrevém como se fossem mandados por uma providência divina ou pelos superiores desconhecidos maçônicos para lhe criar obstáculos ou dificuldades, não --- a coisa continua vindo de maneira casual e inconexa. Quer dizer, você não vai criar um mito unificante, não é isso que eu estou falando. Você é que vai tentar unificar o trajeto pela maneira pela qual você reage a esses fatos inconexos. Muitos desses fatos inconexos podem vir como obstáculos ou como elementos dispersantes para a realização da sua vocação ou meta. Mas você pode, em seguida, reaproveitá-los, tornando-os parte da sua biografia e aproveitando-os como oportunidades para você desenvolver certas qualidades ou certas habilidades que podem mais tarde ser necessárias para a realização da sua vocação.
Num primeiro momento, você tem o seu objetivo, a sua meta e parece que tudo está contra, ou que tudo é indiferente e frio, quer dizer, o mundo, a realidade, está pouco se lixando para os seus objetivos, é o "eu contra o mundo". E então você cria aquele problema do Orígenes Lessa em O Feijão e o Sonho: eu tenho um sonho, mas eu tenho que botar o feijão na mesa.
Esta é a maneira apenas inicial e primária de colocar os problemas, porque a sua personalidade real não é dada só pela sua meta ou objetivo e nem só pela sua reação às situações imediatas, mas pela tensão entre as duas coisas. A maneira pela qual você absorve essas circunstâncias mesmo adversas e as torna parte da sua biografia é que vai determinar quem você é efetivamente.
Na sociedade brasileira todo mundo coloca um abismo entre os objetivos pessoais e a situação real. A situação material é vista sempre como uma coisa opressiva e deprimente, uma oposição irredutível. Isso faz parte da cultura brasileira. O problema de O Feijão e o Sonho é permanente na vida de todos vocês, independentemente de serem pobres ou ricos. Às vezes o rico vê esse problema como sendo ainda mais incompatível e antagônico do que o pobre, quer dizer, não tem nada a ver com a classe social à qual você pertence, este é um hábito cultural que se impregnou nas mentes de todas as classes, todo mundo enxerga a coisa assim.
Mas esta é apenas uma maneira primária, apenas o primeiro sinal de que existe uma meta e de que existe uma circunstância. Como diria Ortega y Gasset "yo soy yo y mis circunstancias" --- eu sou aquele que eu quero ser no futuro, eu sou o meu sonho, o meu objetivo; já a minha circunstância é esse conjunto de dificuldades, de problemas e de solicitações dispersantes. Essa é apenas a primeira maneira de se colocar a coisa. Ortega y Gasset complementa essa frase, "yo soy yo y mis circunstancias" com a segunda regra, que é: "la reabsorcion de las circunstancias és el destino concreto del hombre" (a reabsorção das circunstâncias é o destino concreto do homem), quer dizer, você vai reabsorver a circunstância como parte da sua vocação. Por isso mesmo você deve encarar cada obstáculo e cada dificuldade como um elemento fundamental para a formação do seu caráter. Goethe dizia que o talento se desenvolve na solidão, no estudo, mas o caráter se desenvolve na agitação do mundo. Na agitação do mundo é necessário que cada dificuldade, cada obstáculo, cada elemento dispersante seja recebido e incorporado com o máximo de boa vontade. É você que vai transformar o elemento antagônico em elemento favorável. O que quer que se oponha à realização da sua vocação está lhe oferecendo uma oportunidade para fortalecer o seu caráter. Até as dificuldades são preciosas.
Vamos supor que você tenha um papai e uma mamãe que lhe dêem mesada e o protejam de todos os elementos adversos e de todas as solicitações dispersantes: "Meu filho, você é um grande gênio, então nós vamos te dar uma mesada e você fica em casa só estudando e desenvolvendo os seus talentos." Você pode até desenvolver o seu talento, mas o seu caráter vai ficar muito fraco. E se o seu caráter ficar muito fraco, isso significa que o quer que você diga não vai ter consistência. Ou seja, às vezes aquilo que parece facilitar a realização da sua vocação é, de fato, um elemento corruptor. É bom estudar a vida de pessoas que nada tiveram a seu favor e que realizaram alguma coisa grande. Eu sugiro, por exemplo, a leitura dos livros de Léon Bloy. Léon Bloy era um escritor católico, francês do século XIX que tinha o mau hábito de dizer as coisas exatamente como ele as via ou pensava, e isto criou tantas inimizades e tanto antagonismo que ele foi rejeitado em todos os meios. Quando ele conseguia um editor não pagavam, não davam emprego para o cara. Esse sujeito viveu na miséria, chegou à mendicância. A vida dele foi uma sucessão de frustrações, de portas fechadas, de traições, de exclusões e mesmo assim o sujeito escreveu livros maravilhosos. Ele fez dessa extrema dificuldade, dessa sucessão de misérias e antagonismos a base do seu caráter. A resistência a isso se tornou para ele mais do que uma vocação, mas uma espécie de obrigação religiosa. Ele encarava tudo aquilo como a cruz de Cristo que ele tinha de carregar. A certo ponto ele diz que desistiu não somente de ter uma vida melhor, mas até mesmo de se queixar. Veja como a circunstância extremamente antagônica pode ser absorvida e transformada no material da realização da vocação. Quanto mais você for capaz de absorver e trabalhar esta tensão, mais você fortalecerá o seu caráter e mais conteúdo humano começará a ter todo o seu trabalho intelectual.
[0:40] Com o tempo, vocês vão observar --- e esse é um dado de experiência que eu comprovei inúmeras vezes --- que o valor e a importância das grandes obras da inteligência humana vêm sobretudo dessa densidade e realidade da experiência humana que está colocada ali, e não tanto da amplitude dos estudos abrangidos. Os estudos só valem se você for capaz de absorver a experiência humana do outro, por trás daquilo que você lê e estuda. Mas como é que você vai absorver a experiência humana do outro se você não tem sequer a sua própria? Se você se preserva da experiência humana? Se você se esconde debaixo da saia da mamãe ou da mesada paga pelo papai? Isso não é possível e não tem nada a ver com a quantidade de dinheiro que você tem.
A vida de Goethe foi exatamente oposta à de León Bloy. Ele foi um sujeito que sempre foi ajudado, sempre teve sorte, sempre foi aplaudido, amado, protegido e você vê que foi exatamente a mesma coisa. Goethe desempenhou vários cargos administrativos e políticos aos quais ele era solicitado, ao longo da vida. Ele encarava aquilo como uma obrigação para o aprimoramento do seu caráter, embora ele não tivesse a necessidade econômica daquilo. Ele sacrificava horas que ele poderia dedicar à sua criação poética tratando de assuntos diplomáticos, administrativos, políticos, que tinham para ele a função de uma espécie de dever cívico. Ele realmente se sobrecarregava de tarefas, quer dizer, as dificuldades não o procuraram, ele as procurou porque ele as aceitou como um dever cujo cumprimento fortalecia o seu caráter e dava densidade ao que ele estava fazendo.
Você pega o pobre e o rico, o infeliz e o afortunado, o homem marginalizado, reduzido à mendicância, e o filhinho de papai colocado nos mais altos postos da sociedade e você vê que é exatamente a mesma coisa, porque são dois homens de gênio e de extrema seriedade na realização da sua vocação. Quer você tenha todos os recursos, quer não, o problema será exatamente o mesmo. --- Esse é o terceiro bloco. Então, repetindo:
(a) Primeiro bloco: adestramento do imaginário;
(b) Segundo bloco: enriquecimento e apropriação da linguagem;
(c) Terceiro bloco: senso do ideal e o adestramento da autoconsciência.
Ao longo de todo esse trajeto a coisa mais importante é admitir qual é a situação real a cada momento, qual é a equação que você está vivendo e ser capaz de declarar para si mesmo e para Deus o que está acontecendo e qual é o problema. Qualquer que seja a circunstância, a maior parte das dificuldades não vem do mundo externo. Jamais. Isto é impossível. A maior parte das dificuldades vem dos nossos próprios antagonismos internos e dos nossos próprios vícios, fraquezas, defeitos etc. Elas vêm sobretudo de uma fonte de onde você menos espera.
Recebi várias cartas essa semana sobre essa questão do autoconhecimento. Quando as pessoas falam em autoconhecimento, geralmente elas querem desenhar a si próprias como um personagem e saber quem elas são, como elas sabem quem foi Napoleão Bonaparte, Julio César, Goethe ou Shakespeare. Ou seja, querem uma imagem. A luta pela auto-imagem é o contrário do que eu estou entendendo como autoconhecimento.
A auto-imagem é uma armadilha, uma ratoeira, porque quando você a cria, você cria um padrão de auto-julgamento e um discurso de acusação e defesa baseado nas qualidades que você desejaria ter e nos defeitos que você acha que tem. Esse discurso interior de acusação e defesa vai comer horas e uma energia preciosa da sua mente. O ideal cria o seu código penal, ele já vem com um monte de acusações e penalidades. Aquele que você é ou foi realmente (e que é, então, o réu) por um lado se acusa e por outro lado se defende.
Ora, há duas coisas que você é realmente: alguém que num dia morre e que tem uma história que, uma vez morto, não pode mudar mais --- essa é a sua biografia. Mas enquanto você está vivo, você não é a sua biografia, você é a sua consciência. A consciência é aquela que está tentando tornar-se algo com os recursos internos e externos que a vida lhe deu. Se a consciência só existe nesta luta, ela não tem uma forma determinada --- ela está constantemente adquirindo novas formas, ampliando a sua própria e absorvendo as anteriores. Então ela não tem imagem. É como se você fosse apenas um certo foco de luz que ilumina o que há de obscuro em torno e dentro de você. Esta consciência, este "eu operante" não tem forma, imagem e história, porque a história dele está mudando, ele está fazendo a história agora mesmo, então ele não pode se descrever a si mesmo como a gente descreve um personagem ou como se descreve uma pessoa que nós conhecemos. Tampouco se pode descrevê-lo através de qualidades que ele se atribui, como "eu sou preguiçoso", ou "eu sou trabalhador", ou "eu sou corajoso", ou "eu sou fraco", "eu sou forte" --- porque tudo isso são apenas elementos que estão em permanente transmutação. Nenhuma dessas qualidades se incorpora a você definitivamente. Além do que, se você quer se conhecer através do perfil das suas qualidades [ou defeitos] você está se prendendo dentro de uma ratoeira. A luta pela auto-imagem é o contrário da luta pelo conhecimento.
O que é você? Você é aquele que fala com Deus. Existe o observador onisciente, que é Deus. Ele sabe e o conhece muito melhor que você mesmo e na hora em que você fala com Ele, você sabe que o que quer que você diga é falso --- é só parcialmente verdadeiro, não é exato. Conhecimento exato de você só Ele pode ter, porque Ele já sabe qual é o fim da sua vida e você não. Então, Ele pode dizer: "você é preguiçoso", ou "você é ladrão", ou "você é viado" ou "você é não sei-o-quê". Ele pode dizer, você não pode. Tudo o que você diz de si próprio são imagens provisórias, que se colarem em você de maneira definitiva, você está lascado.
Quando a auto-imagem das pessoas se dissolve, [0:50] e sobra somente esse núcleo de consciência, elas pensam que elas ficaram malucas, porque pensam que já não se conhecem mais. Não! Era antes que você não se conhecia, agora você sabe quem você efetivamente é: você é somente esta consciência. Quando chegar esse momento, você não se preocupa mais com você. Você se preocupa somente com os elementos objetivos e reais e com o seu dever, o dever que você tem a cumprir, com o que você tem a fazer. Você passa da auto-contemplação passiva, viciosa, a uma auto-criação permanente. Você passa a uma atividade do eu. Agora você não é mais um retrato, você é uma atividade, você é uma ação. E aí você começou a se conhecer efetivamente, porque Deus criou você para você ser assim.
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Esses são os três primeiros blocos: (a) o adestramento do imaginário; (b) o enriquecimento da linguagem e (c) o senso do ideal e o adestramento da autoconsciência. O quarto bloco é a aquisição das ferramentas da investigação, da pesquisa erudita. De todos esses blocos mencionados até agora, o único que entra um pouco no ensino universitário tal como atualmente é acessível no Brasil, é esse quarto, se bem que fornecido de maneira extremamente deficiente. Ele é um instrumento necessário para você adquirir a documentação das questões que lhe interessam, como foi mencionado no artigo "Quem é filósofo e quem não é" [Diário do Comércio].
Existe uma infinidade de bons livros nos quais você pode adquirir esse treinamento. Porém, você vai ter sempre que adequar-se às condições do momento em que você vive e do país em que você está. Um livro que eu recomendo muito é The Modern Researcher, de Jacques Barzun, publicado pela Harcourt Brace, de Nova Iorque. Desde logo, a investigação em filosofia e história da filosofia segue de muito perto as técnicas e métodos da investigação histórica em geral. O que significa que qualquer livro que você leia sobre métodos e técnicas da História será extremamente útil. Há dois excelentes livros sobre isso no Brasil: Teoria da História do Brasil e A Pesquisa Histórica no Brasil de José Honório Rodrigues. São livros altamente recomendáveis para isso.
O espírito geral da investigação é o de adquirir o máximo de documentos possíveis sobre qualquer assunto que lhe interesse e depois ser capaz de ler, interpretar e relacionar esses documentos de alguma maneira. Eu não vou me prolongar muito sobre este aspecto de como trabalhar esses documentos internamente, porque eu já escrevi uma apostila sobre isso chamada Problemas de Método nas Ciências Sociais. Embora se chame "ciências sociais", também serve para o que nós estamos fazendo aqui. Nós iremos falar mais sobre isso adiante. Qualquer que seja o assunto que se esteja investigando ou estudando, há que se proceder como um historiador: como um historiador da filosofia ou das idéias. Esta é a maneira de ter acesso aos documentos.
No artigo "Quem é filósofo e quem não é", eu disse para você definir a questão que lhe interessa, em seguida procurar se munir de toda a documentação necessária e depois ir lendo aquele material articulando as várias hipóteses, posições e alternativas, como se fosse uma teoria única, ou seja, compor a estrutura do problema, a partir da história do problema. Um exemplo majestoso de como se faz isso é o livro de Joseph Maréchal, Le Point de Départ de la Métaphysique ("O Ponto de Partida da Metafísica"). Esse livro foi muito usado pelo Padre Ladusãns no curso que eu assisti com ele no Conjunto de Pesquisa Filosófica da PUC do Rio de Janeiro. Um livro altamente recomendável. A vantagem que esse livro oferece é esta: praticamente todos os filósofos que investigaram o que quer que seja seguiram, mais ou menos, este mesmo preceito: obter o conhecimento da evolução do problema e das complexidades que foram se acrescentando à discussão desde os primeiros que tocaram no assunto, e, a partir daí, desenvolver as suas próprias perspectivas. Isso não quer dizer que todos reproduzam esse trajeto da pesquisa ao expor suas próprias investigações e conclusões. Eles podem ter feito a pesquisa assim, mas podem não tratar o assunto de maneira histórica e sim sistemática, ensaística, ou de qualquer outra maneira, de modo que o procedimento investigativo fique por trás do livro e não transpareça. Isso é o que acontece em geral.
Quando falo em "exposição histórica", isso não deve ser tomado muito ao pé da letra, porque toda exposição histórica da investigação de um problema terá uma infinidade de linhas acidentais que podem se desviar muito do problema que foi colocado de início. Pode haver tantas variáveis a ponto de você perder-se. Se for contada a história, tal como ela efetivamente se passou, com todos os seus passos, o foco vai para a narrativa histórica e o problema é afastado. A perspectiva de que falo não é a do historiador propriamente dito. Os recursos do historiador são utilizados, mas o objetivo não é o mesmo, pois não se traça a história do problema em todos os seus detalhes, mas apenas naqueles pontos da evolução que interessam à formulação atual que se queira fazer. Há aí um critério seletivo que não é o do historiador: é um critério filosófico. Este livro do Joseph Maréchal (que não é um livro, mas a transcrição de um curso) fornece exatamente esse tipo de exposição.
Ele coloca um problema inicialmente, que ele chama de "afirmação metafísica" --- daqui a pouco vamos ver o que é isso ---, e vê como esse problema foi evoluindo ao longo dos tempos, não em todos os detalhes da narrativa, mas somente nos pontos que interessam para a colocação que ele quer fazer do problema. Esse livro é um modelo do método que eu mencionei no artigo "Quem é filósofo e quem não é", ele foi seguido por todos os filósofos que estudaram qualquer coisa, desde Aristóteles. Aristóteles já dizia que nós tínhamos que começar pela investigação das opiniões dos sábios. Tão logo nós temos uma formulação do problema, nós temos que saber o que os sábios já disseram a respeito. Quando ele diz "os sábios", ele quer dizer que não é toda e qualquer opinião que interessa, mas apenas a opinião já qualificada, ou seja, a opinião que já foi trabalhada e onde os problemas mais básicos e elementares já foram tratados. Aristóteles já dá esse critério seletivo. Isso foi seguido por todos os filósofos. O livro do Maréchal se distingue porque o texto e a ordem do livro reproduzem exatamente a ordem da pesquisa não como ele a fez, mas a ordem histórica ideal. Ele vai expondo, por exemplo, as doutrinas dos céticos gregos (os primeiros que colocaram o problema da validade do conhecimento) e as discute à luz do que ele já sabe atualmente. Quando ele passa para a discussão na Idade Média, os filósofos escolásticos etc., novas complexidades vão se acrescentando e a visão que ele tem dos céticos gregos também é enriquecida por esses novos dados e assim por diante. Você tem uma imagem muito clara da estrutura intelectual da investigação, não da estrutura física. Ele não está contando como ele fez a investigação, mas a ordem histórico-lógica da investigação está dada de maneira muito clara.
[0:10] Você não precisa se preocupar em ler este livro agora, porque nós vamos lê-lo mais tarde, com bastante atenção. Muito provavelmente eu mesmo vou traduzir os vários capítulos e nós vamos ler juntos. Daqui seis meses, um ano, não sei quando, mas vamos fazer isso. Não se preocupem muito com esse livro, porque vocês receberão o texto traduzido, quando for o momento para isso. Curiosamente, esse livro é dificílimo de achar, você vai pagar os olhos da cara. Eu só o tinha numa cópia que eu tirei na biblioteca do Padre Ladusãns, há vinte anos. Mas a cópia estava meio apagada e não dava para fazer uma cópia da cópia, eu precisava de um original. São quatro volumes e eu só consegui o livro inteiro agora, pela primeira vez, pagando os tubos. Agora dá para fazer uma cópia e talvez até dar para os alunos, mas o ideal é traduzir o livro e ir incorporando esse texto aos documentos do nosso seminário. Esse livro do Joseph Maréchal faz uma espécie de ponte entre o quarto e quinto bloco. O quarto bloco é a documentação, a técnica do historiador, e o quinto bloco é a técnica filosófica propriamente dita. A técnica filosófica é o assunto deste curso, e se assenta nesses quatro pilares. Se você não tem esses quatro, você nunca vai entender exatamente o que é a técnica filosófica. Um verdadeiro filósofo, quando trata de um assunto qualquer, utiliza para isso toda a riqueza de seu imaginário incorporando todos os filósofos que ele leu sobre o assunto como personagens do seu drama interior. É essa densidade da discussão interior que vai marcá-lo e distingui-lo como um filósofo que merece atenção e não como um boboca que está apenas repetindo argumentos ou frases. Existem muitos desses bobocas que são muito inteligentes, muito preparados, de certo modo --- eles apenas não são filósofos. Eles não sabem se colocar filosoficamente um problema. "Colocar-se filosoficamente um problema" é entrar no problema com tudo; aquele assunto para você é mortalmente sério e toda a sua pessoa e existência estará em jogo. Não é um problema que você tem de resolver para sua tese de mestrado. É um problema que você tem de resolver para sua orientação na vida, até para a salvação de sua alma, como se a salvação de sua alma estivesse em jogo. Em segundo lugar, o uso que o filósofo faz da linguagem mostra, como em filigrana [fios entreleçados; trama; visível contra a luz], todo este aporte memorativo e imaginário que está por trás da coisa e que é a substância da vida intelectual dele. A linguagem dele tem de mostrar isso. Quanto mais técnica for essa linguagem, mais esta riqueza vai transparecer.
No Rio de Janeiro, quase quinze anos atrás, eu dei um curso sobre as Investigações Lógicas de Edmund Husserl. Nós temos uma transcrição desse curso, mas está muito ruim. Até hoje estou esperando ter uma chance de consertá-la, para poder publicá-la e colocá-la à disposição de vocês. Nesse curso nós fazíamos um comentário linear, lendo e buscando tudo o que estava por trás de cada linha, que era: (a) As menções que Edmund Husserl tinha feito aos mesmos tópicos, em outras obras dele; (b) Toda a carga semântica acumulada nesses termos técnicos ao longo de toda a história de seu uso; (c) Todas as alusões implícitas que outros filósofos disseram sobre o mesmo assunto. Os alunos tinham a ocasião de ver o que é a densidade de um pensamento filosófico. Frequentemente essa densidade escapa ao observador porque ele se atém apenas aos termos técnicos tais como estão dicionarizados, como são usados no contexto universitário, que corresponde à sua experiência pessoal. Aí fica difícil distinguir o que é filosofia do que é uma bela imitação. O Bruno Tolentino às vezes lia um poema e dizia: "Isso aqui é uma bela imitação de poesia". O sujeito finge que é poeta, mas não é, e frequentemente engana, porque tanto em poesia, quanto em filosofia, existe uma densidade de experiência que está atrás. Do contrário, existe apenas uma imitação de esquemas verbais e intelectuais consagrados, que o sujeito não precisa compreender em profundidade para poder imitar e manejar com uma certa habilidade, especialmente no Brasil, porque o brasileiro tem uma capacidade mimética fora do comum, um negócio incrível!
Quando entrarmos na técnica filosófica, vamos retomar aqui um assunto que eu comecei num curso que eu dei no Paraná, um comentário linear do livro Manual de Metodologia Dialética, de Louis Lavelle, talvez o melhor livro já escrito sobre a técnica filosófica no mundo. Outro livro que nós vamos usar para isso é Logique de la Philosophie, de Eric Weil. Também não precisa preocupar-se em ler esses livros, porque nós vamos entregar o texto traduzido que será usado no comentário em aula.
Esses são os cinco blocos:
(d) Adestramento do imaginário;
(e) Enriquecimento e apropriação da linguagem;
(f) Senso do ideal e adestramento da autoconsciência;
(g) Aquisição das ferramentas da investigação erudita;
(h) A técnica filosófica propriamente dita.
Como se fosse os quatro pés de uma mesa e o tampo, que é a técnica filosófica. A técnica filosófica é a síntese dos esforços desenvolvidos ao longo de milênios para lançar alguma luz sobre alguns problemas. A sucessão desses esforços tem de ser vista não como um fenômeno histórico, mas como um drama que se desenrola em você mesmo. Você tem de revivenciar aqueles vários esforços.
Na contraposição famosa dos pré-socráticos, Heráclito descreve o mundo da realidade como se fosse um fluxo permanente, onde nada é o que é, tudo está continuamente se transformando em outra coisa. Ele dizia: "Nós não nos banhamos duas vezes no mesmo rio" e assim por diante. Por outro lado, Parmênides descreve o mundo do "ser" como o absoluto e imutável, que está por trás de todas essas mutações aparentes. Quase ao mesmo tempo, Zenão de Heléia desenvolve certos raciocínios que colocam em dúvida a realidade do movimento e da transformação. Ele dizia: "A flecha que se desloca, a cada momento, está apenas no lugar onde está"; ou seja, como é possível dizer que ela se move se existe somente uma sucessão ilimitada de momentos estáticos? Zenão expõe uma série de objeções lógicas à realidade do movimento. Então nós temos esses três personagens: (a) Heráclito, que enfatiza a realidade absoluta e universal do movimento e da transformação; (b) Parmênides, que enfatiza a permanência como sendo a única realidade, rebaixando a mutação a um jogo de aparências [0:20]; (c) E Zenão, que coloca em dúvida a realidade da própria mutação.
Não se pode imaginar três idéias mais diferentes. No entanto, cada um sabia o que o outro estava falando, e nós podemos entender os três. Isso significa que, com mutações permanentes ou sem mutações permanentes, com o ser eterno ou sem o ser eterno, todos nós, considerados não enquanto participantes desse debate, mas enquanto pessoas reais, existentes, sabemos nos orientar no mundo da mutação e da permanência. Nós sabemos distinguir o que muda e o que permanece. Por exemplo, quando você dá um passo, você sabe que é absolutamente fundamental que o chão permaneça no mesmo lugar para que seu passo avance. Se o chão avançasse junto com você, seria como andar numa escada rolante funcionando em sentido contrário, como o Mr. Bean ou o Jerry Lewis: você andaria, andaria e não sairia do mesmo lugar. Na realidade da vida prática, nós sabemos nos posicionar perante a permanência e a mudança. Nós também somos capazes de distinguir, na mudança, o que existe de real e o que existe de aparência, e sabemos distinguir as mudanças reais das mudanças aparentes. Não é que nós saibamos disso: uma criança pequena já sabe! Porém, quando tentamos equacionar essas coisas em termos racionais, nós topamos com dificuldades horríveis, e este é um ponto básico. Vocês têm que meter nas suas cabeças desde logo uma coisa: o mundo da percepção real é infinitamente mais rico do que o mundo da razão humana.
Quando perguntaram para Santo Agostinho "o que é o tempo", ele respondeu: "Quando não me perguntam, eu sei; quando me perguntam, eu já não sei mais". O que ele quis dizer com isso? --- "Eu, como ser humano, efetivamente existente e real, sei me orientar quanto a essa dimensão chamada "tempo", mas eu não consigo equacioná-la em termos racionalmente aceitáveis."
O seu aparato de percepção tem a perfeição da Obra Divina, pois ele nasceu com você, já veio pronto, foi Deus que fez. O mundo de seus pensamentos racionais é uma estrutura que você está tentando criar, então é natural que, em comparação com o mundo da percepção, a razão humana seja um negócio tosco, falível, cheio de buracos.
Todo o esforço da filosofia ao longo dos tempos é para tentar transferir ao mundo da razão (aquilo que é humanamente comunicável, que pode ser discutido e falado entre os seres humanos) uma parcela da riqueza e dignidade infinitas do mundo da percepção real. Quando investigamos esse mundo da percepção, nós percebemos que sabemos muito mais coisas do que sabemos que sabemos. Eu tenho insistido muito nisso nas minhas aulas. Se nós fossemos reduzir o nosso saber aos dados de percepção que efetivamente chegam a nós, nós jamais poderíamos nos orientar no mundo. Nenhum de nós teve jamais a percepção do mundo inteiro, nós só temos pedaços. Ora, se nós fossemos usar esses pedaços para compor mentalmente a idéia de um mundo, nós jamais o completaríamos. Todos nós teríamos visões fragmentárias do mundo e estaríamos permanentemente desorientados nesse quebra-cabeças e, no entanto, isso não acontece. Todas as crianças pequenas sabem que estão no mesmo mundo que as outras. Quem é que as informou disso? Elas nunca viram um negócio chamado "mundo".
Desde que apareceu a crítica moderna do conhecimento, a partir do século XVIII, com David Hume e depois Kant, criou-se entre muitos filósofos a idéia de que tudo aquilo que não absorvermos pelos sentidos é criado mentalmente por nós. Quer dizer, existe o mundo da natureza e o mundo da criação cultural. Segundo esses fulanos, a própria idéia de mundo é uma criação cultural nossa, e a prova que eles dão é que, às vezes, a imagem do mundo é diferente de época para época, de cultura para cultura. Mas o que acontece é o seguinte: a imagem do mundo, tal como aparece nas várias culturas, é criação cultural, mas isso não quer dizer que a percepção do mundo seja também a mesma coisa. Essas criações, afinal de contas, são criações lingüísticas, feitas com a linguagem humana. Ou seja, é o mesmo esforço de Heráclito e Parmênides para dizer algo. Esses sinais da imagem do mundo deixados pelas civilizações pretéritas --- China, Índia, Egito etc. --- não são a visão que eles tinham do mundo, mas apenas os símbolos nos quais eles condensaram essa visão. Nós não podemos entrar na cabeça deles para saber como eles viam, nós sabemos apenas o que eles conseguiram transmitir, através de uma transmutação simbólica da percepção.
Quando lemos os fragmentos de Heráclito, Parmênides e Zenão de Heléia, o que nós captamos ali? O que eles perceberam, ou aquilo que eles foram capazes de dizer? O que eles estão expressando é o resultado da sua elaboração intelectual de uma percepção primitiva e esse resultado é deploravelmente mais pobre do que a percepção. Tanto que Zenão, Parmênides e Heráclito sabiam que estavam no mesmo mundo. Mas se eles estavam no mesmo mundo, como é que eles viam o mundo tão diferente assim? Eles não o viam diferentemente, eles apenas o expressaram e o trabalharam intelectualmente de maneira diferente, porque a razão humana é extremamente limitada em comparação com o mundo da percepção real. No mundo da percepção real há mais conhecimento do que aquilo que nós efetivamente percebemos. Por baixo do mundo das suas percepções, existe algo que eu chamo de "conhecimento por presença". É aquilo que não foi percebido, mas que está embaixo do que foi percebido, e que é condição absolutamente necessária para que você perceba todas as outras coisas. Não é que ele não chegue à sua consciência --- ele sequer chega à sua inconsciência. Ele simplesmente está ali: é o mundo no qual você está. Tudo o que está no seu inconsciente é limitado a você, porque veio ou da memória, ou de algum processo interno seu. Aquilo se passa dentro de você de algum modo. Mas durante esse tempo todo você esteve num mundo real, você é parcela desse mundo real, e tudo o que você pensa toma este mundo real como um pressuposto --- e está muito certo que o tome.
À medida que vai passando o tempo, as várias tentativas de expressão da percepção do mundo, sejam artísticas ou filosóficas, tornam-se patrimônio cultural, elas adquirem uma espécie de densidade bibliográfica e cultural, por assim dizer, e são passadas como patrimônio. A aquisição desse patrimônio pode ser uma experiência tão pesada que ela encobre o conhecimento do mundo real [0:30] a ponto de você confundir o conhecimento efetivo do mundo real com a sua representação simbólica. Você passa a acreditar que a vivência imediata que você tem do mundo é uma criação cultural mas, na verdade, ela é a base sobre a qual é possível haver criações culturais.
Desde as últimas décadas apareceram uma série de estudos sobre a comunicação não-verbal, ressonância mórfica etc., e isso tornou possível a utilização de uma linguagem científica e filosófica para insinuar algo desse "conhecimento por presença". Nesse sentido, todo o trabalho de Antônio Damásio (apesar de confundir-se na terminologia), e sobretudo a obra de Rupert Sheldrake são descobertas extremamente importantes, porque nos permitem expressar na linguagem da razão algo que sempre esteve por baixo da experiência da razão, tornando essa experiência possível mas, ao mesmo tempo, sendo encoberto por ela.
Na aquisição da técnica filosófica, vamos acrescentar esse elemento, que eu chamo de "conhecimento por presença", e que foi bastante negligenciado ao longo da história da filosofia. Ele sempre foi dado por pressuposto, mas nunca foi e nunca pôde ser trabalhado como hoje, graças a essas elaborações científicas mais recentes.
São esses os cinco blocos nos quais nós vamos trabalhar. Agora vou passar às perguntas:
Aluno: Em quais livros Goethe fala sobre essa ética do trabalho que o senhor comenta nas aulas?
Olavo: Ele fala disso no seu livro de memórias, Poesia e Verdade, e nas Conversações com Eckermann, escrito por seu secretário, que teve a prudência de anotar os diálogos que tinha com Goethe nas conversações do dia-a-dia e que eram jóias. Existe uma tradução parcial das Conversações com Eckermann feita pelo nosso Mário Ferreira dos Santos, publicada pela antiga Editora Globo do Rio Grande do Sul --- que depois foi comprada pelas Organizações Globo e virou uma porcaria, mas a antiga Editora Globo era uma maravilha.
Aluno: Sou imensamente grato pelo o que o senhor está fazendo por aqueles que desejam formar um verdadeiro caráter não apenas intelectual, mas também moral. Outro dia vi em uma palestra de filosofia na TV um antropólogo afirmando que todos nós temos consciências fragmentárias, por causa dos papéis sociais que exercemos (...)
Olavo: Tinha que perguntar para esse sujeito: --- Qual dos seus papéis sociais está dizendo isso? O senhor quer que eu acredite nisso ou é apenas um papel social seu que o diz enquanto outro papel social diz o contrário? Claro que nós temos consciências fragmentárias! É evidente que temos! Porém, ao mesmo tempo, temos uma força unificante e é a tensão entre os dois que constitui a nossa vida real. Enfatizar qualquer desses dois lados é fugir do problema, porque qualquer pessoa que tente realizar algo na vida está tentando unificar o seu trajeto existencial e, portanto, também a sua consciência. Ora, se ela tenta unificá-la é porque ela tem um impulso unificante e esse impulso é justamente a unidade que ela tem. Nós temos a unidade não de uma forma fechada e acabada, mas a unidade de uma força unificante que está perpetuamente em luta, em conflito dialético com os elementos dispersantes. Se você se imaginar como uma figura em bloco, inteiramente descritível, como que representada em mármore, você está fingindo. E se você disser, como Gurdjieff, que você não tem "eu" nenhum, mas apenas uma coleção de "euzinhos" separados, você também está falsificando, está caricaturando. Você consiste exatamente no conflito entre as duas coisas. De que adianta você dizer que você não tem "eu" nenhum a um sujeito que não tem "eu" nenhum? Qual dos "eus" dele que vai ouvir isto? Eu nunca fui discípulo do Gurdjieff, mas se ele me dissesse isso eu perguntaria: --- A qual dos meus "eus" você está falando isso? E qual dos seus "eus" está dizendo isso? Para que você possa dizer isso é necessário que você tenha esse centro unificante, o qual não pode se realizar inteiramente, porque a realização dele é a sua biografia. A sua biografia só adquire forma no instante em que ela termina.
Por outro lado, se você disser, como Raul Seixas, "eu sou uma metamorfose ambulante" --- isto está certo! Mas note bem a frase dele. Ela quer dizer: eu sou alguma coisa, eu não sou apenas os elementos dispersos da metamorfose, mas eu sou o personagem que vivencia a metamorfose, então eu estou me formando a mim mesmo como personagem unificado através das minhas sucessivas transformações. A estrutura real do "eu" humano é uma estrutura tensional. É por isto que quando nós queremos representar um personagem, nós o representamos como um drama. Por exemplo, nós conhecemos Dom Quixote, Otelo, Hamlet, por quê? Porque temos apenas um retrato estático deles? Não. Um retrato estático mostraria apenas um momento deles, como se faz em pintura. A pintura não representa um personagem, mas sim um momento, senão nós incorreríamos naquela história do sujeito que estava em um museu português, onde tinha um esqueleto que dizia: "esqueleto de Camões". Depois tinha outro esqueletinho que dizia: "esqueleto de Camões aos cinco anos de idade". A pintura e a escultura só podem representar um momento, e não a personalidade. Às vezes o pintor consegue insinuar de longe algo da tensão interna, mas é apenas a tensão remotamente insinuada. A verdadeira representação do personagem não é uma descrição, mas um drama. O que é Hamlet? É a vida de Hamlet. O que é Napoleão Bonaparte? É a vida de Napoleão Bonaparte. São vidas que já acabaram e que podem ser representadas como um drama encerrado, portanto, que adquiriram uma forma. Mas o seu drama não está encerrado, para encerrá-lo você teria de morrer agora mesmo.
Aluno: Qual é a relação entre a questão da auto-imagem e o exercício do necrológio?
Olavo: O necrológio é a sua auto-imagem ideal, é aquilo que você tenta ser, portanto ele não é uma auto-imagem atual, ele está numa tensão com a auto-imagem atual. Esta imagem ideal, por sua vez, mudará com o tempo, não em substância, mas na tonalidade, nas qualificações e, com o tempo, por incrível que pareça, esta imagem ideal se empobrece. Quanto mais você se aproxima de realizá-la, mais ela se empobrece. Só quem passou dos 60 anos de idade e tem uma vida pelas costas é que pode dizer isso. Alfred de Vigny dizia que "uma grande vida é um projeto de juventude realizado na idade madura". Eu posso assegurar a vocês que o que eu estou fazendo aqui é exatamente o que eu planejei fazer na minha adolescência. De certo modo, o meu plano de vida, minha meta de vida, está sendo realizado agora, ele não é mais uma meta, não é uma coisa que eu pretenda fazer no futuro, mas uma luta atual e efetiva. Quando isto acontece, [0:40] o que você está sendo agora não é uma auto-imagem sua. A sua auto-imagem se empobrece porque você já está pensando no lado de lá, no após a morte. Se você perguntar para mim o que eu desejo hoje, o que eu desejo ser, eu só quero o perdão divino, é só isso o que eu quero. Aquilo que eu queria ser eu já estou sendo, então isso não é mais um objetivo, não é mais uma meta, é um dever atual que eu tenho. E o que você quer já é uma outra coisa. É por isso que esse necrológio não é a auto-imagem, ele é, de certo modo, um elemento antagônico à auto-imagem. Você vai ter de criar tensão, uma luta entre o que você quer ser e o que você está sendo. Você não pode transformar esta auto-imagem ideal num tribunal para você se acusar, porque isso não é um tribunal, isso é um projeto. Você não tem a obrigação de ser tudo aquilo agora, você está indo para lá e tem de descobrir os meios para isso. Se você pega o seu "eu" ideal e o transforma em um código penal à luz do qual você vai ser julgado, você pára a realização do projeto.
Alguém me informa aqui que existe uma edição do livro do Joseph Maréchal em espanhol, El Punto de Partida de la Metafísica, Editorial Gredos, Madrid. Mas não é necessário comprar essa edição, nem a edição francesa. Como são quatro volumes eu acho que também deve estar custando os olhos da cara. Quando nós formos usar esse livro, vocês vão receber os capítulos traduzidos. Não se preocupem com isso. Também disseram que tem uma edição completa em italiano, no Google Books. Nem isso é preciso, calma, vocês vão receber isso. Não agora, mas daqui seis meses, um ano. À medida em que tivermos os capítulos prontos, nós os colocamos à sua disposição.
Aluno: Como poderíamos neutralizar questões astrológicas que casualmente podem turvar nossa visão em relação à nossa atividade do necrológio?
Olavo: As determinações astrológicas --- que, pelo menos eu, só conheço como uma hipótese ainda muito mal descrita --- só podem pesar sobre o ser humano como pesam todas as demais determinações, como as genéticas ou sociais etc., com a diferença de que, segundo a minha hipótese --- note bem, eu não posso assegurar nada disso aí --- esse fator astrológico não é propriamente uma limitação, mas um elemento extremamente misterioso, onde alguns dos traços estruturais constantes do indivíduo aparecem ali retratados na figura planetária no instante do seu nascimento, com uma nitidez muito impressionante. Esse é um mero fato empírico que nós podemos verificar, porém nós não sabemos se existe uma "influência astrológica" ou se existe apenas uma correspondência estrutural entre as duas coisas, como no caso da ressonância mórfica (onde você não pode falar de influência). Quando Rupert Sheldrake diz: "aqui no laboratório tem um ratinho que descobriu a saída de um labirinto e, no mesmo instante, em um laboratório dez quilômetros adiante, um outro ratinho também descobriu a saída do labirinto", um ratinho não influenciou o outro. Nós não sabemos se entre os astros e os homens existe aquilo que dizia São Tomás de Aquino: "tudo o que se move na Terra é movido por Deus através do astros". Aí é uma causa, uma influência qualquer. Nós não sabemos se existe uma influência, se existe uma correspondência estrutural, se existe uma ressonância mórfica. A respeito dessa questão astrológica nós não sabemos é nada! Nada! Portanto, não tome os traços astrológicos como coisas reais que estão pesando sobre a sua vida. Tudo o que nós temos a respeito são hipóteses. O único fato que nós temos é aquilo que eu verifiquei na pesquisa que eu chamei de "Astrocaracterologia": a existência de uma correspondência estrutural nítida entre certos elementos de caráter e a presença dos astros no céu. Como se deu essa correspondência? Qual é o tipo que relação que existe? --- Nós não sabemos nada! Isso é um abismo de perguntas, e é um fato enormemente escandaloso, porque ninguém tem ainda os instrumentos para lidar com este problema. Então as pessoas ou se escandalizam, ou criam um culto em torno dessas coisas, ou elas negam tudo, quer dizer, reagem como crianças em face do fenômeno. Tanto os astrólogos quanto os inimigos da astrologia não sabem o que fazer com este fato. Sem contar um outro fator que interfere: esta linguagem astrológica, estes elementos astrológicos, foram exaustivamente usados por sociedades secretas, sociedades ocultistas, com a finalidade de ter influência sobre os seres humanos e de regular a seu modo o curso da História --- o Deus objetivo dos messiânicos nos quais eles acreditam. A quantidade de charlatanismo e mentira, de parte a parte, que existe nisso aí é monstruosa!
Eu recomendo que você não tome esse fator astrológico como uma coisa real que está pesando sobre você, porque nós sequer sabemos se ela é um fator em si ou se ela é apenas um indicador de outros fatores. A correspondência astrológica entre caráter e a posição dos astros é uma coisa nítida, fácil de provar empiricamente. O Michel Gauquelin já deu a prova cabal disso. Porém, nós não sabemos se existe um fator astrológico pesando sobre você, ou se o fator astrológico é como se fosse um indicador. Por exemplo, se você faz um eletrocardiograma, e lá mostra que você tem um problema, não é o eletrocardiograma que está lhe fazendo mal, ele é um indicador de um outro problema que não tem nada a ver com aquela máquina. Pode ser que a tal "influência astral" seja apenas isto, apenas um indicador de outras coisas --- o fato é que nós não sabemos. Então não tomem este fato --- "tem saturno na casa tal, e sol na casa tal" --- como sendo um fator real que pesa sobre você. Nós não sabemos se é um fator real, um indicador ou qualquer outra coisa. A nossa ignorância sobre isso é imensurável. Quando nós não sabemos nem os rudimentos de como colocar um problema, nós tomamos posição a esmo, e tentamos nos defender da nossa própria ignorância através da proclamação afirmativa ou negativa de alguma coisa.
Todo o debate astrológico, para mim, é uma coleção de vexames. O sujeito proclama que tem um conhecimento secreto, e quando você vai ver, é uma besta quadrada. Outro proclama que nada daquilo existe, quando os fatos estão gritando o contrário. Ou seja, a prudência recomenda não tomar os fatores astrológicos como fatores reais, porque eles são apenas objetos de uma investigação possível.
Aluno: Li essa semana o texto "Considerações sobre o Seminário de Filosofia" e prestei bastante atenção ao ponto em que o senhor discorre sobre a aquisição das técnicas indispensáveis para o exercício da vida intelectual, estabelecendo a importância medular no trabalho das transcrições. Por isso venho tentando trabalhá-las até o ponto de convertê-las em exposições sistemáticas e coerentes, porém isso trouxe tantos problemas e revelou tantas dificuldades que me levaram quase ao desespero. Aqui está a minha pergunta: a dificuldade na assimilação dos conteúdos é um empecilho à vida erudita? [0:50]
Olavo: Esta dificuldade e esses empecilhos são a vida erudita. Vencê-los um por um, meticulosamente, com toda a paciência do mundo, é a própria vida erudita.
Quando se quer documentar um curso, tem-se uma gravação, onde aparece uma série de elementos estranhos ao conteúdo do que o sujeito está querendo transmitir. Há ruídos, lapsos de linguagem do orador, interferências da platéia, o zumbido do mosquito, o defeito do gravador etc. Por outro lado, há uma série de elementos faltantes, elementos que o expositor deixou implícitos, ou que, embora sabendo perfeitamente a coisa, na hora não lhe ocorreu a expressão verbal adequada, ou que ele simplesmente esqueceu-se de mencionar.
Em primeiro lugar, você tem de saber o que quer documentar. Se você quiser documentar materialmente o que aconteceu no dia tal, então você vai ter que botar todos os zumbidos, os defeitos do gravador etc. etc., como se faz, por exemplo, numa transcrição de grampo, na polícia: você tem de colocar todos os ruídos etc., porque aquilo pode ter alguma importância para a investigação policial.
Se você quiser documentar uma exposição dialética, então você vai ter de, de certo modo, complementar as partes faltantes e excluir as partes sobrantes. Há vários exemplos de como isso foi feito. Por exemplo, as famosas lições sobre a História da Filosofia de Hegel, um livro em três volumes, absolutamente brilhante. Mas tão brilhante quanto o texto foram os camaradas que trabalharam as exposições. Naquele tempo não havia gravador, aquilo era anotado à mão, na hora, e havia várias versões diferentes. Alguém tinha de juntar aquilo de uma forma coerente e que, além de ser coerente em si mesma, fosse coerente com o que Hegel dizia nos seus outros livros. Não se avança mais de uma página por dia nisto aí. Um trabalho deste pode levar anos. Os textos finais dos The Collected Works, de Eric Voegelin, são transcrições de aulas. Levou dez anos, com muita gente trabalhando em cima, para que o resultado fosse um texto cientificamente confiável.
Esta dificuldade não é sua. A dificuldade é da coisa mesma, e aprender a vencê-la é adestrar-se num elemento importantíssimo da vida erudita, que é a criação do documento confiável. Eu sugiro que você exercite isso com esta própria aula, porque, nesse caso, o expositor ainda está vivo. Eu mesmo posso corrigir muita coisa, não só porque a transcrição está errada, mas porque posso corrigir a mim próprio. Nós não temos isso, por exemplo, nas transcrições do Mário Ferreira dos Santos, que, apesar de impressas, ainda continuam numa bagunça formidável, ao ponto de às vezes se tornarem ininteligíveis.
Aluno: Na maçonaria afirma-se a necessidade de buscar algumas qualidades fundamentais ao maçom, representadas pelo tribunal: amor, vontade e inteligência. Dentro da nossa busca de nos tornarmos filósofos, há qualidades fundamentais que devemos perseguir?
Olavo: Estas mesmas três. É disto mesmo que nós estamos falando. Você está vendo isto dentro da simbólica maçônica que constitui o elemento da sua vida, mas isso não vale só para os maçons, isso vale para todo mundo.
Aluno: No caso da literatura estrangeira, o processo de imitação do estilo dos autores também funciona quando lidamos com traduções?
Olavo: Até certo ponto, sim, porque é impossível você fazer uma tradução apagando completamente o estilo do autor, isso não existe. O que se preserva do estilo originário do autor é, sobretudo, a construção das frases. Você vai perder muita coisa na semântica das palavras individuais, mas na construção em geral, estatisticamente falando, a estrutura das frases permanece mais ou menos a mesma. Mesmo que se lide com uma língua muito estranha, como o chinês. Algumas vezes é necessário modificar a estrutura, mas estatisticamente, na média, as frases continuarão tendo a mesma estrutura. É na escolha do vocabulário que não há certeza nenhuma, porque procura-se equivalentes remotos, então, imitando o escritor que você leu em tradução, não é possível imitar a semântica dele, mas a semântica do tradutor. Mas a estrutura das frases será certamente a mesma. Eu recomendo que você trabalhe com autores da sua própria língua, mas nada impede que você se exercite escrevendo em outra língua. É muito bom, aliás. Eu, por exemplo, quando escrevo alguns artigos em inglês, levo dez vezes o tempo de escrever um artigo em português, porque não há aquela disponibilidade do vocabulário automatizado, que você tem da sua própria língua. Não há e não haverá jamais. Por exemplo, a língua mãe de Joseph Conrad era o polonês, depois ele aprendeu bastante francês, e só depois dos trinta anos de idade é que ele aprendeu inglês. Os elementos poloneses eu não sei identificar, porque eu não sei uma palavra em polonês, mas é possível identificar os elementos franceses, ou seja, ele continua usando uma semântica francesa até o fim da vida. Eu acho um exercício muito interessante você imitar o sujeito escrevendo na própria língua dele. É muito mais difícil, é claro, mas vale a pena.
Aluno: É genuíno o interesse em determinado assunto primeiro dentro do aspecto de auto-ajuda e conhecimentos pessoais e somente depois disso como exercício vocacional, profissional?
Olavo: Tem de ser assim. Se a coisa não tem um interesse existencial para você, então o interesse erudito será somente superficial e estereotipado, será copiado. Você tem de partir de um interesse existencial real, uma coisa que tem carne e osso, para depois você transmutá-la numa colocação "acadêmica".
Aluno: O limite da imaginação, não da linguagem, coincide com o limite do possível?
Olavo: Não, de jeito nenhum. O que nós chamamos de possível é o que no fundo nós chamamos de mundo real, é o contexto de realidade onde você está.
Heráclito e Parmênides, por exemplo, descreveram de maneira muito antagônica o mesmo mundo no qual os dois viviam. O próprio Heráclito afirmou o seguinte: "os homens acordados estão todos no mesmo mundo, quando eles dormem, vão cada um para o seu mundo". É claro que Heráclito e Parmênides estavam acordados, e é claro que estavam no mesmo mundo, porém, suas elaborações racionais são muito toscas em função da experiência real que eles tinham do mundo. É por isso que suas descrições saem antagônicas. Mas elas têm de ter um fundo comum, derivado do próprio mundo real onde eles estão. Se a razão é limitada é porque a imaginação é limitada. Quer dizer, a imaginação deles enfatizou certos aspectos e deprimiu outros, sumiu com outros.
Afinal de contas, não basta você imaginar. Você pode imaginar muita coisa, mas você consegue imaginar aquilo de novo? Você consegue lembrar aquilo que você imaginou? Por exemplo, quando você tenta lembrar um sonho: --- Quem foi que criou o sonho? Foi você mesmo, a sua própria imaginação. Mas quando você tenta reimaginar você já não imagina do mesmo jeito, ou seja, a sua imaginação não tem poder nem sobre a sua própria imaginação. [1:00]
No mundo moderno, a tendência é as pessoas darem muita atenção ao seu próprio pensamento, à sua própria imaginação, à sua própria memória e tentar dominar o conjunto daquilo. Isto é como você tentar pegar água com a mão, tentar pegar ar com a mão. Na maior parte dos casos você tem de deixar que a realidade diga as coisas pela sua boca. Isto é o que está na Bíblia: "Não se preocupe com o que você vai dizer na frente do juíz, o Espírito Santo te inspirará as palavras".
O desejo que nós temos de nos consolidar numa auto-imagem também tem algo a ver com o desejo que nós temos de expressar perfeitamente o mundo dos nossos pensamentos. Não é isso que nós devemos fazer. Tudo o que nós dizemos, se perde. Aquilo que passou por você foi embora, você não vai ter mais aquilo, você vai ter outra coisa melhor. Porque tudo o que passa por nossa vida se desfaz --- se desfaz em pó. Nós estamos continuamente morrendo. Isto é uma realidade.
Porém, quando você considera este fluxo de impermanências na escala da eternidade, você percebe que, nessa escala, nada pode se perder, porque a eternidade contém tudo aquilo que está dentro do ser e do possível, e tudo aquilo que entrou no mundo do ser, ainda que por um instante infinitesimal, não pode retornar ao não-ser. Aquilo pode cessar, na escala do tempo, mas não pode se tornar um nada, porque o nada nunca foi nada. Nós dizemos que as coisas retornam ao nada, mas é uma figura de linguagem, queremos dizer apenas que saiu da escala do tempo, não existe mais na escala temporal. Mas na eternidade continua existindo eternamente. Na eternidade tudo é eterno. Do ponto de vista de Deus nada se perde. Então para quê você vai se preocupar em segurar tudo na sua memória, no seu mundo interno, se este mundo interno, tal como o seu externo, é feito de contínua desaparição? A natureza daquilo que é temporal é sumir. Para quê você vai segurar isso na escala temporal se Deus já está segurando para você na escala eterna, e Ele põe aquilo dentro de você de novo quantas vezes Ele quiser? Para que eu tenho que ficar preocupado em guardar as coisas na minha memória se Deus tem na memória Dele e, se eu pedir, Ele põe de novo na minha? Isso aqui é básico não só do método filosófico, mas do método existencial. Quando Platão fala da anamnese, a memória a que ele está se referindo não é a memória carnal humana, é a memória espiritual, que não se conserva em você, mas em Deus, na eternidade. Você não precisa segurar a água que está correndo, porque na eternidade as águas são eternamente as mesmas.
É só quando você começa a entender essa dimensão de eternidade como presença permanente e como a verdadeira presença por trás da impermanência, é que você tem um terreno firme, porque você sabe que este terreno não é você. Nós somos impermanentes, nós somos pó. Nós estamos continuamente nos desfazendo. É Deus que nos refaz. É o que diz São Paulo Apóstolo: "Nele vivemos, nos movemos e somos."(At. 17:28) Então deixa por conta Dele, ué. Só aí que você começa realmente a ter um acesso da dimensão do que é realidade. Um acesso não intelectual, mas existencial. Aí você entende que tudo o que se desfez no mundo só se perdeu na escala temporal, na escala eterna não pode desaparecer. Isso é uma experiência maravilhosa, quando você começa a perceber isso efetivamente, quando você percebe que você mesmo está desaparecendo. As suas memórias inclusive, vão embora. Se você quer conservá-las, elas vão embora. Você esqueceu-as, mas Deus sabe e se Ele quiser que você se lembre, você lembra de novo. Você tem de deixar uma parte do serviço para Deus. Aliás, a maior parte é Ele que faz.
Essa ilusão moderna da individualidade fechada é uma coisa terrível, porque isso cria muitos problemas filosóficos idiotas que só servem para paralisar a mente. Se você acredita, por exemplo, que o sujeito cognoscente humano é uma coisa que existe (é o ego cartesiano), você acredita que existe, tem os seus pensamentos, e que o quer que você conheça são estados subjetivos seus. Até a percepção que você está tendo desta sala são transformações que estão se passando dentro da sua subjetividade, porque são os seus olhos que estão percebendo, os seus ouvidos que estão ouvindo. Mas se você acredita que essa subjetividade existe como coisa, então tudo que você conhece é parte da sua subjetividade, e não dá para dizer que existe nada fora dela. É o que se chama de "problema da ponte", ou seja: qual é a ponte entre seus estados interiores e o mundo objetivo.
Ao descrever o seu "eu" como uma coisa existente, você quebrou a ponte. Agora não há mais ponte. Mas este seu "eu" subjetivo de que você fala não existe absolutamente, isso é que é uma sucessão de estados, como dizia Hume, totalmente impermanentes! A sua unidade só existe em Deus. É a sua figura eterna, que é aquilo que você é perante Deus, essa é a sua única realidade. Ela não existe como objeto aqui. Aqui é tudo impermanência. Você é a metamorfose ambulante de que fala o Raul Seixas. Se você transforma esta metamorfose ambulante numa espécie de recipiente fechado no qual estão os seus pensamentos, as suas percepções etc., não há mais ponte entre isso e o mundo exterior. Nós somos uma sucessão de impermanências dentro de uma série de outras impermanências que é o mundo exterior --- isto é a realidade. Se você toma o eu, o ego, como se fosse uma coisa efetivamente existente, então este ego come este espaço existente e não sobra mais nada para o mundo exterior, e daí você fica achando que só você existe. É claro que isso é uma estupidez, porque você partiu de um erro inicial, de considerar o "penso, logo existo". Você vê que esta frase leva um tempo para você dizer. Quer dizer, você supõe que aquele que pensa é o mesmo que existe, e o que existe é o mesmo que pensa. Só que existe um trajeto temporal entre uma coisa e outra, e durante este trajeto você permaneceu o mesmo, olhando-se a si mesmo através de uma linguagem que não foi você que inventou, que veio do mundo exterior. Sem esta linguagem, você não teria ego nenhum. Ou seja, na hora em que você diz "penso, logo existo", você está afirmando que a sua existência depende do mundo exterior, [01:10] mas parece que você disse o contrário, parece que você disse que você é o centro e que você é a única certeza. Então você está confundindo.
Você tem dois estados de fluxo, um interno e um externo, que às vezes coincidem e às vezes não, e esta é a real experiência da vida. Nós só podemos falar em "ser" na escala eterna. Os seres aqui são todos precários, impermanentes, transitórios. E, não obstante, você entende que a impermanência não pode ser absoluta, porque se fosse, o que seria absoluto seria o nada. Mas o nada não pode ser absoluto, porque o nada não é nada. Então há o Ser, há o Nada, e há este mundo intermediário em que nós vivemos, onde as coisas estão permanentemente indo "do ser para o nada" e "do nada para o ser" --- mas o ser e o nada, tal como nós os conhecemos aqui, não são nem Ser e nem Nada: são uma coisa intermediária, vacilante. São semi-naturezas, semi-substâncias em permanente estado de fluxo, que só adquirem alguma substancialidade quando vistas desde a eternidade. Parmênides e Heráclito já haviam entendido isso.
Mas aí estou pulando, estou indo para tópicos concretamente filosóficos que mais tarde nós estudaremos de maneira mais técnica.
Aluno: O senhor irá abordar a técnica do método filosófico teoricamente, analisando-a como um todo ou irá trabalhar nesse curso com as partes desse método separadamente, na prática?
Olavo: Eu pretendo fazer as duas coisas. Porém, pelo que nós fizemos até agora você já deve ter percebido que eu adotei primeiro esta segunda alternativa. Eu não estou analisando o método filosófico, eu estou dando componentes dele que você vai usar, e mais tarde nós o sintetizaremos de algum modo. Eu fui falando desses elementos prévios separadamente, tais como o adestramento do imaginário, enriquecimento da linguagem, senso do ideal, adestramento da autoconsciência, e hoje é que eu estou tentando juntar. Mas é só uma primeira síntese puramente prática.
Aluno: Gostaria que o senhor falasse um pouco mais sobre a diferença essencial entre a imaginação e a razão hipotética ou construtiva. Elas diferem somente com relação à sua gênese e a imediaticidade das combinações imaginativas e o conceito? Acho que não compreendi bem.
Olavo: A razão hipotética construtiva trabalha em cima do imaginário prévio, naquele esquema de Aristóteles: você tem as percepções, em cima delas você conserva na imagem os chamados esquemas fáticos, os esquemas dos fatos, esquemas dos entes. Desses esquemas que aparecem na sua imaginação você vai extrair o seu esquema eidético, o seu esquema intelectual ou aquilo que esses fatos estão dizendo em linguagem racional --- daí você tem os conceitos das coisas. E você vai combinar esses conceitos, por sua vez, na esfera racional. Entre a imaginação e a razão construtiva não há uma diferença de natureza, há uma diferença de escala e de tempo, por assim dizer. O trabalho da imaginação sempre precede o trabalho da razão. A razão não passa, no fim das contas, de um tipo de imaginação formalizada, congelada, petrificada, de modo a permitir a repetição exata, o que a imaginação geralmente não permite. Eu dei um exemplo sobre você não conseguir lembrar do seus sonhos, ou seja, você não consegue lembrar uma lembrança, não consegue imaginar uma imagem que você imaginou. A imaginação também está sempre nesse fluxo, porém, se você ficasse preso nisso, você só poderia trabalhar com seus estados empíricos, você não alcançaria um nível de conhecimento genérico universal. A razão extrai estes esquemas fáticos, esquemas eidéticos, e os consolida em conceitos repetíveis. Quando você expressa um termo que significa um conceito filosófico você está dando ao seu interlocutor a chance de, primeiro, compreender não somente o termo, mas o conceito embutido; e, segundo, ter não somente o conceito, mas produzir imagens dele que sejam análogas às suas. E, de certo modo, revivenciar imaginativamente uma experiência análoga à sua.
Normalmente quando as pessoas lêem textos filosóficos, elas não fazem o trabalho todo. Eu sempre tive essa precaução: se eu estou lendo alguma coisa, eu não me contento em pegar os termos --- o significado estabilizado e dicionarizado dos termos --- eu quero o conceito explícito. E não me conformo com o conceito, eu tenho de produzir análogos imaginários. Se eu não chego a isto, eu acho que não entendi o texto.
E dei o exemplo disso nos comentários às Investigações Lógicas de Husserl, onde a gente ia espremendo o texto até ir daquela terminologia altamente abstrata a exemplos vivos criados pela imaginação dos alunos ou pela minha, na hora em que estávamos lendo. Não há uma diferença essencial entre a imaginação e a razão construtiva. A razão construtiva não passa de imaginação estabilizada e tornada repetível, ou imaginação padronizada, por assim dizer. Assim como em geometria, por exemplo. Você não verá em parte alguma um triângulo, mas objetos triangulares infinitamente variados. A geometria extrai o esquema eidético desta recordação que você tem das figuras triangulares e o expressa numa fórmula, num conceito repetível. Quando você diz a palavra "triângulo" você passa ao seu interlocutor o termo, por baixo do termo, o conceito geométrico e, portanto, o esquema que ele precisa para repetir imaginariamente criando inumeráveis objetos triangulares de acordo com o que bem lhe pareça. E esses objetos serão análogos àqueles que eu mesmo percebi.
Aluno: Você disse que um dos problemas da literatura brasileira é que ela não acompanha mais a situação brasileira experiencial. Você vê esta condição em outras literaturas atualmente? Eu tenho em mente, por exemplo, o que está acontecendo aqui nos EUA. Existe um imaginário literário para (...)
Olavo: Temos aqui uma pergunta de uma pessoa presente. Ela disse que eu observei outro dia que a literatura brasileira perdeu o passo, por assim dizer, e não acompanha mais a experiência existencial. A experiência existencial no Brasil se tornou muda, não é nem mesmo apreensível como símbolo literário, quanto mais como conceito abstrato. E ela pergunta se eu observo a mesma coisa em outras literaturas, como, por exemplo, na literatura americana.
Eu acho que não. A literatura americana é tão rica, tão imensa que não dá para você acompanhá-la. Dá para ler uma coisa ou outra. Quando você diz que vai ler um autor atual americano, por exemplo, Thomas Pynchon, é de setenta anos atrás. Você se atualiza com coisas de cinquenta, setenta anos atrás e olhe lá: já está fazendo um grande negócio. Antes de eu chegar nos EUA, o autor americano mais recente que eu tinha lido, eu acho que era, sei lá, Faulkner. Daí você descobre que existem outros escritores e tenta de alguma maneira lê-los. Embora eu não acompanhe [01:20] o movimento de literatura americana, eu vejo que não é possível que ela esteja defasada, porque, num nível de discussão mais abstrata as pessoas conseguem acompanhar o que está acontecendo. O debate nacional americano, se comparado com o brasileiro, é de uma vivacidade absolutamente impressionante. Aqui as pessoas sentem e falam do que está acontecendo mesmo, com toda a sua complexidade e riqueza, embora haja sempre indivíduos que prefiram não ver nada, tratando apenas de estereótipos. A quantidade de debate vivo que existe no jornalismo --- que é uma espécie de literatura, no fim das contas --- mostra que as pessoas estão acordadas, que sabem onde estão e que a experiência americana não se tornou opaca como é no Brasil. No Brasil é uma opacidade total, as pessoas não sabem onde estão, elas não sabem dizer o que se passa efetivamente, elas dizem símbolos estereotipados. Eu sempre uso um exemplo de quando eu trabalhava numa revista feminina, a Revista Nova, e as pessoas mandavam cartas com perguntas. Então uma mulher escreveu dizendo que estava com problema de ejaculação precoce. Certamente esse não era o problema dela. Ela tinha algum problema, mas não sabendo o que era, deu o nome de um problema análogo, retirado de um estereótipo qualquer. No Brasil, as discussões estão assim, as pessoas não estão falando daquilo que elas vivenciam, mas de coisas que subjetivamente lhes parecem ser análogas, mas é tudo símbolo estereotipado. Aqui, isso definitivamente não acontece. Quando você observa a linguagem do jornalismo americano, é de uma riqueza e de uma flexibilidade que eu fico besta. E às vezes eu penso: --- Como nós traduziríamos isto em português?
Eu gosto muito dos artigos da Mona Charen, Don Fader, Ann Coulter e eu vejo que seria difícil traduzi-los para o português. Há uma vivacidade local da qual não tem análogos no Brasil. Mesmo os poucos escritores que ainda continuam escrevendo na mídia brasileira já se congelaram em estereótipos há mais de dez anos atrás, como João Ubaldo Ribeiro, Carlos Heitor Cony. Eles já não expressam a experiência, mas apenas mostram afinidade com certos grupos. Mostram: "Eu sinto igual a você, eu penso igual a você, eu sou da patota". No Brasil só se escreve para isso.
No fundo, todos escrevem a mesma coisa, não há nada de experiência real ali. Sobretudo não há drama, contradição, problemas, mas apenas a identidade de sentimentos grupais. Essa identidade, sobretudo dos intelectuais de esquerda, se tornou a única realidade, todos têm de sentir do mesmo modo.
Quando você percebe que a auto-expressão deles já escapou da realidade há muito tempo e virou uma coisa caricatural e tenta mostrar isso, as pessoas pensam que você está fazendo isto não porque você esteja percebendo uma realidade, mas porque você pertence a um grupo contrário --- embora eu, até hoje, não saiba a qual grupo pertenço. Eles imaginam uma direita existente e imaginam que eu esteja falando em nome dessa direita, mas não há direita nenhuma. Se você consegue juntar três pessoas que estejam contra o Foro de São Paulo, cada uma está contra pelos motivos mais estapafúrdios e inconexos. De fato, não existe direita no Brasil. Mas existe uma esquerda, com seu mundo peculiar de sentimentos e tudo o que eles fazem é reforçá-lo. Eles não estão nem mesmo expressando uma visão do mundo, mas apenas a sua intersolidariedade grupal. Solidariedade que se mostrou rentável, porque isso permite disputar eleição, receber indenizações, ter acesso a cargos públicos etc. etc. É uma intersolidariedade sentimental lucrativa e é só isso que as pessoas fazem.
O delírio de um grupo se transformou na única linguagem pública existente no Brasil. O delírio auto-lisonjeiro, onde imagina-se que todos aqueles guerrilheiros dos anos setenta foram heróis. Eu não sei o que há de heróico em encostar uma metralhadora na cabeça de um caixa de banco e dizer: "Dá o dinheiro aí!" --- Não há nada de heróico nessa porcaria.
Mas eles se vêem como heróis, escondem as partes deprimentes da sua história, não podem nem ouvir falar. Jamais são capazes de imaginar o que é a história tal como vivenciada pelos seus adversários. O adversário não existe como criatura humana concreta, mas apenas como um estereótipo odioso. Virou tudo uma falsificação e esta é a única linguagem pública existente no Brasil. Não há mais uma linguagem da transmissão da experiência. Isto definitivamente não acontece nos EUA. Ainda que haja um esforço muito grande da parte de alguns para criar o império do estereótipo, isto ainda não dominou o panorama. Por exemplo, atualmente existe o mito Barack Obama. Parece que a única coisa importante no mundo é que aquele casal negro realize aquele sonho de "dama por um dia". Eles sairam do nada, chegaram à Casa Branca e agora são os donos do mundo: realizaram seus sonhos. Tem-se a impressão de que só isso interessa no País, mas é claro que isso é um estereótipo auto-hipnótico. Há pessoas falando nesta linguagem, mas há uma infinidade de outras que estão vendo que a coisa não é assim. E, mesmo entre os adeptos de Barack Obama, nem todos estão hipnotizados dessa maneira, como estão hipnotizados no Brasil.
Aluno: Como é possível resolver o conflito de uma imensa sede de conhecimento e o desconhecimento sobre o que se deve estudar? Domina-me amiúde o impulso de saber o que são as coisas, mas a par disso, uma total indecisão de ao que me dedicar, pois não é dado a ninguém estudar e dizer tudo sobre tudo. Como não soubesse o que fazer, determinei-me a ler os clássicos até que me surgisse a idéia clara do para que sirvo ou serve a minha inteligência.
Há uma dica muito importante em literatura. Até certa época da história existia um negócio chamado crítica literária. Hoje não existe mais, só existem os estudos acadêmicos que, em geral, são uma bobajada sem fim --- esse pessoal desconstrucionista, estruturalista. Isso aí só serve para estupidificar as pessoas. Mas antigamente existia um gênero literário que era a crítica literária, exercida geralmente em jornais, revistas de cultura etc., e houve grandes escritores que se dedicaram a isso. Eles eram leitores privilegiados que tinham uma capacidade de expressar algo da experiência de sua leitura e de inserir aquelas leituras dentro de um quadro cultural histórico maior. A leitura desses grandes críticos do passado pode te dar uma dica, porque eles acabam formando um consenso quanto ao que é importante e valioso ler. Nosso Otto Maria Carpeaux é um crítico às antigas. A crítica literária, no fim das contas, é a primeira disciplina filosófica, porque ela é a expressão intelectual mais imediata da própria experiência literária. Há uma série de críticos literários que eu sugiro. [1:30] Por exemplo, o famoso Sainte-Beuve, um crítico francês do século XlX que se caracterizava pela crítica psicológica, tentando captar a experiência interior dos escritores que ele lia. Matthew Arnold, crítico inglês que sempre se batia pelo valor educativo e pedagógico da literatura. Em Portugal, houve eminentes críticos literários, fantásticos. Alguns deles moraram no Brasil: Adolfo Casais Monteiro, um grande crítico; Fidelino de Figueiredo. O Brasil teve alguns críticos maravilhosos, alguns deles indispensáveis, como Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Augusto Meyer. Creio que nos anos 80, tenha sido publicada uma coletânea grossa, de oitocentas páginas, pela Editora Perspectiva, do Augusto Meyer. A leitura dos críticos literários acaba lhe ajudando a se orientar nessa massaroca literária. Isso lhe fará muito bem.
Aluno: Um aspecto da pergunta dele é não só o que ler, mas como encontrar dentro de si as "idéias de náufrago", que vão orientar os estudos.
Sim. A par do problema de como estudar existe a pergunta do que realmente lhe interessa. Para isso não há fórmula, mas quando eu dei o exercício do necrológio foi para colocar as pessoas para começar a pensar no que realmente lhes interessa e no que lhes tem valor. Há um lado da escolha dos objetos e da identificação da motivação interior. As duas coisas devem casar, de uma maneira ou de outra. É importante que cada passo nos seus estudos seja um passo na formação do seu caráter. Você está abrindo mais uma janela, criando mais um personagem imaginário, abrindo mais alternativas, ampliando o número de perspectivas pelas quais você encara o mundo. Você está se construindo, de certo modo, como ser humano, como consciência. O verdadeiro autoconhecimento consiste na capacidade de abrir estas coisas sem parar, e não em conseguir se descrever como: eu sou assim ou assado. Eu sei lá como é que eu sou, e pouco me interessa! Quem se interessa pela minha personalidade são os meus inimigos. Eles que a descrevam como quiserem, isso é problema deles. Eu não quero mais saber de mim. Tudo o que eu estou fazendo é enormemente divertido e muito mais interessante do que eu. Na verdade, esse processo de auto-construção é um processo de auto-doação. Você está concedendo a sua energia e atenção a coisas que transcendem você infinitamente, que são muito mais importantes do que você e, nesta mesma medida, você passa a personificar estes valores para outras pessoas. Você representa aquilo para outras pessoas, porque você está abrindo aquelas portas. Não que aqueles valores estejam em você, mas você está abrindo o acesso, que é o que eu estou fazendo aqui. É exatamente isso o que vocês vão fazer. No dia em que tiver no Brasil um número suficiente de pessoas fazendo isso, o nível moral e intelectual da sociedade inteira vai subir. E vai ter de subir, mais dia, menos dia, porque mais baixo do que está... meu Deus!
O Brasil já é governado atualmente por gângsteres, ensinado por pedófilos, tarados, loucos, ladrões. Os exemplos vivos de moralidade e de conduta que existem para o público seguir são palhaços farsantes. Até onde vocês pretendem se degradar? Nós temos que subir. E o jeito de subir é fazendo isso aqui que nós estamos fazendo. O dia em que tiver um número suficiente de pessoas fazendo isso, os outros vão perceber e vão começar a tomar vergonha na cara. Você nem precisa passar pito neles. É uma coisa natural do ser humano sentir um repuxão na consciência quando vê uma coisa mais perfeita do que ele. Eles vão ver você e vão pensar que precisam melhorar um pouco, ou vão fingir que melhoraram. É aquele negócio: "a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude". Quando um sujeito que não presta tenta demonstrar que presta é porque ele mesmo reconhece que há alguma coisa melhor. Vamos transformar o sujeito de bandido em hipócrita, pelo menos. Tornar-se hipócrita é o primeiro passo, nisso evoluiu-se um pouco.
Aluno: O senhor faz referência à articulação das antigas ciências da natureza herdadas das civilizações cosmológicas e a doutrina cristã na obra de São Tomás de Aquino. Onde encontro isso? Existe alguma edição em inglês com essas partes?
Olavo: Sugiro o livro de Thomas Litt, Os Astros na Filosofia de São Tomás de Aquino. E existe o próprio texto do São Tomás de Aquino sobre os mistérios ocultos da natureza. Eu não lembro a edição, mas existe uma bibliografia tomista padronizada, procure por "mistérios ocultos da natureza" e você vai achar. Na Suma contra os Gentios, eu não lembro qual livro, capítulo oitenta e qualquer coisa, você verá toda a concepção astrológica de São Tomás de Aquino. Nós vivemos num mundo tão idiota que esses capítulos foram excluídos da edição online. Na edição online da Suma contra os Gentios tiraram esses capítulos, censuraram o São Tomás de Aquino.
Aluno: O senhor já disse qual era a importância da ampliação da base imaginária através da literatura para a atitude filosófica. Qual a importância da experiência em si para o filósofo?
Olavo: Essa é uma questão que eu me coloquei desde o início da vida. Por volta dos quinze anos de idade eu imaginei que queria ser escritor. Depois eu percebi que não tinha experiência de nada, não tinha feito nada, não sabia de coisa nenhuma, minha vida era uma idiotice e eu só tinha banalidades para dizer. "Pelo menos tenho que arrumar alguma encrenca" --- pensei. Foi aí que eu entrei para o partido comunista, para arrumar encrenca. Isso ampliou meu círculo de experiências formidavelmente. "Experimentai de tudo, e ficai com o que é bom", recomendava S. Paulo Apóstolo. O problema é que a experiência te compromete. Você não tem somente a experiência, você também age e toma decisões que pesam sobre você e afetam a sua vida futura --- esse é o preço da experiência.
Você pode querer comer todas as mulheres do mundo, para ter uma vida sexual variada, até que você come a mulher do vizinho e ele te dá um tiro --- aí acabou a sua experiência. A experiência pessoal tem riscos e deixa marcas. Muita coisa é válida como aprendizado e como ampliação da experiência, mas lembre-se de que a responsabilidade é totalmente sua. Ter experiência é aceitar a responsabilidade dela --- é preciso assumí-la. Depois não diga que é um coitadinho, vítima das circunstâncias.
Eu entrei no partido comunista porque eu quis. Lá eu convivi com um bando de canalhas, aprendi a me corromper, a mentir para mim mesmo etc. Aí tive que passar vinte anos limpando essa porcaria. Depois, quis aprender psicanálise. Fiz tudo quanto era análise que existia, até que fiquei numa confusão miserável da cabeça --- e levei mais trinta anos para limpar aquilo. Mas são experiências pessoais! Você não pode julgar as coisas se você não tem experiência. Você aprende alguma coisa, mas lembre-se sempre de que a responsabilidade é sua, foi você que quis a encrenca.
Aqui tem umas perguntas compridas:
Aluno: Em primeiro lugar gostaria de agradecer [01:40] por tudo que aprendi com sua ajuda, suas obras, seus artigos. Há algumas questões que não compreendo bem e gostaria de que o senhor me ajudasse a compreender. Tenho a convicção de que o ser humano só pode viver com dignidade quando considera que agir corretamente não é questão de mera conveniência social, mas de dever moral perante a sua própria consciência e, portanto, perante de Deus (...)
Olavo: Sem sombra de dúvidas. Se você não tem esta idéia do observador onisciente você nunca vai melhorar na vida. Qualquer que seja o público para o qual você fale, ele sempre terá limitações, ele só sabe um pedaço da história e você pode enganá-lo sempre. Enganá-lo para melhor ou para pior, de alguma maneira. Você pode se mostrar melhor ou até pior do que é. Você pode enganar, mas Deus tem a medida justa. Aprendendo a falar com Ele, quando você começa a exagerar na sua maldade, Deus manda você parar. E, sobretudo, uma coisa importante desse comparecimento perante Deus é você ter idéia da sua absoluta insignificância. Você é nada, nada, nada. Como se diz: "o subnitrato do pó de bosta". E, no entanto, você fala, tem consciência, pensa e fala com o próprio Deus e, às vezes, Ele até responde. Nada substitui essa experiência. Só perante isso é que você tem idéia da escala real, o resto é tudo imaginário, as escalas relativas são todas imaginárias, como perguntar-se, por exemplo, quem você é perante a sociedade humana. A sociedade humana vai passar, vai virar pó, ninguém vai ouvir falar dela. Pense assim. O que é o Brasil daqui dois mil anos? Nada. A opinião do seu círculo de amigos não interessa... eles também vão todos morrer. Por outro lado, há uma coisa que te dá uma idéia do tamanho real.
Aluno: (...) Entretanto, percebo que a cada vez que abro mão da simpatia de alguns conhecidos a fim de tornar a verdade evidente, sou extremamente atacada, como se fosse menos reprovável cometer um erro do que apontar um erro em algum raciocínio ou em alguma outra conduta (...)
Olavo: Ter razão é o maior pecado da humanidade. Você nunca pode ter razão, você tem de estar sempre errada. Isso é um bando de ignorantes, presunçosos, que querem te rebaixar a ser como eles. Se os caras não lhe aceitam, arrume amigos melhores. Um dos poucos orgulhos que eu tenho na vida é de ter propiciado o encontro entre pessoas melhores. O Brasil é país imenso, do tamanho de um continente, com 180 milhões de pessoas, sendo que os melhores e mais talentosos estão muito espalhados e não têm onde se juntar. Aqui, nos EUA, há esses clubes e grupos que juntam as pessoas por afinidade, onde se criam as verdadeiras amizades baseadas numa afinidade real. Como diria S. Tomás de Aquino: "ser amigo é querer as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas". No Brasil, entendem a amizade como uma simpatia espontânea passageira --- o sujeito é seu amigo por três dias. Por isso mesmo que vira o seu amigo do peito e, três dias depois, lhe dá uma facada nas costas --- porque não tem afinidade real. Procurando as pessoas que querem e respeitam as mesmas coisas e que desprezam as mesmas coisas, é que você vai achar o seu círculos de amizades. É como na história do patinho feio: você é o cisne querendo que os patos te aprovem --- eles não vão aprová-lo nunca. Através de todos os cursos que eu realizei, criando vários grupos, foram se juntando pessoas afins que se fortalecem umas às outras. Se esse curso não servisse para mais nada, ele ainda teria essa função de juntar as pessoas que querem as mesmas coisas. Sai até casamento nessa coisa. Quantos alunos meus não se casaram! É um negócio incrível! Se eu tivesse feito só isso... já um negócio eu fiz. Então, não faça muita força para convencer as pessoas, não. Se não lhe querem ouvir, procure outros. Como dizem: --- "Vai procurar a sua turma!"
Aluno: (...) Mesmo que fundamente minhas opiniões e apenas exija o mesmo de quem queira me refutar, acusam-me de que penso estar sempre certa. (...)
Olavo: Quem quer que pense, o que quer que seja, pensa que está certo. O que é você ter uma opinião, senão achar que essa opinião é melhor do que a dos outros? Se eu achasse que minha opinião fosse tão boa quanto a sua, então eu não teria nem uma, nem outra. As pessoas fingem que não é assim e dizem respeitar a opinião alheia --- é claro que não respeitam. Elas respeitam o seu direito de pensar errado. Isso é outra coisa. Eu posso respeitar o seu direito de ter uma opinião errada, mas não a sua opinião! Se eu respeitasse a sua opinião tanto quanto eu respeito a minha, então eu estaria indeciso, eu não saberia se eu penso como eu mesmo ou como você. O direito ao erro é o direito à experiência. Todo ser humano tem o direito de fazer experiência e de passar pelo erro, em busca de uma conclusão verdadeira. Se é um direito inalienável, então deve ser respeitado. Mas a opinião errada não pode ser tão respeitada quanto a certa. Se o sujeito diz que dois mais dois é igual a cinco, você vai dizer que respeita a opinião dele? Respeita nada, porque essa opinião não vale nada. Isso não quer dizer que você não goste dele e que não o ache um cara bacana, mas que ele está falando besteira. Tudo isso faz parte da hipocrisia brasileira. É um sistema de pressões feito para deprimir e destruir a inteligência. A sociedade brasileira é visceralmente contra o conhecimento. Isto é antigo no Brasil, e é muito pesado, muito feio. E isto é a causa de todos os nossos males, sem exceção.
Vocês lembram-se do depoimento que eu li outro dia do poeta Jorge de Lima [Aula 7, 16/5/09, em 1h17min50s], onde o Graça Aranha tentava convencer as pessoas que elas tinham que se levantar um pouco acima da brutalidade do mundo natural e os caras escolheram fazer exatamente o contrário? Têm que se ferrar. Ah, você quer um negócio telúrico, as flores da natureza, a jibóia, o boi-tatá, o peixe-boi, o boto. Você gosta dessas coisas? Isso é o seu mundo? Isso é o inferno, desgraçado! Ali você está totalmente impotente. Leiam A Selva do Ferreira de Castro e vocês verão que é o único livro que se escreveu sobre a Amazônia, no qual se vê a pressão imensa das forças da natureza e algo do espírito humano. O brasileiro não foi capaz de mostrar isso, ele só mostra o império total das forças da natureza, aquela coisa medonha, cheia de monstros. Como pode gostar de uma coisa dessas? Aí você está chamando os diabos mesmo: "me persigam, acabem comigo". Isto aí se impregnou na cultura brasileira e nós temos que acabar com isso. O Graça Aranha estava certo. O movimento de 22 estava errado. Eu contrastei esse movimento com o movimento nordestino, em que não havia esse culto a natureza, babando diante da floresta, da mãe-d'água, do boto e tratava, ao invés disso, do drama humano, do ser humano tentando se levantar acima disso.
Vocês vêem aqueles quadros da Tarsila do Amaral, com aqueles caras com uma cabeça minúscula e um pé gigante; vocês acham isso bonito? Leiam o que Monteiro Lobato escreveu sobre a Anita Malfatti --- ele estava certo! Cuspia nos quadros da mulher.
Aluno: (...) Considerando isso, não consigo entender porque uma postura pendente ao bem possa causar tanta revolta (...)
Olavo: Odiar o bem é da natureza do ser humano. Quem foi (e é) mais odiado do que Jesus Cristo? Não tenha medo disso, porque esse pessoal está contra a estrutura da realidade. Se você se apegar à estrutura da realidade, à verdadeira realidade, todo mundo pode estar contra, mas você vai ganhar. No fim das contas, você sempre vai ganhar, você não vai perder nada. Você pode perder alguns amigos que não prestam. Amizade, no Brasil, é parasitismo, para lhe sugar, manter você ocupado com besteira. [01:50] É amizade que não dá nada para ninguém. Você tem de procurar amigos melhores, sim. Amigos melhores são aqueles que querem as mesmas coisas, estão indo para o mesmo lugar e se ajudam uns aos outros. É isso aí, vá em frente!
Aluno: Na última aula eu fiz uma pergunta que o senhor gentilmente respondeu, mas não compreendi a sua resposta. Quando falei sobre planos, não estava me referindo a minha vida, mas aos planos da realidade. O que eu queria saber é se aquela formulação estava correta, pois não consegui tirar aquilo da minha cabeça.
Olavo: Mas agora eu não me lembro da sua pergunta. Posso deixar para a aula que vem? Aí eu junto sua primeira pergunta com a segunda, e vamos começar tudo de novo, já que você não entendeu. Talvez eu é que não tenha entendido a sua pergunta.
Aluno: Desde que o curso começou eu tenho tido muitas idéias e muitas vontades de escrever dois tipos de textos: narrativas e ensaios. Tenho surpreendido a mim mesmo tendo sucesso em escrever narrativas --- acredito que se dê uma razoável imitação de bons autores. Contudo, quando vou escrever ensaios, principalmente de crítica literária ou comentário político, o texto sai truncado, sem conexão entre um parágrafo e outro (...)
Olavo: Mas você leu um número suficiente de críticos literários para poder imitá-los?
Quando você lê o Otto Maria Carpeaux, por exemplo, ele constrói os ensaios dele de uma maneira impressionista, ele vai dando sucessivas impressões para que, no fim, se insinue alguma coisa. Ele mais insinua do que diz. É uma técnica. Outros seguem técnicas completamente diferentes. O Álvaro Lins é completamente diferente, ele está sempre interessado no aspecto moral, ele monta uma discussão moral em cima dos autores, realça o valor moral da coisa. Você tem de ler os críticos literários para imitá-los. A crítica literária é um gênero em si mesmo, é um gênero enormemente rico. O Wilson Martins, por exemplo, escreveu a história da crítica literária no Brasil (A Crítica Literária no Brasil). Há muitos autores ali que não prestam, mas dê uma olhada, o que sobra de coisa boa é muito bom.
Aluno: (...) Simplesmente não consigo definir a estrutura e a armadura do texto, embora tenha em mente, acredito, uma idéia clara do conteúdo.
Olavo: Bom, pode ser que você tenha uma inclinação natural para criar a ordem narrativa, mas que você não tenha o mesmo talento inato para a ordem das idéias ou para a ordem das sugestões de idéias. Por isso mesmo eu sugiro que você leia tanto críticos literários quanto ficcionistas.
Aluno: (...) Preciso de alguém para imitar ao escrever ensaios eminentemente retóricos. Baseio-me às vezes na sua escrita e às vezes na escrita de outros, como Gustavo Corção, Otto Maria Carpeaux etc., mas nada conseguiu me ajudar. Preciso conhecer a retórica?
Olavo: Não se trata de você estudar a retórica, mas de você ler muito mais críticos literários. Às vezes, quando o número de modelos é pequeno, isso é pior do que modelo nenhum. Se você só tiver um ou dois para copiar você está lascado, você tem de ter um montão. Pelo menos hoje, eu sugeriria: Sainte-Beuve (1804-1869), Matthew Arnold (1822-1888), Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), Fidelino de Figueiredo (1889-1967), Álvaro Lins (1912-1970) e Augusto Meyer (1902-1970). Os artigos de crítica e ensaios do Carpeaux são meio poéticos. Augusto Meyer é mais ainda. São completamente diferentes do que faz o Matthew Arnold, por exemplo. Não deixe de fazer essa experiência, isso vai lhe fazer muitíssimo bem.
Uma pergunta simples:
Aluno: Qual a melhor edição do Dostoiévski em português?
Olavo: As obras de ficção completas de Dostoiévski, em dez volumes, publicadas pela José Olympio. Alguns grandes escritores fizeram as traduções, como José Geraldo Vieira e Rachel de Queiroz. Essas traduções são muito melhores do que as que saíram pela Editora Aguilar. Acho uma edição muito valorosa. Elas ainda se encontram por preços relativamente baratos em sebos. Procure no site: www.estantevirtual.com.br. Eu mesmo comprei um ou outro livro, porque eu já comprei essa coleção mais de dez vezes. Elas acabaram sumindo, perdendo-se nas mudanças, ou a gente dá para alguém ou vende para o sebo e depois compra de novo. Eu já vendi tanto livro para sebos, que uma vez me trouxeram um livro de volta. Era um livro em que o autor dizia algumas bobagens sobre o Ortega y Gasset e eu tinha escrito na página, com lápis: "isso é um filho da puta!" --- alguma coisa assim. Um amigo meu, Alcides Lemos, achou aquilo num sebo, leu e pensou: "Isso só pode ser coisa do Olavo!" --- Comprou o livro e me trouxe de volta.
Temos aula na semana que vem, no mesmo horário. Muito obrigado a todos!
[Fim da aula]
Transcrição feita por: Tiago Aurich, Flávio Montenegro, Luiz Alberto, Paulo Camargo, Maurício Brum Doval, Vinicius Krause, Maria Cristina Albe Olivato, Marcelo Hamnickel
Revisão feita por: Marcelo Hamnickel
Revisão final feita por: Mariana Belmonte