Curso Online de Filosofia
[Olavo de Carvalho]{.smallcaps}
Aula 05
25 de abril de 2009
[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.
[COF 20090425]
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Boa tarde a todos, sejam bem-vindos!
Sobraram aqui algumas perguntas da aula passada, mas eu desejaria antes dar algumas explicações, que são a matéria própria dessa aula. Então a gente começa, depois interrompe, volta para as perguntas e depois retoma o assunto.
Se eu tenho insistido tanto nessa formação literária como preliminar ao estudo da filosofia, é por um milhão de razões diferentes. Não só pelo o que está ali na teoria dos quatro discursos (aqueles que leram o livro --- Aristóteles em nova perspectiva --- irão entender perfeitamente qual é o meu propósito aí), mas também pelo que diz Benedetto Croce, no começo do livro Logica come Scienza del Concetto Puro (Lógica como Ciência do Conceito Puro): "O pressuposto da atividade lógica são as representações ou intuições. Se o homem não representasse coisa alguma, não pensaria. Se não fosse espírito fantástico, não seria também espírito lógico".
Isso é absolutamente fundamental. Há uma certa organização do mundo imaginário --- ampliação, fortalecimento e organização do mundo imaginário --- que é pressuposto de qualquer atividade filosófica produtiva. Quando falta isso, os efeitos são simplesmente devastadores. Vocês não podem esquecer que qualquer elaboração lógica, qualquer exposição ou discussão lógica, é feita originariamente a partir de certas experiências humanas --- experiências que não foram vivenciadas como experiências de pensamento, mas como experiências de realidade, constituídas de sensações, de intuições, de representações etc. É assim que o mundo nos chega. O mundo não nos chega como uma argumentação lógica; somos nós que o transfiguramos numa exposição lógica na medida em que nós passamos da linguagem dos fatos para a linguagem das possibilidades --- mais tarde eu explicarei isso com mais clareza ---, porque a lógica é apenas uma articulação das possibilidades, ela não tem nada a ver com os fatos.
Quando nós damos um tratamento lógico ao material da experiência --- passando-o da linguagem dos fatos e dos dados para a ordem das possibilidades ---, o que acontece é que a geração seguinte (as pessoas que recebem a nossa mensagem, que lêem ou que ouvem o que nós estamos dizendo) não têm um acesso direto às nossas memórias, não têm acesso ao fundo de experiência do qual nós tiramos aquilo, e as idéias, se desvinculadas dessa experiência originária, não têm substância nenhuma. É mais ou menos como o dinheiro. O dinheiro é um negócio que está impresso em papel, e que idealmente corresponde a uma certa quantidade definida de bens (os bens são indefinidos, mas a quantidade é definida). Se não houver os bens pelos quais você trocar o dinheiro, o dinheiro não é nada, é apenas papel pintado. É justamente nessa troca que está o problema --- na hora em que você pega o seu raciocínio lógico para trocá-lo por fatos, mas não vê nada. E esses fatos não são acessíveis pela própria linguagem lógica; eles só são acessíveis por linguagem de imaginação, que é o modo de comunicação próprio da experiência.
Então, idealmente, o leitor de um livro de filosofia deveria ser capaz de puxar debaixo daquela exposição lógica as experiências que deram origem àquilo. Não precisa ser experiências que historicamente o autor teve, mas um análogo. É só através desse análogo, dessa investigação imaginativa, que você vai entender o que o sujeito está falando. Se não, seria como se garotos de outra sociedade, que não a brasileira, ficassem trocando figurinhas de jogadores de futebol, sem saber o que é futebol. Os nossos meninos trocam figurinhas de jogadores de futebol porque eles têm idéia de quais são os times, se esse jogador é melhor que o outro etc. Então as figurinhas significam algo mais do que meras figurinhas; elas significam todo um mundo que não é um mundo impresso (um mundo de papel), mas um mundo de ações efetivas, praticadas ali no campo de futebol. Se o sujeito não sabe o que é futebol, mas sabe que aquelas figurinhas têm um certo valor de troca, ele pode prosseguir com o valor de troca, mas sem saber a quê as figurinhas se referem.
Praticamente tudo o que eu li de filosofia escrito por professores universitários no Brasil é assim: não há substância de experiência por baixo daquilo; há apenas um intercâmbio de símbolos convencionais, ou seja, é realmente a "troca de idéias", no sentido mais literal do termo (eu tenho uma idéia aqui, você tem uma outra, a gente troca). Não há referência ao mundo da realidade. Quando o indivíduo é espremido para mostrar a substância de realidade do qual está falando, ele fica absolutamente impotente, porque não fez aquele esforço imaginativo para reconstituir a experiência.
A reconstituição da experiência originária é noventa por cento do trabalho de compreensão de um livro de filosofia. Quando você lê um romance, um poema ou uma peça de teatro, você não tem dificuldade de reconstruir a experiência porque essa obra é justamente a reconstituição de uma experiência originária. Paul Claudel definia uma peça de teatro como "um sonho acordado dirigido", quer dizer, você não precisa fazer esforço nenhum para reviver o sonho, porque ele já está mostrado ali. Desse sonho que você revive ali podem ser tiradas várias conclusões; o significado intelectual, o alcance intelectual daquela experiência não está dado por si mesmo na peça ou no romance --- você vai precisar fazer um esforço para transpor aquilo da linguagem do sonho, da imaginação, para a linguagem dos conceitos. E é exatamente o contrário o que você vai fazer em um livro de filosofia. Você pode assistir a uma peça ou um filme e sentir um impacto muito grande, sem os compreender intelectualmente. Isso é perfeitamente possível. Você leva aquele susto, aquele impacto, aquela emoção, mas não é capaz de traduzir aquilo numa linguagem filosófica --- não é capaz de dizer em linguagem de conceitos o que aconteceu. É nessa transposição, nessa tradução de uma linguagem para outra, que está todo o mecanismo da compreensão: você trocar da linguagem poética para a linguagem filosófica e vice-versa, esse é todo o truque. Nos dois casos você tem de reconhecer a prioridade da experiência, porque a experiência consiste dos dados, do material primário. As interpretações que você pode fazer podem sair erradas, mas os dados são os dados, não há o que discutir neles.
Quando você não consegue extrair os conceitos filosóficos que estão embutidos em um filme, uma peça ou romance (às vezes são vários conceitos, inclusive contraditórios), isso quer dizer que você não teve uma experiência intelectual clara, mas pelo menos teve a experiência primária. São como as coisas que acontecem na vida e você não entende. Por exemplo: você está andando na rua, chega um sujeito e lhe dá três porradas. Você não entende, não sabe o que aconteceu, não tem uma explicação para aquilo, mas sentiu as porradas. Agora, se você vê que o sujeito está bêbado, vem para cima de você e lhe dá três porradas, então essa experiência, de certo modo, é auto-explicativa: "o sujeito bateu em mim porque estava bêbado". Mas e se vem uma pessoa que não está bêbada, um desconhecido, e enche você de porrada? Sem dúvida você sentiu a experiência, mas ela não tem um significado inteligível para você.
Num livro de filosofia, você tem ali uma explicação inteligível, só que falta uma coisa: você não sabe a que ela se refere no mundo da realidade. Ela é apenas uma articulação de [00:10] juízos e conceitos possíveis sem raiz no mundo dos fatos. Se é sem raiz no mundo dos fatos, você só pode dizer que aquilo é possível --- pode ser que seja assim e pode ser que não seja. E, quando você obtêm uma certeza maior, é apenas uma certeza de ordem lógica. Ora, uma certeza de ordem lógica é, por assim dizer, uma certeza vazia. Nós sabemos, por exemplo, que se "x = y" e "y = b", então "x = b"; mas o que é o "x" e o que é "b"? Nós não sabemos. Nós sabemos que isso será verdade, pouco importando o que seja "x", "y", ou "b", ou seja, nós temos a certeza de uma articulação lógica. Essa articulação lógica nos revela não uma realidade, mas uma possibilidade. A lógica inteira é a articulação da possibilidade. No máximo, você fica sabendo que, se acontece isso, então acontece aquilo. Porém, *aconteceu *isso? Nós não sabemos. É um conhecimento que pode ser exato, mas é vazio ---[ ]{.ul}ele não tem substância, não se refere a nada. É possível fazer uma carreira filosófica inteira assim, sem jamais ter um contato com a realidade. Há filosofias inteiras que não têm coisa nenhuma a ver com a realidade, absolutamente nada.
Isso quer dizer que, se não existe, na formação filosófica do indivíduo, uma certa preparação da memória, da imaginação, da fantasia e da expressão verbal correspondente, ele não será capaz de sondar o mundo de experiência que está por baixo das investigações filosóficas, e não saberá o que elas significam realmente, mas só o que elas significam convencionalmente.
Vou dar um exemplo. Há uma apostila minha, que eu não sei se está na internet, e que é a segunda parte das minhas investigações sobre René Descartes. A primeira parte chama-se "Descartes e a psicologia da dúvida" e segunda, cujo título eu esqueci, é a continuação desta. Na verdade é uma transcrição de aula, e nessa transcrição eu examino a estrutura interna das Meditações Metafísicas de René Descartes e me pergunto: "O que ele está querendo realmente fazer ali? Do que se trata efetivamente? Qual é o problema que ele está discutindo?". Eu pego cada idéia que ele está colocando lá e procuro o seu equivalente na experiência; procuro preencher aquilo com conteúdo imaginativo. (Só pode ser um conteúdo imaginativo, porque eu não tenho um conteúdo histórico --- não sei o que René Descartes efetivamente estava vivenciando. Nós temos uma dica ou outra, e essas dicas são preciosas, como nós vamos ver daqui a pouco, mas elas não bastam para preencher a coisa inteira).
Nós sabemos apenas "o que" René Descartes estava falando, nós não sabemos o "do quê". Muitas vezes o autor, ou filósofo, não quer que você saiba de que experiência ele está falando: ele pega a experiência, a transpõe numa idéia, num esquema lógico, e quer que você olhe somente isso, ou seja, no fundo, ele não quer que você entenda o "do quê" ele está falando. Neste caso, a idéia começa a funcionar como uma força hipnótica: ela tem de ser apreciada em si mesma, sem referência à realidade. Nessa caso, o autor está exigindo que você se transponha a um outro mundo de discurso, que não é o mundo do discurso da experiência humana, e que você raciocine e perceba tudo desde aquele patamar puramente inventado que ele colocou para você. Isso não é honesto; nunca é honesto.
No caso do Descartes, a cada frase que ele coloca, eu me pergunto qual é a experiência correspondente, ou seja, do que ele está falando na realidade? Não precisa ser necessariamente a realidade do que se passou na mente dele, na vida dele, mas uma experiência que eu, ou qualquer pessoa, precisa ter para daí poder tirar aquela idéia. Por exemplo, ele tem a proposta da dúvida radical: a dúvida radical é ficar em dúvida sobre tudo, colocar tudo entre parênteses, até você ter alguma confirmação. Daí eu perguntei se na experiência real alguém pode fazer isso. É claro que não pode. A dúvida geral é logicamente impossível e psicologicamente inalcançável, porque, para você formular uma única dúvida, você tem de se basear em alguma certeza prévia. Se todas as coisas forem duvidosas, você não consegue formular a dúvida. Uma coisa só é duvidosa porque ela contrasta com outra que não o é. Descartes não teve a experiência da dúvida radical; ele diz que teve, mas isso não é possível. Ali você tem uma fórmula filosófica que, em vez de elaborar, encobre uma experiência e lhe dá um nome diverso. Se a experiência que ele teve não foi a da dúvida radical, qual foi então? Se ele usa a expressão "dúvida radical", mas eu sei que isso não existe na realidade, então ele não está usando essa expressão como um nome de uma coisa que existe (como nome de um fato ou de um estado real), mas como uma metáfora, uma figura de linguagem. A que esta figura de linguagem se refere? Não é como, por exemplo, quando um filósofo fala de percepção sensível: nós sabemos o que é percepção sensível --- todos nós temos, então todos nós sabemos a que ele se refere; logo, podemos continuar raciocinando com base na hipótese de que ele está se referindo a uma experiência que nós também temos, uma experiência comum. Mas quando Descartes fala da dúvida radical, nós não temos a dúvida radical e sabemos que ela é impossível, então não pode ser disso que ele está falando. Se o que ele chama de "dúvida radical" (ou dúvida integral, dúvida total, ou dúvida metódica) não existe, e se esse termo é uma figura de linguagem, então quer dizer que ele se refere indiretamente a uma experiência que não é uma dúvida radical, mas que se parece com isso de algum modo. Então, vamos chamar esta experiência de uma "incerteza muito grande". Todos nós podemos ficar numa incerteza muito grande: quando você está em uma situação difícil, complicada, atemorizante, e você não sabe o que está acontecendo, a sua mente dispara milhões de perguntas --- "Será que é isso? Será que é aquilo?" --- e você não encontra a resposta. Isso é uma inquietação, uma dúvida muito grande, é um estado de angústia associado a uma incerteza. Mas essa incerteza não poderia ser tão intensa se não houvesse ali algum risco envolvido, se não fosse uma incerteza referente a um perigo. Então René Descartes está se referindo, indiretamente (por meio de uma figura de linguagem), a uma experiência temível que importa numa incerteza. Ele, não querendo contar qual é essa experiência, a transpõe num conceito filosófico, que é usado não como conceito filosófico, mas como figura de linguagem. Estão percebendo como é o truque? A transposição da experiência para o conceito não é uma transposição direta, franca e honesta; é uma transposição camuflada.
Sondando biograficamente a vida de René Descartes, a gente descobre que por mais ou menos esta ocasião, ou um pouco antes, ele teve uma sequência de três sonhos atemorizantes em que o demônio o enganava. Então a história que ele inventa do "gênio mal" não é uma hipótese; esta foi a experiência. Ele sofre, por assim dizer, um ataque demoníaco [00:20] durante a noite, naquele sonho, e esse sonho o coloca numa grande incerteza. Esta incerteza não pode ser uma dúvida integral, ou dúvida metódica, no sentido lógico da coisa.
Bom, eu não vou poder repetir agora toda a explicação que eu dei ali. Eu esqueci mesmo o nome da apostila...
Aluno: "Consciência e estranhamento".
"Consciência e estranhamento", exatamente. Está no website? Está! Então vocês leiam lá. É meio complicado e está meio mal transcrito, mas dá para entender no fim. Eu faço toda uma re-exposição do negócio do "Descartes e a Psicologia da Dúvida" até chegar à conclusão.
Descartes se sente desafiado pelo demônio e quer encontrar um ponto de apoio contra ele --- um ponto de apoio puramente discursivo e lógico, o que não é possível, porque o diabo é um lógico melhor do que ele. Descartes coloca um problema teológico e quer resolvê-lo por meios puramente lógico-analíticos, o que não é possível. A prova de que não é possível é que ele, por duas vezes, no fim, encontra a saída apelando para a fé em Deus --- que era exatamente o que ele não queria fazer no começo. Nós vemos que todo o método de Descartes, que historicamente tem a fama de ser um dos métodos mais rigorosos e lógicos, não é nada disso: é uma camuflagem de uma alucinação. E aí nós entendemos o René Descartes. Ele tem um problema real, que é esse confronto com o demônio --- é o demônio que o engana. Ele percebe de algum modo que o demônio é mais esperto do que ele, que o demônio coloca para a inteligência dele desafios que transcendem a capacidade dela, mas, ao mesmo tempo, ele quer enfrentar o demônio apenas com essa mesma inteligência que já se demonstrou incapaz de enfrentá-lo. Existe um inimigo malicioso, mais inteligente que o René Descartes, o qual ele não pode enfrentar apenas com os seus recursos humanos --- tanto que ele vai ter de apelar à explicação de que "Deus é bom e não faria isso comigo". Bom, mas se era assim, então o problema não se coloca desde o começo. Se era assim, ele deveria ter dito isso na primeira linha e teria acabado o livro já ali, na primeira linha. No caso, então, são enigmas e dificuldades colocados por uma filosofia, mas que são resolvidos em um nível psicológico. E, neste caso, felizmente, eu pude comprovar historicamente o que eu estava dizendo, porque existem dados sobre isso na biografia do René Descartes --- não são dados tão evidentes, a maior parte dos biógrafos não chamam a atenção para isso, mas procurando você acha. Sem isso, o que aconteceria? Eu estaria discutindo a filosofia de René Descartes nos termos que ele propôs; mas estes termos não foram feitos para elucidar uma experiência, e sim para encobri-la. Isso quer dizer que, em cima da experiência real, Descartes constrói outro esquema verbal, puramente hipotético, fazendo de conta que está falando da realidade, e convida os seus leitores a entrar nesse outro teatrinho, onde naturalmente é ele quem dá as cartas, ele quem dita as regras. Isso não é uma investigação filosófica decente.
Que mais tarde isso se tornasse, para toda a filosofia moderna, um ponto de referência, ao ponto de Edmund Husserl dizer que toda filosofia decente tem de partir de onde René Descartes partiu (e de fato a maioria acabou fazendo isso), inaugura uma sequência de jogos filosóficos, não só inúteis, mas estéreis, onde nunca é possível alcançar a solução dos problemas, porque você estará jogando com cartas marcadas desde o início. Existe um livro excelente do Leszek Kolakowski, um filósofo polonês, sobre a obra de Husserl, onde ele demonstra que tudo o que Husserl tentou fazer é impossível de ser feito. É como Descartes: a proposta já está furada desde o início, não dá para realizar aquilo. Eu mesmo mostrei, em várias aulas (podemos voltar a isso mais tarde), que a filosofia de Kant também é uma proposta inviável --- não dá para fazer o que o Kant diz que vai fazer. Então acabam fazendo uma outra coisa, e vão colocando camuflagem em cima de camuflagem, em cima de camuflagem... É por causa desse tipo de investigações que eu acabei chegando à conclusão de que praticamente toda a filosofia moderna é uma espécie de empulhação --- uma empulhação inteligente, às vezes notável, e que a meio caminho faz muitas descobertas interessantes sobre a realidade, mas nunca referentes aos pontos centrais que o filósofo quer resolver. As filosofias de Platão e Aristóteles se conservam inteiras na sua estrutura geral, embora tenham um monte de erros de detalhe. Já nas filosofias modernas é exatamente o contrário: a estrutura geral não vale nada, mas tem uma série de acertos de detalhe que são notáveis.
Para chegar a isso, nós temos que apelar a um tipo de investigação imaginativa. Temos que ler Descartes como se lêssemos uma obra de ficção, como se vivêssemos um "sonho acordado dirigido". Temos que fazer com que aquele depoimento que Descartes apresenta soe nos nossos ouvidos como se fosse a fala de um personagem de teatro que não está explicando ou descrevendo o mundo para nós, mas expressando o seu estado interior, e, por trás deste estado interior, nós temos que descobrir qual é a realidade dos fatos que o deixaram nesse estado. É como o sujeito que está se queixando de que a mulher o abandonou, chorando etc., mas depois você descobre que ela o abandonou porque, quando ela chegou em casa, o encontrou com outra na cama, então ela foi embora. Você parte do estado que ele expressou para a descrição correta da realidade que gerou esse estado. O estado continua sendo válido em si mesmo; ele é verdadeiro em si mesmo, mas enquanto expressão do estado interior do indivíduo, e não enquanto descrição da realidade. É o negócio das famosas "funções da linguagem" do Karl Bühler --- ele está na clave expressiva, e não na clave descritiva, na clave nominativa. Então, nós temos que passar o discurso dele de uma clave para a outra. O indivíduo nos diz o que está sentindo, mas nós queremos saber por que ele está sentindo assim, de onde surgiu este sentimento, e daí nós entendemos a situação inteira. Porém, se ele nos esconde os fatos, é porque está querendo nos impor o seu estado interior como se fosse ele mesmo o único fato --- está querendo nos dominar psicologicamente. Muitos filósofos fazem isso. É precisamente o que não acontece com a filosofia antiga. Isso jamais acontece com Platão e Aristóteles --- eles não estão escondendo nada. A realidade da experiência da qual eles partem transparece a todo o momento através dos diálogos de Platão, dos textos de Aristóteles etc. Você sabe do que eles estão falando. Claro que eles podem errar, mas uma coisa é errar, e outra coisa é camuflar.
[00:30] Toda a filosofia dessa época de Descartes é muito marcada por camuflagem, por ser --- dentre outros motivos --- a época do surgimento da chamada ciência moderna. A ciência moderna quer transpor todas as discussões para um terreno neutro onde tudo possa ser resolvido mediante observações e medições.
Nós podemos perguntar: "Por que eles queriam fazer isso se todos os fundadores da ciência moderna eram também ocultistas, alquimistas, magos, gnósticos etc.?" Em grande parte, o surgimento da ciência moderna é uma camuflagem --- as experiências reais não estão transpostas plenamente na linguagem final. Há uma seleção, uma seleção da seleção e assim por diante, de modo que no final sobra um terreno muito delimitado e eles não admitem que você saia e discuta as coisas fora desse terreno. Não é possível escrever a história da ciência ou da filosofia moderna sem escrever ao mesmo tempo a história da camuflagem, a história da empulhação.
Aquilo que aconteceu com Newton é um exemplo. Foi o economista John Maynard Keynes que descobriu os escritos mágicos e alquímicos de Newton, que eram em volume vinte vezes maior do que seus escritos de física. De início, pareceu que aquilo era apenas uma esquisitice de Newton, mas, à medida em que foram estudando, foram vendo a articulação profunda que havia entre suas concepções mágico-alquímicas e teológicas com a sua física. Hoje se sabe que não é possível compreender a física de Newton isolando-a de todo esse contexto. No caso, não foi Newton que escondeu (ele não escondeu nada), mas os seus sucessores sumiram com esses escritos. Assim como a história da irmã de Nietzsche, que escondeu uma série de escritos dele, que mais tarde apareceram.
Entrar numa discussão filosófica assim concebida, onde existe essa camuflagem, é aceitar um jogo de cartas marcadas, é aceitar ser manipulado. Isso não podemos aceitar de jeito nenhum. Temos de perguntar: "Do que você está falando realmente? Qual é a experiência real da qual você tira isso?". Não que o sujeito, a todo o momento, precise estar contando a sua biografia. Não é isso. Mas a coisa tem de ser exposta de modo que a experiência subentendida, ou seja narrada, ou seja facilmente imaginável. Quando o indivíduo se refere, por exemplo, a experiências que são comuns a toda humanidade, ele não precisa ficar narrando aquilo, não precisa se referir concretamente aos fatos, porque, ao ler o nome do conceito, você já sabe do que ele está falando. Quando Aristóteles define os animais como seres vivos que têm um movimento próprio, ele está falando de uma experiência comum a todo mundo (nós sabemos que as árvores não se deslocam, mas que os gatos andam sem que você tenha de tirá-los do lugar). Aristóteles não precisava explicar isso, não precisava se referir ao elemento biográfico ("olha, eu tinha um gato..."), porque ele é facilmente reconstituível.
Isso não acontece, por exemplo, quando Newton fala da "eternidade do movimento". Veja, eternidade e movimento são termos contraditórios. Não há movimento numa coisa que é eterna --- ela transcende o movimento. Ele usa uma expressão contraditória: "o movimento eterno". Será que Newton é burro? Não. Então ele quis dizer alguma outra coisa. Que coisa? Você só vai encontrar a explicação para isso nas teorias teológicas de Newton. E, no entanto, no livro Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, ele usa isso como se fosse apenas um artifício descritivo --- um conceito que em si não tem importância, mas que é usado para facilitar as medições. É assim que ele apresenta esse conceito e todo mundo que estuda física usa-o exatamente assim, e diz: "Ah, mas o restante da física de Newton não é afetado por isso". Sim, o restante não é afetado, e foi feito para não ser afetado, mas tem um truque ali na porta de entrada, e, se você o aceita, daí por diante o resto decorre logicamente. Só que é o seguinte: você não sabe do que Newton está falando. Na verdade, a idéia do "movimento eterno" não é apenas um recurso convencional que ele usou para facilitar as medições. Essa idéia reflete toda uma especulação teológica de Newton, mas nós temos que cavar por trás do conceito para saber do que ele está falando.
Quando acontecem essas coisas, geralmente há uma contradição lógica que chama a atenção do leitor atento --- mas são muito poucos os leitores atentos. A maioria lê "movimento eterno" e passa adiante, passa batido. Só uns dois ou três que leem e pensam: "Peraí, mas a expressão é autocontraditória. Aí tem algum problema". O que é eterno transcende tempo. O que transcende tempo não pode ser medido temporalmente, e um movimento que não tenha referência temporal não pode ser um movimento. Tem alguma coisa errada aí. Não se trata de contestar Newton. Newton não está errado, não é isso o que eu estou falando. Estou dizendo que ele cria um edifício que pode ser aceito nos termos da ciência moderna (que ele está ajudando a conceber), mas que esconde um edifício muito maior, que você acaba engolindo na hora em que aceita aquele. Quando você vê, ao longo do desenvolvimento da ciência moderna, o grande número de cientistas que estiveram envolvidos com negócios ocultistas, gnósticos etc. --- culminando nos famosos gnósticos de Princeton, de que fala o livro de Raymond Ruyer [autor de A Gnose de Princeton] ---, ou no caso de Charles Darwin, que elabora toda uma doutrina científica em cima de uma doutrina esotérica do avô dele, você começa a escavar e descobre que existem universos inteiros de ocultismo por debaixo disso. Então, é uma precaução elementar saber que o universo definido, recortado, pela ciência moderna, não existe. Ele é apenas um universo de discurso elaborado em cima de uma experiência real que ele encobre.
Isso aqui é para dar um exemplo de como a formação imaginativa é importante para entender isso. Toda investigação desse tipo é uma investigação de tipo histórico, porque você está perguntando o que se passou efetivamente, quer dizer, qual é a origem, qual é o fundamento existencial das doutrinas que nós estamos discutindo. Na maior parte dos casos, os dados não estão à mão. Você pode até descobri-los depois, mas, se você não fizer imaginativamente a especulação e a hipótese, não vai descobrir nada no fim das contas. Você tem de transformar num personagem o filósofo que está apresentando uma doutrina esquisita.
Note bem, quando digo "esquisita", não estou dizendo uma coisa que seja inusitada para o senso comum, porque uma coisa pode ser inusitada para o senso comum e ser inteiramente correta e translúcida em si mesma. Eu me refiro a uma coisa que é incongruente com ela mesma, como, por exemplo, a "dúvida integral". Essa expressão é autocontraditória. Se você aceita isso de primeira --- a maior parte das pessoas aceita, como se fosse uma coisa óbvia ---, você entra num teatrinho mental onde tudo funcionará como o autor quer que funcione, e você terá de obedecê-lo, jogar de acordo com as regras dele. Aí não se trata propriamente de filosofia, mas de um adestramento animal: o sujeito está como um domador querendo adestrar seus pensamentos, para que você pense exatamente daquele jeito. [00:40] (Não que todo filósofo não queira que você pense daquele jeito, mas alguns querem que você pense daquele jeito porque aquilo vem da realidade, e outros querem apenas para que você seja igual a eles, frequentemente para justificar suas próprias deficiências). Não se pode negar que Descartes foi um sujeito verdadeiramente obcecado pela figura do demônio, e ele quer que você fique assim também. Por que ele quer isso? Com que direito? Quais são os títulos que ele apresenta para isso? O filósofo só tem o direito de argumentar em nome da realidade. Ele não é superior à realidade; é apenas mais um sujeito que, dentro de um esforço humano milenar para dar a ela alguma inteligibilidade, está lá acrescentando o seu pedacinho --- é só isso que ele está fazendo. Ele não pode criar um outro mundo para botar você ali dentro. É isso o que esses camaradas fazem --- Descartes, Kant... "O mundo não é como você o viu, não é como toda a humanidade o viu; o mundo é do jeito que eu estou dizendo." O sujeito, quando começa com isso, está com treta.
A primeira providência que o filósofo deve tomar é validar a experiência comum e geral. Ele tem de validar; não pode superá-la. Ele pode torná-la mais inteligível, pode superá-la intelectualmente, no sentido de que a experiência é opaca e ele vai torná-la translúcida --- neste sentido, sim. Mas ele não pode superar a substância da experiência; ele não pode dizer que a humanidade inteira viu errado e que só ele viu certo. Mesmo porque o filósofo não pode esclarecer todas as questões que surgem da experiência, mas apenas uma ou duas. Todas as explicações que ele dê sobre este e aquele pontos se fundamentam numa infinidade de conhecimentos de senso comum que ele vai continuar aceitando durante a sua discussão. Quando o filósofo pretende ir além disso, naturalmente faz besteira. Como Sir Arthur Eddington, que dizia: "O que vocês estão vendo aqui parece uma mesa, mas isto é uma ilusão, porque na verdade isto aqui é um aglomerado de átomos." Ninguém levantou-se e disse: "Professor, que coisa engraçada, porque isso que, encarado numa certa escala, parece um aglomerado de átomos, numa outra escala parece exatamente uma mesa, né?" É uma coisa tão simples de dizer... O raciocínio dele se baseava simplesmente numa mudança de escala: passando da escala macroscópica (em que nós usamos a mesa para escrever, para comer etc.) a uma escala microscópica, a mesa parece um aglomerado de átomos. Se você examinar mais ainda, podem ser partículas sub-atômicas, e assim por diante. Por que uma simples mudança de escala seria uma passagem do aparente para o verdadeiro? A diferença entre aparência e realidade não é a mesma diferença do grande e do pequeno. Há aí evidentemente uma confusão primária. Só porque o sujeito pôde observar isso numa escala microscópica, ele sabe mais do que nós? Se eu mostrar a ele só a visão microscópica de um objeto, em escala atômica ou sub-atômica, e essa for a única coisa que ele puder examinar, ele jamais poderá nos dizer o que é esse objeto --- será incapaz de distinguir uma mesa de um elefante, porque essa distinção só aparece na escala macroscópica, que é a da nossa experiência usual.
Essas pessoas que desejam substituir a experiência, e às vezes até impugná-la, em vez de elucidá-la, como fazia Sir Arthur Eddington, ou como faz Spinoza, que impugna a experiência sensível, estão sempre com treta. E, se existe isso, você precisa descobrir do que se trata. Qual é o jogo que ele está jogando, afinal de contas? O que ele quer de nós? O meio de fazer isso é transformá-lo num personagem de teatro e analisá-lo, analisar sua conduta, de modo a reconstituir o enredo a partir da conduta de um só personagem. Por exemplo, na peça Otelo, se você apagar todas as falas da Desdêmona, ainda assim é possível, a partir da fala do Otelo, descobrir que ele tem uma mulher, que está desconfiado de que ela está o traindo etc. Você tem de fazer a mesma coisa com esses personagens, só que, para isso, você precisa de um treino narrativo. Você precisa conhecer centenas ou milhares de esquemas narrativos possíveis para saber em que direção você tem de procurar.
É por isso que eu digo que essa formação literária é básica. Não no sentido de se dedicar a estudos literários como se faz numa faculdade de letras. Hoje o que a faculdade de letras faz é tornar o sujeito incapaz de ler uma história. Nós só lemos essas histórias --- Dom Quixote, Crime e Castigo etc. --- porque elas se referem a personagens que poderiam existir realmente, nos quais, de algum modo, nós nos reconhecemos. Mas se você acredita que a narrativa não tem nada a ver com a realidade, que não há pessoas, mas somente palavras etc., então o seu foco de atenção se transferiu desde a imaginação concreta do escritor para o estudo dos seus meios de expressão considerados isoladamente --- meios de expressão que evidentemente existem, mas, sem o *que *expressar, não será possível. É isto que faz todo esse negócio de desconstrucionismo, estruturalismo etc.: desviar a atenção do estudante de letras, da substância humana da literatura, para o estudo exclusivo dos meios expressivos --- a língua, a gramática etc. É claro que isso é um sinal de burrice. O simples fato de o sujeito aceitar essa proposta já é uma burrice. Só que, tanto no caso do estudante de letras, quanto no de filosofia, acontece uma coisa trágica. Quando ele começa a estudar na universidade e passa da linguagem do senso comum para aquela linguagem conceitual elaborada, começa a achar que deu um salto qualitativo enorme. Este salto é dado rompendo com a linguagem da experiência comum e passando a falar só naquela outra linguagem empostada dos estudos acadêmicos. Isso seria um progresso, assim como aprender a andar de bicicleta, quando você já sabe andar. É um upgrade, sem dúvida, porque a bicicleta é mais rápida do que você. Mas, se no instante em que você aprende a andar de bicicleta, você desaprende a andar com os seus dois pés, não houve progresso algum: houve a conquista de uma deficiência. Acontece que a maior parte dos estudos acadêmicos, principalmente no Brasil, consiste nisso. Eles separam o indivíduo do mundo da experiência e o inserem num outro universo de discurso, que lhe parece mais elegante, mais sério, e desde o qual ele pode olhar até com desprezo para o mundo da experiência. Só que tudo o que ele fez foi progredir no emburrecimento, tornando-se um verdadeiro imbecil, incapaz de entender qualquer processo da realidade, e só capaz de jogar com aquele discurso naquele nível empostado, com as pessoas do seu convívio acadêmico, que também só falam aquele mesmo discurso. Não é que essas pessoas tenham a impressão de que saibam do que estão falando, porque o "do quê" jamais entra em questão. Só entra a troca do discurso por outro discurso, por outro discurso... Ninguém ali é jamais testado na realidade, porque o abandono da realidade é a condição para penetrar neste outro universo de discurso.
Eu conheci um professor na PUC que dizia: "Eu não desço do meu universo semântico". Eu pensava: "E eu é que não vou subir aí, eu não sou idiota. Eu subo aí, depois não sei como descer para a realidade de novo". Esses camaradas são todos assim. Se você ler esses camaradas da USP, são característicos. Há uma espécie de empostação que só vale lá dentro da USP. Se você ler o Gianotti, a Marilena Chauí... é um universo de discurso próprio [00:50] que só vale para eles. Qualquer tentativa mínima de reportar aquilo à realidade estoura com tudo, então não pode. O apelo à realidade é considerado um golpe baixo. Depois não entendem por que no meu programa True Outspeak eu xingo essas pessoas. É porque não é possível discutir com elas no plano em que elas se colocaram. E se você aceita este jogo por um minuto que seja, você caiu numa armadilha. Então, você tem de falar assim: "Eu não levo a sério nada disso, não respeito essa porcaria. Isso que vocês estão fazendo é uma coisa que não se faz." E a única maneira de mostrar a eles que você realmente não os leva a sério é você os xingando, é mostrando o seu total desrespeito. Se você respeitá-los um pouquinho, eles se prevalecem disso e já vão querer que você entre no universo deles. Não, eu não vou entrar aí.
Muito bem, tem algumas perguntinhas aqui.
Aluno: No dia 4 de abril o senhor disse que a Renascença filosófica dos séculos XII e XIII não ocorreu devido à descoberta das traduções árabes dos filósofos gregos, sobretudo de Aristóteles, mas que tais obras já estavam traduzidas para o latim pelos monges de Saint-Michel. O senhor pode dar mais detalhes sobre isso e indicar a referência bibliográfica de tal descoberta? É o oposto do que estou lendo no livro Herdeiros de Aristóteles, de Richard Rubenstein, o qual concebe como fundamental a importância dos árabes para a referida Renascença e os considera muito superiores em civilização e conhecimentos aos cristãos medievais.
Olavo: Bom, essa idéia do Rubenstein é a que está consagrada --- há pelo menos sessenta anos todo mundo fala isso: "os europeus estavam atrasadíssimos e graças aos cultíssimos árabes nós pudemos subir a um outro patamar de civilização". O primeiro e único sujeito que pesquisou isso foi Sylvain Gouguenheim (Aristote au Mont-Saint-Michel). Este é um livro maravilhoso, de uma coragem extraordinária, e que estoura com toda a erudição medievalista dos últimos sessenta anos. Ele fala: "Vocês todos não sabem nada, são um bando de idiotas, acreditaram em besteira, estão fazendo propaganda do mundo árabe". Primeiro, porque ignoram que a maior parte destes tradutores árabes não eram muçulmanos, mas cristãos. Eles estavam dentro da civilização cristã, e não dentro da civilização islâmica. Segundo, porque, independentemente disso, os monges de Saint-Michel já tinham traduzido tudo e, quando os árabes chegaram, já havia outras fontes. Então, a rigor, o que a civilização medieval ocidental deve aos árabes? Nada. Deve alguns erros. Como, por exemplo, os erros de Averroes, com aquela história de que "a inteligência humana é uma só para todos" --- embora esta teoria tenha sido derrubada brilhantemente por São Tomás de Aquino. Vocês vejam que uma teoria ser derrubada intelectualmente não significa que ela não vai ter influência. Muitas vezes as pessoas se iludem: "Ah, o marxismo está superado". Claro, Ludwig von Mises reduziu a pó a economia marxista. Mas e daí? Isso não quer dizer que uma coisa que está intelectualmente derrotada esteja socialmente derrotada. O fato de que uma coisa seja mentira não tem nada a ver com o seu grau de disseminação. Muita gente acredita em mentira. Por exemplo, quando estourou a Reforma protestante --- quando Lutero grudou as suas 96 teses na igreja de Wittenberg. Todas aquelas doutrinas já estavam impugnadas cem anos antes. Elas tinham sido apresentadas pelo John Wycliffe e os teólogos católicos já tinham mostrado que tudo aquilo era furado. Não obstante, foi cem anos depois de derrotadas no plano intelectual que essas idéias se disseminaram. Por quê? Por que elas estavam certas? Não. Lutero jamais argumentava logicamente; ele era um tipo orador, poético, um cara inflamado. Pelo lado emocional, ele conseguiu ganhar muita gente para idéias que intelectualmente não se sustentavam. E, além disso, havia todo aquele problema da corrupção na Igreja. Ele botou tudo isso numa clave de condenação moral --- que era verdadeira, mas não tinha nada a ver com a doutrina da Igreja. O que a corrupção na Igreja tem a ver com a doutrina da presença real do Cristo na comunhão? Nada. No entanto, Lutero se valeu disso --- "Ah! Aqueles lá são um bando de ladrões". Eu digo: "É, são um bando de ladrões, mas a doutrina deles está certa e a sua está errada. Você não roubou um tostão, mas você está errado e eles estão certos". Na confusão do aspecto moral com o aspecto doutrinal, Lutero conseguiu disseminar doutrinas que intelectualmente já estavam desmoralizadas há cem anos.
O marxismo está desmoralizado desde que o Eugen von Böhm-Bawerk leu O Capital --- eu botei o texto dele no meu site, é o Exame da Doutrina da Mais Valia [[http://www.olavodecarvalho.org/bbawerk/rosto_bohm.htm]{.ul}]. Aquelas objeções do Böhm-Bawerk não têm resposta. E daí? O que isso significa para a propaganda? Não significa nada. A propaganda jamais dependeu de que as suas afirmações fossem verdadeiras. É um outro departamento, é outra modalidade de ação.
Eu comecei a ler esse livro Herdeiros de Aristóteles e perdi o interesse, sobretudo porque me caiu o Gouguenheim na mão e eu disse: "Bom, agora cessa tudo o que a musa antiga canta, porque está tudo errado. Vão ter de fazer uma nova história da filosofia medieval."
Voltando ao Averroes e ao tema das contribuições árabes: o Averroes veio com esta idéia de que as funções cognitivas individuais são somente as funções inferiores, ou seja, eu tenho minhas próprias emoções, percepções, minhas próprias memórias etc., mas, quando chego na inteligência mais alta, ela é a mesma para todos. Isso não tem pé nem cabeça. São Tomás de Aquino já examinou essa idéia e a reduziu a picadinho. No entanto, ela está por trás do "intelectual coletivo", do Antonio Gramsci, e da "vontade geral", do Rousseau. Averroes, desde o túmulo, enganou e continua enganando um bando de gente. Essa foi a grande contribuição árabe para a filosofia ocidental: um erro monstruoso que depois se propagou em conseqüências absolutamente catastróficas.
Uma das grandes contribuições árabes para a civilização ocidental foi a reintrodução da escravidão. A escravidão havia sido abolida graças à Igreja, que primeiro conquista para os escravos a condição de servos da gleba --- o sujeito já podia ter uma família, casar e ter herdeiros, legar a sua propriedade (só não podia abandonar a sua propriedade). Depois a própria condição de servos da gleba é superada e a Europa toda é transformada numa nação de proprietários, grandes e pequenos. Isso foi assim até a época da Reforma na Inglaterra, quando, pela primeira vez, houve uma desapropriação maciça, que marcou o Ocidente profundamente. Na Europa medieval não havia os sem-terra. Ninguém era sem-terra, porque quem estivesse na total miséria podia se instalar nas terras da Igreja e cultivá-las. Mas essa não era a condição da maioria: a maioria era ou grandes proprietários, ou servos da gleba, ou pequenos proprietários --- todo mundo tinha terra. Quando veio a Reforma na Inglaterra, os reis desapropriaram não só as terras da Igreja, mas as terras de todos os católicos. Foi a primeira [1:00] land grab, como eles dizem aqui nos EUA, quer dizer, o governo mete a mão e a terra passa a ser do governo. Isso criou as multidões de pessoas sem propriedades.
Veja o que acontece quando a ciência histórica explica um acontecimento por tendências gerais, por exemplo: "O capitalismo moderno desarraigou as pessoas da terra e criou o proletariado moderno." Quem fez isso? Quem é o agente? "O capitalismo". O capitalismo é um universal abstrato. Você pode apelar para a explicação por meio de um universal abstrato quando você não tem o conhecimento das ações concretas, de indivíduos e grupos concretos, que produziram a situação. Por exemplo, se o seu vizinho tomou um porre e encheu a mulher de porrada, você pode dizer que foi a indústria de bebidas que bateu na mulher. Esse é um raciocínio metonímico; a metonímia é uma figura de linguagem, e não a descrição exata do que se passou. Quem bateu na mulher foi o fulano de tal, e ele não bateu nela porque estava bêbado; ele bateu por algum outro motivo --- a bebida simplesmente ajudou. Há pessoas que quando bebem ficam sentimentais, outras ficam idiotas, outras ficam violentas, quer dizer, se alguém fica violento quando bebe, não é por causa da bebida --- a bebida tem efeitos diferentes para várias pessoas, ou seja, não foi nem sequer a bebida que bateu na mulher. Garrafa de uísque ou de pinga não bate em ninguém; ela fica lá na estante até que você a esvazie. Então, essa metonímia oculta o verdadeiro agente.
Há anos eu descobri que isto é um princípio: jamais aceite explicações sociológicas quando elas estão ali para substituir a verdadeira explicação histórica, que é a narrativa real do que aconteceu, efetivamente como se passou. Então, o que criou as multidões desprovidas de propriedade na Europa moderna foi a Reforma Protestante na Inglaterra, porque daí outros governos começaram a fazer a mesma coisa. Quando chega à Revolução Francesa, ela toma todos os bens, não somente da Igreja, mas de uma multidão de gente. Então não foi "o capitalismo" que fez isso, não foi "a Revolução Industrial"; foi um governo específico, que assinou um decreto dizendo "sua terra não é mais sua". Então, os sem-terra foram criados pelo espírito revolucionário.
A ciência histórica tem recursos fantásticos, hoje. Você pode descobrir praticamente tudo o que quiser. Mas se você não quer investigar as coisas como elas efetivamente aconteceram, e quer inventar termos universais abstratos que se encaixem logicamente com outros termos universais abstratos e pareçam lhe dar uma explicação, é porque você já está viciado no discurso empostado que não tem conexão com os fatos da experiência. Não é que você tenha aceitado esse discurso conscientemente, sabendo que é um discurso empostado. A aquisição desse modo de falar exige um esforço muito grande, e você acredita que está progredindo, está virando um intelectual --- os outros intelectuais aceitam o que você está falando. Esse esforço tão grande, ao ser recompensado academicamente, não permite que você perceba que está ficando é mais burro. Então, para escapar disso, você precisa ter um pouco de imaginação; precisa supor que por trás do discurso, por trás desses universais abstratos que se agitam --- os regimes, as classes sociais, as forças, as tendências etc. ---, existe um negócio chamado gente. (Tinha um amigo meu que dizia que o que dá azar não é gato preto, não é passar embaixo da escada, o que dá azar é gente). O que faz a História não são forças, não são tendências, não são universais abstratos. O que faz a História é gente. Claro que, às vezes, muitas ações somadas, padronizadas, produzem uma tendência geral. Mas, sem as ações, a tendência geral é nada; alguém tem de fazer aquilo. Você só entende o processo histórico quando você sabe quem fez o quê. "Quem" quer dizer fulano, cicrano, beltrano.
Por exemplo, o pessoal discute agora a crise econômica. "Quem criou a crise econômica? Foi isso, foi aquilo..." Mas, na verdade, quem criou a crise econômica foi *seu *fulano, *seu *beltrano, fazendo isso, e isso e mais isso, e mais isso. E digo mais: não era branco, nem de olho azul. Já expliquei isso num artigo do Diário do Comércio ["Os pais da crise americana", Diário do Comércio]. Quem criou essa crise foram hordas de negros, imigrantes ilegais, mexicanos etc., que, instruídos por gente como Barack Obama, pressionava os bancos para forçar empréstimos que eles não poderiam pagar. O banco, por sua vez, na ilusão de que depois poderia cobrar do governo, se aquilo desse errado, concedeu os empréstimos, e daí afundou tudo. Foi assim que foi feito. Foi uma crise planejada e executada. Levou trinta anos para fazer. Não foram forças anônimas, não foram "erros", não foram "enganos"; foi uma coisa premeditada e que deu certo, um plano absolutamente brilhante. Esta lá no artigo a estratégia de Cloward-Piven, está explicadinho. A história só é legítima quando ela desce a esse nível de explicação. Em história, quando você tem de apelar para explicações sociológicas, é porque você não tem a narrativa histórica certa. A explicação sociológica é meramente hipotética.
Agora, você também não irá entender a narrativa histórica, se não for capaz de articular as ações e as falas dos personagens dramaticamente. Isso se aplica mesmo à história das idéias e da filosofia. Por exemplo, quando você estuda as obras de um filósofo --- Benedetto Croce dizia: "você não entende uma filosofia se você não sabe contra quem ela se levantou polemicamente". Todo mundo que está dizendo alguma coisa, está dizendo contra alguém, que disse alguma outra coisa. Esse alguém pode ser um filósofo, uma crença geral, uma doutrina consolidada, um dogma religioso, uma teoria científica, qualquer coisa, mas sempre se está discutindo com alguém. Julian Marías dizia: "a fórmula da tese filosófica não é: 'A é igual a B' , mas 'A não é B, e sim C'". Precisa ter uma coisa que você nega para ter outra que você afirma.
Toda a história da filosofia tem um teor dramático; há sempre uma oposição em jogo. Essa oposição não pode ser vista só como oposição entre idéias, porque existem experiências por trás das idéias --- existe, portanto, uma diferente formalização e interpretação da experiência por parte dos filósofos. Muitas vezes, quando você consegue rastrear as experiências que estão por trás das diferentes doutrinas, você vê que elas não são tão diferentes assim. Daí você vai entender do que elas estão falando.
No entendimento de uma filosofia, o que se passa é exatamente como no exemplo que eu dei, de reconstituir uma situação a partir das falas de um personagem. Se você não tem o texto dos outros personagens, você vai ter de recompô-los imaginariamente da forma mais verossímil e razoável que lhe pareça. Na história da filosofia antiga se faz muito isso: reconstituir textos inexistentes de filósofos a partir do que outros disseram a respeito. Você não tem o texto originário, mas tem um que o contesta, então você tenta reconstituí-lo. Grande parte do pensamento dos pré-socráticos foi reconstituída assim. É a chamada "doxografia". O que quer dizer doxografia? "Doxo" é opinião --- é uma coleção de opiniões. Você vai tirando as opiniões de várias fontes --- que não são as fontes originárias dos próprios autores, mas o que terceiros disseram a respeito, **[01:10] **seja para concordar, seja para discordar, seja para comentar de algum modo. Assim você consegue às vezes reconstituir quase a filosofia inteira de um sujeito a partir do que os outros disseram. Isso aí já mostra a importância do elemento dramático. Existe sempre um conflito, e ele tem de ser reconstituído em sua inteireza --- não como um conflito de idéias, mas como um conflito de pessoas reais; pessoas cujas experiências as suas respectivas doutrinas só expressam parcialmente, de tal modo que, a partir da doutrina, você tem de reconstituir a situação inteira. Para isso é que é preciso o treino literário --- treino literário, como eu disse, não como se ensina literatura nas escolas hoje, mas que consiste em ler todo esse material como Aristóteles lia, ou seja: as obras de ficção não expressam uma realidade histórica, mas expressam uma realidade possível. São tipos de personagens possíveis, tipos de situações possíveis. Essas situações humanas são em número limitado; existe um certo conjunto de esquemas. Quando você conhece a maior parte dos esquemas, fica mais fácil especular o que se passou em tal ou qual situação. Os seres humanos não são tão diferentes assim.
Um exemplo de esquema narrativo possível: certos personagens estão vivendo numa certa situação, quando vem um elemento do passado --- através de alguém que conta alguma coisa, ou de uma carta que sobrou, ou de um documento etc. --- que modifica e estraga completamente a relação entre aquelas pessoas. Isso é um esquema possível. Outro esquema, que é o mais comum na literatura ocidental, é o adultério. São situações assim. Ou o indivíduo que se mete numa encrenca que ele não entende, como Joseph K., n'O Processo, ou no livro O Bravo Soldado Schweik, de Hasek Jaroslav. O soldado Schweik só se ferra o tempo todo, só entra em situações que não entende. Uma outra situação: um personagem de gênio e de grande força fica louco e coloca todos os outros para viver a loucura dele, como acontece com Dom Quixote, por exemplo, ou Henrique IV de Pirandello (que é um milionário que acredita ser Henrique IV e obriga todo mundo a agir como se estivesse na corte). São várias situações dramáticas possíveis. Elas são em número limitado, mas bem grande no fim das contas. O Northrop Frye acredita que todas as situações dramáticas possíveis estão dadas já na Bíblia --- ela traz todos os modelos e, se você ler direitinho, vai acabar reconhecendo as várias situações.
Veja que, pelo menos através da Bíblia, da mitologia grega e do teatro grego, essa base imaginativa comum foi compartilhada por todos os filósofos ao longo dos tempos, até mais ou menos o século XIX. No século XX isso vai desaparecendo. Sem essa base, você jamais irá compreender a filosofia historicamente, mas apenas como disputa abstrata entre idéias que não têm nada a ver com a realidade. É por isso que eu digo: sem ler muita literatura, ler livros de filosofia é besteira. Não perca seu tempo.
Há ainda um outro motivo: a linguagem filosófica não é uma linguagem autônoma, mas uma linguagem elaborada a partir de uma linguagem pré-existente. A linguagem literária existe praticamente desde que o mundo é mundo (o primeiro índio que decidiu contar uma história para as pessoas em volta da fogueira já inventou a linguagem literária ali). A linguagem literária é, por assim dizer, natural na humanidade. A expressão poética é a primeira que surge em todas as civilizações. Esse patrimônio --- a linguagem coletiva --- é algo que já está pronto. Já a linguagem filosófica é uma linguagem técnica que foi elaborada em cima disso, e que faz constantes referências a essa linguagem coletiva (tanto à linguagem do cotidiano, quanto à linguagem literária). Se você não capta as alusões, você não sabe do que o sujeito está falando, mesmo que ele use a linguagem mais técnica possível, como Edmund Husserl, ou os escolásticos. Toda essa linguagem técnica foi elaborada a partir do patrimônio literário já existente. Em filosofia, nada é elaborado a partir da experiência bruta, mas sim da experiência culturalmente consolidada. Quando Aristóteles diz que a dialética, que é a arte filosófica por excelência, parte da confrontação entre as doutrinas dos sábios, entre as opiniões dos sábios --- note bem, não é de qualquer opinião, não é a opinião do seu zé-mané da esquina ---, ele está supondo que já existe um patrimônio de opiniões culturalmente relevantes. Se você não conhece esse patrimônio de opiniões culturalmente relevantes, você não sabe da onde está partindo a discussão filosófica.
Existe ainda um terceiro motivo. A memória e a imaginação funcionam dando forma para as coisas, quer dizer: você capta o material dos sentidos, os agrupa e cria uma forma repetível. Essa forma pode ser repetida como tal, ou pode ser elaborada, misturada com outras etc. Você só reconhece a forma do que está se passando por analogia com as formas já consolidadas na sua memória. Você não entende absolutamente uma situação que seja totalmente nova e que não tenha nada a ver com as formas consolidadas na sua memória. Quando eu digo analogia, eu quero dizer que a situação não repete exatamente o que você já conhece. O que é analogia? Analogia é uma mistura de semelhanças e diferenças. É no jogo de semelhança e diferença que você reconhece no quê a situação nova repete as situações anteriores, e no quê ela tem algo de próprio e diferente. Essa nova situação, por sua vez, vai constituir uma nova forma, que será base para novas comparações, e assim por diante. Isso significa que numa comunidade humana grande, numa sociedade, você pode dar por pressuposto que aquilo que não esteja no imaginário --- que não esteja consolidado no teatro, na literatura, nos espetáculos, no cinema --- não será reconhecido. As situações do mundo real são interpretadas à luz do que você viu no cinema, no teatro etc. Essas formas imaginárias são os modelos pelos quais você entende as coisas. Se algo que se passou é muito diferente dos modelos consolidados, não terá inteligibilidade e muito menos credibilidade para as pessoas. Por isso, quando o sujeito faz um filme e coloca lá: "qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência", isso aí é uma empulhação, porque, sempre que você conta uma história, o que você está dizendo é como as coisas podem se passar. Você está mostrando apenas uma possibilidade. Mas se você mostra sempre as mesmas possibilidades, o que escapa desse mundo de possibilidades não é compreensível e não tem credibilidade. A responsabilidade do ficcionista é enorme. O ficcionista que inventa uma história está moldando a cabeça do seu espectador muito mais do que o jornalista que dá uma notícia, porque o sujeito toma conhecimento de uma notícia através de um resumo escrito ou de um filminho, um documentário de dois minutos que passa na televisão, mas os modelos que foram acumulados no cinema são horas e horas e horas, e aquilo se repete, você pode ver várias vezes. E um filme repete o outro, que repete o outro, que repete o outro... As pessoas acreditam mais nos filmes de Hollywood do que no noticiário, e é natural que seja assim. É por isso que a famosa liberdade da arte --- "não, o sujeito tem liberdade criativa, você não pode sufocar a inspiração" --- só [01:20] serve como desculpa se houver também a responsabilidade correspondente. Quer dizer, você acostumou o público a ver assim ou assado, então, quando acontece uma coisa diferente, eles não entendem.
Por exemplo, agora que estou vivendo nos Estados Unidos, eu vejo que aqui o cinema acostumou as pessoas a entender que tudo o que acontece neste país começou aqui dentro mesmo. A ação do estrangeiro não existe para o americano. Não existe! Você veja, houve épocas em que aqui dentro havia mais agentes da KGB do que do FBI. E, no entanto, você não vai ver um filme de Hollywood que mostre uma ação da KGB dentro dos EUA. Quando se fala em ação da KGB, a coisa se passa na Europa, na Ásia --- aqui dentro, não. Isso quer dizer que o estrangeiro pode chegar aqui dentro e fazer o que quiser. Ele está fora do imaginário americano e, portanto, você pode até contar o que ele fez, mas não haverá impacto. Por outro lado, se você disser: "Olha, tem uma companhia de petróleo que fez assim, assim" ou "A CIA fez assim, assim", aí tem um impacto, porque eles estão acostumados com isso. É incrível! É uma espécie de provincianismo mental da metrópole. Eles sabem que são o país mais poderoso do mundo, mais rico, mais importante; acreditam que só eles são os agentes, e nunca os pacientes --- eles nunca sofrem a ação. E, no entanto, se você acompanha a história do jornalismo norte-americano, você vê que as opiniões que se tornaram dominantes na mídia, as opiniões que são mainstream hoje, são idênticas às da propaganda da KGB de cinquenta anos atrás. Logo, você vê que essa ação teve um impacto profundo. Mas se você disser isso para um americano, ele fica até ofendido. Ele não pode aceitar a idéia de que eles foram vítimas inermes de um estrangeiro mais inteligente. Aqui, qualquer teoria da conspiração que aponte os culpados usuais --- geralmente a CIA ou as grandes corporações --- é acreditada, mas não será acreditada, se apontar um agente estrangeiro. Veja o impacto da obra de ficção.
Então, se nós quisermos nos tornar capazes de entender as situações humanas --- infinitamente mais complexas do que essas que eu estou explicando ---, o único jeito é ampliar e enriquecer a imaginação, e o meio para fazer isso é literatura de ficção. Leiam tudo, tudo, tudo! Quanto mais ler, quanto mais guardar na memória, melhor para vocês. Aproveitem o primeiro ano deste curso para enriquecer o seu patrimônio literário.
Eu conheço muita gente no Brasil, sobretudo jovens, que dizem: "Ah, já li Eric Voegelin, já li aquilo, aquilo...", mas está faltando esse elemento. Vou dar outro conselho para vocês: o que ler em matéria de ficção? Vocês devem ler aquilo que o restante da humanidade já leu. Não adianta ler os autores que estão na moda agora, porque você não sabe se eles vão durar. Eu conheço mais gente que leu Kurt Vonnegut do que Dante ou Balzac. Vocês não têm de acompanhar a moda literária, mas pegar um patrimônio que é comum à humanidade --- um patrimônio de imagens, de situações etc., que a humanidade inteira conheceu. Aí entra o conceito dos clássicos. Por exemplo, ali no livro O Jardim das Aflições, eu comentei muito o negócio do Wilhelm Meister's Apprenticeship, do Goethe, onde aparece a idéia dos "superiores desconhecidos". É uma idéia maçônica: superiores desconhecidos que dirigem ocultamente a carreira do sujeito para que ele seja bem sucedido. A partir disso, você pode identificar muitas situações reais que acontecem. Você sabe que existem pessoas cuja carreira se explica inteiramente por superiores desconhecidos --- de ordem maçônica ou qualquer outra. Por exemplo, é impossível explicar a carreira do Paulo Coelho de outra maneira. Se você já leu o Wilhelm Meister's, você já entende como a coisa funciona. Se você não entende, não será capaz de imaginar aquilo, exceto como teoria da conspiração no sentido mais direto da coisa, quando às vezes não é isso.
Aluno: Obrigado pelas lições, são muito boas e esclarecedoras. Quem dera todo professor de filosofia fosse assim. Uma dúvida: o senhor diz que a filosofia é a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Eu gostaria de saber: quando esse fato acontecer, não seria o equivalente ao que o misticismo chama de iluminação?
Olavo: Bom, então deixe eu corrigir aqui. A filosofia não é a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa; ela é a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Essa busca não termina nunca. Se terminasse --- "Pronto, uni todo o conhecimento na consciência!" --- eu seria o Buda, teria alcançado aí o nirvana. Mas isso não acontece, não.
Essa busca da unidade do conhecimento não pode terminar, por quê? Porque você termina. Nós temos um prazo de vida. Se fôssemos criaturas eternas, facilmente realizaríamos essas duas coisas. Mas nossa forma de vida é temporal, e mais ainda: tudo que é conquistado pode ser perdido no instante seguinte --- tem de ser continuamente refeito, essa é a condição real da nossa vida. A experiência da permanente busca, reconquista e perda da unidade é muito importante para entender o que é efetivamente o conhecimento humano, e não divino --- porque todo mundo, no fim das contas, está buscando o conhecimento divino, mas isso não é possível. O conhecimento divino seria aquele que se incorporasse em você de uma vez para sempre e nunca mais fosse perdido. Ele, por sua vez, teria o efeito miraculoso de refazer, reconstituir você. Isso aí não existe, a menos que Deus intervenha diretamente sobre você. Mas, para Deus fazer isso, você não precisa fazer nada --- isso tudo corre por conta dele, você não precisa fazer absolutamente nada; não precisa estudar coisíssima nenhuma.
A experiência de buscar entender certas coisas, e depois ver como essas coisas se desfazem na sua mente --- como aquilo que você entendia, de repente você não entende mais ---, de modo que você precise refazer imaginativamente aquilo, ou seja, recordar (botar no coração de novo) --- isso tudo requer um esforço. Você veja como isso é difícil; como a ignorância nos persegue o tempo todo --- a ignorância, o esquecimento, o entorpecimento, o emburrecimento. Quando você entende que você é assim, você entende que a humanidade também é assim. E você entende que esse é um dos mecanismos fundamentais da história humana. É aquilo que dizia Jean Fourastié, que, junto com a história da ciência, deveria haver também a história da ignorância. Se você não entende isso, então a história que você está estudando é uma história imaginária, onde o conhecimento, uma vez adquirido, se torna patrimônio de todos e pronto. Como se transmitir aquilo para a geração seguinte não fosse um problema enorme, uma dificuldade terrível, e como se na própria transmissão --- supondo-se que ela exista --- não se perdesse muita coisa. Eu vejo que a maior parte das pessoas não entende nada da história porque não lembra disso. Para dar um exemplo simples: quando foi a década de 90 e caiu a União Soviética, todo mundo disse: "o comunismo acabou". [01:30] Cinco anos depois, ninguém mais lembra o que era comunismo, e, se você fizer a mesma coisa diante deles novamente, eles não reconhecem, porque não sabem o que foi o comunismo. Não conhecendo, não reconhecem.
Muitas operações estratégicas no mundo são feitas baseadas no esquecimento público. Quando a pessoa observa a sua própria ignorância em ação, geralmente pensa que aquilo é uma deficiência dela, e pensa que aquilo pode ser vencido quando, na realidade, não pode. Isso faz parte da estrutura humana e tem de ser levado em conta sempre --- não só nos estudos, em que o sujeito vai ter de permanentemente reconquistar o que já conquistou, mas historicamente ele tem de ver que as coisas se perdem de uma geração para a outra de uma maneira acachapante. É muito fácil perder.
Para você acabar com o ensino da filosofia num país, bastam poucos anos. Basta você apagar, às vezes, um detalhezinho, que você apaga um monte junto com ele. Quando, na história da nossa autoconsciência nacional, o pessoal apagou, por exemplo, o Mário Ferreira dos Santos, eles apagaram tudo junto, porque é necessário que a sua consciência histórica do que está se passando acompanhe o que está efetivamente se passando, e não um modelito inventado, que você já fechou, e daí você acredita que as coisas são assim-e-assado. Quando você observa as considerações sobre história da filosofia no Brasil, que se trocavam como figurinhas ali na USP, no tempo do João Cruz Costa, ou do Paulo Eduardo Arantes (que escreveu Um Departamento Francês de Ultramar, sobre o departamento de filosofia da USP), ou as discussões do próprio Instituto Brasileiro de Filosofia, você vê que todos estavam ignorando o maior filósofo presente. O negócio chegou a um nível de alienação total --- eles estão falando de um país que não existe, porque no Brasil de verdade havia o Mário Ferreira dos Santos. Ele era a única coisa que estava acontecendo, mas o que se discutia era o que não estava acontecendo. Essa ignorância é a história do pensamento brasileiro: há a história do que estava efetivamente acontecendo e a história do que as pessoas imaginavam que estava acontecendo. Agora, isso que elas imaginavam era um acontecimento em si mesmo: a ignorância era uma realidade. Então, você tem ali um constraste: você tem um tremendo filósofo, um filósofo de alcance universal, criando ali uma obra, ao mesmo tempo em que um bando de ignorantes discutia outra coisa, falando de um país que na verdade só existia na mente deles. A história não é nem só a história do Mário Ferreira, nem só a história dos outros ignorantes, mas desse contraste, desse drama inconsciente.
Então, a unidade do conhecimento na unidade da autoconsciência só existe em Deus, evidentemente. Deus sabe tudo a respeito Dele mesmo e o que Ele sabe a respeito Dele mesmo é o conjunto do conhecimento existente. A filosofia é apenas o esforço de conquistar um pedacinho desse conhecimento e não perdê-lo.
Essa consciência do papel efetivo da ignorância é importante para que a sua investigação filosófica se incorpore em você como traço pessoal, como parte da sua personalidade, da sua autoconsciência. Vejam, por exemplo, que hoje em dia existem muitos estudos sobre a consciência humana. Alguns até dizem que a consciência humana não existe, como Daniel Dennett, que está convicto de que as ações humanas não têm um agente consciente, não têm finalidade nenhuma; elas apenas parecem ter uma finalidade, mas, na verdade, são causadas por tais ou quais movimentos de neurônios etc. Bom, isso tudo pode ser válido, desde que você esteja se referindo a um significado de consciência que não abranja a consciência do sujeito que está escrevendo isso naquele momento. Porque, evidentemente, se ele está escrevendo isso, é porque espera obter um resultado, e isso, portanto, é uma finalidade. Quer dizer, ele espera ser lido, e que quem leia aquilo perceba alguma diferença entre o que ele está dizendo e o que os outros dizem --- se ele não esperasse isso, ele escreveria outra coisa. Este é o exemplo máximo de alienação: o indivíduo tem de esquecer que ele tem uma consciência para poder escrever um livro sobre a consciência. É justamente isso que eu não quero que aconteça para vocês --- se bem que isso pode lhes render alguma vantagem acadêmica. Se você provar que ninguém tem consciência nenhuma e que ninguém age com finalidade alguma, você será aplaudido por todos. Eles não vão perceber que esse próprio aplauso implica uma finalidade, quer dizer, a previsão das consequências que essa doutrina terá sobre a sociedade humana etc. Mas aí nós já entramos no campo da doença mental. É claro que o indivíduo que escreve essas coisas não está consciente do que ele mesmo está ignorando naquele momento. E o que ele está ignorando não são parcelas da sua ciência, que ele deveria conhecer, mas a própria situação real em que ele está escrevendo.
Nós temos essa capacidade abstrativa de separar as coisas e só considerar um pedaço. É claro que isso é uma capacidade, porque isso cria foco e torna certos detalhes mais visíveis. Mas se depois de fazer a abstração você esquecer de onde você abstraiu, você evidentemente criou uma alucinação.
Aluno: Professor, você poderia explicar melhor o sentido em que o senhor usa a palavra alienação? É o mesmo do Voegelin?
Olavo: Mais ou menos. Eu geralmente uso para uma situação muito concreta. É o indivíduo que está agindo como se ele fosse outro, ou como se ele não existisse. Alienação é sobretudo a ação cognitivamente irresponsável --- quando um sujeito finge que não está fazendo exatamente o que ele está fazendo naquele momento. É a ação desarraigada --- ela é cortada, amputada da situação existencial real, e daí o sujeito cria um esquema em cima dela, como um teatrinho em que ele pressiona as pessoas a entrar, pela força da influência psicológica. É um negócio auto-hipnótico, sobretudo. Hipnótico e auto-hipnótico.
Aluno: Quando li Descartes, entendi que a proposta da dúvida metódica era duvidar de tudo ao menos uma vez, mas não ao mesmo tempo, e sim separadamente. O que há de errado nessa minha interpretação?
Olavo: Não está errada. Só que esse estado é realmente impossível. Mesmo que você ponha as coisas em série, você nunca vai chegar a duvidar de tudo. Para você duvidar de qualquer coisa, você precisa acreditar em todas as outras. Leia a apostila Descartes e a Psicologia da Dúvida. Uma dúvida é uma alternância entre um sim e um não. A dúvida não chega a ser um estado; [01:40] ela é uma alternância muito rápida entre um sim e um não --- você não consegue se estabilizar em uma ou na outra. A dúvida só é um estado do ponto de vista psicológico, mas, logicamente, ela não pode se consolidar num estado. Se ela se consolidar, ela será uma negação ou uma afirmação. Quando as negações e as afirmações se equivalem, ou seja, você não consegue se estabilizar em uma ou noutra, você não tem propriamente uma coexistência da afirmação e da negação, mas uma passagem de uma para a outra, e é por isso que você a chama de dúvida.
O princípio do Descartes é de que a dúvida tem uma prioridade metodológica --- é nesse sentido que ele apresenta a dúvida integral. Mas a prioridade metódica da dúvida é autocontraditória. Se, para duvidar de uma coisa, você precisa acreditar em outra, então a dúvida não é prioritária, mas secundária --- ela é um aspecto de uma certeza que está incompleta. Toda dúvida é assim: você tem um conhecimento e tem um pedaço que não está funcionando, mas é porque o resto está funcionando que você percebe aquele pedaço --- se o resto inteiro não estiver funcionado, você não está na dúvida, mas no engano total. Descartes fala de um estado que psicologicamente não existe, não é vivenciável, ninguém pode fazer aquilo que ele diz que está fazendo (simultânea ou sucessivamente, não importa). E mais: ele fala que "você só pode acreditar naquilo que você tem provas", mas você não pode se esquecer de que a prova é um elemento discursivo. Para obter a prova de qualquer coisa, você sempre se baseia em outra coisa da qual você não tem prova. Se a prova tivesse uma prioridade sobre o elemento intuitivo não provado, seria impossível o pensamento humano. Por exemplo, qual é a prova de que você está assistindo essa aula agora? Me prove isto. Você não tem prova, mas uma evidência intuitiva. Se eu lhe peço uma prova, ela pode ter quatrocentas páginas. A prova jamais pode ter prioridade; o que tem prioridade é a evidência intuitiva, a qual não precisa e nem pode ser provada. Você busca a prova quando não tem a evidência intuitiva, porque nós não podemos ter evidência intuitiva de tudo --- algumas coisas você terá de completar. A evidência é a marca de uma coisa presente, é a constatação de uma presença. Como nem tudo está presente, você tem de completar a sua visão do mundo com uma armadura imaginativa ou com uma armadura de conjeturas, e uma armadura de especulações lógicas. Mas o ideal é que essa armadura se reduza ao mínimo. Quanto mais coisas você puder saber por evidência intuitiva, melhor.
* *
Aluna: Como podemos entender nesse contexto o sentido da fé? Fé e investigação filosófica estão em oposição?
Olavo: A fé, no sentido atual e corrente do termo, é acreditar em uma doutrina, mas esse não pode ser o sentido bíblico originário, porque as pessoas que acreditaram em Jesus Cristo não conheciam doutrina nenhuma. A doutrina católica não estava formulada --- ela foi sendo formulada aos poucos, ao longo do tempo, à medida em que as pessoas contavam os fatos do Evangelho e isso suscitava objeções. A coisa passava da narrativa para a discussão e daí aquilo que os apóstolos sabiam por experiência transposta em narrativa tinha de passar por uma segunda transposição, transformando-se em argumentação. Foi isto que gerou a doutrina católica, se não ela não existiria. Isso está muito bem explicado num livro do Alois Dempf (que é um macro-historiador, super-historiador, maravilhoso historiador), que tem uma tradução espanhola, publicada pela editora Gredos, chamada La concepción del mundo en la Edad Média (eu não lembro do título em alemão). Mesmo essa edição da Gredos é difícil de achar. Ele mostra como foi se formando a doutrina católica a partir das objeções --- os elementos da doutrina católica foram aparecendo soltos, e só mil anos depois é que surgem as Sumas, que é a tentativa de organizar aquilo pela lógica. No princípio eram pontos separados, que vinham só para responder a objeções. Essas objeções não surgem dentro da exposição de uma doutrina, mas a partir de uma narrativa: o sujeito conta uma coisa, da qual ele foi testemunha direta ou indireta, e o que ele conta suscita objeções. Daí ele passa da clave narrativa para a clave argumentativa, tentando mostrar que aquilo que aconteceu é também razoavelmente possível. No que aquelas pessoas tinham fé? É muito simples: no próprio Evangelho. Eles dizem: "Eu não posso curar a mim mesmo, mas Você é o Filho de Deus, Você pode". Aquilo é a confiança numa pessoa. Isso é completamente diferente de acreditar numa doutrina. Eu acho que é uma blasfêmia monstruosa entender a fé como a crença numa doutrina, porque todo mundo pode ter doutrina (muitas são verdadeiras, outras são falsas), mas o que vai distinguir esse caso não é a doutrina, mas a presença real do Cristo que age. É nisso que você tem de ter fé, e não na doutrina. A doutrina é apenas um conjunto de pretextos intelectuais elegantes para sustentar essa confiança, se você precisar dessa justificação intelectual. Isso ajuda? A prova de que isso não ajuda é o número de teólogos heréticos que existe. Essas discussões teológicas dão mais problemas do que resolvem. Quanto mais você explica, mais você confunde; quanto mais explicações, mais surgem objeções, cada vez mais artificiais, até sufocar tudo --- até que a doutrina vire o contrário dela mesma, como acontece com essa turma da Teologia da Libertação, esses modernistas todos.
Nada, absolutamente nada, pode substituir a noção da fé no seu sentido originário, que é a confiança numa pessoa. A confiança numa pessoa não pode se opor nem deixar de se opor à razão, porque ela não tem nada a ver com a razão. São coisas totalmente estranhas. Por exemplo, cai um tijolo na sua cabeça. Isso é racional ou irracional? Nem uma coisa, nem outra! Racionalidade e irracionalidade se aplicam ao mundo das idéias, e não ao mundo dos fatos. Não há fatos racionais ou irracionais --- a categoria não cabe. A atitude que você tem para com uma pessoa em particular é uma decisão sua, totalmente livre, que em si não é nem racional, nem irracional. Agora, se você cria uma doutrina e exige que as pessoas a aceitem por fé, você as colocou numa situação muito difícil. Eu não posso acreditar numa doutrina por fé, isso é impossível! Eu só posso acreditar em uma doutrina se ela me parecer verdadeira; então vai ser sempre pela razão. A fé não se aplica à doutrina, mas ao Nosso Senhor Jesus Cristo [01:50] e aos fatos relatados. Se o sujeito vem e conta para você algo que aconteceu, o que é mais racional: acreditar nele ou não acreditar? Nem uma coisa, nem outra. Você só pode falar em racional e irracional no instante em que a racionalidade entrou em questão. Não se questiona a racionalidade de uma narrativa, mas sim a sua veracidade. Você pode alegar contra ela motivos de verossimilhança que têm em si uma estrutura racional. Por exemplo, você pode alegar que aquilo é improvável. Mas tudo aquilo que é improvável sob certo aspecto pode ser provável sob outro. Acreditar ou não acreditar em uma narrativa não é nem racional, nem irracional; o que é racional ou irracional é a discussão que você coloca em seguida. Não pode haver essa confusão de planos. Se você define a fé como crença em uma doutrina, você criou uma confusão mental da qual nunca mais vai poder sair.
Aluno: O que o senhor diz sobre o mundo da experiência separado do mundo do discurso me faz lembrar imediatamente do segundo capítulo da "Ortodoxy" de Chesterton, quando ele diz que a discussão com um louco é impossível, pois ele vive num círculo perfeito e que a solução para isso seria tentar mostrar para ele que o círculo é pequeno e mesquinho, que é triste etc., ou seja, reduzir a razão como um instrumento à razão como verdade e dispensar a intuição e a experiência direta.
Olavo: Sem dúvida. Ele diz que a diferença entre o poeta e o louco é que o poeta mete a cabeça no mundo e o louco mete o mundo na cabeça*.* Você não inventou o mundo. Se você somar todas as suas idéias, elas não vão abarcá-lo --- o mundo é sempre mais complexo do que você pensa, e você tem de ficar permanentemente aberto a ele; tem de deixar que a realidade te ensine. A pressa em chegar a conclusões só serve para que você feche o círculo, e é por isso que eu sugiro aos meus alunos o voto de pobreza em matéria de opiniões. É melhor você ter um monte de contradições na cabeça do que ter opiniões. Deixe para ter opiniões quando elas valerem alguma coisa. Como é que você sabe o que a sua opinião vale? Vale o trabalho que você teve para obtê-la. Quanto esforço custou essa opinião? Por exemplo, quantos livros você leu para ter essa opinião? Um? Quanto vale a opinião do Lula de que a crise foi criada por homens brancos de olhos azuis? Não vale nada, porque, na realidade, ele peidou aquilo, foi um peido mental, saiu na hora, não custou nada. Peido não custa nada. Qual o valor de mercado de um peido? Nenhum.
Aluno: Assisti a todas as aulas do curso História da Filosofia. É correto afirmar que apenas Schelling, Voegelin e Zubiri escaparam dos padrões de que foi vítima o Descartes --- a paralaxe cognitiva? Homens como Ananda Kentish Coomaraswamy, René Guénon, Frithjof Schuon e Julius Evola foram vítimas, a despeito de não se enquadrar como filósofos?
Olavo: O problema com esse pessoal da escola tradicionalista não é a paralaxe cognitiva; é a mentira. O problema é a mentira. Os caras que falam em nome de sociedade secretas não podem contar toda a história, então eles têm de encobri-la. Todos esses camaradas são pensadores enormemente profundos --- Guénon, Schuon, Evola ---, só que eles não podiam contar a história inteira. Há uma espécie de camuflagem ali, esse é o problema. Para ler esses autores, você precisa estar muito bem equipado --- não só imaginativamente, mas historicamente ---, para poder reconstituir o que se passou efetivamente. Se não, você vai entrar no mundo das doutrinas deles, onde eles frequentemente têm razão, e é um mundo tão complexo, tão rico, tão maravilhoso, que você se transpõe para aquele outro mundo --- você é arrebatado pelo universo do pensamento tradicionalista. Não que não haja riquezas enormes ali (eu mesmo as absorvi de monte), só que eu nunca me conformei com doutrinas; eu quero saber da onde as coisas saíram, do que o sujeito está falando. Por exemplo, todo esse mundo do Oriente de que o Guénon fala: ele identifica sempre o Oriente como sabedoria, "tudo vem do Oriente". Mas vamos ver se foi assim mesmo. Uma coisa é esse Oriente metafísico que você inventou; outra coisa é o Oriente histórico. Começam a aparecer ali, às vezes, certos lapsos. Por exemplo, ele fala horrores contra o método histórico, mas é esse método que ele usa no livro Teosofismo --- ele usa o método histórico o tempo todo. Então, qual é o problema? Ele fez isso por contradição, por que é burro? Não; é porque tem um pedaço da história que ele não quer contar. Todo sujeito que fala em nome de uma sociedade secreta, você tem de acreditar cum grano salis, com certa ponta de ironia --- acreditar até um certo ponto. Não que você não possa se aproveitar daquilo e aprender muito, mas você não pode jurar pela cartilha do cara, porque sempre há um pedaço da história que ele não está contando para você. Por exemplo, quando ele diz que a perda da tradição espiritual no Ocidente, o materialismo etc., tudo isso só pode ser corrigido pelas iniciações. Mas qual iniciação que ele supõe? "Ah, a iniciação maçônica, a única que existe". Mas, peraí. Historicamente, a maçonaria não esteve por trás de tantos movimentos materialistas, anti-cristãos etc.? Esteve, também. Então ela não pode ser a solução para um problema que ela mesma ajudou a criar. De que maçonaria ele está falando? De uma maçonaria idealizada, que só existia na cabeça dele, e não a maçonaria historicamente existente. A obra de um Guénon é uma coisa enormemente complexa. Ela ajuda muito, é muito útil. Mas ele mesmo assume o pseudônimo de "Esfinge" --- decifra-me ou devoro-te. O que quer dizer ser devorado pelo Guénon? Você vai entrar no mundo dele e vai ter de obedecer direitinho o que ele está falando. Mas você pode partir para a decifração. Por que muita gente não consegue decifrar? Não consegue porque lê com ódio, às vezes, ou com medo. Outros não conseguem porque se deixam arrebatar por aquele tipo de discurso, que levanta você para um nível de universalidade, no qual só se fala de certezas absolutas. No plano metafísico, isso está muito certo, mas, quando ele deduz imediatamente as coisas para o campo histórico, às vezes dá certo e às vezes dá errado. Quando ele prevê, por exemplo, o desaparecimento do dinheiro (o dinheiro seria substituído por outros meios). Isso nós vemos, todo mundo tem um cartão de crédito no bolso. Isso já aconteceu; o método de pagamento eletrônico hoje é predominante. Mas quando, poucos anos antes da Revolução Chinesa, ele diz que a China jamais será bolchevique, isso é uma besteira descomunal. E ele fala as duas coisas no mesmo tom de certeza absoluta, de quem deduziu dos princípios universais. Para o meu gosto, Guénon não era um mestre espiritual; Schuon também não. Mestre espiritual é Jesus Cristo; esses caras são apenas imitadores. Tem um elemento divino ali e tem um elemento diabólico. Quanto tempo leva para você discernir? Eu levei uns trinta anos. Por exemplo, a análise estilística de Rene Guénon (quando vocês lerem René Guénon, me lembrem de fazer isto aqui). Ele está expressando doutrinas orientais no estilo mais caracteristicamente francês acadêmico possível. **[02:00] **Você não pode imaginar um autor oriental escrevendo como o Rene Guénon, isso não existe. Que combinação mais estranha é essa? Da onde ele tirou isso? Se você não tem uma sensibilidade literária, um ouvido literário acordado, você não percebe isso. Aí vira um tipo de leitura ingênua: o principal no que ele está fazendo, que é justamente a linguagem dele, escapa a você.
A linguagem do Guénon tem certas qualidades poéticas absolutamente arrebatadoras, como Spinoza tem. Ele tira você do universo da experiência comum e levanta-o para um nível de universalidade abstrata absolutamente maravilhoso. Como é que ele faz isso? Para quê ele faz isso? Quando ele faz isso devidamente? Quando faz indevidamente? Isso dá bastante trabalho. Tem de examinar essas coisas com cuidado --- e você vai errar muitas vezes.
Aluno: Trabalho como corretor de redações do vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Há dois anos, o tema da redação foi sobre personagens da literatura que representassem o brasileiro típico. A surpresa foi a escolha da maioria dos candidatos: Naziazeno, protagonista do romance "Os Ratos", de Dyonélio Machado. Se o senhor leu esse livro, sabe que o personagem é de uma fraqueza e covardia ímpar. Não obstante, os candidatos achavam que Naziazeno encarnava o excluído, o qual seria o brasileiro típico, e que por isso --- e apenas por isso --- era um homem virtuoso. Será que nesse caso a percepção da ficção de um estudante médio já foi totalmente emburrecida pelo sistema de ensino brasileiro?
Olavo: Não só emburrecida; foi corrompida moralmente. No quê a condição de excluído legitima a covardia e a fraqueza? Em absolutamente nada. É justamente quando você é excluído que você precisa ser forte e durão! Isso é a coisa mais óbvia do mundo. Se você nasceu em berço de ouro, papai e mamãe lhe deram tudo, você não precisa ter virtude nenhuma, seu problema está resolvido. Agora, se você está ali ferrado, perseguido, não tem pra onde ir, é aí que você tem de mostrar que você vale alguma coisa. Essa idéia de que a exclusão legitima a fraqueza e a covardia é justamente a idéia gerada pela fraqueza e pela covardia. É a idéia de fracos e covardes. Em contraste, leia A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de João Guimarães Rosa. Quando é que aparecem as virtudes do Augusto Matraga? É quando ele está no pior dos piores --- perdeu tudo que tinha, os caras bateram nele, quase o aleijaram, reduziram o sujeito a uma situação deplorável; é aí que ele fica valente. É o normal, é assim que tem de ser. Leia a narrativa do Euclides da Cunha, Os Sertões, onde você vê que, do fundo daquela miséria, surge uma coragem absurda, uma coragem suicida daqueles camaradas. O exército mandava tropas e mais tropas, e os caras ferravam com tudo. Eles não tinham nada, não tinham onde cair mortos. Por que você tem de ver justamente esse coitadinho desse infeliz, desse imbecil, como típico? É porque --- pior --- ele é típico mesmo. Ele é típico e expressa a tipicidade desses alunos que fizeram isso. Você vai justificar toda a sua fraqueza, toda a sua covardia, dizendo que é excluído. Quer dizer que você só vai ficar valente quando você for incluído? Você vai ficar rico, poderoso, com um mandato de senador --- daí você fica valente? Ah, assim, até eu! Que idéia mais torpe, maligna! É esse mesmo fenômeno que eu tenho descrito. A gente não pode mais aceitar isso. Foi muito bom você lembrar isso aqui. É terrível, não é?
Aluno: É possível fazer uma análise, com base na teoria das doze camadas da personalidade, do personagem descrito em nosso necrológio?
Olavo: Pode e deve! As doze camadas são patamares que você vai atravessando e que são novos padrões de unificação da personalidade. O centro da sua personalidade se move para um patamar superior, onde os seus interesses são diferentes, os seus objetivos são diferentes, e aquilo unifica a sua vida para aquela fase. É muito importante você ter essa concepção de em que camada da personalidade você acredita poder chegar. É muito boa essa pergunta.
Aluno: É preciso tomar conhecimento da literatura universal para começar a entender os conceitos filosóficos de alguns filósofos ou devo ler muita literatura específica do idioma de um determinado filósofo?
Olavo: Não, não. É em geral. O que importa é você conhecer a multiplicidade das situações humanas e tê-las na mente, como um dicionário. Porque, depois, você coloca os filósofos realmente como personagens de um drama e se identificará com eles no sentido em que se identifica com os personagens de um drama. É uma identificação puramente imaginária, que não compromete moralmente. Isso é muito importante. Quando você lê um filósofo --- na verdade, quando você lê qualquer opinião ---, você tem de se colocar num ponto de vista tal que aquela opinião, aquela idéia, lhe pareça verossímil. Em que posição, em que situação humana, eu precisaria estar, para que eu visse as coisas do jeito que esse camarada está vendo? Você vai reconstituir mentalmente experiências que tornam aquilo verossímil. Num primeiro momento, você não vai julgar se o camarada está certo ou não, mas absorver aquele ponto de vista como sendo uma possibilidade humana --- tal como você faz com os personagens de ficção. Tem de haver aquela *suspension of disbelief *(a suspensão da descrença), de que falava Samuel Coleridge. Você vai ter com os filósofos a mesma suspensão de descrença; absorver a narrativa deles como se fosse uma coisa verídica derivada de uma experiência real. Só depois é que você vai complementar essa experiência. E, muitas vezes, vai encontrar --- como eu encontrei em Descartes --- uma porta fechada entre a idéia e a experiência; não conseguirá passar para a experiência, porque há ali, ou um erro efetivo (o camarada viu uma coisa, mas disse outra), ou uma camuflagem. Mas, num primeiro momento, você tem de absorver o filósofo como se ele fosse um personagem. Por exemplo: nos romances modernos aparecem muitas discussões filosóficas. Dostoiévski, Thomas Mann, Jakob Wassermann, Robert Musil, criam personagens que discorrem páginas e páginas mostrando ali a sua concepção da realidade. Você tem de transformar o filósofo num personagem desses, sem medo de se deixar influenciar. Você vai se deixar influenciar do mesmo modo que se deixa influenciar por um personagem de teatro --- vai "ser" aquele sujeito, pensar como ele, sentir como ele, durante algum tempo. Depois acaba a peça, você volta para casa e volta a ser você mesmo. Você não pode negar esse grau de co-participação e de simpatia a nenhum autor. É preciso tornar verossímil o que ele está dizendo, e tornar verossímil é tentar ver a experiência tal como ele a está vendo, até o limite em que a idéia dele permita isso. E, justamente, às vezes ela não permitirá; então você constata ali uma ruptura entre idéia e realidade --- [02:10] um acobertamento da experiência, uma camuflagem, ou um simples erro. Mas você deve se deixar influenciar por todos os autores que ler, como se estivesse no teatro. No teatro, você acompanha as emoções, as palavras do personagem, sem se preocupar se aquilo é mentiroso ou verídico, se é bom ou se é mau. Você vive um sonho: um sonho acordado dirigido. Claro que você será influenciado por aquilo, mas não totalmente. Por isso, não tenha medo de ser influenciado. Aquela não será a última peça que você vai ver; depois verá outras, terá outras influências, se abrirá a outras --- e uma mão lava a outra. Você não pode ler as coisas com olhos críticos num primeiro momento, se não você não vai nem entender. Há uma certa atitude de concordância e de abertura sempre. Não há mal nenhum em tentar ver as coisas como aquele sujeito está vendo, sabendo que aquilo não vai ser a última palavra.
Aluno: Fica claro, pela sua explanação, que as mesmas evidências intuitivas não são compartilhadas por todos. Pode ser que todos tenham evidência intuitiva da própria existência da veracidade dos sentidos, que alguns negam, mas há outras que não são compartilhadas. Algumas dúvidas: como compartilhar o conhecimento decorrente da evidência intuitiva com outra pessoa que não a possua?
Olavo: Eu prefiro deixar essa pergunta para o fim do curso, ou seja, "como é que eu vou explicar as coisas para terceiros?" Por enquanto, nós estamos vendo como é que vocês vão entender as coisas. Desista de explicar qualquer coisa para qualquer pessoa. Estudar alguma coisa é adquirir um conhecimento que os outros não têm e, portanto, é tornar-se mais ou menos incompreensível durante algum tempo, porque o explicar, o ensinar, isso vem depois. Na verdade, uma coisa se transforma em outra quase naturalmente: de tanto você explicar para você mesmo, você acaba explicando para os outros. Quando isso vira um problema, é porque você não está pronto. Se você tivesse elaborado a questão suficientemente para você, então explicar isso seria mais ou menos natural, como eu estou fazendo aqui. Mas se você, tão logo estudou uma coisa, já quer explicar para outro, você só vai criar problema. Veja, é fundamental você ter um certo universo pessoal --- de idéias, de experiências interiores, de imaginação, de símbolos --- que seja seu e não seja comunicável. Isso é a sua personalidade intelectual. Essa é a sua camada nove, na teoria das camadas. Nós estamos ajudando você a criar uma personalidade intelectual. A personalidade intelectual é sua, não é para ser compartilhada. Eu sugiro que você não se preocupe com isso. Ou então limite as suas conversações sobre isso a outras pessoas que estão igualmente interessadas. Não tente explicar a quem não quer ouvir. Isso já é um problema retórico: você explicar um negócio para quem não quer, não pode ou não tem capacidade para compreender, e não gosta de você. Bom, já é outro problema. Eu, felizmente, tenho esta experiência de jamais ter estado face a face perante uma platéia que eu não acabasse, de algum modo, ou convencendo, ou ganhando a simpatia. Por escrito é difícil fazer isso, mas pessoalmente sempre consegui, por mais hostil que fosse a platéia no começo. Sempre dá. Mas não esqueça que, antes de eu começar a fazer isso, eu já tinha examinado aquelas questões por todos os lados, e todas as besteiras que apareciam nas perguntas, eu já tinha pensado --- eram as minhas besteiras mesmo. Então, primeiro: eu tinha paciência com elas. Eu não considero um sujeito burro só porque ele pensa, porque ele acredita em uma idéia idiota na qual eu acreditei também. Isso não é sinal de burrice, é sinal de que este sujeito é humano, como qualquer um. Você tem de ter toda aquela paciência com as pessoas, acreditar na inteligência delas, acreditar que elas são capazes de compreender, acreditar na honestidade delas, e apostar nisso até o fim. Se não der --- se o cara, depois de você abrir tudo, ainda continua com besteira... ---, você dá um pontapé e pronto. Daí você não vai se preocupar mais.
Aluno: Como distinguir uma evidência intuitiva de uma crença infundada?
Olavo: Essa distinção também é intuitiva. A crença intuitiva, a evidência intuitiva, se caracteriza pela presença do objeto --- presença que pode ser direta ou através de imaginação. Quando se trata de uma crença infundada, você de fato vai ter uma dificuldade em transfigurar aquilo em realidade concreta. Claro que você vai ter de desenvolver um certo senso da concretude (que eu pretendo trabalhar bastante neste curso). Quando eu digo "imaginar a situação", não é só você inventar um teatrinho no qual aquilo pareça estar acontecendo, mas é inventar um teatrinho que possa estar inserido no contexto real da sua vida, e para isso você precisa ter sempre o senso desse contexto e o senso dessa abertura. Não é nos livros que você conquista essa abertura, porque ela não é perante as idéias, mas perante a realidade. Tem uma série de experiências que eu sugiro que as pessoas façam. Por exemplo: você ir para um lugar onde não haja ninguém, deitar-se no meio de um descampado, de noite, sentir a terra debaixo de você e olhar a infinitude do céu em cima --- e perceber que você está ali realmente, que é ali que você está naquele momento. Toda a rede de relações sociais em que você se apóia, ali não está presente. Todo o seu universo linguístico também não está presente. (Por enquanto eu estou só falando, não estou sugerindo que façam ainda. Um pouco mais tarde eu explico como é que se faz isso). Você tomar uma consciência não-verbal da sua presença física no universo real, no universo ilimitado. Isso você tem de fazer, uma vez ou duas na vida. E assim você vai desenvolvendo o senso da presença maciça da realidade, na qual o seu pensamento não pode absolutamente nada. Muitas vezes a vida nos coloca nessas situações. Por exemplo: quando você passa por um perigo físico muito grande, você percebe que aquilo que você pensa ou deixa de pensar "não inflói nem contribói". Isto é a realidade; isto vale mais do que qualquer idéia. Você, desenvolvendo esse senso da realidade concreta, pode aprimorá-lo até perceber aquilo que Voegelin diz --- que a experiência da realidade é em si mesma transcendente, quer dizer, é uma coisa que necessariamente abre para o infinito. Desenvolvendo isso, você acaba captando essa distinção entre uma evidência intuitiva e uma crença infundada. Crença é uma coisa que só vale pela repetição. Se você não repetir, você esquece. Mas há uma série de coisas nas quais você vai continuar acreditando, mesmo sem jamais pensar sobre elas. Por exemplo: a idéia de que o chão não termina onde você o vê. Tem alguma coisa embaixo dele e, embaixo, outro embaixo, e outro embaixo --- em suma, tem alguma coisa sólida embaixo de você. Essa sensação de solidez do chão é uma coisa importante. Nós nunca pensamos nisso, mas nós sempre contamos com isso. Essas coisas com as quais nós contamos são as primeiras que deveriam entrar no nosso universo filosófico; no entanto, são geralmente as últimas. O número de idéias em circulação que simplesmente desmentem a existência de realidade externa é muito grande. No entanto, nós devemos quase tudo a essa realidade externa, quase tudo. **[02:20] **Praticamente tudo o que você sabe, pensa, percebe, tudo veio de fora --- o que você criou é mínimo. Agora, para você ter a experiência disso, você vai ter de perceber a sua pequenez; perceber que você é um átomo, um quase nada. Mas você está na realidade quando percebe isso. As pessoas às vezes ficam com medo disso, mas elas têm de ter mais medo é de escapar da realidade. A realidade existe e nós estamos nela --- não é uma idéia nossa, não é uma coisa que nós pensamos. Quando você se acostuma a ficar dentro da realidade existente e a deixar que ela ensine-o; quando você perde o medo do tamanho da realidade e começa a ter medo da sua própria burrice, do seu próprio auto-engano, aí você está no caminho da filosofia.
Tem umas perguntas aqui que são difíceis, que precisariam de mais tempo.
Aluno: Poderíamos fazer um paralelo entre o que o senhor disse na aula passada, sobre o material cultural necessário para compor nossa verdadeira filosofia baseada em experiências reais da vida, e o que dizia Joseph Campbell sobre estar atento aos sinais que a vida nos dá, na forma de indicativos balizadores de que estamos no caminho certo?
Olavo: A resposta é não. O meu negócio é muito mais modesto do que está dizendo o Campbell. Nós não temos de tomar a realidade como indicadora de outra coisa senão da realidade mesma. Não é interpretar sinais. Se você começou a interpretar sinais, você se transpôs do mundo da experiência para um outro mundo de nexos e significações. Esses nexos e significações existem também, mas você precisa esperar que a própria realidade lhe diga as coisas. O critério de tudo que estou falando é um negócio que S. Tomás de Aquino dizia: "Nós escrevemos com palavras, mas Deus escreve com palavras e coisas." Tudo é o discurso divino --- tudo, tudo. Mas você não deve ficar picotando o discurso divino. Você deve esperar que as coisas se desenvolvam e cheguem à sua conclusão, para aí você dizer: "Bom, o que é que Deus está querendo dizer com isso?" Espere, que Deus acaba de dizer. Se você quer pegar os sinais já na hora, você pode se enganar. Eu não estou falando de decifração; estou falando de aceitação. Se existe a decifração, então você já tem de ter uma linguagem, um código, um domínio do simbolismo universal etc. Mas, em geral, eu acho que tudo aquilo que vem de Deus não precisa ser interpretado. Por exemplo: o sujeito teve um sonho e quer saber o que quer dizer esse sonho. Olha, se o seu sonho precisa ser interpretado é porque não veio de Deus, meu filho. Deus não vai ficar passando enigma para você, Deus tem mais o que fazer. Se Ele quer meter um conhecimento na sua cabeça, Ele mete aquele conhecimento e você nem sabe de onde saiu; você dorme sem saber e acorda sabendo. Isso já me aconteceu muitas vezes. Não tive sonho nenhum. Não tive sonho, nem visão, nem coisa nenhuma --- Deus quis que eu soubesse aquilo e eu fiquei sabendo. Como é que Ele fez isso? Eu não sei. Mal sou eu capaz de pegar o conteúdo que Ele passou e ainda vou entender como é o processo que Ele fez? Eu não preciso saber isso porque eu não estou disputando o emprego d'Ele. Ele faz o serviço d'Ele e eu faço o meu. O meu serviço é entender aquilo lá; o d'Ele é saber como é que se faz um jumento entender aquele negócio. Isso aí é milagre. Então, calma e paciência. Calma, paciência, e total conformidade com a realidade --- total, total ---, antes de você querer interpretar, de querer tirar uma conclusão. Conclusão é um negócio que vem no fim. Antes de você querer tirar uma conclusão, você tem de esperar que os fatos se desenrolem. Se você está querendo um conhecimento que é mais eficiente do que aquele que as pessoas usam nas suas discussões, no seu cotidiano, então você tem de arrumar um critério mais firme. Esse critério mais firme é a própria realidade. Antes de você poder interpretar ou prever alguma coisa, é melhor você saber o que está acontecendo. Para saber o que está acontecendo, é preciso que acabe de acontecer. Mas se você não tem paciência e quer tirar uma conclusão já...
Conformar-se com a ignorância, aceitar o estado de ignorância, é básico nisso aqui. Por exemplo: quando eu falei em ficar olhando o céu e sentindo a terra embaixo de você. Que conclusão você vai tirar? Nenhuma; só vai esperar que aquela realidade que você está vivendo lhe apareça com sua plenitude. Essa plenitude nunca acaba. Uma coisa é imaginar o céu, a terra etc.; outra coisa é você estar ali parado e perceber aquilo de algum modo. Daí você percebe coisas que não estão propriamente presentes --- a densidade da terra embaixo de você não está totalmente presente; você só capta uma sensação na pele, mas sabe que há algo embaixo. E você vai deixando este mundo real chegar até você: imagem, som, presenças invisíveis que estão ali, como a própria presença do solo. Não estou falando de fantasmas, não; estou falando de coisas reais. Esse é um exercício muito bom, faz muito bem pra cabeça. Hoje em dia é muito comum esse tal "exercício de sensibilização" --- não é disso que estou falando. Não se trata de você sentir mais coisas no seu corpo; se você vai sentir mais coisas no seu corpo, o que você fez? Você já tornou a experiência concreta uma coisa abstrata, porque você separou o corpo e a experiência, para prestar atenção só no corpo. Não é disso que estou falando, mas de ficar ali e deixar a realidade inteira da situação, na qual o seu corpo e os seus pensamentos são só mais um elemento.
Muitos dos nossos erros são causados por querer entender a situação sem antes saber qual é a situação --- querer saber o "porquê" antes de saber o "o quê". Não se trata de sensibilização, porque, na sensibilização, você já está especializando aquela experiência. A tônica da experiência de que estou falando não é sensação; é realidade, é presença, é tudo o que está presente na situação conforme as suas várias modalidades de presença. Você vai ver o seguinte: por grande que ele seja, o universo não chega para você caoticamente, mas terrivelmente organizado. Tudo tem uma perspectiva --- você tem uma perspectiva visual, sonora, táctil... Por exemplo: você sente o chão na sua pele, mas você sente a temperatura também. Não é do mesmo modo que você sente. A presença do chão é imediata; a presença da temperatura precisa de uma variação --- quando a temperatura muda um pouco é que você a percebe. Os sons, e as várias distâncias dos sons --- som mais próximo, mais distante. Tem o som do seu próprio ouvido, som que vem do seu próprio corpo. Tudo isso está ali presente. É incrível. Nós estamos no universo, mas poucas pessoas se ocupam, geralmente, disso aí --- de estar no universo. "O que eu vou fazer aqui, agora?" "Vou estar aqui, presente no universo, para ele me dizer o que ele é." As pessoas querem estados contemplativos de um outro mundo, **[02:30] **sem sequer experimentar um estado contemplativo deste mundo aqui. A sua única preocupação diante disso vai ser aceitar a realidade, e não ir atrás dela. Não quer dizer que você tem de parar os seus pensamentos, não. Mas, quando você pensar, lembre-se de que você está pensando neste lugar, que o seu pensamento está se desenrolando neste lugar, nesta situação precisa.
Aluno: Você diz que o estado de dúvida proposto por Descartes é uma figura de linguagem. Você não acha que a melancolia pode induzir ao estado de dúvida radical como ele descreve?
Olavo: Perfeitamente. A melancolia pode se expor metaforicamente como dúvida metódica. Dúvida metódica é uma figura de linguagem que vai expressar um estado de melancolia. No caso de Descartes, eu não disse melancolia, mas "angústia". Mais tarde nós vamos voltar a este caso do Descartes, vamos ler os textos, pegar os elementos biográficos e examinar isso aí. O caso dele eu vou esclarecer nos mais mínimos detalhes, mas não é agora.
Aluno: O senhor está publicando a série de artigos Brasil Mentira (como sempre, excelentes). Há assuntos sobre os quais o senhor já fez referência outras vezes, que não sei se se encaixam nesse panorama que o senhor escreve, que é a mania que o brasileiro tem de psicologizar tudo. Venho observando isso e é absolutamente impressionante como a maioria faz isso. Todos analisam seus atos através dessa psicologia medíocre --- todos sabem o melhor para a vida dos outros, todos conhecem os outros com uma profundidade incrível. É uma raça de gênios. À luz do nosso curso, como entender esse comportamento?
Olavo: Ora, eu acho que tudo isso é medo. É a busca de uma garantia psicológica, de um sentimento de se sentir superior por alguns momentos. Veja, a Igreja diz que os inimigos da alma são o mundo, o diabo e a carne. Que é o "mundo"? O "mundo" não é o mundo físico; é o mundo humano, da sociedade --- conversa, falatório etc. As pessoas se refugiam do mundo real no "mundo" (no sentido católico), ou seja, no mundanismo (o mundo do falatório). Se elas se abrirem um minuto para essa experiência da realidade de que eu estou falando, acaba tudo isso. Afinal, que importância tem você ser superior ou inferior aos outros? Que diferença faz? Isso é uma ilusão.
Nós temos uma cultura que é, há séculos, separada dos problemas fundamentais da vida, e centrada excessivamente nos problemas da convivência social. O meu amigo Jerônimo Oscar dizia que os problemas da literatura brasileira são: "Ah, ele usou minha escova de dentes, ele roubou minha cueca". É assim, são picuinhas, na verdade, e nós julgamos tudo à luz dessas picuinhas; é toda uma tradição cultural voltada para isso. Por exemplo, quando eu li o romance A Selva, de Ferreira de Castro --- um romance incrível desse autor português ---, em que ele descreve a selva amazônica. Ele foi o único sujeito que viu a floresta amazônica como ela realmente era, ou seja, um fenômeno natural e humano ao mesmo tempo, e não uma coisa separada. Quando os outros autores falam da Amazônia, parece que estão falando só de um fenômeno natural, como se não houvesse um observador humano ali dentro; como se a coisa estivesse separada do universo humano. É uma visão alienada. Já o Ferreira de Castro consegue articular todo aquele horror da selva --- horror e, ao mesmo tempo, pujança ---, aquela riqueza, com a situação humana dos caras que estão vivendo ali. Bom, então é um cara que está instalado na realidade, que tem a noção da realidade, enquanto os outros não têm. A paisagem brasileira, como ela aparece na nossa literatura, é totalmente alienada, porque ela não se articula com o drama humano.
Na literatura brasileira, a maior parte dos problemas que aparecem se referem à convivência humana, centrada em torno de coisas miseráveis --- "Ele comeu minha namorada", "Ele roubou minha pasta de dente". Claro que nem tudo é assim. Mas, a partir do momento em que houve um fenômeno chamado Rede Globo, isso aí se universalizou, porque ela só trata dessas coisas. Quando aparece um personagem notável, quase um santo, isso quer dizer o seguinte: "ele não rouba". Não roubar, no Brasil, é considerado um mérito santificante. Esse é o máximo de qualidade humana que os caras são capazes de imaginar. Existe uma boa quantidade de sadismo e, sobretudo, de imaturidade, em tentar explicar apenas em termos psicológicos pessoas que são enormemente maiores e mais complexas do que você. Como você não é capaz de enxergar essas personalidades, a solução é reduzir tudo a uma coisinha imaginária. Isso é autodefesa. É o mesmo problema que está naquela pergunta sobre Os Ratos, do Dyonélio Machado. Esses caras que ficam analisando a psicologia dos outros, sempre a explicar por um complexo ou por algum defeito, são os mesmos que acham que o brasileiro típico é um sujeito covarde, porque ele é excluído. Você quer um sujeito mais excluído do que Jesus Cristo? Por que o excluído típico tem de ser aquele?
Aluno: Percebo que muitas questões que chegam ao ar no início deste curso estão ainda, perdoe-me, distantes da minha compreensão. Sinto-me ainda "cru" diante de tais problemas. Penso nas leituras de base para ampliar a capacidade de imaginação. Na aula anterior, o senhor nos lembrou de Borges e disse que, para ler um livro, é preciso ler muitos livros. É o que me angustia, pois não sei se leio com qualidade. Como o senhor recomendou muito a leitura de ficção, de que modo posso perceber que estou lendo com qualidade?
Olavo: No começo, você vai ler o que eu disser para ler. Depois você lê outras coisas e vai acabar percebendo por você mesmo. Quando as coisas estiverem acima da sua compreensão, não se preocupe, nós temos aqui cinco anos pela frente. Vocês vão mudar muito, crescer muito. Os centros de referência da sua vida vão mudar muitas vezes. Eu espero que isso aconteça e tenho quase certeza de que vai acontecer. Por enquanto, siga este meu conselho: leia os clássicos da literatura. Comece com o romance, que é o gênero mais próximo de nós --- no período do século XVIII até metade do século XX, há uma infinidade de autores bons. Você nunca vai perder por ler Dostoiévski, Tolstói, Goethe. Não vai fazer mal nenhum. Vá lendo isso e acumulando situações. Esse período acumulativo é fundamental, pois você vai criar o seu mundo imaginário. Quando você ler vários romances, vai começar a ver essas situações, vai ver e reconhecer esses personagens. Você ainda não será capaz de exprimir isso, mas é no que você não é capaz de exprimir que você estará ganhando, porque esse é o seu mundo interior. Claro que a sua experiência interior não será comunicável para a maioria das pessoas. Porém, você vai encontrar pessoas que são capazes de compartilhá-la com você, e isso é o alcance de uma amizade qualificada, baseada nos mesmos valores, no amor. S. Tomas de Aquino dizia que a amizade é querer as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas. A amizade não pode se basear em mera simpatia pessoal acidental, que às vezes se dá por um motivo fútil, passageiro. Aos poucos, você vai selecionando as suas amizades, até ver pessoas que realmente querem o que você quer e estão indo para onde você está indo. Se, no meio disso, você passar por um período de um pouco de solidão, não se preocupe, isso vai ser bom para você, vai enriquecê-lo. E, depois, você vai ter uma convivência humana muito mais qualificada, com muito mais abertura. [02:40]
Aluno: Há relações entre o "fundamentalismo", de Voegelin, que você comentou na última aula, e a paralaxe cognitiva?
Olavo: Sim, certamente. Voegelin usa a palavra fundamentalismo no sentido caricatural, e não no sentido de fundamentalismo religioso, como as pessoas usam normalmente. Fundamentalista é todo sujeito que acredita, ou duvida, de uma coisa que ele não sabe o que é. É o indivíduo que está mais interessado em alcançar rapidamente uma crença, a favor ou contra, do que em ter a experiência da realidade. A pressa do sujeito em aceitar ou negar aquilo que lê ou ouve falar, sem alcançar a substância de experiência que tem por trás daquilo, é uma coisa terrivelmente alienante. A relação que isso tem com a paralaxe cognitiva é a seguinte: a paralaxe cognitiva se torna epidêmica a partir dos séculos XVII e XVIII, quando isso vai crescendo. Uma coisa que vocês têm de meter na cabeça é o seguinte: a realidade existe; ela já existia há milênios antes de você chegar aqui. Ela existe, é enorme, complexa, e o que desencadeou a filosofia foi justamente o espanto, o susto, diante do tamanho e complexidade da realidade. Aristóteles chama a essa emoção thambos, uma espécie de espanto, admiração e horror ao mesmo tempo --- medo. Mas, ao invés de se refugiar desse medo da realidade, você precisa se abrir para ele, como quando você pula dentro da água fria. Se você tentar se refugiar da água fria dentro da água fria, você vai se dar muito mal. Na hora em que você aceita a situação, seu corpo começa a esquentar.
Aluno: Não entendi muito bem sua explicação sobre a relação entre fé, razão e doutrina. Você disse que a fé não pode estar baseada em doutrina, que são construções históricas, mas nos fatos, ou seja, na vida e pessoa de Jesus Cristo. Porém, sempre tive para mim que acreditar que Jesus Cristo é Deus, fez milagres e ressuscitou --- morrendo pelos nossos pecados ---, vai voltar e é nosso Salvador --- ainda que sejam, na maioria dos casos, fatos da vida d'Ele narrados na Bíblia --- não deixam de ser doutrinas, tanto que muitos desses fatos estão no Credo Apostólico (...)
Olavo: Epa! O Credo Apostólico foi consolidado muito tempo depois --- e o Credo, o que é? É uma narrativa. Narrativa que começa com a criação do mundo e termina com o Juízo Final. É um resumo da narrativa bíblica. Muito mais do que uma doutrina, é uma narrativa. Doutrina, você supõe; é uma coisa que está sujeita à argumentação. Uma narrativa não está sujeita a uma argumentação; está sujeita só a testemunho. É assim que você tem de ler o negócio, é assim que você tem de ouvir o Credo.
Aluno: (...) Se eu acreditasse, por exemplo, que as narrativas bíblicas são apenas mitos piedosos ou narrativas de exorcismo (...)
Olavo: Bom, neste caso você não acreditaria nelas. Quando você aceita aquela narrativa como um ouvinte ingênuo que não tem por que duvidar, você está o mais próximo possível das testemunhas diretas que estiveram lá presentes. Agora, se nenhuma vez na vida você leu assim, com esta ingenuidade, e em seguida você desenvolve teorias dizendo: "Ah, são mitos etc.", então você simplesmente fugiu do objeto. Quando você vai assistir a uma peça de teatro, você começa a analisá-la durante, ou você assiste à peça de teatro? Você assiste, deixando-se impressionar pelo que está acontecendo. Na Bíblia, é a mesma coisa. Mesmo que você já tenha lido de outras maneiras, experimente ler assim. Só de você ler assim, as coisas já começam a acontecer.
A suspensão da descrença é necessária até para você assistir a uma peça de teatro, quanto mais para ler a Bíblia. E mais: você vai precisar abrir a sua imaginação para que aquelas coisas se tornem presentes para você. Vai ter de imaginá-las como coisas presentes, porque aquilo não é uma peça de teatro, não é um filme. O sujeito pode pegar um pedaço do Evangelho e fazer um filme, como o Mel Gibson fez, em "A Paixão de Cristo". Ele podia ter feito da Bíblia inteira --- ia dar um trabalho miserável, mas ele podia ter feito. Por que esse filme "A Paixão de Cristo" mexe tanto com as pessoas, converte tantas pessoas? Porque elas estão presentes ali e não têm de fazer o trabalho de imaginação; o trabalho de imaginação já foi feito e, ao ser mostrado para elas, tem um impacto direto. Eu acho muito difícil o sujeito assistir a esse filme e depois dizer que aquilo é apenas um mito. Na verdade, não há nenhum sinal de que seja um mito. Você tem ali testemunhas, pessoas contando que aconteceu assim e assado. Qual é o motivo razoável que você tem para colocar em dúvida todos esses testemunhos? É muito artificial.
Leia uma vez, imaginando que tudo aquilo aconteceu e tentando preencher de substância efetiva. Tente imaginar como se você estivesse lá. Para cada episódio do Evangelho, faça um filme mental, como o Mel Gibson fez. Quando terminar, você vai ver que essa história tem um certo efeito em você, e que não é simplesmente o efeito de transportar você para o mundo da imaginação.
Aluno: (...) Podem ser também narrativas distorcidas de acordo com o imaginário das comunidades cristãs primitivas que o redigiram. (...)
Olavo: Ora, mas espere aí. As comunidades cristãs primitivas estavam lá presentes, e você não estava. É mais provável você distorcer do que elas. Por que é que dois mil anos de afastamento tornariam você mais apto a dar um testemunho fidedigno? Essa aí é uma curiosa inversão. As fontes primeiras são as fontes primeiras: os caras que estavam lá e que assistiram. Em parte eles assistiram, em parte perguntaram para outras pessoas que assistiram. Isso é tudo o que nós temos.
Aluno: (...) Eu não estaria, dessa forma, criando uma doutrina e, ao mesmo tempo, impugnando as doutrinas tradicionais do Cristianismo?
* *
Olavo: Sim, certamente. Você estará criando doutrinas, e daí você vai entrar na discussão teológica. Mas de que adianta uma discussão teológica sobre uma narrativa que você nem sequer leu como se deve ler? Aquela narrativa se apresenta para você como um testemunho. Por exemplo, você lê as cartas de São Paulo Apóstolo e vê que são coisas que ele vivenciou --- ele esteve naqueles lugares, falou aquelas coisas, passou por aqueles negócios. Essa história é posterior ao Evangelho, evidentemente, mas é um exemplo. Não dá para você conceber as cartas de São Paulo Apóstolo como se ele tivesse inventado tudo aquilo. Ele estava falando, em grande parte, para pessoas das quais muitas ainda tinham recordação dos acontecimentos do Evangelho. Isso não se apresenta para você como uma narrativa mítica, mas como uma série de testemunhos. É claro que uns testemunhos [02:50] podem ser mais precisos, outros menos, mas são testemunhos históricos, algo que aconteceu. Tente imaginar que aquilo aconteceu. Se você não faz nem isso, você simplesmente não leu aquilo. Abra-se para a narrativa; mais tarde você tira suas conclusões da narrativa. Mas não tenha pressa em tirar conclusão.
Há aquele trecho (acho que é Mateus 6, 11) em que João Batista está na cadeia e manda os caras perguntarem para Jesus Cristo: "Quem é você mesmo? É você que a gente está esperando, ou é outro?". E Jesus Cristo diz: "Então vocês voltem e digam ao João o que vocês viram e ouviram: os cegos enxergam, os paralíticos andam, os leprosos aparecem curados etc. É isso o que vocês estão vendo." Agora, se você duvida de curas miraculosas... Duvidar com base no quê, se elas acontecem até hoje? Eu não vejo por que duvidar. Eu acho que a dificuldade de você lidar com eventos miraculosos é uma dificuldade artificial, criada por uma ideologia moderna. Você acha que as coisas para as quais você não tem uma explicação não podem acontecer. Se fosse assim, o mundo não poderia ter começado, meu filho, porque você não tem nenhuma explicação da origem do universo e, no entanto, o universo está aí, já estava aí muito antes que alguém inventasse alguma explicação. O passo número um no avanço do conhecimento é você admitir que a realidade existe e que o seu entendimento dela é precário. Se você não entende nem isso, não dá para começar. Tem gente que diz isso, mas na prática não consegue fazer. Sempre que aparece um acontecimento para o qual ela já não tem uma explicação, ela não aceita. Então significa o seguinte: o mundo tem de ser reduzido à dimensão das explicações que você já tem. Estar aberto para uma infinidade de fatos que você não entende é o começo da investigação, o começo dos estudos. Na verdade, os seres humanos têm explicação para muito poucas coisas.
Aluno: Qual o método para a leitura de Literatura Universal?
Olavo: O método é o seguinte: ler a literatura como se tudo aquilo fosse verdade. Ler as histórias como a criança lê, acreditando nelas. Vivencie as histórias, porque isso vai compor a sua imaginação. Só anos depois é que você vai pensar em estudos literários, em análise de texto. O problema é que as pessoas hoje entram numa faculdade de Letras sem ter lido nada e começam a fazer análise de texto. Analisam o texto sem ter o texto! O sujeito não leu nem Reinações de Narizinho e já chega lá com análise de texto. Assim não dá, meu filho! A humanidade se formou lendo a Bíblia, Homero, os clássicos gregos. Não havia análise literária e isso fazia bem para eles. Análise literária foi inventada numa certa época e em outra época vai acabar, vai surgir uma técnica melhor. Mas os clássicos da literatura estão aí, então leia e acredite em tudo. Leia Homero. Vocês conhecem a história de Heinrich Schliemann? É o cara que descobriu Tróia. Ele descobriu Tróia porque ele leu Homero e acreditou em tudo. Ele leu como quem lê uma narrativa histórica e pensou: "Bom, então Tróia deve estar em tal lugar." E foi lá e descobriu o raio da Tróia! Leia o Evangelho também como se fosse verdade e você vai ver o que vai acontecer. Você pode descobrir coisas muito mais importantes do que Tróia. Leia tudo como se estivesse acontecendo, daí você vai ver que algumas coisas aconteceram e outras são apenas possíveis. Leia com total ingenuidade; são narrativas, e a única coisa que você quer é conhecer a variedade das situações humanas. Leia só com esse objetivo, não faça análise coisa nenhuma, nós não estamos aqui para estudar livros. O método do Mortimer Jerome Adler é para estudar livros, para conhecer a história da cultura. Você pode fazer isso mais tarde, mas nós não estamos fazendo isso; nós estamos primeiro tentando adestrar a nossa inteligência para a compreensão da realidade. O estudo dos livros é uma atividade especializada perto disso. Primeiro nós temos que aprender a ter essa abertura e essa conformidade com a realidade, na totalidade da sua extensão e da sua variedade. Isso já vai fazer um bem para vocês, que vocês não podem imaginar! Leia Guerra e Paz como se tivesse acontecido. Leia e acredite. É como dizia Aristóteles: se aquilo não aconteceu, é o que poderia ter acontecido. Então você tem um esquema de possibilidades que é muito próximo da realidade. Se você quiser saber o que aconteceu realmente nas guerras napoleônicas, vai ter de ler uns mil livros e ainda estará incompleto, mas Tolstói consegue imaginar um esquema que pode ter sido possível. Lendo isso, talvez você saiba mais do que se estudasse bastante a história daquele período, porque a história não poderia fornecer um esquema formal completo da coisa. Ao terminar de ler *Guerra e Paz, *você não tem a realidade histórica, mas tem uma hipótese bastante plausível --- a imaginação cria hipóteses. Se você tiver um monte de hipóteses na cabeça (mesmo sem saber se elas são reais), quando você for confrontado com uma situação real, você saberá cruzar essas várias hipóteses --- então pronto, você já está mais inteligente do que o vizinho. Se você conhecer vários personagens e conseguir, com eles, compor mais ou menos a personalidade de uma pessoa que você conhece, ou de um personagem público, a sua visão já será mais rica do que a da maior parte das pessoas. É disso que eu estou falando: enriquecer a imaginação primeiro, sem se preocupar em chegar a conclusões, em criar crenças filosóficas. Calma, tem muito tempo ainda. Eu mesmo fiz isso --- e não deu errado. Se tivesse dado errado, eu avisaria.
Bom, acho que por hoje é só. Já são oito horas da noite --- nove horas aí no Brasil.
Até semana que vem e obrigado.
[02:59:59]
Transcrição: João Pedro Vaz, Juliana Rodrigues, Luiz Felipe Adurens Cordeiro, Marcelo Hamnickel, Rodrigo Dubal, Felipe Augusto Cury, Luíza Monteiro de Castro
Revisão: Marcelo Hamnickel, Marcela Andrade
Revisão final: Daniel Berça